COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
INVENTÁRIO SUBSEQUENTE A DIVÓRCIO DECRETADO EM ESTADO-MEMBRO DA UE
INVENTÁRIO A CORRER EM CARTÓRIO NOTARIAL DO LUXEMBURGO
REGULAMENTOS EUROPEUS
AUSÊNCIA DE CONVENÇÃO INTERNACIONAL
NORMAS INTERNAS DE COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
EXCEÇÃO DILATÓRIA DE LITISPENDÊNCIA
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRIBUNAL NACIONAL
Sumário


1- A competência internacional dos tribunais portugueses é a parcela de jurisdição que lhes cabe face às jurisdições estrangeiras nos casos em que perante eles seja proposta uma ação cujo objeto apresente pontos de conexão com a ordem jurídica nacional e com outra ou outras jurisdições estrangeiras.
2- Essa competência internacional afere-se, em primeiro lugar, pelas regras jurídicas definidoras da competência internacional que constem de regulamento da União Europeia (que o art. 8º, n.º 4 da CRP, incorpora e receciona diretamente na ordem jurídica interna portuguesa) ou em convenção internacional a que o Estado Português se auto vinculou; e na ausência daqueles, pelas normas de competência internas que Portugal, enquanto estado soberano, fixou unilateralmente nos arts. 62º e 63º do CPC.
3- Sendo a competência internacional do tribunal em que a ação foi proposta um pressuposto processual, em que a infração das normas atributivas daquela consubstancia uma exceção dilatória, que determina a incompetência absoluta do tribunal nacional onde a ação foi proposta, determinando a absolvição do réu da instância, essa exceção carece de ser aferida pela relação jurídica material controvertida delineada, em termos subjetivos (quanto aos sujeitos) e objetivos (quanto ao pedido e à causa de pedir), pelo autor na petição inicial.
4- O Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27/11, bem como o Regulamento (UE) n.º 1111/2016 do Conselho, de 26/01, que o substituiu a partir de 22/07/2019, e cujo regime jurídico passou a ser aplicável às ações instauradas em 01 de agosto de 2022 ou em data subsequente, apenas são aplicáveis às ações de divórcio, separação ou de anulação de casamento, não estatuindo sobre o processo de inventário para partilha dos bens comuns dos ex-cônjuges subsequente à dissolução do casamento por qualquer uma das referidas causas.
5- O regime jurídico do Regulamento (UE) n.º 2016/1103 do Conselho, de 24/06/2016, abrange as decisões relativas à partilha dos bens comuns do casal dissolvido por divórcio, separação ou anulação do casamento, ao estender, salvo as exceções previstas no n.º 2 do seu art. 5º (em que se exige o acordo dos cônjuges para que se admita essa extensão, prestado aquando da propositura da ação de divórcio, separação ou anulação) a jurisdição dos tribunais dos Estados-Membros que decretaram o divórcio, a separação ou anulação do casamento para julgarem o processo de inventário subsequente a essas causas de dissolução do casamento.
6- O Regulamento (UE) n.º 2016/1103 entrou em vigor em 28/07/2016, mas apenas é aplicável às ações de divórcio, separação ou anulação de casamento instauradas em 29 de janeiro de 2019 ou em data subsequente.
7- O processo de inventário é um desenvolvimento ou consequência da ação de divórcio, correndo por apenso a essa ação, pelo que, tendo o divórcio sido decretado por sentença, transitada em julgado, proferida por tribunal luxemburguês, atento o princípio da coincidência (entre a competência internacional e a competência interna territorial), os tribunais nacionais são internacionalmente incompetentes para julgar o processo de inventário.
8- O processo de inventário subsequente a divórcio não é uma ação real, na medida em que, antes da partilha os ex-cônjuges são titulares de um único direito que incide sobre a totalidade do património (ativo e passivo) comum, em que essa massa patrimonial pertence indistintamente e em bloco a ambos os ex-cônjuges, em propriedade coletiva ou de mão comum, pelo que, ainda que no acervo dos bens a partilhar no processo de inventário exista um prédio sito em Portugal, atento o princípio da exclusividade, os tribunais nacionais são internacionalmente incompetentes para julgar o processo de inventário subsequente a divórcio.
9- A causa de pedir em processo de inventário subsequente a divórcio é a dissolução do casamento, com a consequente extinção das relações patrimoniais entre os ex-cônjuges, pelo que, tendo o divórcio sido decretado no Luxemburgo, os tribunais nacionais também se mostram internacionalmente incompetentes para julgar o processo de inventário.
10- O critério da necessidade é uma cláusula de salvaguarda, de último recurso, que visa evitar que, em casos de impossibilidade absoluta ou relativa, de ordem prática ou jurídica, o autor fique sem tutela efetiva para o direito que pretenda exercer. Por isso, no caso de impossibilidade relativa, exige-se que o autor se depare com uma dificuldade manifesta e séria em instaurar a ação junto de tribunal estrangeiro, por tal implicar para ele um sacrifício irrazoável e desproporcionado à luz do princípio da boa fé, pelo que é de antever que a recusa dos tribunais nacionais em julgar essa ação equivale, em termos práticos e materiais, que o autor fique sem tutela efetiva para o seu direito. Para além da enunciada impossibilidade absoluta ou relativa do autor em propor a ação na jurisdição estrangeira, para que os tribunais nacionais sejam internacionalmente competentes para conhecer da ação exige-se que entre o objeto desta e a ordem jurídica portuguesa exista um ponderoso (forte) elemento de conexão de ordem pessoal ou real.
11- Na ausência de regulamento ou de convenção internacional em contrário, o facto de os tribunais nacionais serem internacionalmente incompetentes para conhecer do processo de inventário subsequente a divórcio e de no Luxemburgo já pender um processo de inventário com vista a partilhar os bens comuns dos ex-cônjuges na sequência de divórcio decretado nesse país, não determina a procedência da exceção dilatória de litispendência, mas antes a procedência da exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal nacional em que o processo de inventário foi instaurado, por infração das regras de competência internacional, com a consequente absolvição da ré da instância.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I- RELATÓRIO

AA, residente na Rua ..., ..., ... ..., instaurou, em 22/09/2022, processo de inventário subsequente a divórcio contra BB, residente na Rue ... ..., Luxemburgo, requerendo a partilha dos bens comuns do casal que fora formado pelo próprio e pela requerida.
Alegou que, por sentença proferida em ../../2016, transitada em julgado em ../../2017, proferida pelo Tribunal ..., Luxemburgo, o casamento celebrado entre o mesmo e a requerida, em ../../1985, foi declarado extinto por divórcio.
Indicou para o cargo de cabeça de casal o próprio.
(....)
Por despacho de 20/02/2023, nomeou-se o requerente para o cargo de cabeça de casal.
A requerida BB deduziu oposição ao inventário em que suscitou a exceção dilatória de litispendência, alegando encontrar-se já a correr termos processo de inventário para partilha dos bens comuns do extinto casal, no cartório notarial de CC, em ..., Luxemburgo, onde ocorreu a citação em primeiro lugar.
Requereu que se julgasse procedente a exceção dilatória de litispendência e, em consequência, fosse absolvida da instância.
O cabeça de casal respondeu alegando desconhecer que penda, ainda que em outro país, processo de inventário, dado não ter sido citado para qualquer processo dessa natureza.
