APELAÇÃO AUTÓNOMA
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
FACTOS SUPERVENIENTES
Sumário

I – O artigo 644.º, n.º 2, al. d), do CPC não faz depender a admissibilidade da apelação autónoma da circunstância de o articulado superveniente ter sido indeferido liminarmente ou efectivamente desentranhado dos autos, exigindo apenas que o mesmo não tenha sido admitido e que, por força dessa decisão, não possa ser apreciado na decisão final.
II – As regras que regulam as relações e as interferências entre diferentes acções, maxime a litispendência ou a prejudicialidade e a excepção do caso julgado ou a autoridade do caso julgado material, por si só, não erigem a pendência ou a decisão de uma causa num facto essencial (no sentido de facto constitutivo, impeditivo ou extintivo) dos direitos em exercício na outra. Em princípio, são os próprios factos alegados numa das causas que poderão configurar factos essenciais dos direitos exercidos na outra.
III – A previsão do artigo 611.º do CPC não dispensa as partes do seu ónus de alegação, previsto no artigo 5.º do CPC. Pelo contrário, esta norma só pode ser lida em articulação com a norma do artigo 588.º, que regula a admissibilidade da alegação dos factos supervenientes.

Texto Integral

Proc. n.º 4629/21.5T8VNG-A.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
AA, residente na Av. ..., n.º ..., ... – 1.º Direito, ... Vila Nova de Gaia, veio propor a presente acção comum contra BB e mulher CC, residentes na Rua ..., Entrada ..., ..., 2.º Esq., ... Vila Nova de Gaia, pedindo que:
a) seja declarado que as partes, em face do contrato de opção entre elas estabelecido por acordo, conforme o Contrato de Arrendamento de 11 de Março de 2016 e seu Aditamento, se vincularam e aceitaram à celebração da compra e venda da fração “U” identificada no artigo 1.º da petição inicial;
b) seja proferida decisão que, substituindo a declaração de vontade dos R.R. BB, e mulher CC, produza os efeitos da venda, operando, para a A., AA, a transmissão da propriedade da fração autónoma designada pela letra “U”, correspondente ao primeiro andar direito do corpo três, com entrada pelos números ... e ... da Avenida ..., da qual fazem parte uma garagem na cave com o número ..., um arrumo na cave e um arrumo no sótão com o número 17, que faz parte do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, situado na Avenida ..., ..., ... Vila Nova de Gaia, descrito na 1.ª C. R. Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ..., e inscrita na matriz da freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, sob o artigo ...;
c) que a transmissão seja condicionada ao depósito, pela A., do preço de € 220.000,00 atualizado anualmente de acordo com os índices de inflação e deduzido do montante de todas as rendas pagas pela A. aos R.R. desde Março de 2016, preço esse que se fixava à data de 27 de Abril de 2021 em € 183.238,70 (cento e oitenta e três mil duzentos e trinta e oito euros e setenta cêntimos), a efectuar no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado da douta sentença que vier a ser proferida;
d) que seja declarado compensado no referido preço da opção de compra de € 183.238,70, o montante de 1.600,00€ das rendas de Maio e de Junho de 2021, entretanto já pagas pela A. aos R.R., assim como de todas as rendas que posteriormente à propositura da presente ação venham a ser pagas pela A. aos R.R., até à data em que for proferida a sentença;
e) ou caso assim não se entenda, e a título subsidiário, que sejam condenados os R.R. a pagar à A. o valor correspondente às rendas pagas pela A. ao R.R. após 27 de Abril de 2021, até à data em que for proferida sentença;
f) que seja concedido à A. o direito de fazer descontar no referido preço da opção de compra de € 183.238,70, os valores necessários a expurgar as hipotecas que oneram a fração “U”, constituídas a favor do Banco 1... S.A., por fusão do Banco 2... S.A., e a que se referem as Ap. ..., ..., ... e ..., todas de 2017/02/08, até ao limite do que vier a ser necessário;
g) ou caso assim não se entenda, e a título subsidiário, que sejam condenados os R.R. a pagar à A. o valor necessário e suficiente para pagamento integral ao Banco 1... S.A., do montante do débito garantido ou o valor correspondente à fração “U” do imóvel em causa, respectivos juros, vencidos e vincendos, até integral pagamento.
