INSOLVÊNCIA
DÍVIDAS DA MASSA INSOLVENTE
CRÉDITOS LABORAIS
Sumário


I - Os créditos sobre a massa insolvente são, em termos gerais, aqueles cuja constituição é ulterior à declaração de insolvência e que têm nesta a sua causa; contrapõem-se aos créditos sobre a insolvência, que são aqueles cuja constituição é anterior à declaração de insolvência ou que, sendo ulterior, não tem nela a sua causa.
II - O processo de insolvência, não obstante ter uma finalidade essencialmente liquidatória, admite a manutenção e a recuperação da empresa.
III - Compreende-se assim que a declaração de insolvência do empregador titular de empresa não importe a extinção automática dos contratos de trabalho, que ficarão sujeitos às vicissitudes da empresa, dependendo das opções que vierem a ser tomadas no âmbito do processo.
IV - Mantendo-se a empresa em laboração, recai sobre o administrador da insolvência o dever de continuar a cumprir integralmente as obrigações para com os trabalhadores até ao encerramento definitivo da empresa.
V - O mesmo regime vale, por identidade de razões, para as situações, em que a administração da empresa é atribuída ao devedor/insolvente, sob a fiscalização do administrador da insolvência.
VI - Como tal, de acordo com o critério referido em I, os créditos laborais de natureza remuneratória (v.g. salários, subsídios de férias, subsídios de natal, subsídios de alimentação) constituídos após a declaração da insolvência, por resultarem da administração da empresa nessa situação, constituem créditos sobre a massa insolvente.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I.
1) AA (Autor), representado pelo Ministério Público, intentou a presente ação declarativa de verificação ulterior de créditos, ut art. 146 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE[1]), por apenso ao processo de insolvência relativo à sociedade EMP01... – Transportes e Distribuição de Mercadorias, Lda., contra a insolvente, a respetiva massa e os credores da insolvência (Réus), pedindo:
O reconhecimento dos seguintes créditos do Autor sobre a massa insolvente, no montante global de € 4 480,39, acrescido de juros vencidos, calculados à taxa legal, desde 27 de novembro de 2023, que se computam em € 29,46, bem como dos juros vincendos até integral pagamento, “tudo ordenando seja pago pelo produto da liquidação com a prioridade prevista no art. 172/1 do CIRE” (sic): i) € 2 507,29, a título de retribuição de férias e respetivo subsídio proporcionais ao tempo de serviço prestado durante o ano de 2023; ii) € 759,64, a título de subsídio de natal proporcional ao tempo de serviço prestado durante o ano de 2023; iii) € 1 213,46, a título de retribuição devida pelo trabalho que seria desenvolvido ao longo do período de aviso prévio que não lhe foi concedido;
O reconhecimento e graduação, no lugar que lhe competir, do crédito do Autor, no montante de € 2 513,01, correspondente a três meses de retribuição base e diuturnidades, a título de indemnização em substituição da reintegração a pedido do trabalhador, acrescido de juros vencidos, calculados à taxa legal, desde 27 de novembro de 2023, que se computam em € 16,52, bem como dos juros vincendos até integral pagamento, “tudo ordenando seja pago com o produto da liquidação em função da preferência de pagamento de que beneficiam nos termos do art. 333 do Código do Trabalho (CT).” (sic)
Alegou, em síntese, que: o Autor celebrou com a EMP01... – Transportes e Distribuição de Mercadorias, Lda., um contrato de trabalho a termo certo, pelo prazo de 6 meses, pelo qual se obrigou a desempenhar nesta, no âmbito da sua organização empresarial e sob as suas ordens e direção, mediante o pagamento da respetiva retribuição, a função de motorista nacional de pesados para viaturas de tara compreendida entre 7,5 e 44 toneladas; o contrato converteu-se em definitivo no dia 31 de maio 2023; em execução do acordado, o Autor cumpriu aquelas suas funções desde ../../2022 até ao ../../2023, inclusive, data a partir da qual lhe foi comunicado pela administração da insolvente que o respetivo estabelecimento iria encerrar; em conformidade com o contrato celebrado, com a legislação aplicável e com o Contrato Coletivo aplicável, a retribuição a que o Autor tinha direito e que vinha auferindo junto da EMP01..., na data de ../../2023, era a seguinte: i) € 837,67 mensais, a título de salário base; ii) € 5,20 diários, a título de subsídio de refeição; iii) € 16,75 mensais, a título de complemento salarial a que se refere a cláusula 59.º do Contrato Coletivo; iv) € 68,25, a título de subsídio de cargas e descargas a que se refere a cláusula 60.º do Contrato Coletivo; v) € 410,12 mensais, a título de retribuição específica a que se refere a cláusula 61.º do Contrato Coletivo; no dia a 21 de novembro de 2022, a EMP01... foi declarada insolvente, por sentença entretanto transitada em julgado; essa sentença determinou que a administração da massa continuasse a ser assegurada pela insolvente, tendo os autos ficado a aguardar pela apresentação de plano de insolvência por parte desta; como o plano não foi apresentado, por decisão de 06 de junho de 2023, foi declarada cessada a administração da massa por parte da insolvente, determinado o encerramento definitivo do estabelecimento e ordenado o prosseguimento do processo para liquidação do ativo; na sequência do assim decidido, no dia 27 de outubro de 2023, a administração comunicou ao Autor que a empresa iria encerrar definitivamente no final daquele mês e que, por isso, a partir do dia 1 de novembro de 2023, o seu contrato de trabalho iria cessar, ficando dispensado de se apresentar ao trabalho; a referida comunicação não foi realizada por escrito, nos termos do art. 363/1 do CT, com as indicações aí referidas, nomeadamente com a indicação do montante, forma, momento e lugar de pagamento da compensação devida, dos créditos vencidos e dos créditos exigíveis por efeito da cessação do contrato de trabalho; não foi realizada com a antecedência mínima de 30 dias relativamente à data da cessação do contrato de trabalho, conforme prescreve o art. 363/1, a), do CT, dada a antiguidade do Autor, pelo que o contrato de trabalho deve considerar-se como cessado apenas depois de decorrido o período de aviso prévio contado sobre a comunicação do despedimento, ou seja, no dia 27 de novembro de 2023, tendo o Autor, por isso, direito a retribuição correspondente a esse período; acontece que ao Autor apenas foi paga a retribuição correspondente ao trabalho prestado até ../../2023; além disso, pelo facto de não ter sido antecedida das comunicações escritas a que se refere o art. 360 do CT, pelo facto de não ter sido antecedida de qualquer negociação, e ainda pelo facto de não ter sido observado o prazo prévio de 15 dias, a cessação do contrato de trabalho deve ser havida como ilícita nos termos do art. 383, a) e b), do CT, aplicável por força do art. 347/3 do mesmo diploma; o Autor, pelo exposto, tem direito a receber os créditos reclamados; de entre estes, os primeiros constituem dívidas da massa, nos termos do art. 51/1, f), e 2 do CIRE, devendo ser pagos com precedência relativamente a todos os créditos sobre a insolvência, nos termos do art. 172/1 do CIRE; os segundos, constituem créditos sobre a insolvência, nos termos do art. 47-A do CIRE, beneficiando de privilégio mobiliário geral sobre todos os bens móveis pertencentes à Insolvente e de privilégio imobiliário especial sobre cada um dos imóveis onde esta exercia a sua atividade, nos termos do art. 333 do CT, devendo ser graduados como créditos garantidos.