Requereu que se julgasse improcedente a exceção dilatória suscitada pela requerida.
Por despacho proferido em 03/10/2023, notificou-se a requerida para comprovar documentalmente nos autos a data de citação do requerente e cabeça de casal para os termos do processo de inventário a que alude na oposição.
Na sequência, a requerida alegou que, de acordo com a lei luxemburguesa, “a nomeação do notário para proceder à partilha de bens por divórcio, é feita por sentença de divórcio”, sendo esta que “contém a ordem de partilha e nomeia o notário”, pelo que, na sua perspetiva, “a citação das partes no processo de partilhas é feita com a notificação da sentença do divórcio, onde é decidido e nomeado o notário que ficará com o processo de partilhas”.
Juntou cinco documentos, constituídos por diversos mails e por uma certidão, acompanhada da respetiva tradução legal para português, em que se certifica que, por despacho proferido, em ../../2022, no âmbito da ação de divórcio, que correu termos pelo Tribunal do Luxemburgo, procedeu-se à substituição do notário anteriormente nomeado por um outro, a fim de “proceder à liquidação e partilha da comunidade de bens de direito português existente e da comunidade legal de bens de direito luxemburguês entre as partes, bem como à liquidação de eventuais reivindicações”.
Em 20/11/2023, a requerida juntou ainda aos autos certidão, e respetiva tradução legal para português, da intitulada “Ata de Dificuldades”, datada de 27 de outubro e 2023, lavrada no âmbito do processo de inventário que corre termos no cartório notarial, no Luxemburgo.
Por despacho de 17/01/2024, ordenou-se a notificação da requerida para que juntasse aos autos certidão judicial do processo de divórcio, da qual constasse a sentença aí proferida, com menção da data da sua notificação às partes.
Em cumprimento do ordenado, a requerida juntou a mencionada certidão e a respetiva tradução para português, em 15/02/2024.
Em 15/03/2024, a 1ª Instância proferiu despacho em que fixou o valor do presente processo de inventário em 120.195,97 euros, e proferiu despacho saneador em que conheceu da exceção de litispendência suscitada pela requerida, julgando-a procedente e, em consequência, absolveu-a da instância.

Inconformado com o decidido, o requerente e cabeça de casal, AA, interpôs recurso do segmento decisório em que se julgou procedente a exceção dilatória de litispendência, onde formulou as seguintes conclusões:
1. O Tribunal proferiu sentença onde consta que se verifica uma exceção de litispendência, a qual como exceção dilatória que é, obsta ao conhecimento do mérito da causa e conduz à absolvição da instância, o que se decide.
2. Ora, salvo o devido respeito por melhor opinião, não pode o Autor/Recorrente conformar-se com tal sentença.
3. O cabeça de casal, aqui Recorrente, não foi citado, ou notificado, para um processo de inventário a decorrer em Tribunal situado em país estrangeiro.
4. O cabeça de casal não tem conhecimento sobre a prática de um qualquer ato jurídico em processo de inventário a decorrer em país estrangeiro.
5. O Recorrente intentou processo de inventário em Portugal por forma a proceder à partilha de bens comuns do dissolvido casal, nomeadamente da habitação sita na União de Freguesias ... e ..., ....
6. Tal bem imóvel constitui casa de morada de família do Recorrente.
7. À luz da norma de conflitos portuguesa art.º 25.º a 65.º do C.C, estabelecem que a separação judicial de pessoas e bens são reguladas pela lei nacional comum – art. 52.º ex vi art. 55.º do C.C..
8. O art. 25.º e 31.º do C.C. determina que a lei nacional comum é a lei portuguesa, sendo esta a lei internacional competente.
9. Para as ações de divórcio e de separação de pessoas e bens é competente o tribunal do domicílio ou da residência do autor, conforme dispõe o artigo 72º do C.P.C.
10. Determina o no n.º 2 do art. 1083.º e 1133.º do CPC que o tribunal de família quanto aos inventários para a partilha dos bens comuns subsequente ao divórcio é o tribunal competente, podendo tal processo ser requerido por qualquer um dos interessados.
11. A habitação sita em ..., ..., constitui domicílio do Recorrente, por ser casa de morada de família.
12. O processo de divórcio e partilha a decorrer em país estrangeiro não representa relevância para efeitos da exceção de litispendência, não afetando os tribunais portugueses, por serem estes os tribunais competentes.
13. A pendência de ação idêntica em jurisdição estrangeira não é fundamento legal para se suspender a instância na ação pendente em Portugal ou, como ocorre, de obstar ao conhecimento da causa procedendo-se pela absolvição da Interessada, Recorrida, da instância – arts. 269.º, n.º 1, al. c), 980.º, al. d), 278.º do C.P.C.
14. Pelo princípio da maior proximidade – lex rei sitae – constituindo elemento de conexão, determina que a lei aplicável é a lei do país onde está localizada a coisa.
15. Os Tribunais Portugueses são soberanos sobre todo e qualquer bem sito em território nacional, estando unicamente sujeitos à aplicação da nossa Lei Nacional.
16. Para o processo de inventário são igualmente competentes os tribunais portugueses, por ser a lei do país onde se localiza a casa a partilhar, e que também é casa de morada de família do Recorrente.
17. A casa morada de família do Recorrente, nos termos da lei portuguesa, goza de especial proteção legal,
18. Não se concebendo que, sendo a habitação um direito fundamental constitucionalmente protegido, a mesma, a habitação do Recorrente, possa ser objeto de decisão de um Tribunal Estrangeiro, Tribunal esse que não se encontra obrigado perante a Constituição da República Portuguesa.
19. Os Tribunais Portugueses são competentes, em razão da nacionalidade, para proceder à partilha de um imóvel situado em ..., Portugal, no âmbito de inventário instaurado na sequência de divórcio dos interessados com vista à partilha dos bens comuns do casal dissolvido.
20. Devendo ser julgado que o Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo de Família e Menores de Vila Real, é competente, em razão da matéria e do território, para julgar o presente processo de inventário.

Termos em que e, no mais de direito, sempre se deverá concluir que a sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por uma nova, decidindo que o Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, Juízo de Família e Menores de Vila Real, é competente, em razão da matéria e do território, para julgar o presente processo de inventário, assim se fazendo a devida JUSTIÇA.

A recorrida, BB, contra-alegou, pugnando no sentido de que se rejeitasse o recurso quanto à impugnação do julgamento da matéria de facto, por incumprimento pelo recorrente dos ónus impugnatórios do art. 640º, n.º 1 do CPC; se julgasse improcedente o recurso; e em que sustenta que: “O recorrente, através do presente recurso de apelação, não pretende a alteração de competência do tribunal, em razão da nacionalidade, da matéria, hierarquia e território e, como tal, essa matéria não está em discussão, pelo que, o recurso deverá ser indeferido”.
(...)

*
(...)
Por despacho de 04/09/2024, o aqui relator, em obediência ao princípio do contraditório (art. 3º, n.º 3 do CPC), ordenou a notificação de recorrente e recorrida para, no prazo de dez dias, se pronunciarem, querendo, sobre a aplicabilidade (ou não) ao presente processo de inventário subsequente a divórcio para partilha dos bens comuns do extinto casal, decretado por tribunal luxemburguês, do regime jurídico previsto no Regulamento (UE) n.º 1103/2016 do Conselho, de 24 de junho de 2016, que implementa a cooperação no domínio da competência, da lei aplicável, do reconhecimento e da execução de decisões em matéria de regimes matrimoniais.