Os réus apresentaram contestação onde, apelando às regras legais de interpretação da vontade negocial, se defenderam por excepção (alegando a nulidade do negócio de opção por vício de forma, a nulidade da cláusula 9.ª do contrato de arrendamento por ofensa aos bons costumes, a alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, a resolução por justa causa, o enriquecimento sem causa e o abuso de direito) e por impugnação motivada (refutando o conteúdo da petição inicial, com excepção da referência ao seu direito de propriedade sobre o imóvel acima identificado, que aceiraram de forma expressa).
Mais deduziram reconvenção, a título subsidiário, pedindo a condenação da autora reconvinda no pagamento de quantia nunca inferior a 408.525,00 € pelo exercício da opção de compra da fração autónoma “U”, propriedade dos réus.
A autora replicou, tendo os autos prosseguido com marcação de audiência prévia, após o que foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Depois de apreciados os requerimentos probatórios apresentados pelas partes e de realizada a prova pericial, foi designada data para audiência de julgamento, no início da qual os réus apresentaram um articulado superveniente, onde alegam factos que, no seu entender, são relevantes para a apreciação e decisão da causa (maxime o divórcio dos réus, a discussão judicial sobre a titularidade da fracção “U” e o pagamento de novas despesas de condomínio), alteram o pedido reconvencional (no sentido de o pagamento da quantia peticionada ser feito a ambos os réus ou apenas ao ré BB, consoante o que vier a ser decidido sobre a propriedade da fracção “U”) e, subsidiariamente, requerem a suspensão da instância com fundamento na pendência de uma causa prejudicial.
Ouvida a autora, esta pugnou pela rejeição do articulado superveniente, pelo indeferimento da alteração do pedido reconvencional e pelo indeferimento da suspensão da instância.
Por despacho de 30.04.2024, o tribunal a quo indeferiu a apresentação de articulado superveniente, a alteração do pedido e a suspensão da instância por causa prejudicial.

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Inconformados, os réus apelaram desta decisão, formulando as seguintes conclusões:
«1. O douto despacho de 30.04.2024 é autónomo e imediatamente recorrível ao abrigo do art. 644.º, n.º 2, als. c) e d), do CPC, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.
2. O despacho recorrido indeferiu a apresentação de Articulado Superveniente, a alteração do pedido e a suspensão da instância por causa prejudicial, requeridas pelos Réus a 17.04.2024, salvo o devido respeito, sem razão.
3. Na verdade, quando a ampliação importe a alegação de factos novos, essa ampliação só pode ter lugar se esses factos forem supervenientes, devendo, nesse caso, o autor introduzi-los em juízo através de articulado superveniente, nos termos do art. 588.º.
4. Foi exatamente o que os Réus fizeram – e não informaram, antes, os autos da pendência do referido processo de inventário (patrocinado por Ilustres mandatários que não os constituídos nestes autos) por se encontrarem absolutamente convencidos de lograrem acordo naquele processo (inventário) até à audiência de julgamento destes – o que infelizmente não aconteceu.
5. A ampliação do pedido pode envolver a formulação de um pedido diverso, em cumulação sucessiva com o inicial, mas, quando importe a alegação de factos novos, esta só pode ter lugar se eles forem supervenientes, isto é, quando ocorram ou sejam conhecidos posteriormente aos articulados e nos termos e prazo previstos para o articulado superveniente – o que é o caso dos autos (a referida falta de acordo).
6. A ampliação do pedido (cfr. arts. 264.º e 265.º), exceção ao princípio da estabilidade da instância, consagrada no art.º 260º, todos do CPC, é um mais, um acrescento ao pedido primitivo, traduzindo-se numa modificação objetiva da instância.
7. Desde que a ampliação do pedido se mova na causa de pedir explanada na Petição Inicial, a mesma deve ser, sempre, admitida, traduzindo um desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo (n.º s 2 e 6 do art. 265.º do CPC).
8. Não pode deixar de se entender que a causa de pedir não é alterada por uma alegação de factos que apenas complementem ou constituam desenvolvimento dos factos (essenciais) já anteriormente articulados.
9. Não pode merecer dúvidas o facto de que o pedido formulado no Requerimento dos Réus de 17.04.2024 é o desenvolvimento do pedido efetuado na sua Contestação / Reconvenção, pois não deriva de diferentes factos concretos.
