INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL
LIMITE LEGAL
Sumário

O limite de 100 mil euros previsto no n.º 10, do artigo 23.º, do EAJ diz respeito ao valor global da remuneração variável que é devida AI nos casos de liquidação da massa insolvente, e não apenas à primeira das parcelas que integram essa remuneração antes de calculada a majoração prevista no n.º 7 do mesmo artigo.

Texto Integral

PROC. N.º 1029/16.2T8STS-V.P1



Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

1. Nos presentes autos em que foi declarada a insolvência de AA, o administrador da insolvência (AI) BB veio, por requerimento de 22.02.2024, apresentar proposta de rateio final e de cálculo da sua remuneração variável, considerando que esta deve ser fixada em 277.335,92 € acrescida de IVA, num total de 341.123,18 €, sendo composta pelas seguintes parcelas:

- Remuneração variável a que se refere o artigo 23.º, n.º 4, al. b), da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro (5% do resultado da liquidação, ou seja, 5%x3.672.178,39€=183.608,92€), com o limite previsto no n.º 1, do mesmo artigo: 100.000,00 €, a que acresce o IVA, num total de 123.000,00 €;

- Majoração a que se refere o n.º 7, do mesmo artigo 23.º (5% do montante dos créditos satisfeitos, ou seja, 5%x3.546.718,39€): 177.335,92 €, a que acresce o IVA, num total de 218.123,18 €.

2. O credor Banco 1... (Banco 1...) manifestou a sua discordância, afirmando que o valor de 5% a que se reporta o artigo 23.º, n.º 7, do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ) não deve ser aplicado ao montante total apurado para satisfação dos créditos, mas sim ao grau/percentagem dos créditos reclamados e admitidos que obtém satisfação, e que, em qualquer caso, a remuneração variável nunca poderá ser superior ao montante de 100.000,00 € acrescido de IVA, pelo que deve ser fixada neste valor a remuneração variável devida ao AI.

3. Por “Termo de Apreciação do cálculo da remuneração variável”, a secretaria emitiu o seguinte parecer:

«Em 06-05-2024, compulsados os autos, concordamos com o cálculo da remuneração variável apresentado nos termos do artº 23º, nº 4, al. b), do EAJ, mas discordamos do cálculo da majoração, nos termos do artº 23º, nº 7, do EAJ.

No presente caso, afigura-se-nos que o cálculo apresentado não considerou o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, apresentando-se como um cumular de duas operações incidentes em ambos os casos “grosso modo” sobre o resultado da liquidação assim ignorando a variável “(…) do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos” prevista no nº 7 do artº 23º do citado Estatuto do Administrador Judicial, na redacção em vigor desde 11-04-2022.

Nesse sentido apontam igualmente os Acórdãos de 28-09-2022, 29-09-2022, 20-12-2022 e 24-01-2023, dos Tribunais da Relação de Coimbra, Évora, Lisboa e Porto, e o Acórdão de 18-04-2023, do Supremo Tribunal de Justiça.

Contudo, a remuneração variável obtida nos termos nos termos do artº 23º, nº 4, al. b), do EAJ, ultrapassa o limite dos 100.000,00€ previsto no artº 23º, nº 10, do mesmo diploma, pelo que deverá de ser considerado este montante, e, salvo melhor opinião, acrescido da majoração, uma vez que o citado nº 10 refere que "A remuneração calculada nos termos da alínea b) do nº 4 não pode ser superior a 100 000 (euro)", não excluindo ou limitando a majoração que é calculada com as regras do nº 7, sem prejuízo do disposto no nº 8, ambos do artº 23º do EAJ.

Face ao exposto, entendemos que, na situação em apreço, quanto à fixação da remuneração variável, importará considerar o cálculo que a seguir apresentamos».

De acordo com o cálculo junto, a remuneração variável a que se refere o artigo 23.º, n.º 4, al. b), da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro deve ser fixada em 199.316,63 € (5%x3.986.332,67€), mas reduzida a 100.000,00 €, por força do n.º 10 do mesmo artigo. A majoração a que se refere o n.º 7, do mesmo artigo 23.º deve ser fixada em 60.121,31 € [5%x(31,144%x3.860.872,67€)]. Assim, o valor global da remuneração dever ser fixado em 160.121,31 € acrescida de IVA, num t0tal de 196.949,21 € [afigura-se haver um pequeno lapso nestes cálculos, visto que 5% x (31,144% x 3.860.872,67) perfaz 60.121,51 €].

4. Este cálculo mereceu a discordância do credor Banco 1..., que manteve a posição anteriormente assumida.

5. Os autos foram com vista ao MP, que manifestou a sua discordância relativamente às propostas apresentadas pelo AI e pela secretaria e, secundando a posição do credor Banco 1..., defendeu que, nos processos em que a remuneração variável seja calculada sobre o resultado da liquidação da massa insolvente, o limite de 100 mil euros fixado no artigo 23.º, n.º 10, do EAJ é aplicável à remuneração variável total, compreendendo a majoração, mais citando diversa jurisprudência nesse sentido.

6. Em 21,06.2024 foi proferido despacho onde, aderindo ao parecer do MP, o tribunal a quo fixou a remuneração variável do AI no valor de 100.000,00 €.


*

Inconformado, o AI veio apelar desta decisão, concluindo assim a sua alegação:

«I. Do LIMITE CONSAGRADO NO ARTIGO 23/10 DO EAJ

1) No entendimento do tribunal a quo, reflectido no despacho recorrido, a soma do valor da remuneração variável calculado nos termos do art. 23.º, 4, b), do EAJ com o valor da majoração calculado nos termos do art. 23.º, 7, do EAJ nunca poderá ultrapassar o montante de 100.000,00€.

2) Assim, uma vez que a primeira parcela da remuneração variável (a prevista no artigo 23.º, 4, b), do EAJ) ultrapassava já aquele limite, o tribunal a quo fixou-a, desde logo, em 100.000,00€ e não procedeu ao cálculo da majoração prevista no artigo 23.º, n.º 7.

3) O limite de 100.000 euros estabelecido no art. 23.º, 10, do EAJ apenas se aplica ao valor alcançado por aplicação do disposto no art. 23.º, 4, b), e 6, do EAJ.

4) Assim, o limite referido não se aplica à majoração prevista no art. 23.º, 7, do EAJ: não se aplica a essa majoração individualmente considerada ou quando somada à remuneração variável devida por força do art. 23.º, 4, b), do EAJ.

5) Essa é a conclusão a que se chega, desde logo, por força da letra do art. 23.º, 10, do EAJ, que apenas considera aplicável o mencionado limite à «remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4» - tal redacção mostra, assim, que são decisivos os «termos» em que é calculada a remuneração que se pretende limitar.

6) A própria letra do art. 23.º, 4, do EAJ apoia as conclusões anteriores, pois aquele último preceito mostra estar ali em causa «uma» remuneração variável, mas não toda a remuneração variável – com efeito, a majoração prevista no art. 23.º, 7, do EAJ é também remuneração variável, mas é calculada em termos diferentes dos que encontramos previstos no art. 23.º, 4, b).