Citados, os Réus não apesentaram contestação.
Na sequência, foi proferida sentença que, depois de considerar os factos provados como confessados, dada a ausência de qualquer contestação, julgou a ação parcialmente procedente, reconhecendo “o crédito ora reclamado pelo Ministério Público, em representação do trabalhador AA, no montante de € 5 779,94, acrescido de juros de mora, calculados à taxa legal, atualmente de 4 % e contados nos sobreditos termos e até efetivo e integral pagamento, como crédito privilegiado a graduar sobre o produto da venda dos bens imóveis e móveis apreendidos para a insolvência nos termos do art. 737º e 747º do Código Civil.”

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2) Inconformado, o Autor (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):

“1. Os créditos por férias, subsídio de férias e de natal peticionados pelo trabalhador ora recorrente, proporcionais ao lapso de tempo que decorreu entre a declaração de insolvência e a comunicação de cessação do contrato de trabalho, no valor 3.266,93 euros – factos provados nº7 –, devem ser havidos como créditos sobre a massa insolvente, nos termos do artigo 51º nº1 al. f) do CIRE, e não como créditos sobre a insolvência.
2. Sendo créditos sobre a massa, beneficiam da prioridade de pagamento prevista no artigo 172º nº1 do CIRE, e não do privilégio creditório previsto no artigo 333º do CT.
3. Ao decidir qualificar os referidos créditos como créditos sobre a insolvência, a Mma. Juiz não interpretou nem aplicou devidamente, como se impunha, o disposto no artigo 51º nº1 al. f) do CIRE, em cuja previsão devem ser integrados todos os créditos remuneratórios que, como os do ora recorrente, forem devidos por trabalho prestado entre a declaração de insolvência e a comunicação de cessação do contrato de trabalho.
4. É a particular fragilidade da posição dos trabalhadores que não podem recusar o cumprimento do seu contrato de trabalho apesar da declaração de insolvência, por um lado, e é também a essencialidade do seu contributo para a manutenção da empresa em funcionamento, por outro lado, que justificam a qualificação dos sobreditos créditos como créditos sobre a massa.
5º. Termos em que, na procedência do alegado, se deverá revogar a douta sentença ora alvo de recurso e substituí-la por outra que qualifique os peticionados créditos como dívidas da massa insolvente e que ordene o seu pagamento com a prioridade prevista no artigo 172º nº 1 do CIRE.”
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3) Os Réus (daqui em diante, Recorridos) não apresentaram resposta.
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4) O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, a questão que se coloca neste recurso consiste em saber se a decisão recorrida, ao classificar os créditos discriminados no ponto 7 da respetiva fundamentação de facto como créditos sobre a insolvência, incorreu em error in iudicando (ut art. 639/2, b), do CPC), por errada interpretação da norma jurídica consagrada no art. 51/2, f), do CIRE, devendo ser revogada e substituída, nessa parte, por outra que classifique tais créditos como créditos sobre a massa insolvente.
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III.
1) Considerando que o presente recurso apenas versa sobre o aspeto jurídico da causa e que não se vislumbra razão para lançar mão dos poderes oficiosos atribuídos à Relação quanto à matéria de facto (cf. art. 662/2 do CPC), os factos a ter em conta na resposta à questão enunciada são os que foram dados como provados na decisão recorrida. Aqui os transcrevemos:

“1) Por decisão proferida a 21 de novembro de 2022, foi declarada a insolvência de EMP01... – Transportes e Distribuição de Mercadorias, Lda.;
2) Em 06.06.2023 foi declarada cessada a administração da massa insolvente pela devedora e determinado o encerramento do estabelecimento explorado pela insolvente;
3) Em 30.05.2022, o A. foi admitido ao serviço da insolvente, para desempenho das funções para os quais foi contratado;
4) Em contrapartida das funções desempenhadas na empresa insolvente, o A. auferia uma retribuição mensal de € 837,67;
5) Em 31.10.2023, a insolvente comunicou-lhe o encerramento da empresa e a cessação do seu vínculo laboral;
6) A cessação referida em 5, não foi precedida de qualquer formalidade legalmente prevista (art. 360º);
7) A insolvente não pagou ao A., os proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal, no valor de € 3 266,93.”
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2).1. A resposta à questão enunciada pressupõe que, previamente, se estabeleçam os termos da distinção entre créditos sobre a insolvência e créditos sobre a massa insolvente – que têm como contraponto, respetivamente, os conceitos de dívidas da insolvência e de dívidas da massa insolvente – e a respetiva relevância, o que nos irá fornecer o critério norteador da decisão.
A distinção é feita, desde logo, no ponto 21 do Preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18.03, diploma cujo art. 1.º aprovou o CIRE, onde se pode ler que “as dívidas da insolvência, correspondentes aos créditos sobre o insolvente cujo fundamento existisse à data da declaração de insolvência e aos que lhes sejam equiparados (que passam a ser designados como créditos sobre a insolvência, e os respetivos titulares como credores da insolvência), das dívidas ou encargos da massa insolvente» (correlativas aos créditos sobre a massa, detidos pelos credores da massa), que são, grosso modo, as constituídas no decurso do processo.”