10. Foram alegados, nos articulados supervenientes em causa, factos essenciais para uma boa decisão do pleito, face às soluções plausíveis que a questão de direito comporta, que se prendem com a defesa e reconvenção dos Réus.
11. No que à causa prejudicial e à suspensão da instância diz respeito, faz-se notar que o relevo da decisão de uma questão prejudicial na ação dependente não pressupõe que os factos relativos à causa de pedir da primeira sejam articulados na segunda, designadamente por via de articulado superveniente, até ao encerramento da discussão de matéria de facto, sendo certo que até podem ocorrer em sede de recurso.
12. Ora, o referido inventário constitui causa prejudicial da aqui pretendida execução específica, devendo a presente instância ficar suspensa até decisão final daquela (cfr. art. 272 do CPC).
13. Uma ação é prejudicial de outra, sempre que, naquela, se ataca um ato ou facto jurídico, que é pressuposto necessário desta, sempre que exista dependência de uma ação relativamente a outra, quando a questão a apreciar nesta influa, modifique ou afete o julgamento a proferir.
14. A relação de dependência entre aquele inventário e a presente execução específica, como causa de suspensão da instância, assenta no facto de, naquele inventário, se discutir uma questão que é essencial para estes autos – a propriedade do imóvel objeto da pretendida execução específica.
15. Se no referido inventário vier a ser declarado que o imóvel pertence, unicamente, a um dos Réus, tal facto implicará a impossibilidade da presente execução (designadamente, nos termos em que foi solicitada).
16. Repare- se que a garantia da execução específica tanto se verifica nos contratos-promessa com eficácia real, como nos contratos-promessa com eficácia meramente obrigacional.
17. No presente caso, estamos perante uma invocada “opção de compra”, sem qualquer eficácia real (meramente obrigacional).
18. A execução específica de contratos sem eficácia real, nos termos do art. 830.º do CC, não é admitida no caso de impossibilidade de cumprimento.
19. A impossibilidade de cumprimento pode derivar de várias causas, como, por exemplo: o promitente-vendedor haver transmitido o seu direito real sobre a coisa objecto do contrato prometido antes de registada a ação de execução específica, ainda que o terceiro adquirente não haja obtido o registo da aquisição antes do registo da ação; como acontece no presente caso, se encontrar a ser discutida, noutra sede, a propriedade do imóvel.
20. Salvo o devido respeito por melhor opinião, o erro da douta decisão recorrida consubstancia-se no seguinte: entendeu (implicitamente) que o registo da presente ação na competente conservatória do registo predial confere eficácia real à “opção de compra”; e, em consequência, retirou daí a conclusão de que a alteração da propriedade dos seus titulares, a venda, a oneração do bem, etc., são irrelevantes no sentido de não poderem obstar à procedência da ação.
21. Não é verdade: uma coisa é a estipulação de eficácia real num determinado contrato (que, no caso, não existiu); outra, bem diversa, são os efeitos do registo de uma ação.
22. Como há muito se encontra definido na jurisprudência, o registo da ação não confere eficácia real ao contrato (promessa, opção de compra, etc.).
23. Em consequência, no âmbito de um contrato desprovido de eficácia real (como o presente), uma possível (1) alienação, ou (2) oneração a terceiro da coisa objeto do contrato prometido ou, ainda, (3) a redefinição da titularidade de propriedade, tornam impossível o cumprimento do contrato-promessa.
24. Donde decorre: (1) que a Autora AA não poderá obter a procedência da presente ação de execução específica, para que o Tribunal profira uma sentença substitutiva da declaração negocial do faltoso; (2) e, também, pelo menos, a existência de causa prejudicial, a justificar a solicitada suspensão da instância, conforme nesta peça se defende.
25. A economia da suspensão da instância pela dependência do julgamento de outro já proposto supõe a verificação dessa dependência, pelo que o poder do juiz, discricionário em si, é limitado pela existência efetiva da condicionante, tornando- se assim vinculado.
26. A eventual decisão no processo de inventário, reconhecendo a propriedade do imóvel a apenas um dos Réus, com a inerente transferência do direito de propriedade exclusivamente para um deles, impede a execução específica do contrato-promessa objeto dos presentes autos, por impossibilidade de cumprimento: com efeito, nesta ação, já não se pode transmitir um direito, que deixou de ser de um dos promitentes vendedores; se este já não pode vender, também o Estado não se pode substituir ao mesmo, emitindo uma declaração de vontade que a Lei veda ao promitente vendedor.