7) Mobilizando agora o elemento sistemático, vemos que a colocação do limite de 100.000 euros no art. 23.º, 10, confirma o que dissemos até aqui: o facto de o n.º 10 fazer referência a uma remuneração calculada nos termos do n.º 4, b), e de a majoração surgir prevista no n.º 7 (isto é, entre o n.º 4 e o n.º 10) mostra bem que o art. 23.º, 10, não queria sujeitar aquela majoração ao limite de 100.000 euros.

8) Além disso, o art. 23.º, 7, do EAJ, ao estabelecer que a majoração diz respeito ao valor alcançado por aplicação das regras do art. 23.º, 4, b), mostra que a lei quis distinguir, de um lado, a remuneração variável de que trata o art. 23.º, 4, b), e, do outro, a majoração, sendo essa diferenciação assumida pelo art. 23.º, 10.

9) O poder de reduzir a remuneração do administrador judicial conferido ao juiz no art. 23.º, 8, do EAJ também mostra que o art. 23.º, 10, não se aplica à majoração do art. 23.º, 7, individualmente considerada ou quando somada à remuneração variável prevista no art. 23.º, 4, b).

10) Na verdade, o limite de 100.000 euros de que trata o art. 23.º, 4, b), do EAJ é cego, não tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, pelo que faz sentido que se aplique apenas à remuneração variável calculada nos termos do art. 23.º, 4, b), do EAJ (isto porque não seria minimamente adequado aplicar um limite cego a uma majoração calculada tendo em conta o «montante dos créditos satisfeitos»).

11) Pelo contrário, a redução que o juiz pode fazer ao abrigo do art. 23.º, 8, do EAJ tem necessariamente em conta as circunstâncias do caso concreto, pelo que se compreende que se aplique o disposto na citada norma à remuneração global do administrador judicial, aí incluindo a majoração prevista no art. 23.º, 7, do EAJ.

12) Aliás, o art. 23.º, 8, do EAJ, ao estabelecer que o juiz pode determinar que a remuneração devida para além de 50.000 euros seja reduzida, está a pressupor que a majoração de que se ocupa o art. 23.º, 7, do EAJ pode ir muito além dos 100.000 euros.

13) O art. 23.º, 10, do EAJ apenas manda aplicar o limite de 100.000 euros ali previsto à remuneração calculada nos termos do n.º 4, b).

14) No entanto, a lei, quando quis abranger no seu âmbito de aplicação outras formas de remuneração, soube dizê-lo com clareza: vejam-se, designadamente, os arts. 23.º, 8, 16.º-A, 2 e 28.º-A, 2, do EAJ.

15) Quanto ao elemento teleológico, registe-se que a não aplicação do limite de 100.000 euros (art. 23.º, 10, do EAJ) à majoração prevista no art. 23.º, 7, do EAJ é a leitura que melhor realiza a finalidade de conseguir uma remuneração dos administradores judiciais que permita uma resolução eficiente dos processos (finalidade que está prevista no art. 27.º, 4, 1.º par., da Diretiva 2019/1023, transposta pela L 9/2022).

16) A inexistência de limites cegos quanto ao valor que pode atingir a majoração calculada a partir do montante dos créditos satisfeitos cria um estímulo adequado no sentido da resolução eficiente dos processos de insolvência.

17) Pelo contrário, a aplicação de um limite cego de 100.000 euros ao valor da majoração calculada a partir do montante dos créditos satisfeitos criaria um estímulo desadequado à referida finalidade: criaria um estímulo para que os administradores judiciais, logo que atingissem um resultado que lhes permitisse alcançar o referido teto, deixassem de aplicar o devido na resolução eficiente dos processos de insolvência.

18) Além do exposto, nota-se ainda que a imposição do limite inultrapassável de 100.000,00€ à remuneração variável do Administrador Judicial conduziria à situação paradoxal de, nos processos de maior valor, descurar o incentivo ao desempenho recto, independente e eficiente das funções de administração da insolvência, quando é precisamente nesses casos que mais se impõe a protecção de tais princípios, valores e interesses.

Acresce que,

19) A interpretação que o tribunal a quo faz do limite previsto no artigo 23.º, n.º 10 do EAJ redunda ainda no seguinte resultado pernicioso: a imposição de um limite de 100.000,00€ à globalidade da remuneração variável significa que, a partir de tal patamar, o trabalho que for desenvolvido pelo Administrador Judicial na recuperação do activo do devedor não será valorizado – assim, o Administrador Judicial que, a partir desse patamar, consiga obter, por exemplo, mais 1 milhão de euros para a massa insolvente será remunerado da mesma forma que o Administrador Judicial que não consiga obter quaisquer valores além do referido patamar.

20) O que significa remunerar da mesma forma trabalhos com méritos distintos, tudo redundando num regime desigualitário, que não pode admitir-se.

21) Nesta matéria, não será, aliás, despiciendo cotejar o regime da majoração da remuneração variável do Administrador Judicial com a remuneração adicional do Agente de Execução, que, à semelhança da primeira, visa “premiar a eficácia e eficiência da recuperação ou garantia de créditos na execução” (vide, Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto, Anexo VIII).

22) Ora, no caso da remuneração adicional do Agente de Execução, precisamente porque se pretende incentivar a eficiência na recuperação dos créditos, a lei não estabelece qualquer limite.

23) Assim, sendo a mesma a ratio da majoração da remuneração variável do Administrador Judicial, não se concebe por que razão se justificaria a divergência de tratamento relativamente ao regime aplicável ao Agente de Execução.

24) Afigura-se manifestamente desajustado que o Administrador da Insolvência visse a sua remuneração variável sujeita ao limite de 100.000€ e, consequentemente, auferisse, muitas vezes, valores manifestamente infeirores aos percebidos pelo Agente de Execução, tanto mais que o primeiro se encontra sujeito a condições notoriamente mais onerosas que o segundo no que tange às funções desempenhadas, à fiscalização e escrutínio da actividade e à responsabilidade em que pode incorrer.

Ademais,

25) A limitação que ora se discute representa uma ingerência estatal excessiva em direitos subjectivos como o de iniciativa económica privada e o direito patrimonial de retribuição da atividade desenvolvida;

26) Limitação que não encontra justificativa em outros valores constitucionais e/ou interesses, como o invocado – por certa jurisprudência – interesse dos credores: é que a imposição do limite remuneratório em causa revela-se, nessa matéria, contraproducente, prejudicando esses mesmos interesses que pretende salvaguardar-se,

27) Note-se que a jurisprudência do Tribunal Constitucional já se tem mostrado refractária da imposição de limites remuneratórios absolutos, como é exemplo o disposto no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 656/2014, de 14 de outubro de 201421, em que se acha exarado o seguinte:

“Todavia, a imposição de um teto máximo, inultrapassável, constitui uma imposição tão absoluta na fixação do valor da remuneração devida pela atividade pericial desenvolvida que, em abstrato, pode conduzir a situações em que o sacrifício imposto ao perito, designadamente no seu direito patrimonial de retribuição pela atividade desenvolvida, não seja devidamente compensado.”

28) No mesmo sentido, leiam-se as seguintes palavras do eminente constitucionalista Paulo Otero em douto parecer 05/02/2024:

“Será que, numa outra perspetiva, pode perguntar-se, as “normas travão” do Estatuto dos Administradores Judiciais, impondo limites máximos à respetiva remuneração, encontram justificação na circunstância de o direito/liberdade de iniciativa económica privada e o direito de propriedade privada (ou “direito patrimonial de retribuição da atividade desenvolvida”119) admitirem limitações (v. supra, nºs 2.10. e 2.12.), desde logo resultantes da ponderação de outros interesses decorrentes do “sistema constitucional no seu conjunto”120, tal como sucederá com razões de interesse público ou até com os interesses dos credores e/ou do devedor? Em que medida, por outras palavras, a existência de um valor máximo absoluto à remuneração variável do administrador judicial visaria tutelar interesses de outros intervenientes no processo?