Na sequência, a recorrida BB pronunciou-se no sentido da aplicação ao presente processo de inventário do regime jurídico previsto no Regulamento (UE) n.º 1103/2016, requerendo que, em consequência, se confirme a decisão recorrida, que julgou procedente a exceção dilatória de litispendência, em virtude da citação no processo de inventário que se encontra a correr termos no cartório notarial, no Luxemburgo, ter ocorrido em primeiro lugar.
Por sua vez, o recorrente AA pronunciou-se em sentido diametralmente oposto ao da recorrida, advogando que o Regulamento (UE) n.º 1103/2016, não se mostra aplicável ao presente processo de inventário, em virtude de ter entrado em vigor em 23 de junho de 2019, quando o casamento foi dissolvido por divórcio, por sentença proferida pelo Tribunal ..., Luxemburgo, em 14/07/2016, transitada em julgado em 15/03/2017.
Mais alegou que, nos termos do art. 5º, n.º 2, al. a) do mencionado Regulamento, a sua aplicação está dependente da existência de acordo dos cônjuges sempre que o órgão jurisdicional chamado a decidir sobre o pedido de divórcio, separação judicial ou anulação do casamento for o órgão jurisdicional de Estado-Membro em cujo território o requerente tenha a sua residência habitual e em que residiu, pelo menos, no ano imediatamente anterior à apresentação do pedido, em conformidade com o art. 3º, n.º 1, al. a), quinto travessão, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, quando no caso aqui em mérito não existe qualquer acordo entre recorrente e recorrida, nos termos e para os efeitos daquela al. a) do n.º 2 do art. 5º.
Alegou ainda que o cartório notarial do Luxemburgo em que se encontra a correr o processo de inventário não é um órgão jurisdicional, além de que não se mostra cumprida a injunção do n.º 2, do art. 8º do Regulamento em causa, na medida em que o órgão jurisdicional luxemburguês não se certificou do direito do recorrente de contestar a competência daquele e das consequências de comparecer ou não comparecer.
Concluiu advogando que a lei aplicável ao presente processo de inventário é a portuguesa, já que a residência habitual comum dos ex-cônjuges, no momento da celebração do casamento, se situava em Portugal e ambos são de nacionalidade portuguesa, conforme resulta das als. a) e b) do n.º 1 do art. 26º do Regulamento (UE) n.º 1103/2016, pelo que, salvo melhor opinião, o tribunal competente para conhecer do presente processo de inventário é o Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova (....)[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar uma única questão que consiste em saber se a decisão recorrida (que julgou procedente a exceção dilatória de litispendência procedente e, em consequência, absolveu a recorrida da instância) padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe a sua revogação e ordenar a baixa dos autos ao Juízo de Família e Menores de Vila Real, por ser o internacionalmente competente para deles conhecer.
Precise-se que, contrariamente ao pretendido pela recorrida, do objeto do presente recurso não faz parte a impugnação do julgamento da matéria de facto....
(.....)
Pelo contrário, é pacífico no presente processo de inventário entre recorrente e recorrida que aquele não foi citado para o processo de inventário que se encontra a correr termos no cartório notarial, no Luxemburgo, por um dos meios legalmente previstos na lei adjetiva nacional para a “citação”.
O que a recorrida alegou na oposição que deduziu ao presente processo de inventário, em sede de exceção dilatória de litispendência é que, segundo a lei luxemburguesa, a “nomeação do notário para proceder à partilha de bens por divórcio é feita por sentença do divórcio”, sendo esta que “contém a ordem de partilha e a nomeação de notário”, e concluiu que “a citação das partes para o processo de partilha é feita com a notificação da sentença do divórcio, onde é decidido e nomeado o notário que ficará com o processo de partilha”. Ou seja, na perspetiva da recorrida, o recorrente não foi citado para os termos do processo de inventário que se encontra a correr termos no Luxemburgo através de um dos meios de citação previstos na lei adjetiva civil nacional (citação por carta registada com aviso de receção, por contacto pessoal com o citando, ou citação edital), mas, sendo, de acordo com o CPC nacional, a citação o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se procede ao seu chamamento ao processo para se defender, ou o meio através do qual se chama, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada na causa (art. 219º, n.º 1 do CPC), em sede de direito, a recorrida concluiu que, de acordo com a lei do Luxemburgo o recorrente foi citado para o processo de inventário subsequente a divórcio para partilha dos bens comuns do extinto casal com a notificação àquele da sentença que decretou o divórcio, tendo sido, nesta perspetiva jurídica, que aquela advoga que o recorrente se encontra  “citado” para o processo de inventário e que essa citação ocorreu em momento temporal anterior à sua citação para o presente processo de inventário e em que alicerçou a exceção dilatória de litispendência que suscitou.
E foi esse entendimento jurídico propugnada pela recorrida que se acaba de enunciar que também foi o perfilhado pela 1ª Instância em sede de decisão recorrida, onde, em sede de subsunção jurídica da facticidade que julgou provada, o julgador a quo expressamente escreveu que: “No caso em apreço, afere-se dos factos provados que o processo de inventário para partilha de bens do dissolvido casal constituído pelo aqui cabeça de casal e pela aqui interessado iniciou-se no Tribunal ..., Luxemburgo, na data da prolação da sentença de divórcio – 14/07/2016 -, a qual foi notificada às partes e transitou em julgado no dia 15/03/2017”.  
Deste modo, resulta, clara e limpidamente do teor da decisão recorrida, designadamente do segmento que se acaba de transcrever, que a 1ª Instância alicerçou a decisão de procedência da exceção dilatória de litispendência, não no facto de ter considerado (em sede de julgamento de facto) que o recorrente tinha sido citado no âmbito do processo de inventário que se encontra a correr termos em cartório notarial, no Luxemburgo, previamente à citação da recorrida para os termos do presente processo de inventário, por um dos meios de citação legalmente previstos no CPC nacional, mas porque, aderindo à posição jurídica propugnada pela recorrida, considerou (em sede de julgamento de direito) que, segundo a lei adjetiva luxemburguesa, o processo de inventário com vista à partilha dos bens comuns do extinto casal é uma consequência automática da notificação às partes da sentença que decretou o divórcio, sendo nela que, no Luxemburgo, se procede à nomeação de notário competente para tramitar o processo de inventário e que os interessados (ex-cônjuges) são chamados para os termos legais desse processo de inventário a fim de nele se defenderem (ou seja, no dizer da lei adjetiva nacional, são “citados” para os respetivos termos – art. 219º, n.º 1 do CPC). Logo, foi a partir do enquadramento jurídico que se acaba de enunciar que o julgador a quo considerou que, quando o ora recorrente instaurou, em 22/09/2022, o presente processo de inventário para partilha dos bens comuns do dissolvido casal por divórcio, o mesmo já se encontrava “citado” para os termos do processo de inventário que se encontra a correr termos no cartório notarial, no Luxemburgo, e, em consequência, julgou procedente a exceção dilatória de litispendência, com a consequente absolvição da recorrida da instância. E é contra esse enquadramento jurídico que, salvo melhor entendimento, se insurge o recorrente nas alegações de recurso, imputando-lhe erro de direito.