27. Estatui também o n.º 5 do art. 830.º do CC que, no caso de contrato em que ao obrigado seja lícito invocar a exceção de não cumprimento, a ação improcede, se o requerente não consignar em depósito a sua prestação no prazo que lhe for fixado pelo Tribunal (o depósito do preço deve ser efetuado antes da decisão que julgue a invocada exceção do não cumprimento e da qual possa resultar decretar a execução específica do contrato promessa).
28. Visa tal depósito proteger o(s) promitente(s) vendedor(es) no sentido de evitar que ele(s) fique(m) despojados da coisa sem o recebimento do preço.
29. Ora, no presente caso, discute- se, além do mais, qual o valor a depositar; e, por uma questão de segurança, tal depósito deverá ser concretizado após a decisão que efetivamente decrete a pretendida execução específica e, inclusive, após o seu trânsito em julgado, pois que só neste caso é que a sentença produz os efeitos da declaração negocial do faltoso, operando a transferência da sua propriedade.
30. Assim, o prosseguimento da presente ação, no caso de procedência, poderá levar a atos, trabalho e despesas inúteis, pois que a execução específica pode não ser decretada por razões substanciais atinentes e/ou concernentes a outras causas.
31. Não é aceitável que se proceda a um depósito em nome de dois proprietários quando, a final, se pode vir a concluir que apenas um dos Réus possui tal qualidade (ficando, depois, ambos a discutir a questão de se saber quem poderá levantar o valor depositado).
32. Tais considerações, atendendo ainda aos elementos lógico e teleológico da hermenêutica jurídica, apontam, portanto, no sentido de o despacho final que vier a ordenar o depósito (no caso de uma eventual procedência da ação) só o deva ser (1) depois da execução específica ser decretada com trânsito em julgado e (2) depois de definida, definitivamente, a propriedade do imóvel em causa nos autos.
33. Caso não sejam admitidos os articulados supervenientes (o que não se concede e apenas se admite por mero efeito de raciocínio), deve, assim, subsidiariamente, a instância ser suspensa até à decisão com trânsito em julgado do referido processo de inventário, nos termos do art. 272.º do CPC, pois que o prosseguimento da pretendida execução específica depende de forma direta das decisões a proferir naquele inventário.
34. Note-se, ainda, que o articulado superveniente não poderia ter sido apresentado na audiência prévia (ocorrida a 28.03.2022), uma vez que o divórcio apenas foi decretado a 17.10.2022 e o pagamento de despesas adicionais de condomínio foi feita a partir de janeiro de 2024 – sendo inaplicável o art. 588, n.º 3, al. a) do CPC.
35. Não se concretiza também a al. b) do mesmo artigo, uma vez que se realizou efetivamente audiência prévia.
36. Do que se conclui que apenas poderiam os Réus apresentar os novos factos (declaração de divórcio, decurso de processo de inventário e pagamento de despesas adicionais de condomínio) na audiência final (al. c) do n.º 3) – o que estes efetivamente realizaram, de forma oportuna e tempestiva.
37. Também não se compreende – nem o Dig. Tribunal concretiza - como é que “os prejuízos da suspensão são superiores aos do prosseguimento dos autos”, pois a resolução da questão da propriedade da fração “U” evitará a prática de atos inúteis, proibidos por lei (art. 130 do CPC), conferindo exequibilidade à eventual decisão final a proferir.
38. No que ao pagamento de despesas de condomínio diz respeito, tendo o Dig. Tribunal declarado que “o agora alegado não constitui facto novo para efeitos de articulado superveniente, mas apenas apresentação de prova relativamente a factos inicialmente alegados”, “podendo os pagamentos efetuados na pendência da ação ser considerados na sentença a proferir”, fica, ainda, por compreender se, em face desse entendimento, foi, ou não, pelo menos, admitida a junção aos autos dos Documentos 6 e 7 anexos ao Articulado Superveniente (conta corrente do Condomínio e 3 comprovativos de pagamento).
39. Termos em que o despacho recorrido é nulo, por ambiguidade / obscuridade que torna a decisão, nesta parte, ininteligível, faltando a pronúncia do Dig. Juiz sobre a pretendida junção de tais documentos (art. 615, n.º 1, als. c) e d)).