[…]

(…) a existência de “normas travão” rígidas, absolutas, impondo limites máximos inultrapassáveis à remuneração dos administradores judiciais, uma vez que não permitem uma implementação integral do “objetivo de uma resolução eficiente dos processos” (v. supra, nºs 3.5. e 3.6.), nunca podem mostrar-se idóneas ou adequadas para garantir a tutela de interesses subsidiários, isto ainda que decorrentes do “sistema constitucional no seu conjunto”:

iii (i) A tomada em consideração desses outros interesses, sem plena realização ou conformidade integral ao interesse prevalecente definido pelo Direito da União Europeia, além dos efeitos inválidos em sede de inexecução das obrigações de um Estado-membro (v. supra, nº 3.5.), revela um erro de ponderação do legislador;

iv (ii) Trata-se de um erro reconduzível a uma violação do princípio da adequação ponderativa dos interesses em presença, enquanto manifestação integrante do princípio da proporcionalidade, reconduzindo-se a uma situação de inconstitucionalidade.

De um tal vício padece, por conseguinte, o artigo 23º, nº 10, do Estatuto do Administrador Judicial.”22

29) Ainda relativamente ao princípio da proporcionalidade, regista o seguinte:

“Em sentido convergente, no plano meramente interno, a jurisprudência constitucional diz-nos que não existe uma ilimitada liberdade de conformação legislativa na imposição de limites máximos absolutos de remuneração: o Tribunal Constitucional, através do seu Acórdão nº 33/2017, recuperando o que já havia dito no Acórdão nº 656/2014116, entendeu ser inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, “a fixação legal de um limite inultrapassável”, pois “«constitui uma imposição tão absoluta na fixação do valor da remuneração devida pela atividade (…) desenvolvida que, em abstrato, pode conduzir a situações em que o sacrifício imposto (…), designadamente no seu direito patrimonial de retribuição pela atividade desenvolvida, não seja devidamente compensado»”

A ausência de um qualquer mecanismo legal de flexibilidade de um limite máximo absoluto de remuneração de trabalhadores independentes, fixado sem qualquer margem ou folga de maleabilidade, tornando esse “limite inultrapassável”118, sem uma abertura normativa mínima de adaptação à diversidade de situações factuais, deve entender-se que constitui um excesso de intervenção legislativa limitativa do direito/liberdade de iniciativa económica privada (v. supra, nº 2.9.) e do próprio “direito patrimonial de retribuição da atividade desenvolvida” (v. supra, nº 2.11.): a norma da lei que fixa um limite inultrapassável ao valor máximo de remuneração de um administrador judicial deve considerar-se inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, sob a vertente de proibição do excesso.”23

30) Assim, a aplicação do limite previsto no art. 23.º, 10, do EAJ à majoração de que trata o art. 23.º, 7, do EAJ, representa uma restrição inadequada, desnecessária e desproporcional (em sentido estrito) da liberdade de iniciativa económica privada, direito constitucionalmente protegido (art. 61.º, 1, da Constituição da República Portuguesa - CRP).

31) A norma consagrada no artigo 23.º, n.º 10 do EAJ padece de inconstitucionalidade, por violação do disposto nos artigos 61.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2 da CRP, quando interpretada no sentido de que o limite ali previsto é aplicável à soma do valor da remuneração variável calculado nos termos do art. 23.º, 4, b), do EAJ com o valor da majoração calculado nos termos do art. 23.º, 7, do EAJ, inconstitucionalidade que aqui se argui e que impõe ao julgador que se abstenha de aplicar a norma na interpretação ora censurada.

32) A decisão recorrida suscita ainda dúvidas de constitucionalidade à luz do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP.

33) Agente de Execução e Administrador da Insolvência são profissionais de categorias idênticas (note-se que o artigo 11.º, al. a) do EAJ consagra um princípio de equiparação entre Administrador Judicial e Agente de Execução), sob a alçada da mesma organização profissional (CAAJ), ambas compreendendo funções de liquidação em processo de execução (singular, no caso do Agente de Execução; universal, no caso do Administrador Judicial).

34) Também a natureza da remuneração em causa é idêntica: tanto a remuneração adicional do Agente de Execução como a remuneração variável do Administrador Judicial visam incentivar o sucesso da liquidação, ambas se submetendo a um critério de recuperação/satisfação de créditos.

35) Em face da identidade de circunstâncias vinda de destacar, entende-se que a interpretação normativa proposta pelo tribunal a quo, no sentido de impor um limite à remuneração variável do Administrador Judicial (limite esse que não tem aplicação no caso da remuneração adicional do Agente de Execução), não resiste a um juízo de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, pois que opera uma distinção injustificada entre profissionais em situação de tendencial paridade.

Acresce que,

36) Ao aplicar um regime não previsto na lei, sujeitando a majoração consagrada no n.º 7 do art. 23.º do EAJ ao limite estatuído no n.º 10 do citado artigo, o tribunal a quo como que criou uma nova norma – fora dos casos previstos no artigo 10º do C.C. -, arrogando-se um poder legislativo de que não dispõe e, assim, violando o princípio da separação de poderes previsto nos arts. 2º e 111º da CRP.

37) Assim, também por esta razão, o regime legal que resulta dos artigos 23.º, n.º 4, al. b), n.º 7 e n.º 10, quando interpretado e mobilizado no sentido propugnado pelo tribunal a quo, padece de inconstitucionalidade, que aqui se argui e que impõe ao julgador que se abstenha de aplicar tais disposições na interpretação ora censurada.

Ademais,

38) A valorização da remuneração do Administrador Judicial em função do êxito dos resultados obtidos apresenta-se como uma imposição do Direito da União Europeia, designadamente do disposto na Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, artigo 27.º, n.º 4.

39) Assim, o artigo 23.º, n.º 10 do EAJ, quando interpretado e aplicado como limite cego à remuneração variável do Administrador Judicial, nos termos propugnados pelo tribunal a quo, é uma norma inválida, porque violadora do Direito da União Europeia.

40) Entre interpretar ou não o artigo 23.º, n.º 10 do EAJ como um limite absoluto a toda a remuneração variável do Administrador Judicial, o julgador deverá, a priori e em abstracto, atribuir preferência à solução menos restritiva do direito, só optando por solução diversa quando caso tal se impusesse em função de outros interesses constitucionais, o que não sucede.

41) Não sendo o limite previsto no artigo 23.º, n.º 10 aplicável à majoração da remuneração variável, além de 100.000,00€ devidos a título de remuneração variável pela aplicação do disposto no artigo 23.º, 4, b), do EAJ, cumpre fixar ainda o valor a título de majoração, prevista no artigo 23.º, n.º 7 do citado diploma.

II. Do CÁLCULO DA MAJORAÇÃO PREVISTA NO ARTIGO 23/7 DO EAJ

42) A majoração prevista no artigo 23.º, n.º 7 do EAJ calcula-se aplicando a percentagem de 5% directamente sobre o montante dos créditos satisfeitos.