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2).1.1. Concretizando, diremos que, declarada a insolvência, todo o património do devedor passa a integrar a massa insolvente. Esta, destinada como está à satisfação dos credores, é um património de afetação especial e um património separado (cf. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª ed, Coimbra: Almedina, 2021, p. 62).
Por outro lado, o n.º 1 do art. 46, em sintonia com o n.º 1 do art. 172, diz que o pagamento dos credores do insolvente só se realiza depois de pagas as dívidas da massa insolvente.
Simplisticamente, diremos que os créditos sobre a insolvência são, nos termos do art. 47/1 e 3 do CIRE, todos aqueles cujo fundamento é anterior à data da declaração de insolvência.
O art. 47/4 distingue, no âmbito de tais créditos, os créditos garantidos e privilegiados, os créditos subordinados e os créditos comuns.
Os primeiros são aqueles que beneficiam, respetivamente, de garantias reais (consignação de rendimentos, penhor, hipoteca e direito de retenção), incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objeto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes.
Os segundos são os taxativamente previstos no art. 48, salvo quando beneficiem de privilégios creditórios gerais ou especiais ou de hipotecas legais, que não se extingam com a declaração de insolvência, e são créditos graduados pela ordem em que vêm elencados na norma, depois de todos os restantes. Não podem ser compensados com dívidas à massa (art. 99/4, d)). Havendo lugar a plano de insolvência, consideram-se objeto de perdão total, salvo estatuição expressa em sentido contrário (art. 197, b)).  Os respetivos titulares não têm direito de voto na assembleia de credores, salvo se em causa estiver a aprovação de um plano de insolvência, e não são representados na comissão de credores (art. 66).
Todos os demais créditos são comuns.
Estes créditos sobre a insolvência devem ser reclamados no processo de insolvência (art. 128 do CIRE) para que, uma vez verificados e graduados, obtenham pagamento.
Em conformidade, a sentença que decrete a insolvência deve fixar um prazo de 30 dias para a reclamação de créditos (art. 36/1), prazo esse que não se suspende em férias judicias, consequência da natureza urgente atribuída pelo CIRE (art. 9.º/1) ao processo de insolvência, seus incidentes, apensos e recursos.
Todos os credores da insolvência têm o ónus de reclamar os seus créditos, através de requerimento endereçado ao administrador da insolvência (art. 128/2), para que a sentença de verificação e graduação de créditos os gradue.
Nos 15 dias seguintes ao termo do prazo para a reclamação de créditos, o administrador da insolvência elabora uma lista dos créditos reconhecidos e não reconhecidos, podendo reconhecer créditos não reclamados no processo de insolvência, mas que resultem dos elementos de contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento, bem como atribuir aos créditos reclamados uma outra natureza (art. 129/1 e 4).
Nos 10 dias seguintes ao termo do prazo para o administrador de insolvência apresentar a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, pode qualquer interessado – entendendo-se como tal o insolvente e os credores relativamente aos respetivos créditos, bem como todos os credores em relação aos quais exista possibilidade de conflito com o titular do crédito reconhecido (Maria José Costeira, “Classificação, Verificação e Graduação de Créditos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”, AAVV, Catarina Serra (coord.), I Congresso de Direito da Insolvência. Coimbra: Almedina, 2013, p. 250) – impugnar a lista de credores reconhecidos e não reconhecidos, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, na incorreção do montante ou da qualificação do crédito.
Nos dez dias seguintes ao termo do prazo para impugnar, o administrador da insolvência, o devedor e qualquer interessado que assuma a posição contrária podem responder, salvo se a impugnação se fundar na indevida inclusão de determinado crédito na lista de credores reconhecidos, na falta de indicação das condições a que se encontra sujeito ou no facto de lhe ter sido atribuído um montante excessivo ou uma quantia de grau superior à correta, casos em que só o próprio titular pode responder (arts. 130 e 131).
A falta de resposta tem como consequência a procedência da impugnação (art. 131/3).
Terminado o prazo das respostas às impugnações, a comissão de credores, caso exista, deve juntar aos autos o seu parecer sobre as impugnações. Esse parecer não é obrigatório e a sua omissão não gera qualquer consequência para o normal andamento do apenso.
Não havendo impugnações, é proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que o juiz homologa a lista de credores reconhecidos e procede à sua graduação (art. 130/3).
Decorridos todos estes prazos, o juiz declara verificados, com valor de sentença, os créditos incluídos na lista e não impugnados, e pode agendar uma tentativa de conciliação, na qual devem comparecer todos os que tenham apresentado impugnações e respostas, a comissão de credores e o administrador da insolvência (art. 136/1).
Após a tentativa de conciliação, o processo é concluso ao juiz para os termos previstos nos arts. 595 e 596 do CPC (prolação de despacho saneador e despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova). No despacho saneador constam os créditos reconhecidos e não impugnados, os aprovados na tentativa de conciliação e aqueles que como tal possam ser considerados face aos elementos de prova juntos aos autos, declarando-os verificados e graduando-os.
Encerrada a audiência final, o juiz profere sentença de verificação e graduação dos créditos no prazo de 10 dias (art. 140/1).
Sem prejuízo, terminado o prazo das reclamações, é possível reconhecer ainda outros créditos sobre a insolvência, através de ação proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor, no prazo de seis meses a contar do trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência ou nos três meses subsequentes ao da sua constituição, caso seja posterior (art. 146/1).
Tal ação corre por apenso ao processo de insolvência e segue os termos do processo comum (art. 148).
Precise-se que não pode ser usada como mecanismo de reclamação ulterior de créditos por credores não reconhecidos, por credores cujos créditos foram reconhecidos sem que os tenham reclamado, ou reconhecidos em termos diversos dos da respetiva reclamação, que tenham sido avisados pelo administrador da insolvência, por carta registada, nos termos do art. 129/4, os quais apenas poderão impugnar a lista apresentada pelo administrador da insolvência nos termos do art. 130.