40. O despacho recorrido violou, por erro de interpretação e/ou aplicação, o disposto nos citados preceitos e diplomas legais (nomeadamente, nos arts. 130.º, 260.º, 264.º, 265.º, 272.º, 588.º e 611.º do CPC e art. 830.º do CC), devendo ser revogado e substituído por outro que julgue no sentido antes defendido, determinando- se a admissão do articulado superveniente apresentado a 17.04.2024 e a alteração do pedido formulado na Contestação / Reconvenção de 27.09.2021,
41. Ou, subsidiariamente (caso assim não se entenda – o que não se concede e apenas se admite por mero efeito de raciocínio), a admissão da mencionada peça processual, determinando-se que a discussão da titularidade da fração “U” (realizada no processo n.º 2038/22.8T8VNG-A, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Gaia, J2) constitui causa prejudicial da presente ação de processo comum (execução específica), determinando- se a suspensão da presente instância,
42. Tudo com as legais consequências, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA».
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A recorrida apresentou resposta a esta alegação, pugnando pela inadmissibilidade legal da apelação autónoma e, para o caso de assim não se entender, pela sua total improcedência.
Admitido o recurso e ordenada a subida dos autos a este Tribunal, foi ordenado o cumprimento do disposto no artigo 655.º do CPC, tendo os recorrentes mantido o entendimento que preconizaram na sua alegação e que foi secundado pelo tribunal a quo.
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II. Fundamentação
A. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Atento o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, são as seguintes as questões a decidir:
- A admissibilidade do recurso da decisão que rejeitou o articulado superveniente e a alteração do pedido nela inserta; decidindo-se pela admissibilidade deste recurso, a admissibilidade do articulado superveniente e da alteração do pedido aí formulada;
- A nulidade da decisão recorrida, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), do CPC;
- Subsidiariamente, a admissibilidade do recurso da decisão que não suspendeu a instância e, decidindo-se pela sua admissibilidade, a existência de fundamentos para tal suspensão com base na pendência de causa prejudicial.
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B. Os recorrentes, como vimos, basearam a admissibilidade da presente apelação autónoma no artigo 644.º, n.º 2, alíneas c) e d), do CPC.
A recorrida, por sua vez, pugnou pela inadmissibilidade do recurso, afirmando que não se verificam, no caso dos autos, nenhuma das situações previstas naquelas alíneas, visto que nem foi decretada a suspensão da instância nem foi rejeitado o articulado superveniente apresentado pelos réus.
Assiste inteira razão à recorrida quando afirma não estrar verificada a situação prevista na al. c), pois o recurso não incide sobre uma decisão de suspender a instância, pressuposta naquela norma, mas antes sobre a decisão de não a suspender.
Mas é igualmente claro que a recorrida carece de razão quando afirma não estar verificada a situação prevista na al. d). Com efeito, a decisão recorrida é claríssima no sentido de não admitir o articulado superveniente que foi apresentado pelos réus, quando conclui nos seguintes termos: «Pelo exposto, não se verificam os pressupostos exigidos à admissibilidade de articulado superveniente e, em consequência, indefere-se a sua apresentação».
É certo que, como afirma a recorrida, aquele articulado não foi liminarmente indeferido, como podia (e, em bom rigor, devia) ter sido, nos termos previstos no artigo 588.º, n.º 4, do CPC, só o tendo sido depois de ouvida a autora. É igualmente verdade que o articulado em causa foi incorporado nos autos, não tendo sido ordenado o seu desentranhamento.
Mas daqui não se pode concluir, como faz a recorrida, que a decisão do tribunal a quo seja «de indeferimento quanto ao mérito do requerimento apresentado». Aquele tribunal não apreciou o mérito do articulado superveniente mas, simplesmente, a sua admissibilidade processual, tendo concluído pela sua inadmissibilidade e, por conseguinte, indeferido a sua apresentação.
Acresce que o artigo 644.º, n.º 2, al. d), do CPC não faz depender a admissibilidade da apelação autónoma da circunstância de o articulado superveniente ser indeferido liminarmente ou ser efectivamente desentranhado dos autos, exigindo apenas que o mesmo não tenha sido admitido e que, por força dessa decisão, não possa ser apreciado na decisão final, situação que, como vimos, se verifica no caso em análise.
Pelo exposto, não restam dúvidas sobre a admissibilidade da apelação autónoma do despacho que indeferiu o articulado superveniente e a alteração do pedido reconvencional nele inserta como corolário dos factos ali alegados.