43) A redacção do artigo 23.º, n.º 7 do EAJ é sobejamente clara, determinando expressamente que a majoração da remuneração do administrador da insolvência corresponde a 5% do montante dos créditos satisfeitos.

44) Decorre directa e inequivocamente da citada norma que a taxa de 5% deve ser aplicada sobre um montante - “importância, soma, verba”24-, isto é, sobre um valor nominal.

45) Em sentido oposto e conflituante com o da norma, decidiu o tribunal a quo aplicar a taxa de 5% não a um montante, mas a uma percentagem, que corresponderia ao grau de satisfação dos créditos reconhecidos.

46) Em consonância com a posição ora propugnada pelo recorrente, o Exmo. Sr. Dr. Alexandre de Soveral Martins, Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em Parecer datado de 20/11/2022, regista que “no âmbito do processo de insolvência de liquidação, a majoração a efectuar nos termos do art.º 23.º, 7, do EAJ deve ser calculada a partir do montante dos créditos satisfeitos, aplicando-se a esse montante a percentagem de 5%”.

47) Esclarece o douto académico que “a referência a um «grau» de satisfação feita no n.º 7 do art.º 23.º do EAJ não significa que se tenha de efectuar uma primeira operação para reduzir o valor sobre o qual incidirá a percentagem de 5% ou uma primeira operação para reduzir o valor da percentagem a aplicar ao montante dos créditos satisfeitos. (…) O facto de o art. 23.º, 7 do EAJ estabelecer que a majoração é realizada «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» não significa que, onde está escrito que a majoração tem lugar «em 5% do montante dos créditos satisfeitos», deva ler-se outra coisa.”

48) Na mesma esteira, Freitas Araújo, MM.º Juiz de Direito no 1.º Juízo de Comércio de Aveiro/Anadia, não apresenta quaisquer hesitações em asseverar que a percentagem de 5% prevista no artigo 23.º, n.º 7 EAJ deve ser directamente aplicada sobre o valor dos créditos satisfeitos, sequer cogitando a hipótese de aplicação sobre uma outra percentagem em termos análogos aos vertidos na decisão aqui em crise.

49) No sentido de que a referida percentagem de 5% deve ser aplicada directamente sobre o montante dos créditos satisfeitos, vide, a título exemplificativo:

-Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 12/07/2023; de 07/02/2023 – pcs 965/15.8AMTE.P1; de 18/04/2023 – pcs 1024/10.5TYVNG-P1; de 10.01.2023 - pcs 3454/20.5T8STS-K; de 28-02-2023 – pcs 1208/21.0T8AMT-E.P1; de 16-05-2023 – pcs 1892/19.5T8AVR.P1;

-Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20-09-2022 - pcs 9849/14.6T8LSB-E; de 20-12-2022 - pcs 415/13.4TYLSB-E; de 20-12-2022 – pcs 22770/19.2T8LSB-F

50) É certo que aos supra citados acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa sobreveio um outro, datado de 02/05/2023, dessa mesma Relação, em que as Venerandas Desembargadoras alteraram a posição anteriormente assumida na matéria em causa, na sequência do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18/04/2023 (pcs 3947/08.2TJCBT-AY.C1.S1), aderindo à tese de que a percentagem de 5% prevista no artigo 23.º, n.º 7 do EAJ deve aplicar-se não directamente sobre o montante dos créditos satisfeitos, mas a uma outra percentagem, correspondente ao grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos.

51) Mas entende humildemente o apelante que a argumentação ali aduzida sempre soçobrará no confronto com as razões apresentadas em sustentação da tese aqui propugnada, maxime no seguinte aspecto essencial e proeminente da discussão:

52) O apuramento do valor da majoração com base no valor (nominal) dos créditos satisfeitos, em sentido diametralmente oposto ao que se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02/05/2023, não implica a desconsideração do critério do grau de satisfação; é, pelo contrário, a concretização desse critério, nos termos em que foi conformado pelo legislador.

53) Dir-se-á, aliás, que a posição sufragada no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02/05/2023, essa sim, implica uma interpretação abrogante, uma vez que, conforme se regista no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 16-05-2023, “desconsidera o segmento da norma que refere «5% do montante dos créditos satisfeitos», valor que se alcança sem necessidade de recurso a qualquer operação aritmética prévia destinada a apurar uma determinada percentagem.”

54) Em face do exposto deve, no caso sub judice, aplicar-se a taxa de 5% sobre o valor de 3.546.718,39€ (montante dos créditos satisfeitos), de onde resulta uma majoração da remuneração variável do administrador da insolvência no valor de €177.335,92 (valor sem IVA),

55) O que, somado ao valor de €100.000,00 (sem IVA), a título de remuneração variável em função da liquidação da massa insolvente (artigo 23.º, n.º 4, al. b) EAJ), resulta num total de remuneração variável de €277.335,92.

EM FACE DO EXPOSTO,

56) Com o devido respeito, a decisão recorrida viola, no entendimento do recorrente, o disposto no art.º 23.º, n.ºs 7 e 10 da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, com a redacção introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, bem como o disposto nos artigos 61.º, n.º 1 e 18.º, n.º 2, 2.º e 111.º da CRP;

57) Devendo a mesma ser objecto de revogação e substituída por outra que, da lavra dos Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação, aprove o cálculo da remuneração variável formulado pelo recorrente (requerimento de 22/02/2024, ref.ª 48056790) fixando a sua remuneração variável em:

a.€100.000,00 a título de remuneração variável, a que alude o art.º 23.º n.ºs 4, alínea b) Lei n.º 22/2013, de 23 de Fevereiro (mantendo-se, nessa parte, a decisão recorrida);

b.€277.335,92 a título de majoração, a que alude o art.º 23.º n.º 7 da Lei n.º 22/2013, de 23 de Fevereiro;

c.montantes esses acrescidos de IVA à taxa legal em vigor».

Juntou parecer de jurisconsulto, o abrigo do disposto no artigo 651.º, n.º 2, do CPC.


*

O credor Banco 1... apresentou resposta a esta alegação, que concluiu assim:

«1. Entendem Apelante e o Tribunal “a quo“ que apesar do apenso de liquidação ter sido iniciado antes de 2022, o cálculo da remuneração variável do AI terá que ser feito de acordo com a Lei 9/2022 de 11 de Janeiro, por se aplicar aos processos pendentes;

2. Ora, entendemos que o artigo 10º da Lei 9/2002 de 11 de Janeiro é inconstitucional por violação do princípio da não retroatividade consagrado no artigo 12-1 do C. Civil; sem prescindir,

3. O legislador de 2022 não atribuiu duas remunerações variáveis ao administrador de insolvência;

4. O legislador usa o termo remuneração indiferentemente para indicar a remuneração global (60º nº1 do CIRE e 23º nºs 1, 8 e 9 do EAJ), ou seja, o pagamento do administrador pelo exercício das suas funções, e para indicar a remuneração fixa e variável (23º nºs 1, 3, 4 e 11);

5. Na se pode efetuar, como o faz o Apelante, apenas uma interpretação literal do nº10 do artigo 23 do EAJ;

6. Nos termos do artigo 9º do C. Civil, a interpretação correta daquele preceito legal é a de que o limite de € 100.000,00 representa o limite absoluto para a remuneração variável no seu todo, e não apenas o limite da remuneração sem majoração;