Os créditos garantidos são pagos em primeiro lugar, através do produto obtido com a venda do bem onerado, mas não sem antes se satisfazerem as dívidas da massa. Estas últimas são imputadas ao rendimento da massa e, quanto ao excedente, ao produto de cada bem móvel ou imóvel, sem exceder 10% do produto de bens objeto de garantias reais, nos termos do art. 172/1 e 2 (art. 174/1) A parte do crédito garantido que, eventualmente, fique por satisfazer será incluída nos créditos comuns (art. 174/1, parte final).
Seguidamente, são pagos os créditos privilegiados (art. 175/1), à custa dos bens não afetos a garantias reais prevalecentes. Também quanto a estes créditos a preferência está limitada aos bens sobre os quais incide o privilégio, pelo que o remanescente do crédito será graduado como crédito comum (art. 174/1, parte final, ex vi art. 175/2).
Em terceiro lugar, são pagos os créditos comuns. Quando a satisfação integral destes for impossível, o pagamento será feito proporcionalmente (art. 176).
Finalmente, tem lugar o pagamento dos créditos subordinados, observando-se a ordem pela qual vêm expostos no art. 48.
Há lugar, obrigatoriamente, a rateio parcial, quando cumulativamente se verifiquem as condições indicadas nas alíneas do n.º 1 do art. 178. O administrador da insolvência deve apresentar o plano e o mapa de rateio, seguido do pagamento (art. 183), se for caso disso, consoante a decisão tomada pelo juiz (art. 178/3).
Terminada a liquidação da massa insolvente, a distribuição pelos credores do produto obtido e o rateio final são efetuados pela secretaria do tribunal depois de o processo ser remetido à conta (art. 182/1).
Quando as sobras da liquidação nem sequer cubram as despesas do rateio, são entregues ao organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça (art. 182/2).
Se o produto obtido com a liquidação for suficiente para o pagamento da totalidade dos créditos sobre a insolvência, o remanescente é entregue ao devedor (art. 184/1). Não sendo o devedor uma pessoa singular, o administrador da insolvência entrega a parte do saldo às pessoas a quem pertenceria se a liquidação fosse realizada fora do processo de insolvência, ou cumpre o que estiver legal ou estatutariamente previsto (art. 184/2).
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2).1.2. Na falta de uma definição legal, dir-se-ia, por contraposição, que os créditos sobre a massa insolvente são aqueles cujo fundamento é ulterior à sentença de declaração de insolvência.
O raciocínio, assente num critério estritamente cronológico, não seria, todavia, exato, pois, como adverte Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência cit., p. 63), “se é verdade que todos os créditos com fundamento anterior à declaração de insolvência são créditos sobre a insolvência, não é verdade que todos os créditos sobre a insolvência sejam créditos com fundamento anterior à declaração de insolvência; existem créditos sobre a insolvência cujo fundamento é posterior a esta data.”
Para integrar o conceito, resta recorrer ao disposto no n.º 1 do art. 51, em cujas alíneas são enumerados, de forma exemplificativa[2] (“além de outras como tal qualificadas neste Código”), as dívidas da massa insolvente, na tentativa de encontrar o denominador comum a todas elas. Será este que, em complemento ao referido critério cronológico, permitirá determinar se um determinado crédito – cujo fundamento tenha surgido depois da declaração de insolvência – é um crédito sobre a massa insolvente ou, não obstante, um crédito sobre a insolvência.”
Diz o preceito que, “[s]alvo preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente, além de outras como tal qualificadas neste Código: a) As custas do processo de insolvência; b) As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores; c) As dívidas emergentes dos atos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente; d) As dívidas resultantes da atuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções; e) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a período anterior à declaração de insolvência; f) Qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração; g) Qualquer dívida resultante de contrato que tenha por objeto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório; h) As dívidas constituídas por atos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes; i) As dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente; j) A obrigação de prestar alimentos relativa a período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições do artigo 93.º”
Complementarmente, pode recorrer-se a outras disposições do CIRE, como sejam, de acordo com a enumeração de Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência cit., p. 64), as que classificam como créditos sobre a massa o direito da contraparte do insolvente (só) no que exceda o valor do que seria apurado no caso de o administrador da insolvência ter recusado o cumprimento do contrato (art. 103/3), o direito da contraparte do insolvente à contraprestação em dívida (só) no caso de o cumprimento da prestação ser imposto ao insolvente por contrato e não recusando o administrador esse cumprimento (art. 103/5), a remuneração e o reembolso das despesas do mandatário (só) quando estas resultem da realização, por este, de atos necessários para evitar prejuízos previsíveis para a massa insolvente e até que o administrador da insolvência tome as devidas precauções (art. 110/3), a obrigação de restituição pela massa do valor correspondente ao objeto prestado por terceiro (só) na medida do respetivo enriquecimento à data da declaração de insolvência (art. 126/5).
Como se constata, estão aqui em causa¸ grosso modo, dívidas relativas ao próprio processo subsequente à declaração de insolvência. É este o denominador comum que permite concluir, citando Catarina Serra (idem), “em primeiro lugar, que a classificação como dívidas da massa assenta na existência de uma espécie de nexo causal (ou nexo de derivação) entre as dívidas e o processo de insolvência. Sendo previsíveis e naturais ao processo de insolvência, tendo por finalidade assegurar a abertura e o curso de um processo de insolvência (como as resultantes das custas), ou sendo meramente eventuais (como as que derivam da atividade dos órgãos e, em particular do exercício, pelo administrador da insolvência, das suas funções), a verdade é que todas são consequência do processo de insolvência.”
Daqui conseguimos retirar, de forma sintética, que devem considerar-se como créditos sobre a massa insolvente aqueles cuja constituição é ulterior à declaração de insolvência e que têm nesta a sua causa.
Estes créditos sobre a massa insolvente não são reclamados no processo de insolvência, devendo o administrador da insolvência proceder ao seu pagamento no momento do respetivo vencimento, independentemente do estado em que se encontrar o processo.
Vencida a dívida, se o pagamento não for realizado, o credor tem o direito de o reclamar judicialmente, através da ação declarativa ou executiva competente, que corre por apenso ao processo de insolvência, conforme determina o art. 89/2. Vale, portanto, o princípio da pontualidade no cumprimento.