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C. A admissibilidade dos articulados supervenientes está regulada no artigo 588.º do CPC, nos seguintes termos:
«1. Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.
2. Dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo, neste caso produzir-se prova da superveniência.
3. O novo articulado em que se aleguem factos supervenientes será oferecido:
a) Na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respectivo encerramento;
b) Nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado a audiência prévia;
c) Na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores.
4. O juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa; ou ordenando a notificação da parte contrária para responder em 10 dias, observando-se, quanto à resposta, o disposto no artigo anterior.
5. As provas são oferecidas com o articulado e com a resposta.
6. Os factos articulados que interessem à decisão da causa constituem tema da prova nos termos do disposto no artigo 596.º».
São, assim, requisitos da admissibilidade do articulado superveniente:
- A pertinência dos novos factos aí alegados, o que pressupõe que estes ainda não tenham sido alegados e que constituam factos essenciais para a decisão da causa, ou seja, factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito em discussão;
- A superveniência (objectiva ou subjectiva) desses factos;
- A tempestividade da apresentação daquele articulado.
No caso em apreço, como vimos, os factos alegados pelos recorrentes no articulado superveniente por si apresentado dizem respeito à dissolução do seu matrimónio por divórcio, à discussão judicial sobre a titularidade da fracção “U” e ao pagamento de novas despesas de condomínio.
No que respeita à dissolução do matrimónio dos réus, afigura-se de linear clareza que o mesmo é totalmente irrelevante para a apreciação da causa, principal ou reconvencional, não configurando um facto constitutivo dos direitos cuja tutela é aqui pedida pelos réus ou, muito menos, pelos autores, nem um facto impeditivo, modificativo ou extintivo de algum daqueles direitos.
Determinar quais são os factos constitutivos do direito do autor/réu reconvinte (cujos ónus de alegação e prova impendem, em princípio, sobre estes), por contraposição aos factos impeditivos, modificativos e extintivos desse direito (cujos ónus de alegação e prova impendem, em princípio, sobre o réu/autor reconvindo), é algo que só com recurso ao direito substantivo se pode fazer. Como diz Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra 1982, p. 353), «não há por natureza factos constitutivos, impeditivos ou extintivos. Seria, por isso, erro dar invariavelmente a um facto uma outra natureza. O que para um direito ou no domínio de uma relação jurídica é facto impeditivo, para outro bem pode ser facto constitutivo. É, pois, à respectiva norma ou normas aplicáveis e só a elas, que há que recorrer. Assim, mais do que de factos constitutivos, impeditivos ou extintivos, se deve falar de normas constitutivas, impeditivas, ou extintivas».
Subjacente a esta construção está a teoria das normas de Rosenberg, generalizadamente aceite entre nós, que Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora (Manual de Processo Civil, p. 455) expressivamente sintetizam da seguinte forma: «Cada uma das partes terá assim (o ónus) de alegar e provar os factos correspondentes à previsão da norma que aproveita à sua pretensão ou à sua excepção. Cada uma das partes tem de provar os factos que constituem os pressupostos da norma que lhe é favorável».
Voltando ao caso concreto, não se vislumbra nas previsões normativas em que assentam os pedidos deduzidos nesta acção ou as excepções a eles opostas qualquer referência ao estado civil das partes ou à necessidade da sua manutenção. O que ali releva é, essencialmente, o conteúdo e a forma das declarações das partes configuradoras do acordo (contrato de arrendamento) invocado por ambas, aí se incluindo a qualidade em que os réus prestaram essas declarações, de proprietários do imóvel objecto do acordo. A circunstância de os réus serem ou não casados e de manterem ou não esse estado civil é totalmente indiferente para o desfecho dos pedidos que assentam na sua qualidade de outorgantes num contrato de arrendamento e de proprietários do respectivo imóvel.
É igualmente claro que a pendência de uma acção onde se discute a titularidade deste imóvel também não integra nenhuma previsão normativa alicerçante dos direitos das partes ou das excepções a eles opostas. Tal discussão judicial poderia, quando muito, condicionar o desfecho desta acção por via dos mecanismos que regulam as relações e interferências entre diferentes acções – maxime a litispendência ou a prejudicialidade e a excepção do caso julgado ou a autoridade do aso julgado material. Mas estas possíveis interferências, por si só, não erigem a pendência de uma causa num facto essencial (no sentido de facto constitutivo, modificativo ou extintivo) dos direitos em exercício na outra.