7. Esta interpretação não viola o princípio da igualdade em comparação com o regime dos agentes de execução pois a natureza, objeto e fim dos dois regimes são manifestamente desiguais;

8. Não existe qualquer violação do princípio da proporcionalidade e subsequente violação do artigo 61 da CRP quer por o fim do processo do de insolvência visar a satisfação dos credores (artigo 1º do Cire), quer por não existir qualquer desproporção entre os benefícios pretendidos pelos administradores em confronto com os sacrifícios impostos aos credores;

9. O que o Apelante pretende é “quinhoar” nas receitas, esquecendo-se que não estamos perante uma atividade geradora de excedentes, criadora de riqueza;

10. Inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade seria atribuir ao Apelante uma remuneração de € 341.123,18;

11. A Diretiva Comunitária 2019/1023 não estabeleceu quaisquer montantes e modo de cálculo da remuneração dos administradores de insolvência, deixando para os seus Estados - Membros a sua regulamentação;

12. Não existe qualquer violação do princípio da separação de poderes porquanto o Tribunal “a quo” não criou ou aplicou uma nova norma geral e abstrata, tendo apenas feito a sua interpretação de um preceito legal vigente;

13. Por todo o exposto, bem andou o Tribunal “a quo” ao fixar a remuneração do Apelante no montante de € 100.000,00 (acrescido de Iva).

Deverá, assim, ser negado provimento ao presente recurso».


*

II. Fundamentação

1. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).

Atento o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, são as seguintes as questões a decidir:

- Se o limite de 100 mil euros consagrado no artigo 23.º, n.º 10, do EAJ se aplica à remuneração variável na sua globalidade, ou se apenas se aplica à primeira parcela dessa remuneração, antes de aplicada a majoração prevista no n.º 7 do mesmo artigo;

- Se a majoração de 5% prevista neste número incide sobre o montante total apurado para satisfação dos créditos ou sobre o resultado de uma operação aritmética prévia destinada a apurar o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos.

2. Nos termos do disposto nos artigos 60.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) e 22.º do EAJ, o AI tem direito, pelo exercício das funções que lhe são cometidas, à remuneração prevista no seu estatuto, quando for nomeado pelo juiz, ou à remuneração prevista na assembleia de credores, quando for eleito por esta, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento daquelas funções.

A remuneração do AI e o reembolso das despesas constituem dívidas da massa insolvente (cfr. artigo 51.º, n.º 1, al. b), do CIRE) e são suportadas por esta (cfr. artigo 29.º do EAJ), a não ser nas situações expressamente previstas na lei.

A remuneração no AI nomeado por iniciativa do juiz – como sucedeu no presente caso – é fixada nos termos previstos no artigo 23.º do EAJ, na redacção introduzida pelo artigo 5.º da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que entrou em vigor no dia 11.04.2022 e é imediatamente aplicável aos processos pendentes, nos temos da norma transitória consagrada no seu artigo 10.º, n.º 1 (neste sentido, vide o ac. do TRL, de 20.09.2022, proc. n.º 9849/14.6T8LSB-E.L1-1, rel. Fátima Reis Silva, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da fonte).

Num breve parêntesis acrescente-se, desde já, que se mostra totalmente inconsistente a afirmação do credor Banco 1... de que a referida norma transitória «é inconstitucional pela interpretação que fazem do artigo 12-1 do C. Civil», bem como a argumentação de que «uma lei retroativa é inconstitucional por violação do princípio da confiança e da segurança jurídica (sub princípios concretizadores do estado de direito)». Em primeiro lugar, uma lei não pode ser julgada inconstitucional por violar uma norma do Código Civil. Em segundo lugar, o apelado não chega a concretizar a norma constitucional que considera violada pela norma transitória em análise [ou pelo próprio artigo 12.º do CC (?)]. Em terceiro lugar, nem este artigo 12.º do CC nem a Constituição da República Portuguesa consagram um princípio geral de proibição da retroactividade das leis, exceptuadas algumas áreas do direito que aqui não estão em causa (mormente o direito penal e o direito fiscal). Por último, não se vislumbra em que medida os princípios da confiança e da segurança jurídica (ou outros direitos constitucionalmente protegidos) possam ter sido atingidos pela concreta norma transitória. Verificando-se que a lei vigente antes das alterações introduzidas no EAJ pela reforma de 2022 remetia para uma Portaria cuja publicação era aguardada (mas que nunca chegou a ser publicada, o que levou os tribunais a continuar a aplicar a Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro), não se pode dizer que os credores e demais interessados «tivessem uma expectativa legítima e justificada na manutenção das regras de cálculo, antes parecendo que deviam prever que as mesmas viessem a ser alteradas/actualizadas, uma vez que há muito se verificava a omissão legislativa. Acresce que, como se verá infra, na interpretação da lei nova que perfilhamos o accionamento das normas-travão nela consagradas obsta à fixação de uma remuneração excessiva e desproporcionada, que seria susceptível de causar abalo considerável à confiança dos intervenientes no processo» – cfr. ac. do TRE de 15.12.2022 (rel. Maria Domingas, antes citado).

Em suma, nada obsta à aplicação ao caso concreto do artigo 23.º do EAJ, na redacção introduzida pelo artigo 5.º da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro.

Em conformidade com esta disposição legal, a remuneração do AI é composta por uma parte fixa de 2 mil euros (cfr. n.º 1) e uma parte «variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente» (cfr. n.º 4)

Como escreve Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Coimbra 2021, p. 81), «[c]ompreende-se a intenção do legislador: a parte fixa permite maior certeza na remuneração e a parte variável constitui como que uma motivação para o bom exercício da actividade», pois a (parte variável da) remuneração será tanto mais elevada quanto maior for o resultado da liquidação e a satisfação dos créditos reclamados.

Nos termos daquele n.º 4, do artigo 23.º, o valor da parte variável da remuneração é calculado, consoante se baseia no resultado da recuperação do devedor ou no resultado da liquidação da massa insolvente, «nos termos seguintes:

a) 10 % da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;

b) 5 % do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6».

No presente caso, tendo sido determinada a liquidação do património dos insolventes, releva esta al. b), para cujos efeitos se considera «resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência» (cfr. n.º 6).

Acrescenta o n.º 7, do mesmo artigo 23.º, que «[o] valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 % do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles».

Assim, para além da remuneração fixa, cujo valor não está em causa neste recurso, o AI tem direito a uma remuneração variável, correspondente a 5% do resultado da liquidação da massa insolvente, o qual é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos.

Por fim, com interesse na economia deste aresto, o n.º 10 do referido artigo 23.º preceitua o seguinte: «A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro)».

3. A primeira das questões suscitadas na presente apelação diz respeito à interpretação deste n.º 10.

Numa leitura mais restritiva da letra desta norma, o apelante defende que a mesma se refere apenas à parcela da remuneração variável correspondente a 5% do resultado da liquidação da massa insolvente, não abarcando a remissão para o n.º 4, al. b), a majoração prevista no n.º 7 do mesmo artigo, pelo que esta não está sujeita a qualquer limite máximo (sem prejuízo do disposto no n.º 8 da mesmo artigo 23.º).