Revelando-se a massa insolvente insuficiente para fazer face ao pagamento do crédito em causa, o credor pode responsabilizar o administrador da insolvência, exigindo-lhe o pagamento do crédito, desde que o seu direito resulte de ato de administração do administrador e a insuficiência da massa tivesse sido previsível (art. 59/2).
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2).1.3. Do exposto resulta que o regime de pagamento dos créditos sobre a massa insolvente é muito mais benéfico para o credor do que o previsto para os créditos sobre a insolvência, já que aqueles são satisfeitos prioritariamente (art. 172/1) – princípio da precipuidade ou, na expressão de Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 299), da exequibilidade –, sem necessidade de reclamação, no momento em que se vencem, independentemente do estado do processo (art. 172/3) – princípio da pontualidade ou, também na expressão de Maria do Rosário Epifânio (idem), da satisfação imediata – conforme é enfatizado, na jurisprudência, em RG 7.10.2021 (1/08.0TJVNF-ET.G1), relatado por José Alberto Moreira Dias.
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2).2.1. Assim definidos os parâmetros a observar, cumpre agora apreciar se os créditos discriminados no ponto 7 da fundamentação de facto preenchem os critérios de que depende a sua classificação como créditos sobre a massa insolvente, como sustenta o Recorrente.
Preliminarmente, diremos que é indiscutível que tais créditos têm como fonte um contrato de trabalho celebrado entre o Recorrente e a Insolvente em momento anterior à declaração de insolvência. Esse contrato, todavia, continuou a ser executado depois da declaração de insolvência, apenas vindo a cessar com o encerramento definitivo da atividade da Insolvente. É indiscutível também que os créditos em questão constituem a contrapartida pelo trabalho prestado pelo Recorrente no hiato compreendido entre a declaração de insolvência e o encerramento da atividade da insolvente.
Quid inde?
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2).2.2. O CIRE trata dos efeitos da declaração de insolvência nos negócios do insolvente que se encontrem em curso no Capítulo IV do Título IV.
Contém-se aí uma disposição – a do art. 113 – relativa ao contrato de trabalho. Esta, no entanto, apenas versa sobre o destino do contrato na perspetiva da insolvência do trabalhador, pelo que se entende que estão excluídos do seu âmbito de aplicação os efeitos sobre os contratos de trabalho quando ocorre a insolvência do empregador.
Para Pedro Romano Martinez (“Apontamentos sobre a cessação do contrato de trabalho à luz do Código de Trabalho”, Lisboa: AAFDL, 2004, pp. 51 e ss.), aos casos de insolvência do empregador, deve aplicar-se o art. 111 do CIRE, preceito onde se regulam os efeitos da declaração de insolvência nos contratos que impliquem a realização de uma prestação de serviço duradoura. De acordo com o autor, os contratos de trabalho não se extinguem por caducidade aquando da declaração de insolvência. Sem prejuízo, depois da declaração, os contratos podem ser denunciados pelo administrador da insolvência com um pré-aviso de sessenta dias (art. 108/1 ex vi art. 111/1), implicando esta denúncia antecipada o pagamento de uma compensação ao trabalhador calculada nos termos do art. 108/3 do CIRE.
Este entendimento é, todavia, rebatido pelos demais autores que se pronunciam sobre a questão.
Assim, Maria do Rosário Palma Ramalho (“Aspetos Laborais da Insolvência. Notas breves sobre as implicações laborais no regime do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas”, AAVV, Estudos em memória do Professor Doutor José Dias Marques, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 695-696) exclui a aplicação do art. 111 com base num argumento literal, num argumento dogmático, num argumento teleológico e num argumento de natureza constitucional.
Do ponto de vista literal, o regime da insolvência distingue contrato de trabalho de contrato de prestação de serviço, referindo-se especificamente àquele nos arts. 113 e 277 do CIRE, o que evidencia que o legislador não o quis incluir na previsão da norma do art. 111, que ademais se refere a contratos de prestação duradoura de serviços realizados no interesse do insolvente, o que afasta o contrato de trabalho, na medida em que nele está sempre em causa (também) o interesse do trabalhador.
Do ponto de vista dogmático, o nosso sistema jurídico tem presente a distinção entre contrato de prestação de serviço e contrato de trabalho, delimitando-os legalmente (arts. 1152 e 1154 do Código Civil e art. 11 do CT). Não é, portanto, de admitir que o CIRE preveja a aplicação do mesmo regime a dois contratos tão distintos, afastando-se dessa orientação geral.
Do ponto de vista teleológico, da aplicação do art. 111 resultaria, para o administrador da insolvência, o direito potestativo de denunciar o contrato de trabalho nos sessenta dias após a declaração de insolvência, o que estaria em contradição com o dever de prover à continuação da exploração da empresa previsto no art. 55/1, b).
Do ponto de vista constitucional, ao conceder ao administrador da insolvência a liberdade de denunciar o contrato de trabalho, o legislador estaria a permitir que o princípio da proibição dos despedimentos sem justa causa, consagrado no art. 53 da CRP, fosse contornado, criando uma forma de cessação do contrato de trabalho tipificada na lei laboral.
No mesmo sentido da não aplicação do art. 111 aos contratos de trabalho, genericamente por entenderem que ele não se coaduna com o regime aplicável aos vínculos laborais, autores como Luís Carvalho Fernandes (“Efeitos da Declaração de Insolvência no Contrato de Trabalho segundo o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas”, Coletânea de Estudos Sobre Insolvência, Lisboa: Quid Juris, 2009, pp. 215-246), Luís Carvalho Fernandes / João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, I, Lisboa: Quid Juris, 2005, p. 415) e Joana Vasconcelos (“Insolvência do Empregador e Contrato de Trabalho”, AAVV, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, II, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, pp. 1093-1094) sustentam que, em caso de insolvência do empregador, há lugar à aplicação, aos contratos de trabalho, do art. 277 que, sob a epígrafe de Relações laborais, dispõe que “[o]s efeitos da declaração de insolvência relativamente a contratos de trabalho e à relação laboral regem-se exclusivamente pela lei aplicável ao contrato de trabalho.”
Este entendimento no sentido da aplicação do art. 277 é criticado por Luís Menezes Leitão (Direito da Insolvência, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2011, p. 204), para quem a norma em questão não contém “uma disposição remissiva de natureza substantiva”, mas uma mera norma de conflitos da qual não decorre qual o regime aplicável às relações laborais.