Não ignoramos que as aludidas interferências assentam na circunstância de os factos essenciais em discussão numa das causas poderem ser igualmente factos essenciais da outra causa. Por isso, no caso concreto, não questionamos que os factos em que assenta a discussão judicial da propriedade do imóvel que é objecto do contrato de arrendamento em questão nesta acção podem, efectivamente, configurar factos essenciais para a discussão dos direitos e deveres das partes. Mas serão sempre os factos invocados na outra acção, e não a sua propositura, pendência ou decisão, que poderão configurar factos essenciais desta.
Ora, como facilmente se conclui da leitura do próprio articulado superveniente, mais concretamente do seu ponto B e dos documentos juntos, a discussão travada entre os réus sobre a titularidade do imóvel que deram de arrendamento à autora baseia-se em factos ocorridos muito antes do seu casamento (a aquisição desse imóvel pelo réu, no estado de solteiro, com dinheiro dos pais deste) e, por conseguinte, antes mesmo da propositura da presente acção.
Assim sendo, é claríssimo que tais factos não são objectiva ou subjectivamente supervenientes. Se os réus – ou algum deles – não os alegaram na sua contestação foi porque não quiseram. De resto, nem os autores nem os réus alegaram ou questionaram os factos constituivos do direito de propriedade de ambos sobre o imóvel em causa, direito que apenas surge mencionado pelas duas partes como uma referência pressuponente. Assim, se aqueles factos não podem ser conhecidos nesta acção, tal apenas se deve à posição livremente assumida pelas partes, nomeadamente pelos réus, pelo que apenas de si e da sua estratégia processual se podem queixar.
De resto, no que concerne à reconvenção, mais do que alegarem factos que não são supervenientes, o que os réus fazem é alegar uma causa de pedir subsidiária, o que se traduz numa alteração da causa de pedir reconvencional, legalmente inadmissível, por carecer do acordo da autora reconvinda (cfr. artigo 264.º do CPC) e não preencher os requisitos enunciados no artigo 265.º, n.º 1, do mesmo código.
Quanto aos factos relativos ao pagamento de novas despesas de condomínio, a sua superveniência objectiva é patente, tal como o é a sua relevância para a apreciação da causa, o que é pacificamente aceite por ambas as partes e pelo próprio tribunal a quo.
Ainda assim, este julgou inadmissível, também nesta parte, o articulado superveniente, com a seguinte fundamentação:
«Por fim, no que se refere à apresentação de articulado superveniente por pagamento, alegadamente por ambos os Réus, de mais despesas de condomínio e quantias relativas a quotas extraordinárias é de relevar que, mesmo não integrando tais factos o pedido reconvencional formulado, tendo sido apenas alegados como factos modificativos do direito de que a Autora se arroga titular, os mesmos foram considerados nos temas da prova uma vez que nos temas da prova foram fixados, entre outros, os seguintes temas:
“Montantes gastos pelos RR. em despesas de condomínio.”;
“Obras que será necessário realizar nas partes comuns do edifício onde se insere a fracção e respectivo custo.”
Atendendo a que não foi fixado limite temporal o agora alegado não constitui facto novo porque já foi alegado o facto “pagamento de despesas de condomínio”, que engloba quotas extraordinárias e enquadra-se nos temas da prova fixados, podendo os pagamentos efetuados na pendência da ação ser considerados na sentença a proferir nos termos do disposto no artigo 611º do Código de Processo Civil».
Não podemos subscrever este entendimento.
Por um lado, a circunstância de a redacção dos temas da prova abarcar, na interpretação agora feita pelo tribunal a quo, pagamentos futuros, mesmo para além dos que foram alegados nos articulados, pode dispensar o aditamento ou a reformulação dos temas da prova, mas não torna inadmissível a alegação desses factos supervenientes.
Por outro lado, a previsão do artigo 611.º do CPC não dispensa as partes do seu ónus de alegação, previsto no artigo 5.º do CPC. Pelo contrário, esta norma só pode ser lida em articulação com a norma do artigo 588.º, que regula a admissibilidade da alegação dos factos supervenientes (neste sentido, vide Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2019, pp. 611-612, anotação ao artigo 611.º do CPC).