Destarte, saber se o recorrente se encontra (ou não) “citado” para o processo de inventário que se encontra a correr termos no cartório notarial, no Luxemburgo, e, no caso positivo, quando é que lhe foi dado conhecimento desse processo a fim de nele se defender (ou seja, na expressão da lei processual civil nacional, foi “citado” para o processo de inventário), foi tratado pelo julgador a quo (bem) com uma pura questão de direito e, conforme antedito, é contra esse enquadramento jurídico que se insurge o recorrente nas alegação de recurso (e não porque seja seu propósito impugnar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância).
Resulta do que se vem dizendo que, para além de, na nossa perspetiva, não ter sido propósito do recorrente impugnar o julgamento da matéria de facto, e de sempre se impor a rejeição dessa impugnação por incumprimento dos ónus impugnatórios do art. 640º do CPC e, bem assim, por a matéria em causa não consubstanciar matéria de facto, mas pura matéria conclusiva e de direito, não se conhecerá da impugnação do julgamento da matéria de facto e relega-se o conhecimento da referida  questão jurídica para o momento processual oportuno (apreciação dos erros de direito que o recorrente assaca à decisão sob sindicância), naturalmente se esse conhecimento se impuser.
Advoga a recorrida que, “através do presente recurso de apelação, o recorrente não pretende a alteração de competência do tribunal em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território e, como tal, essa matéria não está em discussão, pelo que o recurso deverá ser indeferido”, o que apenas se subscreve em parte, mais concretamente no que respeita à competência do tribunal, em razão da matéria, da hierarquia e do território, a qual não vem efetivamente questionada pelo recorrente no âmbito do presente recurso, pelo que essas questões não fazem parte do objeto do mesmo.
Não assim no que respeita a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais nacionais para conhecerem do presente processo de inventário, uma vez que essa questão foi suscitada pelo recorrente, pelo que faz parte do objeto do presente recurso, onde, aliás, constitui a questão essencial nele a decidir.
Com efeito, conforme decorre, clara e linearmente da leitura das alegações de recurso apresentadas pelo recorrente, este funda os erros de direito que imputa à decisão sob sindicância na circunstância de, contrariamente ao que nela foi decidido, não ter sido citado para os termos do processo de inventário que se encontra a correr termos no Luxemburgo, bem como no facto de, atentas as normas jurídicas internas atributivas de competência internacional à jurisdição nacional que identifica, a interpretação jurídica que faz das mesmas e a aplicação que delas faz à facticidade julgada provada no despacho recorrido, nomeadamente, atenta a natureza dos bens a partilhar, a sua nacionalidade e a da requerida e o seu local de residência, a competência internacional para julgar o presente processo de inventário se encontrar deferida aos tribunais nacionais, pelo que, na sua perspetiva, a circunstância de se encontrar a correr termos um processo de inventário no Luxemburgo é juridicamente irrelevante, não determinando a procedência da exceção de litispendência no âmbito do presente processo de inventário.
Neste sentido lê-se, designadamente, na conclusão 12ª das alegações de recurso, que: “O processo de divórcio e partilha a decorrer em país estrangeiro não representa relevância para efeitos da exceção de litispendência, não afetando os tribunais portugueses, por serem os tribunais competentes”.
Deste modo, salvo melhor opinião, a questão da (in)competência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem do presente processo de inventário para partilha de bens comuns subsequente a divórcio, decretado por sentença, transitada em julgado, por tribunal luxemburguês, não só constitui um dos fundamentos do recurso alegados pelo recorrente, como constitui, inclusivamente, a questão nuclear ou essencial nele a decidir. De resto, trata-se de questão que é de conhecimento oficioso, impondo-se ao tribunal o seu conhecimento enquanto não for proferida sentença de mérito transitada em julgado (art. 97º, n.º 1, parte final, ex vi, art. 96º, al. a) do CPC).
Em suma, contrariamente ao pretendido pela recorrida, a questão da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem do presente processo de inventário, não só foi suscitada pelo recorrente no âmbito das conclusões, como se trata de questão que é de conhecimento oficioso, tratando-se, aliás, da questão nuclear a decidir no âmbito do presente recurso.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade, com relevância para conhecer da exceção dilatória de litispendência suscitada pela recorrida:
A- Por sentença proferida no dia ../../2016, pelo Tribunal d’Arrondissement do Luxemburgo, no processo de divórcio que aí correu termos, foi decretada a dissolução do casamento celebrado entre o aqui cabeça de casal e a aqui interessada, por divórcio, e determinada a realização da liquidação e partilha da comunhão legal de bens de direito português existente e da comunhão legal de direito luxemburguês entre as partes e a liquidação das suas eventuais retomas, nomeando para este fim o Mestre DD, notário, residente no Luxemburgo, e designando a Senhora Juíza, EE para supervisionar as operações de liquidação e partilha e fazer relatório ao Tribunal, se necessário.
B- Esta sentença foi notificada às partes e transitou em julgado no dia 15 de março de 2017.
C- Por decisão proferida no dia ../../2022, pelo Tribunal d’Arrondissement do Luxemburgo, foi determinada a substituição do notário nomeado no referido processo de divórcio, e designou o Mestre CC, notário, residente em ..., Luxemburgo, para proceder à liquidação e partilha da comunhão legal de bens de direito português existente e da comunhão legal de bens de direito luxemburguês entre as partes, bem como à liquidação de eventuais reivindicações.
D- No âmbito do referido inventário está a ser objeto de partilha, entre outros, o imóvel descrito sob a verba n.º 1 da relação de bens constante destes autos.
E- O presente processo de inventário foi instaurado no dia 22.09.2022 (cf. requerimento inicial) e a aqui interessada foi citada para os seus termos no dia 21.03.2023 (cf. data aposta no aviso de receção).
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A competência internacional dos tribunais nacionais para conhecerem de determinado processo tendo por objeto relação jurídica material controvertida que apresente pontos de contacto com diversas ordens jurídicas, no dizer de Manuel de Andrade “é a competência dos tribunais portugueses, em face dos tribunais estrangeiros. Verdadeiramente, do que se trata aqui é dos limites da jurisdição do Estado português; de definir quando é que este se arroga o direito e se impõe o dever de exercitar a sua função jurisdicional”[2].
Com efeito, sempre que um determinado litígio plasmado num determinado processo apresente pontos de conexão com a ordem jurídica nacional e com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras (litígio plurilocalizado), coloca-se a questão de se saber de entre as várias jurisdições com as quais o mesmo apresenta pontos de conexão qual a jurisdição que é internacionalmente competente para dele conhecer.
A resposta a essa questão é dada pelas normas de competência internacional. Exercendo cada estado soberania sobre o seu território, quer isto dizer que cada um elege unilateralmente os elementos de conexão que considera relevantes para abrir a sua jurisdição ao julgamento de litígios plurilocalizados, pelo que, ou essas normas se encontram explanadas em instrumentais internacionais a que o estado se auto vinculou, ou, na ausência daqueles instrumentos, as normas em causa constam do ordenamento jurídico adjetivo interno de cada estado, em que cada um seleciona quais os pontos de conexão com a sua ordem jurídica interna que, na sua perspetiva, considera relevantes a fim de atribuir competência internacional aos seus tribunais para deles conhecerem.