Ainda de acordo com este autor, é no CT que se encontra especificamente regulada a situação da insolvência do empregador e a recuperação da empresa.
De facto, salvaguardando os efeitos especiais que decorrem da administração judicial da empresa insolvente, o art. 347/1 do CT prevê a manutenção dos contratos de trabalho e a satisfação das obrigações a eles inerentes pelo administrador da insolvência, pelo que é o regime laboral que determina a não cessação dos contratos, exceto nos casos em que se verifica o encerramento definitivo do estabelecimento.
No mesmo sentido, Maria do Rosário Palma Ramalho (loc. cit., p. 607) escreve que estamos perante uma lacuna do CIRE, o que nos remete para o art. 347/1 do CT, norma que, ao prever que “[a] declaração judicial de insolvência do empregador não faz cessar o contrato de trabalho, devendo o administrador da insolvência continuar a satisfazer integralmente as obrigações para com os trabalhadores enquanto o estabelecimento não for definitivamente encerrado”, consagra um princípio da intangibilidade dos contratos, cujo fundamento encontra arrimo na possibilidade de recuperação da empresa admitida pelo legislador. A mesma autora explica, num outro texto (“Os trabalhadores no processo de insolvência”, AAVV, III Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2015, pp. 383-412), que o conceito de estabelecimento deve ser equiparado, no contexto do direito da insolvência, ao de empresa.
Desta breve síntese, resulta evidente que a doutrina admite, ainda que com diferentes fundamentos, que a declaração de insolvência da entidade patronal não importa a extinção imediata do vínculo laboral. Como resume Joana Costeira (Os Efeitos da Declaração Judicial de Insolvência no Contrato de Trabalho – A Tutela dos Créditos Laborais, Coimbra: Almedina, 2021, p. 44), o destino do contrato de trabalho “ficará sujeito às vicissitudes da empresa, dependendo das opções que vierem a ser tomadas no âmbito do processo de insolvência.”
Compreende-se que assim seja: o processo de insolvência, não obstante ter uma finalidade essencialmente liquidatória, admite a manutenção e a recuperação da empresa, o que pressupõe que não existam soluções de continuidade na execução das prestações laborais. Deste modo, é de excluir a eficácia extintiva automática da declaração da insolvência (Luís Carvalho Fernandes, loc. cit., p. 230), reservando ao administrador da insolvência o dever de continuar a cumprir integralmente as obrigações para com os trabalhadores até ao encerramento definitivo da empresa (art. 347/1, parte final, do CT), o que resulta do disposto no art. 81/1 e 4, onde lhe é atribuída a responsabilidade pela administração da massa insolvente e a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência. Isto sem prejuízo, claro está, da possibilidade de o administrador da insolvência, ainda antes do encerramento definitivo do estabelecimento, pode fazer cessar os contratos de trabalho dos trabalhadores cuja colaboração não seja indispensável à manutenção do funcionamento da empresa (art. 347/2 do CT).
Com relevo para a decisão do recurso, convém ainda salientar que o n.º 1 do art. 347 do CT não faz qualquer referência às situações em que a administração da massa insolvente é atribuída ao devedor.
Afigura-se, que, por identidade de razões, deve valer o mesmo regime. Neste sentido, RC 17.07.2010 (562/09.7T2AVR-P.C1), relatado por António Barateiro Martins, onde se pode ler que “declarada a insolvência, incumbe ao administrador da insolvência continuar a satisfazer as obrigações contratuais para com os trabalhadores da insolvente; incumbência que pertencerá ao devedor/insolvente quando, como foi o caso dos autos, lhe é atribuída a administração da massa insolvente nos termos do art. 223 e ss. do CIRE.” Na doutrina, Luís Carvalho Fernandes (loc. cit., p. 230), Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência cit., p. 273) e Joana Costeira (Os Efeitos da Declaração Judicial de Insolvência no Contrato de Trabalho cit., p. 45), escrevendo esta última que “devemos fazer uma interpretação sistemática do preceito [refere-se ao art. 347/1 do CT] e assumir que este dever de cumprir as obrigações laborais enquanto os contratos de trabalho subsistem se aplica também ao devedor encarregue de administrar a massa insolvente, sob a fiscalização do administrador da insolvência (arts. 224 e ss. do CIRE).”
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2).2.3. Como decorrência lógica do que antecede, temos que apenas o encerramento definitivo da empresa constitui causa de cessação dos contratos de trabalho celebrados pelo insolvente na qualidade de empregador. Em rigor, opera a figura da caducidade, resultado de uma impossibilidade superveniente de o empregador receber a prestação de trabalho, mas também de o trabalhador a prestar (art. 343, b), do CT), posto que a empresa deixa de existir, o que é confirmado pelo art. 346/2 do CT.
Dizendo de outra forma, o encerramento definitivo da empresa determina, ipso facto, a cessação das relações laborais, havendo apenas que observar o procedimento previsto para o despedimento coletivo, nos termos do art. 347/3 do CT, salvo de estiver em causa uma microempresa. Não sendo cumprido tal procedimento, embora com as adaptações necessárias à situação concreta, estaremos perante um despedimento ilícito, conforme foi entendido em RP 1.02.2010 (1/08.0TJVNF-AY.S1.P1), relatado por Soares de Oliveira.
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2).3. As considerações feitas no ponto anterior servem de mote para ensaiarmos a resposta à questão enunciada.
Como se sabe, a cessação do contrato de trabalho por facto não imputável ao trabalhador importa a constituição, na esfera jurídica deste, de um feixe de direitos de créditos que, seguindo Joana Costeira (Os Efeitos da Declaração Judicial de Insolvência no Contrato de Trabalho cit., p. 82), podemos sistematizar da seguinte forma: créditos remuneratórios, créditos indemnizatórios e créditos compensatórios.
Os primeiros correspondem a salários e subsídios – isto é, a prestações decorrentes da existência do contrato de trabalho e da efetiva prestação de trabalho; os segundos são aqueles que resultam da violação de direitos e normas laborais, como sejam a indemnização por resolução do contrato de trabalho com justa causa por parte do trabalhador ou a indemnização por despedimento ilícito; os terceiros são os que emergem da compensação devida ao trabalhador em caso de cessação do contrato de trabalho.