Preconizando uma interpretação menos restritiva daquele preceito, o tribunal a quo (bem como o apelado Banco 1... e o MP) considera que, ao remeter para a remuneração calculada nos termos da al. b) do n.º 4, o mesmo está a referir-se à remuneração variável calculada em função do resultado da liquidação da massa insolvente, por contraposição à remuneração variável calculada em função do resultado da recuperação do devedor, prevista na al. a), do mesmo n.º 4, assim abarcando a totalidade daquela remuneração e não apenas uma parcela da mesma.

Os Tribunais da Relação já foram chamados a pronunciar-se sobre esta questão e, tanto quanto sabemos, todos sufragaram a tese preconizada na decisão recorrida, não se conhecendo – nem sendo citada pelo recorrente – qualquer decisão em sentido contrário.

Por fazer uma resenha dos argumentos que vêm sendo esgrimidos por esta jurisprudência, julga-se inteiramente pertinente transcrever parte significativa o recentíssimo acórdão desta mesma Relação, de 10.09.2024 (proc. n.º 380/12.5TYVNG-N.P1, rel. Alexandra Pelayo):

«Este nº 10 constitui uma inovação da Lei n.º 9/2022, de 11-01-22, e tem suscitado algumas dúvidas de interpretação, nomeadamente a que a aqui se suscita, de saber se o limite de €100,00 euros é aplicável aquando do cálculo dos 5/prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6 – nos termos da alínea b) do n.º 4, ou se, abrange ainda a majoração que é feita, nos termos do nº 7 da mesma norma, aplicando-se à remuneração variável no seu todo, não apenas àquela parcela do seu cálculo.

A decisão recorrida, perfilhou, tal como aí se expressa, “(…) o entendimento exposto, entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Dezembro de 2022 (in www.dgsi.pt), onde se lê o seguinte: “O limite previsto no art. 23º nº 10 do Estatuto do Administrador Judicial é aplicável à remuneração variável total, compreendendo a majoração, nos processos em que a remuneração variável seja calculada sobre o resultado da liquidação da massa insolvente, funcionando como limite da mesma e não apenas da parcela achada com a operação de cálculo prevista na al. b) do nº 4 e no nº 6 do mesmo artigo” e também a interpretação feita “no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15 de Dezembro de 2022 (in loc. cit.), “O n.º 10 do preceito contém também uma norma “travão”, fixando para a remuneração variável de AJ no caso de liquidação – sentido em que deve ser interpretada a remissão para a alínea b) do n.º 4 – um limite de € 100.000,00”.

De acordo com o art. 9º do CC, são dois os fatores interpretativos: “a) o elemento gramatical (isto é, o texto, a “letra da lei”) e b) o elemento lógico. Este último, por seu turno, aparece-nos subdividido em três elementos: a) o elemento racional (ou teleológico), b) o elemento sistemático e c) o elemento histórico.”, sendo que a letra da lei e o espírito da lei têm sempre que ser utilizados conjuntamente.[1]

A letra da lei é suscetível de causar dúvidas, no sentido em que, pretendendo o legislador aplicar o limite máximo à globalidade da remuneração variável, podia ter expresso o seu pensamento referindo-se diretamente a essa parte da remuneração do administrador judicial.

Porém, não o tendo feito, tal não invalida, que a ela se tenha querido referir, tendo em vista a remuneração variável na liquidação na sua totalidade, por contraposição à remuneração devida na recuperação, a que alude a outra alínea, a al. a), da mesma disposição do nº4 do art. 23.º do EAJ, “Pois este art. 23.º/4 do EAJ é que constitui a norma legal que atribui a remuneração variável, sendo a al. a) reportada à recuperação e a al. b) relativa à liquidação, pelo que, é possível que o limite máximo previsto no nº 10 tivesse tido em consideração a remuneração global (pela liquidação).

De modo que, nesta segunda hipótese interpretativa, a “remuneração calculada nos termos da al. b) do nº 4 “constituiria apenas uma forma diversa de dizer “remuneração variável na liquidação”, e sinónima ainda de “processos em que haja liquidação da massa insolvente”, a que alude o nº 8, sendo todas essas expressões utilizadas pelo legislador, reportadas, nesta interpretação, à mesma realidade.”[2]

Com efeito, reconstruindo-se o pensamento legislativo, é perfeitamente admissível que o legislador pode ter tido em vista a remuneração variável na liquidação na sua totalidade, por contraposição à remuneração devida na recuperação, a que alude a outra alínea, a al. a), da mesma disposição do nº 4 do art. 23.º do EAJ.

E se por regra as remunerações não conhecem limites máximos, rigidamente estabelecidos no processo de insolvência, a não ser nos casos expressamente previstos (como ocorre com o fiduciário), a imposição de limites legais ocorre noutras situações, em que há lugar à fixação de remuneração (veja-se por exemplo, o limite estabelecido no art. 17º nº 4 do Regulamento das Custas Judiciais, para a remuneração das entidades que intervenham nos processos judiciais ou que coadjuvem em quaisquer diligencias, como peritos, tradutores ou consultores técnicos).

E o limite fixado de €100,000 euros (para a parte variável) da remuneração, atento o contexto sócio económico em que vivemos, é um valor em si considerado bastante elevado, pelo que, a interpretação perfilhada é também aquela que mais se adequa a evitar remunerações exorbitantes, sem paralelo relativamente a remuneração de outros participantes no desempenho da atividade judicial[3], no contexto económico em que vivemos.

Desta forma subscrevemos a jurisprudência dos acórdãos que a seguir mencionados:

O Acórdão da Relação de Lisboa de 20.12.2022 citado no despacho recorrido[4], fundou a sua decisão no seguinte raciocínio interpretativo, que passamos a transcrever: “[a) Primeiramente, porque quando se refere à remuneração, o legislador pretende reportar-se ao seu valor global, uma vez que, com todas as suas componentes, “a remuneração variável integra a remuneração do administrador judicial (…) e todas estas aceções da remuneração se integram na remuneração global, de acordo com a norma do nº 1 do art. 60.º do CIRE”. b) Por outro lado, atenta a organização do art. 23.º do EAJ e o lugar em que foi introduzido o limite máximo de € 100.000,00, visto que “a sistemática do preceito, inserindo esta norma no nº 10, após a previsão de todas as (demais) operações de cálculo da remuneração, incluindo a majoração do nº 7, aponta no sentido de que o legislador se estará a referir a um limite absoluto à remuneração a aplicar depois de todas as operações antes previstas”. c) Para além disso, um argumento simultaneamente de ordem sistemática e racional, que radica na manutenção da norma do nº 8 do preceito, que prevê a redução, por decisão do juiz, do valor da remuneração que supere 50.000,00€, e que notoriamente visa o seu montante global, pois não faria “qualquer sentido limitar a primeira parcela de uma remuneração a cem mil euros e depois (…) de lhe somar uma segunda parcela (…), permitir ao julgador que reduza a soma das duas parcelas a € 50.000,00. Finalmente, com recurso a um argumento histórico, o aresto compara o texto do projeto da portaria de 2019 com a redação final da lei, afirmando que no art. 2.º daquele, “o nº3 tinha uma redação similar ao atual art. 23.º, nº 10, mas o uso da expressão remuneração, naquele local, não deixava qualquer dúvida de que o limite compreendia todas as parcelas da remuneração variável”].”.