Como expende Teixeira de Sousa, “a competência internacional dos tribunais portugueses é, assim, a competência dos tribunais da ordem jurídica portuguesa para conhecer de situações que, apesar de possuírem, na perspetiva do ordenamento português, uma relação com ordens jurídicas estrangeiras, apresentam igualmente uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa”[3], de modo que o legislador nacional considera que os tribunais nacionais são internacionalmente competentes para delas conhecer.
Neste sentido lê-se no art. 59º do CPC que: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamento europeu e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do art. 94º”.
Decorre da norma que se acaba de transcrever que sempre que seja instaurado determinado processo nos tribunais nacionais, cujo objeto apresente conexões com a ordem jurídica portuguesa e com ordem ou ordens jurídicas estrangeiras, a fim de se determinar se os tribunais nacionais são (ou não) internacionalmente competentes para dele conhecer impõe-se atender, em primeiro lugar, às regras de competência internacional direta impostas por fontes normativas supranacionais a que o Estado Português se auto vinculou, nomeadamente, as previstas em Regulamentos da União Europeia, que o art. 8º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP), incorpora diretamente na ordem jurídica nacional através de uma cláusula de receção direta nele enunciada, impondo-se, na ausência daqueles recorrer então às normas de competência interna previstas nos arts. 62º e 63º do CPC.
Acresce precisar que sendo a competência internacional dos tribunais portugueses um pressuposto processual[4], isto é, um dos elementos ou condições mínimas que o legislador considera indispensáveis para que seja consentido ao julgador entrar na apreciação do mérito da causa submetida à sua apreciação e decisão, em que a violação das normas atributivas de competência internacional à jurisdição nacional consubstancia uma exceção dilatória, que determina a incompetência absoluta do tribunal em que a ação foi proposta, por infração das regras de competência internacional, com a consequente absolvição do réu da instância (arts. 96º, al. a), 99º, n.º 1, 576º, n.ºs 1 e 2 e 577º, al. a) do CPC), a referida exceção dilatória tem de ser aferida de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada, em termos subjetivos (quanto aos sujeitos) e objetivos (quanto ao pedido e à causa de pedir), pelo autor na petição inicial[5].
Revertendo ao caso dos autos, o recorrente instaurou a presente ação de inventário subsequente a divórcio, contra a recorrida (sua ex-mulher), com vista a obter a partilha dos bens comuns do extinto casal.
Recorrente e recorrida têm nacionalidade portuguesa e o casamento foi celebrado em Portugal, em ../../1985 (cfr. certidão do assento de casamento, junta ao processo físico a fls. 5).
O recorrente reside em Portugal, enquanto a recorrida reside no Luxemburgo (cfr. petição inicial, país em que foi citada e teor da procuração que a mesma outorgou, junta aos autos).
O casamento de recorrente e recorrida foi dissolvido por divórcio, decretado por sentença de ../../2016, transitada em julgado em 15 de março de 2017, proferida pelo tribunal ..., Luxemburgo (cfr. certidão da sentença de divórcio e respetiva tradução legal, junta aos autos em 15/02/2024 e alíneas a) e b) da facticidade julgada provada).
Entre os bens a partilhar entre recorrente e requerida fazem parte: a) um imóvel sito em ..., 35, rue..., Luxemburgo; b) um imóvel sito em Portugal; c) móveis e mobília que complementam ambos os imóveis; e d) como passivo, dois empréstimos contraídos por recorrente e recorrida, junto de instituição bancária portuguesa, “com um saldo de aproximadamente duzentos e vinte e cinco mil euros” (cfr. certidão da denominada “ata de dificuldades”, e respetiva tradução legal, junta aos autos em 20/11/2023).
Deste modo, decorre do exposto que o presente processo de inventário subsequente a divórcio, que o recorrente instaurou contra a recorrida, sua ex-mulher, com vista a partilhar os bens comuns do extinto casal, é um litígio plurilocalizado, na medida em que apresenta pontos de conexão com a ordem jurídica portuguesa (v.g., nacionalidade de recorrente e recorrida, local da celebração do casamento, local residência do recorrente, local em que se situa um dos imóveis a partilhar e de diversos móveis que se encontram nesse prédio) e com a ordem jurídica luxemburguesa (v.g., local de residência da recorrida, local em que se situa um dos imóveis a partilhar e de diversos móveis que se encontram nesse prédio, e finalmente, o casamento de recorrente e recorrida foi dissolvido por divórcio, decretado por sentença, transitada em julgado, proferida por tribunal luxemburguês).
A 1ª Instância, aderindo ao entendimento jurídico sufragado pela recorrida de que, de acordo com a lei luxemburguesa, “é a sentença de divórcio que contém a ordem de partilha e nomeia o notário” competente para presidir ao processo de inventário para proceder à partilha dos bens comuns do extinto casal subsequente a divórcio, dando-se a “citação das partes para o processo de partilha com a notificação da sentença do divórcio, onde é decidido e nomeado o notário que ficará com o processo de partilha”, tendo presente que pende em cartório notarial, no Luxemburgo, processo de inventário com a finalidade de realizar aquela partilha, apelando ao regime jurídico dos arts. 1º, n.º 1, al. a), 3º, n.º 1, al. a), 6º e 16º, n.º 1, al. a) do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27/11, e, bem assim, ao disposto nos arts. 576º, n.º 2, 577º, al. i), 578º, 580º a 582º e 278º, n.º 1, al. e), todos do CPC, julgou procedente a exceção dilatória de litispendência e, em consequência, absolveu a ora recorrida da instância.
Advoga o recorrente que a decisão assim proferida padece de erro de direito uma vez que o Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27/11, aplicado pela 1ª Instância, se encontrava revogado à data da instauração do presente processo de inventário, e, antecipe-se, desde já, com inteira razão.
Com efeito, o Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, foi substituído pelo Regulamento (UE) n.º 1111/2019 do Conselho, de 25 de junho de 2009, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças, sem prejuízo do disposto no seu art. 100º, n.º 2 (arts. 94º, 100º, n.ºs 1 e 2 e 104º, do Regulamento (UE) n.º 1111/2019, a que se referem todas as disposições legais que se passam a enunciar, sem menção em contrário), entrado em vigor em 22/07/2019 (art. 105º, n.º 1), e cujo regime jurídico é aplicável às ações judiciais intentadas em 01 de agosto de 2022 ou numa data posterior (arts. 100º, n.º 1 e 105º, n.º 2).
Assim, sem prejuízo do regime jurídico previsto no Regulamento (CE) n.º 2201/2003 continuar a ser aplicável às decisões proferidas em ações judiciais intentadas, aos atos autênticos exarados e aos acordos que se tornaram aplicáveis no Estado-Membro que foram celebrados antes de 01 de agosto de 2022 e que sejam abrangidos pelo âmbito de aplicação do mesmo, quanto às ações instauradas em 01 de agosto de 2022 ou em data posterior, as mesmas passaram a ser reguladas pelo regime jurídico previsto no Regulamento (UE) n.º 111/2019[6].
Deste modo, tendo o presente processo de inventário subsequente a divórcio entrado em juízo em 22/09/2022, resulta do que se vem dizendo que, contrariamente ao decidido pela 1ª Instância, o regime jurídico que eventualmente lhe possa ser aplicável nunca poderia ser o do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, mas quando muito o do Regulamento (UE) n.º 1111/2019, por ser o que se encontrava em vigor à data em que foi instaurado o presente processo de inventário.