É certo que, nos termos daquele artigo 5.º, para além dos factos oportunamente alegados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz os que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar. Mas esta possibilidade está dependente de o tribunal aceitar que estes factos decorrentes da instrução da causa são apenas um complemento ou concretização dos que foram oportunamente alegados. Ora, não vemos qualquer razão para rejeitar a alegação de factos supervenientes, com base numa interpretação que pode não ser a do tribunal que vier a fazer o julgamento, e sujeitar a parte à discussão da natureza meramente complementar daqueles factos, quando está ao seu alcance garantir a oportuna alegação desses factos.
Pelo exposto, impõe-se concluir pela admissibilidade, nesta parte, do articulado superveniente, mais concretamente da alegação dos factos descritos nos pontos 17 a 21 daquele articulado.
Admitindo-se a alegação destes factos supervenientes, impõe-se admitir, igualmente, a junção dos documentos juntos com o respectivo articulado para prova dos mesmos, pelo que fica prejudicado o conhecimento da nulidade arguida pelos recorrentes.
Em contrapartida, não se admitindo a alegação dos demais factos descritos no articulado superveniente, e constituindo a alteração do pedido aí formulada um mero corolário desta alegação cuja rejeição é agora confirmada, é manifesta a inadmissibilidade de tal alteração do pedido, na medida em que a mesma não assume autonomia relativamente à admissibilidade da respectiva causa de pedir.
De todo o modo sempre se dirá que, não podendo a alteração do pedido alicerçar-se na alegação de factos supervenientes e não havendo acordo das partes quanto à mesma (cfr. artigo 264.º do CPC), tal alteração não é admissível, por não estarem preenchidos os pressupostos previstos no artigo 265.º do CPC, pois o novo pedido deduzido pelos réus não configura um desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, antes se configurando como um novo pedido subsidiário, baseado numa causa de pedir igualmente subsidiária que, como vimos, não foi admitida.
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D. Resta apreciar a admissibilidade do recurso da decisão que não suspendeu a instância e, decidindo-se pela sua admissibilidade, a existência de fundamentos para tal suspensão com base na pendência de causa prejudicial.
Quando apreciamos a admissibilidade do recurso da decisão que indeferiu o articulado superveniente apresentado pelos réus já deixámos implícito não caber apelação autónoma do despacho que indeferiu o pedido de suspensão da instância com fundamento na pendência de causa prejudicial, porque tal despacho não preenche a previsão da al. c), do n.º 2, do artigo 644.º do CPC.
Estra conclusão afigura-se óbvia, importando apenas acrescentar que o referido despacho, na parte em que indefere o pedido de suspensão da instância, não se enquadra em nenhuma das restantes alíneas do mesmo número, tal como não se enquadra em nenhuma das alíneas do n.º 1 do mesmo artigo 644.º, nem tal foi alegado pelos recorrentes.
Deste modo, esse despacho não é passível de apelação autónoma, só podendo ser impugnado nos termos previstos nos n.ºs 3 e 4, do referido artigo 644.º do CPC.
Pelo exposto rejeita-se, nesta parte, o recurso interposto, pelo que nos abstemos de conhecer do respectivo mérito.
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Em síntese conclusiva, impõe-se revogar parcialmente a decisão recorrida e admitir o articulado superveniente na parte que diz respeito à alegação do pagamento de novas despesas de condomínio contida nos artigos 17.º a 21.º daquele articulado, mantendo-se a restante parte da decisão.
Na procedência parcial da apelação, as respectivas custas serão suportadas por ambas as partes, na proporção de 2/3 para a recorrente e 1/3 para a recorrida, nos termos previstos no artigo 527.º, n.º 1, do CPC.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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III. Decisão
Pelo exposto, os juízes deste Tribunal da Relação do Porto:
- Admitem o recuso de apelação do despacho que indeferiu o articulado superveniente apresentado pelos réus, revogam parcialmente esse despacho e admitem aquele articulado superveniente apenas na parte respeitante à alegação do pagamento de novas despesas de condomínio contida nos artigos 17.º a 21.º;
- Rejeitam o recurso de apelação do despacho que indeferiu o pedido de suspensão da instância.
Custas por ambas as partes, na proporção de 2/3 para os recorrentes e 1/3 para a recorrida.
Registe e notifique.
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Porto, 8 de Outubro de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Rui Moreira
Maria Eiró