Centremos a atenção nos primeiros, que são os únicos que estão em causa no recurso.[3]
Quanto a estes, parece bastar o critério temporal para definir se devem ser qualificados como créditos sobre a insolvência ou créditos sobre a massa insolvente, certo como é que a prestação de trabalho se apresenta sempre como algo necessário à laboração da empresa, de tal modo que se esta se tiver mantido depois da declaração de insolvência será axiomática a verificação do nexo causal (ou nexo de derivação) entre as correspondentes dívidas e o processo de insolvência. Assim, se tais créditos se constituíram antes da declaração judicial de insolvência – ou, dito de outra forma, se forem correspondentes a prestações de trabalho já realizadas – serão créditos sobre a insolvência e, como tal, serão qualificados como créditos privilegiados e garantidos, uma vez que gozam de privilégios creditórios, nos termos do art. 333 do CT, designadamente privilégio imobiliário especial, referido na al. b) do n.º 1, e privilégio mobiliário geral referido na al. a). Se, pelo contrário, se constituíram após a declaração judicial de insolvência - o que sucederá nas situações em que o contrato de trabalho se manteve em vigor e se foram vencendo novos créditos dele emergentes –, serão créditos sobre a massa insolvente, enquadráveis na alínea e) do n.º 1 do art. 51.
Este é, segundo cremos, o entendimento da doutrina, podendo indicar-se autores como Luís Menezes Leitão (“A natureza dos créditos laborais resultantes de decisão do administrador de insolvência”, CDP, n.º 34, abr./jun. de 201, pp. 55-66), que escreve: “(…) não faz muito sentido considerar como créditos sobre a insolvência os créditos laborais constituídos após a declaração de insolvência. Efetivamente, uma vez que o trabalhador continua a trabalhar para a empresa insolvente após a declaração de insolvência, naturalmente que o pagamento dos seus salários, vencendo-se após essa data, não poe estar sujeito às regras dos créditos sobre a insolvência, em relação aos quais o art. 13 do CIRE só admite o seu pagamento após a sua verificação por sentença transitada em julgado, a efetuar no final do processo no âmbito dos rateios. Teríamos uma situação laboral em que o trabalhador continuaria a trabalhar para a empresa após a situação de insolvência, mas os seus salários apenas seriam pagos como créditos sobre a insolvência num momento futuro, tendo que ser reclamados no processo. Essa solução é que nos parece completamente despropositada. É manifesto que estes créditos correspondem a dívidas da massa, a pagar na data dos respetivos vencimentos, qualquer que seja o estado do processo (art. 172/3 do CIRE).”
O autor acrescenta, de forma incisiva, que “[o] absurdo da solução é, aliás, bem visível se pensarmos no facto de que, em face do art. 55/4 do CIRE, o administrador da insolvência pode contratar, a termo certo ou incerto, novos trabalhadores que sejam necessários à liquidação da massa insolvente ou à continuação da empresa. Não parece haver qualquer dúvida de que nesse caso as dívidas laborais são dívidas da massa insolvente, uma vez que emergem de atos de administração e liquidação da massa (art. 51/1, c), do CIRE) ou da atuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções (art. 51/1, d), do CIRE).”
E conclui que se prevalecesse a solução de classificar os créditos remuneratórios dos trabalhadores contratados antes da declaração de insolvência, mas relativos a trabalho prestado depois deste momento, como créditos sobre a insolvência, “teríamos o absurdo de numa mesma empresa passar a haver trabalhadores de primeira e de segunda. Os contratados pelo administrador da insolvência receberiam imediatamente o seu salário como crédito sobre a massa, enquanto que os outros seriam meros credores da insolvência, obrigados a reclamar os seus créditos. É manifesto que essa situação corresponderia a uma flagrante violação da igualdade laboral, sendo contrária a todas as regras legais.”
Júlio Vieira Gomes, “Nótula sobre os Efeitos da Insolvência do Empregador nas Relações de Trabalho”, AAVV, Processo de Insolvência e Ações Conexas, Lisboa: CEJ, 2014, pp.  200-201, disponível em https://cej.justica.gov.pt/E-Books/Direito-do-Trabalho-e-da-Empresa), depois de reconhecer que “esta solução pode acabar por estimular o despedimento dos trabalhadores, porquanto os créditos sobre a massa insolvente são pagos, como é sabido, prioritariamente, por força do art. 46 do CIRE, escreve que “[à] luz do art. 51/1, f), do CIRE parece-nos que as dívidas respeitantes a período anterior à declaração de insolvência, e correspondentes a uma contraprestação (trabalho) já realizada, são dívidas da insolvência; apenas serão dívidas da massa insolvente aquelas que respeitam a trabalho realizado posteriormente à declaração de insolvência. Por conseguinte, serão dívidas da insolvência retribuições em atraso respeitantes a trabalho que ocorreu antes da declaração de insolvência, ao passo que as retribuições correspondentes ao trabalho realizado após a declaração de insolvência serão já dívidas da massa.”
Ainda no mesmo sentido, pode ver-se, na doutrina, Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência cit., pp. 275-276), Ana Rita Magalhães (Créditos Laborais no Processo de Insolvência. Coimbra: Almedina, 2022, p. 85), que qualifica a solução como incontornável, Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 242), Alexandre de Soveral Martins (Um Curso de Direito da Direito da Insolvência, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 291, nota, 229) e Marco Carvalho Gonçalves (Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Coimbra: Almedina, 2023, pp. 388-389). Na jurisprudência, inter alia, STJ 5.07.2016 (6034/13.8TBBRG-N.G1.S1), relatado por Ana Paula Boularot, RP 6.07.2010 (1/08.0TJVNF-L.S1.P1), relatado por Sílvia Pires, RG 9.07.2015 (72/12.5TBVRL-I.G1), relatado por Manuel Bargado, RG 9.07.2015 (72/12.5TBVRL-AH.G1), relatado por Heitor Gonçalves, RG 16.02.2017 (46/16.7T8VRL.G1), relatado por Antero Veiga, RG 2.05.2019 (4022/07.2TBBRG-CV.G1), relatado por Alexandra Rolim Mendes; e RG 21.04.2022 (1/08.0TJVNF-EW.G1), relatado por Maria João Matos, aqui 1.ª Adjunta.