À semelhança do que acontecia com o art. 1º, n.º 1, al. a) do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, que limitava o seu campo de aplicação, no que ao caso dos autos releva, “independentemente da natureza do tribunal, às matérias relativas ao divórcio, à separação e à anulação do casamento”, também o art. 1º, n.º 1, al. a) do Regulamento (UE) n.º 1111/2019, dispõe ser aplicável “em matéria civil relativamente ao divórcio, à separação e à anulação do casamento”. Por isso, o campo de aplicação de ambos os regulamentos acabados de referir abrange exclusivamente as ações de divórcio, de separação e de anulação do casamento”, mas não o processo de inventário subsequente a essas ações, no caso de virem a proceder, para partilha dos bens comuns do extinto casal[7].
Neste sentido lê-se no considerando n.º 9 do Regulamento (UE) n.º 1111/2019 do Conselho, de 25 de junho de 2019, que: “Quanto às decisões de divórcio, de separação ou de anulação do casamento, o presente regulamento apenas deverá ser aplicável à dissolução do vínculo matrimonial. Não deverá abranger questões como as causas de divórcio, os efeitos patrimoniais do casamento ou outras medidas acessórias” (destacado nosso).
Ponderou-se a aplicação ao presente processo de divórcio do Regulamento (UE) n.º 2016/1103 do Conselho, de 24 de junho de 2016, que implementa a cooperação reforçada no domínio da competência, da lei aplicável, do reconhecimento e da execução de decisões em matéria de regimes matrimoniais e nesse sentido, em observância do princípio do contraditório, ordenou-se a notificação de recorrente e recorrida para se pronunciarem, querendo, quanto à aplicação do regime jurídico nele previsto aos autos, que assim fizeram.
Com efeito, a propósito do seu âmbito de aplicação, estabelece o art. 1º do Regulamento (UE) 2016/1103, que o regime jurídico nele previsto é aplicável “aos regimes matrimoniais” e, no seu art. 3º, n.º 1, al. a), que para efeitos da sua aplicação entende-se por «Regime matrimonial», “o conjunto de normas relativas às relações patrimoniais dos cônjuges e às suas relações com terceiros, em resultado do casamento ou da sua dissolução(destacado nosso).    
Por sua vez, lê-se no considerando 18º do mesmo Regulamento que o seu âmbito de aplicação “deverá abarcar todos os aspetos de direito civil dos regimes matrimoniais, respeitantes tanto à gestão quotidiana dos bens dos cônjuges como à sua liquidação, decorrentes nomeadamente da separação do casal ou da morte de um dos seus elementos. Para efeitos do presente regulamento, o termo «regime matrimonial» deverá ser interpretado de forma autónoma e deverá abranger não só as regras às quais os cônjuges não podem derrogar, mas também as eventuais regras facultativas em que os cônjuges possam acordar em conformidade com a legislação aplicável, bem como as regras gerais previstas na legislação aplicável. Inclui não só as disposições patrimoniais específicas e exclusivamente previstas por certos sistemas jurídicos nacionais no caso do casamento, mas também as relações patrimoniais entre os cônjuges e entre estes e terceiros, resultantes diretamente do regime matrimonial ou da dissolução deste regime (destacado nosso).
Destarte, não fora o impedimento temporal (que infra se dirá) à aplicação do regime jurídico do Regulamento (UE) n.º 2016/1103 ao presente processo de inventário subsequente a divórcio, a fim de partilhar os bens comuns dos ex-cônjuges, operando o divórcio a extinção das relações patrimoniais entre os cônjuges, dúvidas não subsistem que o âmbito de aplicação deste diploma legislativo comunitário abrange o processo de inventário subsequente a divórcio[8].
Nos termos do art. 5º, n.º 1 do identificado regulamento: “Sem prejuízo do n.º 2, se um órgão jurisdicional de um Estado-Membro for chamado a decidir sobre um pedido de divórcio, separação judicial ou anulação do casamento dos cônjuges, nos termos do disposto no Regulamento (CE) n.º 2201/2003, os órgãos jurisdicionais desse Estado são competentes para decidir das questões ligada ao regime matrimonial relacionadas com esse pedido”.
O Regulamento (UE) 2016/1103 estendeu, assim, a jurisdição de tribunais dos Estados-Membros que, nos termos do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 – atualmente Regulamento (UE) n.º 111/2019 – são competentes para julgar ações de divórcio, separação e anulação de casamento, e que venham a julgar positivamente as mesmas, declarando extinto o vínculo matrimonial entre os cônjuges, para também julgarem as ações relativas à partilha dos bens comuns do extinto casal.
Essa extensão de competência do tribunal do Estado-Membro que julgou extinto o casamento por divórcio, separação ou anulação do casamento para também julgar as ações relativa à partilha dos bens comuns do extinto casal apenas fica condicionada a acordo de ambos os cônjuges nos casos previstos taxativamente no art. 5º, n.º 2 daquele Regulamento, acordo esse que tem de ser dado pelos mesmos aquando da propositura do processo de divórcio, separação ou anulação do casamento, ou seja, conforme se estabelece naquele n.º 2, “(…) quando o órgão jurisdicional é chamado a decidir sobre o pedido de divórcio, separação judicial ou de anulação do casamento”.
Sucede que, o Regulamento (UE) n.º 2016/1103 entrou em vigor em 28/07/2016 (art. 70º, n.º 1), e “é aplicável a partir de 29 de janeiro de 2019, exceto no que respeita aos arts. 53º e 64º, que são aplicáveis a partir de 29 de abril de 2018, e aos artigos 65º, 66º e 67º que são aplicáveis a partir de 29 de janeiro de 2016” (art. 70º, parte final, do mesmo diploma).
O art. 69º do mesmo regulamento, que tem por epígrafe “Disposições transitórias”, dispõe:
“1- O presente regulamento é aplicável exclusivamente às ações já instauradas, aos atos autênticos estabelecidos ou registados formalmente e às transações judiciais homologadas ou concluídas à data ou após 29 de janeiro de 2019, sob reserva dos nºs 2 e 3.
2- Se a ação no Estado-Membro de origem tiver sido instaurada antes de 29 de janeiro de 2019, as decisões proferidas após esta data são reconhecidas e executadas nos termos do disposto no Capitulo IV, desde que as regras de competência aplicadas sejam conformes com as disposições do Capítulo II.
3- As disposições do Capítulo III só se aplicam aos cônjuges casados ou que tenham designado a lei aplicável ao respetivo regime matrimonial após 29 de janeiro de 2019”.
No que ao caso dos autos interessa, do confronto do n.º 1 com o n.º 2, ambos do art. 69º,  resulta que a extensão da competência que o art. 5º, n.º 1 atribui aos tribunais de Estado-Membro que foram chamados a decidir um pedido de divórcio, separação judicial ou anulação do casamento, nos termos do Regulamento (UE) n.º 111/2019, para, em caso de julgarem essas ações procedentes, também conhecerem da ação de partilha dos bens comuns do extinto casal apenas é aplicável quanto a ações de divórcio, separação judicial ou anulação de casamento instauradas em 29 de janeiro de 2019 ou em data posterior, posto que, quanto aos ações que se encontrassem pendentes em 29 de janeiro de 2019, mas que ainda não se encontrassem decididas, por decisão de mérito, transitadas em julgado, que julgassem extintas o casamento com fundamento numa das referidas causas, rege o n.º 2 do art. 69º, nos termos do qual as identificadas sentenças, transitadas em julgado de acordo com a ordem jurídica em que foram proferidas, são reconhecidas e executadas em todos os Estados- Membros, nos termos do disposto no Capitulo IV, isto é, “sem necessidade de recurso a qualquer procedimento” (art. 36º, n.º 1 do Regulamento), ou seja, sem necessidade de serem objeto de ação de revisão de sentença estrangeira.