E é este, na verdade, o entendimento que tem sido acolhido pelos Tribunais superiores, chamados a pronunciar-se sobre esta questão.

Com efeito, mostra-se esta interpretação ainda acolhida em acórdão da mesma data e Relação de Lisboa[5] (no P 1159/11.7TYLSB-J.L1) e mais recentemente no Acórdão de 4.6.2024 (P 1545/09.2TYLSB-L.L1-1.[6]

Também nesta Relação do Porto, foi a questão apreciada e decidida em acórdão de 18.4.2023, no P 1024/10.5TYVNG-N.P1[7], com o seguinte sumário: “O limite de 100.000€ previsto no art. 23.º, n.º 10, do EAJ, representa o teto máximo para a remuneração variável no seu todo, e não apenas o limite da componente da remuneração sem a majoração.”

No Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 12-09-2023 (proferido no P1510/14.8TBACB.C1)[8], foi decidido que, “O limite previsto no art. 23.º, n.º 10, do Estatuto do Administrador Judicial é aplicável à remuneração variável total, compreendendo a majoração, nos processos em que a remuneração variável seja calculada sobre o resultado da liquidação da massa insolvente, funcionando como limite da mesma e não apenas da parcela achada com a operação de cálculo prevista na al. b) do nº 4 e no nº 6 do mesmo artigo.”

De igual forma o acórdão do TRE de 15 de dezembro de 202, proferido no processo 1157/17.7T8OLH-M.E1[9], é dito de forma esclarecedora o seguinte: “O n.º 8 (do art.º 23º do EAI) contém uma norma que permite limitar eventual desproporção entre a atividade desenvolvida, o resultado obtido e o montante da remuneração que se atinja pela aplicação das regras de cálculo expostas nas precedentes disposições, dispondo que “Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50.000,00 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.

Faz-se aqui notar que esta norma “travão” pode ser ativada pelo juiz sempre que a remuneração variável – incluindo a majoração, como resulta claro da referência ao “disposto nos números anteriores”, englobando quer a regra de cálculo do n.º 4, alínea b), quer do precedente n.º 7 – exceda o montante de € 50.000,00 por processo. E sublinha-se este aspeto porque uma leitura sistemática e integrada do preceito leva-nos a concluir que também o limite estabelecido no n.º 10, reportando-se à remuneração variável devida ao administrador em caso de liquidação, inclui a majoração – porque de remuneração variável se trata, ainda aqui – sendo esse o sentido a atribuir à referência feita à alínea b) do n.º 4. Tal interpretação, com o maior respeito por opinião diversa, é aquela que, afigura-se, melhor harmoniza as diversas disposições, por não fazer sentido que o legislador previsse, por um lado, a possibilidade de o juiz reduzir a remuneração que resultaria da aplicação dos critérios de cálculo adotados, incluindo inequivocamente a majoração, tão logo atingisse os € 50.000,00, por apelo a critérios que apelam à qualidade do desempenho do Sr. Administrador e conexão com o resultado, para vir depois consagrar o limite de € 100.000,00 apenas para a remuneração base, admitindo uma majoração sem qualquer limite quantitativo.”

Também Nuno Marcelo de Freitas Araújo in A remuneração do Administrador Judicial. Parte II – A remuneração variável,

Também não vemos que a interpretação que aqui deixamos afirmada para o art. 23º n.º 10, do EAJ, possa violar qualquer norma ou princípio constitucional, nomeadamente o direito dos trabalhadores, na dimensão retributiva, consagrado no art. 59.º, n.º 1, al. a) da Constituição da República Portuguesa, porquanto se nos afigura inteiramente legítimo a fixação de um teto remuneratório máximo para o exercício da atividade em causa, que no caso poderá ser tudo menos “condigno”, sendo certo de que dentro de tal teto é sempre possível ajustar a remuneração concreta em função do efetivo trabalho e resultados alcançados.

Concluímos, assim, que o limite previsto no art. 23º nº10 do EAJ deve ser entendido, como o foi na decisão recorrida, com o sentido de que se aplica à remuneração variável completamente calculada (incluindo majoração) nos processos em que a remuneração variável seja calculada sobre o resultado da liquidação da massa insolvente» (fim de citação).

Não vemos qualquer razão para nos afastarmos da argumentação assim descrita, onde são refutados, na sua essência, os argumentos esgrimidos pelo aqui recorrente, inclusivamente os de ordem constitucional.

E não se argumente, como faz o recorrente, que o estabelecimento deste limite máximo contraria o estímulo que a previsão da majoração pretendeu criar, por desmotivar os AI de procurarem melhores resultados logo que atinjam a referido tecto máximo. Mesmo impedindo que a remuneração variável ultrapasse os 100 mil euros, a lei permite que o juiz reduza ou elimine a remuneração que ultrapasse os 50 mil euros, «tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções», o que constitui estímulo bastante para que este se empenhe na obtenção do melhor resultado possível, sob pena de ver reduzida a sua remuneração até ao limiar dos 50 mil euros.

Não se argumente, também, com a pretensa equiparação entre as funções e o cálculo da remuneração dos AI e dos agentes de execução (AE). Por um lado, a equiparação prevista no artigo 11.º, al. a), do EAJ, foi apenas consagrada, nos termos da própria disposição legal, para os efeitos aí expressamente previstos – designadamente os direitos de ingresso nas secretarias judiciais e outros serviços públicos, de acesso ao registo informático de execuções e de consulta de determinadas bases de dados e arquivos –, como forma de resolver as dificuldades que todos os AI sentiam quotidianamente e de obviar a constante necessidade de intermediação do juiz. Por outro lado, como se conclui no ac. do TRL de 04.06.2024 (rel. Fátima Reis Silva, já antes citado), depois de analisar o conteúdo do princípio constitucional da igualdade e o modo como o mesmo condiciona a liberdade de conformação do legislador ordinário e depois de comparar as regras de remuneração de cada um daqueles profissionais, «não apenas as funções e estatuto dos AE e dos AI são diversos, como o respetivo regime remuneratório o é, também, não se justificando o alegado tratamento igual».

Ainda mais inconsistente se revela o argumento de que o tribunal a quo – e, por conseguinte, toda a jurisprudência das Relações que vimos citando – criou uma norma nova, arrogando-se um poder legislativo de que não dispõe e, assim, violando o princípio da separação de poderes. Tal argumento tem subjacente a total desconsideração – ou mesmo a subversão – do conteúdo da função jurisdicional, de interpretação e aplicação da lei ao caso concreto, na medida em que nega aos tribunais a competência para apurar o sentido da lei com recurso aos cânones interpretativos admitidos pelo nosso ordenamento jurídico.

Por fim, o Direito da União Europeia, designadamente o artigo 27.º, n.º 4, da Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, não impede os Estados membros de regular os limites da remuneração dos AI, inclusivamente por via da criação de normas travão como a que vimos analisando, impedindo apenas a criação de regras incompatíveis com o objectivo de uma resolução eficiente dos processos, o que não acontece com a referida norma, como vimos. Como se escreve no sumário do citado ac. do TRL de 04.06.2024, aquela Directiva «não visou harmonizar as regras dos Estados-Membros relativas à fixação da remuneração dos profissionais de reestruturação e insolvência (entre nós administradores da insolvência), não contendo nesta matéria qualquer regra incondicional, clara e precisa que proíba o estabelecimento de um teto máximo ou a fixação de remuneração em valor inferior aos critérios legais, ou impondo a inexistência desse teto ou dessa possibilidade que pudessem ser considerados como tendo efeito direto vertical». Assim, como se afirma na fundamentação deste acórdão, «trata-se de matéria que não foi objeto de harmonização, em qualquer grau. Sendo claramente deixada à autonomia e adaptação dos Estados Membros. Inexiste, assim, qualquer violação do direito comunitário e, nos exatos termos do disposto no art. 8º nº4 da CRP, qualquer inconstitucionalidade derivada daquela».