Fica, deste modo, dada a resposta à questão enunciada: assiste razão ao Recorrente quando afirma que, ao contrário do que foi decidido pela 1.ª instância, os créditos discriminados no ponto 7 da fundamentação de facto (créditos por férias, subsídio de férias e de natal peticionados pelo Recorrente, proporcionais ao lapso de tempo que decorreu entre a declaração de insolvência e a comunicação de cessação do contrato de trabalho, no valor € 3 266,93 euros ) devem ser classificados como créditos sobre a massa insolvente e não como créditos sobre a insolvência.
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2).4. Uma nota para dizer que o meio processual de que o Recorrente lançou mão para obter a condenação da massa no cumprimento dos ditos créditos remuneratórios não foi, prima facie, o adequado.
Como vimos, a reclamação de créditos, prevista no art. 128, e, depois de esgotado o prazo para ela fixado, a ação de verificação ulterior de créditos, regulada no art. 146, estão pensadas para os créditos sobre a insolvência.
A legitimidade passiva para a ação cabe, em litisconsórcio necessário, à massa, devedor e credores, sendo estes citados por meio de editais publicados no portal Citius (146/1).
Pelo contrário, no que tange ao pagamento dos créditos sobre a massa insolvente, não é exigível o reconhecimento judicial do direito por sentença transitada em julgado. A correspondente dívida deve ser paga na data do vencimento, qualquer que seja o estado do processo (172/3). Apenas na eventualidade de o administrador da insolvência recusar o pagamento como dívida da massa ficará aberto o caminho para o trabalhador recorrer à via judicial, devendo, para tanto, intentar contra a massa insolvente, representada pelo administrador da insolvência, ação que seguirá a forma comum, nos termos do art. 89/2, correndo por apenso aos autos de insolvência. É este – e não a ação de verificação ulterior de créditos – o processo próprio para o conhecimento dos créditos laborais como créditos sobre a massa insolvente, conforme foi entendido em RG 27.04.2017 (541/16.8T8GMR-F.G1), relatado por António Figueiredo de Almeida, e em RP 1.02.2010 (1/08.0TJVNF-AY.S1.P1), relatado por Soares de Oliveira. Neste sentido, também Luís Menezes Leitão (A natureza dos créditos laborais resultantes de decisão do administrador de insolvência cit., pp. 65-66).
Afigura-se, no entanto, que o recurso à ação de verificação ulterior de créditos é explicado, no caso, pelo facto de o Recorrente ter cumulado, com o pedido de reconhecimento de créditos sobre a massa insolvente, o pedido de reconhecimento de créditos sobre a insolvência, propondo a ação contra todos os que teriam legitimidade para deduzir oposição a uma e a outra das pretensões, em verdadeira situação de coligação de réus.
Sendo a causa de pedir a mesma – a cessação do contrato de trabalho celebrado entre o Recorrente e a insolvente – a coligação é lícita (art. 36/1 do CPC). A apontada diferença entre as formas processuais aplicáveis não constitui obstáculo, uma vez que tais formas não se apresentam como substancialmente incompatíveis (art. 37/2 do CPC), pelo que não existe qualquer obstáculo ao conhecimento do mérito.
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3) Conforme resulta do disposto no art. 148 do CIRE, as custas da ação de verificação ulterior de créditos são suportadas pelo autor, se não tiver havido contestação.
Esta norma, especial relativamente à do n.º 1 do art. 527 do CPC, vale também para os recursos interpostos pelo autor a que haja lugar em tais ações e aos quais não seja apresentada resposta.
Acontece que o Autor na ação, ora Recorrente, está isento de custas, nos termos previstos no art. 4.º/1, h), do RCP, conforme foi já decidido pela 1.ª instância.
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso procedente e, em consequência, (i)) revogar a decisão recorrida na parte em que classificou como créditos sobre a insolvência os créditos titulados pelo Recorrente descrito no ponto 7 da respetiva fundamentação de facto; (ii)) substituir esse segmento decisório por outro a classificar tais créditos como créditos sobre a massa insolvente e a condenar a Ré Massa Insolvente da sociedade EMP01... – Transportes e Distribuição de Mercadorias, Lda., a proceder ao seu pagamento com a prioridade prevista no art. 172/1 do CIRE.
Sem custas.
Notifique.
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Guimarães, 3 de outubro de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.ª Adjunta: Maria João Marques Pinto de Matos
2.ª Adjunta: Alexandra Maria Viana Parente Lopes


[1] Diploma ao qual pertencem as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva proveniência. Os acórdãos citados no texto estão publicados em www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, na jurisprudência, STJ 20.10.2015 (640/11.2TBCMN-B.G1.S1), relatado por Ana Paula Boularot; na doutrina, Luís Menezes Leitão (“As dívidas da massa insolvente”, AAVV, IV Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2017, p. 26).
[3] Quanto aos demais, diremos apenas que a doutrina e a jurisprudência anteriores à Lei n.º 9/2022, de 11.01, dividiam-se em três correntes distintas: para uma primeira, esses créditos constituíam créditos sobre a massa insolvente, por resultarem da atuação do próprio administrador da insolvência (v.g., RG 27.04.2017, º 541/16.8T8GMR-F.G1, relatado por António Figueiredo de Almeida); para uma segunda, esses créditos eram créditos sobre a insolvência, por resultarem de uma relação jurídica constituída antes da declaração de insolvência da entidade patronal (v.g., RC 1.02.2018, 1450/14.0TJVNF-B.G1, relatado por BB; para uma terceira, constituíam simultaneamente uma dívida da insolvência, na parte relativa ao trabalho prestado até à data da declaração de insolvência, e uma dívida da massa, na parte correspondente ao trabalho prestado após a declaração de insolvência (v.g., RG 9.07.2015, 72/12.5TBVRL-AH.G1, relatado por Heitor Gonçalves). Através da referida Lei n.º 9/2022, de 11.01, o legislador aditou o art. 47 -A ao CIRE, nele prevendo, sob a epígrafe Créditos compensatórios, que “[o]s créditos compensatórios resultantes da cessação de contrato de trabalho pelo administrador da insolvência após a declaração de insolvência do devedor constituem créditos sobre a insolvência.”