Assentes nas premissas que se acabam de expender, a ação de divórcio sobre que versam os autos foi instaurada em data não concretamente apurada, no Tribunal ..., no Luxemburgo, mas anteriormente a ../../2016, uma vez que foi nesta data que foi proferida sentença decretando a dissolução do casamento entre recorrente e recorrida (cfr. al. a) da facticidade julgada provada).
Assim, tendo a ação de divórcio sido instaurada em data anterior a 29 de janeiro de 2019, o regime jurídico do Regulamento (UE) 2016/1103 do Conselho, de 24 de junho de 2016, não é aplicável ao presente processo de inventário.
Destarte, não sendo aplicável ao presente processo de inventário subsequente a divórcio, decretado por sentença, transitada em julgado, proferida por tribunal luxemburguês, o regime jurídico do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 (aplicado erroneamente pela 1ª Instância), nem o do Regulamento (UE) n.º 111/2019 (que substituiu o primeiro), nem ainda o Regulamento (UE) 2016/1103, e não se descortinando existir qualquer outro regulamento da união europeia ou convenção internacional que tivesse sido celebrada entre o Estado português e o luxemburguês em que tivessem disposto sobre a competência internacional das respetivas jurisdições para conhecerem do presente processo de inventário subsequente a divórcio, impõe-se, nos termos do disposto no art. 59º do CPC, apelar às normas de competência internacional internas, fixadas unilateralmente pelo legislador português, nos arts. 62º e 63º do mesmo diploma, para efeitos de se verificar se, em função delas, os tribunais nacionais são (ou não) internacionalmente competentes para dele conhecer.
Segundo o art. 62º, al. a) do CPC, “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa”.
Consagra-se no mencionado dispositivo legal o princípio da coincidência (entre a competência internacional e a competência interna territorial), segundo o qual a competência internacional dos tribunais portugueses resulta da circunstância de a ação dever ser proposta em Portugal, segundo as regras da competência interna territorial da lei portuguesa, que constam dos arts. 70º a 84º do CPC.
Advoga o recorrente que, “atendendo as normas de conflitos do ordenamento jurídico português (arts. 25º a 26º do CC), a separação judicial de pessoas e bens são reguladas pela lei nacional comum – art. 52º, ex vi, art. 55º do CC” - e que “os arts. 25º e 31º do CC determinam que a lei nacional comum é a lei portuguesa, sendo esta a lei internacional competente para dirimir o litígio” e, bem assim, que “a lei portuguesa determina, no seu art. 72º do CPC que, para as ações de divórcio e de separação de pessoas e bens é competente o tribunal do domicílio ou da residência do autor”, mas, antecipe-se, desde já, sem razão.
Ao apelar às normas de conflitos dos arts. 14º e segs. do CC, confunde-se normas que dirimem qual o direito substantivo aplicável, em caso de litígio plurilocalizado, com as normas internas atributivas de competência internacional aos tribunais nacionais, nas quais o legislador português elegeu os fatores de conexão que considera relevantes de modo a submeter o litígio à jurisdição nacional, normas essas que constam exclusivamente dos arts. 62º e 63º do CPC.
Dito por outras palavras, perante a propositura de uma determinada ação que apresente fatores de conexão com a ordem jurídica portuguesa e outras ordens jurídicas estrangeiras, coloca-se a questão primeira de saber qual a jurisdição que é internacionalmente competente para julgar a ação.
No que tange ao Estado português, na ausência de convenção internacional ou de regulamento que dirima essa concreta questão, impõe-se recorrer às normas internas de competência internacional previstas nos enunciados arts. 62º e 63º do CPC. Uma vez concluído que os tribunais portugueses são os internacionalmente competentes para julgar essa concreta ação, coloca-se a questão de saber qual a lei substantiva pela qual os tribunais portugueses irão julgar o litígio explanado nessa concreta ação (se aplicam a lei substantiva portuguesa ou se antes a de um outro estado estrangeiro com quem o litígio apresente pontos de conexão), sendo a esta última questão que respondem as normas de conflitos previstas nos arts. 14º e segs. do CC..
Deste modo, não cumpre indagar de tais normas quando ainda nos encontramos na fase de determinação se a jurisdição portuguesa se considera (ou não) internacionalmente competente para conhecer do presente processo de inventário, subsequente a divórcio decretado por tribunal luxemburguês, questão essa que, conforme antedito, cumpre resolver por recurso apenas ao disposto naqueles art. 62º e 63º do CPC[9].
Por outro lado, salvo melhor entendimento, não faz sentido o apelo  pelo recorrente ao regime jurídico  estatuído no art. 72º do CPC, norma essa que rege sobre a competência territorial para as ações de divórcio e de separação de pessoas e bens, determinando ser competente para o efeito o tribunal do domicílio ou da residência do autor, quando o presente processo não respeita a qualquer ação de divórcio,  mas antes a um processo de inventário subsequente a divórcio já decretado, por sentença transitada em julgado, proferida por  um tribunal luxemburguês.
E também não faz sentido sustentar que, estando relacionado sob a verba n.º 1 da relação de bens apresentada no âmbito do processo de divórcio um imóvel sito em Portugal, sempre seriam os tribunais nacionais os internacionalmente competentes para julgarem o presente processo de inventário, por apelo, ao que cremos, ao regime jurídico do art. 70º do CPC.
Com efeito, a ação de inventário subsequente a divórcio para partilha dos bens comuns do extinto casal não configura uma ação tendo por objeto direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis, na medida em que, como se escreve acertadamente no acórdão desta Relação de 19 de setembro de 2024, “o património comum dos cônjuges constitui uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afetação, a lei concede certo grau de autonomia - embora limitada e incompleta - mas que pertence aos dois cônjuges, em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre ela. Os bens comuns dos cônjuges constituem objeto, não de uma relação de compropriedade, mas de uma propriedade coletiva ou de mão comum. Cada um dos cônjuges tem uma posição jurídica em face do património comum, posição que a lei tutela. Cada um dos cônjuges tem, segundo a expressão da própria lei, um direito à meação, um verdadeiro direito de quota, que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se no momento em que esta deva ter lugar. Trata-se de uma situação jurídica que, manifestamente, não cabe na compropriedade, dela se distinguindo de forma clara e inequívoca. Essa distinção assenta, além do mais, no facto de o direito dos contitulares não incidir sobre cada um dos elementos que constituem o património - mas sobre todo ele, como um todo unitário. Aos titulares do património coletivo não pertencem direitos específicos - designadamente uma quota - sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito dispor desses bens ou onerá-los, total ou parcialmente. Na partilha dos bens, destinada a pôr fim à comunhão, os respetivos titulares apenas têm direito a uma fração ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fração seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada bem concreto objeto da partilha. O que bem se compreende, visto que existe um direito único sobre todo o património (cf. acórdão da Relação de Coimbra, de 8.11.2001, P 4931/10.1TBLRA.C1 in www.dgsi.pt)[10].