Acrescente-se ainda, para terminar, que a consagração do limite máximo que vimos analisando parece encontrar justificação no abandono das taxas percentuais regressivas (quanto maior fosse o resultado da liquidação, menores seriam as taxas de cálculo – base e marginal – aplicáveis) e dos factores progressivos (quanto maior fosse a percentagem dos créditos satisfeitos, maior seria o factor de majoração aplicável) previstos na Portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro para o cálculo da remuneração variável, e na sua substituição pelas taxas fixas actualmente previstas no artigo 23.º do EAJ, na sequência da entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, visto que «as percentagens fixas de 5% consagradas pelo legislador, se incidentes sobre o resultado da liquidação, não garantem (ao invés do que ocorria com a Portaria n.º 51/2005) a proporcionalidade da remuneração face ao produto obtido, nem tão pouco o estabelecimento de uma justificada conexão entre a actividade desenvolvida pelo Sr. AI e a satisfação dos credores como factor de incremento da remuneração, satisfação que é, afinal, a finalidade precípua da liquidação do património do devedor insolvente expressamente consagrado no artigo 1.º do CIRE e que terá de ser assegurada, o que não ocorre quando se considere uma interpretação alternativa (…) com potencial para transformar o sr. AI num grande “credor” da insolvência e quiçá o único a obter a satisfação total do seu “crédito” – Acórdão do TRE de 15 de Dezembro de 2022. Até porque, a não ser assim, haveria sempre o risco de se apontar para valores excessivos, irrealistas mesmo, no quadro económico do país e que os devedores muito dificilmente conseguirão suportar, dificultando gravemente a sua recuperação económica – uma das principais finalidades visadas na Directiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019 –, que o legislador, manifestamente, não quis» (cfr. ac. do TRC, de 12.09.2023, já antes citado).

Em suma, concordamos com o tribunal a quo quando afirma que o limite de 100 mil euros previsto no n.º 10, do artigo 23.º, do EAJ diz respeito ao valor global da remuneração variável que é devida AI nos casos de liquidação da massa insolvente, e não apenas à primeira das parcelas que integram essa remuneração antes de calculada a majoração prevista no n.º 7 do mesmo artigo.

Por conseguinte, se a remuneração calculada nos termos do artigo 23.º, n.ºs 4, al. b), 6 e 7, do EAJ ultrapassar os 100 mil euros, deverá ser reduzida para este limite máximo, sem prejuízo de poder ser reduzido até aos 50 mil euros, tendo em consideração os factos elencados no n.º 8, do mesmo artigo 23.º – o que, no caso concreto, não foi equacionado pelo tribunal a quo nem solicitado em sede de recurso. Dito de outro modo, naquelas situações caberá ao tribunal fixar a remuneração variável entre o limite mínimo dos 50 mil e o limite máximo dos 100 mil euros, atendendo aos referidos factores.

3. A solução dada à primeira questão a decidir neste recurso torna inútil o conhecimento da segunda: saber se a majoração de 5% prevista no n.º 7 do artigo 23.º incide sobre o montante total apurado para satisfação dos créditos ou sobre o resultado de uma operação aritmética prévia destinada a apurar o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos.

Na verdade, sendo pacificamente aceite pelo tribunal a quo e pelas partes que o valor da primeira parcela da remuneração variável devida ao recorrente, mesmo antes de somada a majoração prevista naquele n.º 7, ultrapassa os 100 mil euros, é forçoso concluir que o valor total da remuneração variável deve ser reduzido a este valor, acrescido do respectivo IVA, independentemente do cálculo da majoração.

Deste modo, a opção pela tese preconizada na decisão recorrida ou pela tese defendida pelo apelante sempre se revelará irrelevante, no caso concreto, para a determinação da remuneração variável concretamente devida.

Ainda assim, porque a questão acabou por ser conhecida previamente na decisão recorrida e impugnada pelo recorrente, sempre se dirá que a posição defendida pelo tribunal a quo é sufragada de forma unânime pela 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça – vide, a título de exemplo, os acórdãos de 18.04.2023, proc. n.º 3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1, de 16.05.2023, proc. n.º 453/11.1TBCDN-M.C1.S1, e de 17.10.2023, todos relatados por Maria Olinda Garcia.

Como se sublinha no último destes arestos, decorre do artigo 14.º do CIRE que a intervenção do STJ em matérias insolvenciais visa a orientação da jurisprudência, em nome da certeza e segurança na aplicação do direito.

Por conseguinte, tendo em conta a uniformidade alcançada no STJ, tendo igualmente em conta que a persistência de diferentes correntes jurisprudenciais a respeito desta questão redunda numa indesejável desigualdade na remuneração de funções idênticas, o relator deste acórdão já anteriormente reviu a sua posição, passando a adoptar a tese uniforme do STJ, que coincide com o entendimento que já vinha sendo preconizado pelos Srs. Desembargadores Adjuntos e que, por essa razão, sempre obteria vencimento.

4. Em face de tudo quanto ficou exposto, resta concluir pela total improcedência da apelação, assim se mantendo a decisão recorrida e se condenando o recorrente nas custas da apelação, nos temos do disposto no artigo 527.º, n.º 1, do CPC.


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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):

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IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

Registe e notifique.


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Porto, 8 de Outubro de 2024

Relator: Artur Dionísio Oliveira

Adjuntos: Márcia Portela

Rui Moreira


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[1] João Baptista Machado em Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, reimpressão de 2022, pg. 181.
[2] Neste sentido ver Nuno Marcelo de Freitas Araújo in A remuneração do Administrador Judicial. Parte II – A remuneração variável, Data Venia, Revista Digital, 2023, pg. 66, mencionando-se ainda aí que tal interpretação, pelo menos aparentemente, foi entendida por Nuno Vinha, in Jornal Económico, edição de 12/1/2022, na fórmula utilizada, disponível em linha em https://jornaleconomico.pt/noticias/respostasrapidas-oque-vai-mudar-no-estatuto-dos-administradores-judiciais-830653.aí
[3] O administrador de insolvência participa no desempenho da atividade judicial de composição dos interesses dos credores e do insolvente no âmbito de um processo judicial, sendo nomeado pelo juiz do processo (art. 13.º, n.º 2, da Lei n.º 22/2013, de 26-02)
[4] Proferido no P. 22770/19.2T8LSB-F.L1, (relatora Fátima Reis Silva) disponível in www.dgsi.pt
[5] Em que é relatora Isabel Fonseca.
[6] Também relatado pela Desembargadora Fátima Reis Silva.
[7] Relatado por Fernando Vilares Ferreira.
[8] Relatado por José Avelino Gonçalves.
[9] Relatado por Maria Domingas, encontrando-se todos os acórdãos citados disponíveis in www.dgsi.pt.