 O processo de inventário subsequente ao decretamento do divórcio ou da separação de pessoas e bens ou à declaração de nulidade ou à anulação do casamento constituiu um desenvolvimento ou uma consequência da sentença que julgou dissolvido o casamento com um dos identificados fundamentos, pelo que, nos termos do n.º 2 do art. 206º do CPC, corre por apenso à ação de que dependa[11].
Ora, tendo o divórcio entre recorrente e recorrida sido decretado no Luxemburgo, e correndo, atento o disposto naquele art. 206º, n.º 2 do CPC, o presente processo de inventário por apenso àquele processo, atento o critério da coincidência falece competência internacional aos tribunais portugueses para dele conhecerem.
Na al. b) do art. 62º do CPC consagra-se o princípio da causalidade, nos termos do qual os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram tiver sido praticado em território português.
O facto que serve de fundamento ao presente processo de inventário é a dissolução do casamento de recorrente e recorrida por divórcio, com a consequente extinção das relações patrimoniais entre eles, gerador da necessidade de partilhar os bens comuns dos mesmos. Tendo o divórcio que serve de causa de pedir ao presente processo de inventário sido decretado por sentença judicial, transitada em julgado, proferida por tribunal luxemburguês, pelo critério da causalidade os tribunais nacionais também são internacionalmente incompetentes para conhecerem do presente processo de inventário.
Por sua vez, no art. 63º do CPC consagra-se o critério da exclusividade, nos termos do qual os tribunais portugueses são exclusivamente competentes para apreciar ações que tenham por objeto as matérias previstas nas diversas alíneas desse preceito.
Ocorre que não sendo o processo de inventário, conforme acima já sobejamente se deixou demonstrado, uma ação de natureza real e não se integrando aquele em nenhuma das matérias enunciadas nas als. a) a e) do art. 63º, atento o enunciado critério da exclusividade falece igualmente competência internacional aos tribunais nacionais para julgarem o presente processo de inventário.
Finalmente, na al. c) do art. 62º do CPC consagra-se o critério da necessidade segundo o qual a ação pode ser proposta nos tribunais portugueses quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa exista um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
De acordo com Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, o critério da necessidade consubstancia “uma cláusula de salvaguarda tendente a evitar que, atenta a impossibilidade de ordem prática ou jurídica (v.g. recusa de competência) ou a grave dificuldades na instauração da ação num tribunal de outro Estado, o direito em causa pudesse ficar sem tutela efetiva (v.g. casos de guerra ou outras calamidades). Concretiza o princípio da necessidade, mas a atribuição da competência aos tribunais nacionais exige uma forte conexão com a ordem jurídica portuguesa, seja de ordem pessoal (v.g. nacionalidade ou residência das partes), seja de natureza real (v.g. o facto de se situar em território nacional o bem que é objeto imediato ou mediato da ação)”[12].
No caso dos autos, naturalmente que não existe qualquer impossibilidade absoluta, jurídica ou de facto, do requerente em instaurar o presente processo de inventário para obter a partilha dos bens comuns daquele e da recorrida no Luxemburgo, na sequência de ter sido decretado o divórcio entre ambos. Aliás, que assim é, resulta desde logo da circunstância desse divórcio ter sido decretado por sentença, transitada em julgado, por tribunal luxemburguês e de, inclusivamente, já se encontrar a correr termos nesse país, em cartório notarial, o competente processo de inventário com o mencionado desiderato. E também não existe uma situação de “dificuldade apreciável” (impossibilidade relativa) para o recorrente de instaurar aquele processo de inventário no Luxemburgo, tendo presente que se trata de Estado-Membro da União Europeia, que se situa em pleno centro da Europa, ligado por múltiplos transportes com Portugal, inclusive, por vários voos diários, os quais, quando marcados com uma razoável antecedência atingem custos suportáveis para o cidadão médio nacional, nem sendo fator impeditivo ao exercício do direito em causa o fator língua – a francesa.
Relembra-se que a impossibilidade relativa exige que o recorrente se depare com uma dificuldade manifesta que demande para ele um sacrifício irrazoável e inexigível à luz do princípio da boa fé, o que manifestamente não é o caso quando, inclusivamente, se verifica que o processo de divórcio de que o presente processo de inventário é desenvolvimento ou consequência correu termos no Luxemburgo, onde, relembra-se, também já se encontra a correr termos o processo de inventário.
Acresce referir que, ainda que assim se não atendesse, impõe-se ter presente que se, em sede de fatores de conexão pessoal ou real entre o objeto do presente processo de inventário subsequente a divórcio (decretado por tribunal luxemburguês) e a ordem jurídica nacional se verifica que recorrente e recorrida têm nacionalidade portuguesa, que se o recorrente reside em Portugal, a recorrida reside no Luxemburgo, e que se no território nacional existe um imóvel e móveis que integram o acervo a partilhar, também existe um outro imóvel e móveis que integram esse mesmo acervo que se situam no Luxemburgo, sem que, por isso, se vislumbre a existência de fortes fatores de conexão pessoal ou real com a ordem jurídica portuguesa que se devam sobrepor a iguais/semelhantes fatores de conexão que o presente processo de inventário apresenta com a ordem jurídica luxemburguesa que consintam atribuir-se competência internacional aos tribunais nacionais para deles conhecer, tanto mais que, reafirma-se, o processo de divórcio correu no Luxemburgo, onde já corre o processo de inventário.
Em suma, decorre do que se vem dizendo que, pelo critério da necessidade, os tribunais nacionais também não são internacionalmente competentes para conhecer do presente processo de inventário.
Não sendo os tribunais portugueses internacionalmente competentes para conhecer do presente processo de inventário, contrariamente ao decidido pela 1ª Instância, não é caso de procedência da exceção dilatória de litispendência, mas antes de procedência de exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, por infração das regras de competência internacional dos tribunais nacionais para conhecer do presente processo de inventário subsequente a divórcio para partilha do extinto casal formado por recorrente e recorrida, exceção essa que é também determinativa de absolvição da instância da recorrida (arts. 96º, al. a), 99º, n.º 1, 576º, n.ºs 1 e 2 e 577º, al. a), todos do CPC).
De resto, caso os tribunais portugueses, de acordo com as suas normas internas atributivas de competência internacional  fossem internacionalmente competentes para julgar o presente processo de inventário, a circunstância de se encontrar a correr termos processo de inventário no Luxemburgo (de acordo com as normas internas desse estado), na ausência de regulamento ou de convenção internacional em contrário, nunca determinaria a procedência da exceção dilatória de litispendência, nem constituiria causa prejudicial relativamente ao presente processo, posto que, competindo ao Estado Português, enquanto estado soberano, definir as regras atributivas de competência internacional à sua jurisdição, a decisão que viesse a ser proferida pela jurisdição luxemburguesa não vincularia os tribunais portugueses e não produziria efeitos em Portugal até que viesse a ser revista e confirmada[13], ao que se oporia o óbice da al. d) do art. 980º do CPC.
Decorre do excurso antecedente impor-se julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida que julgou procedente a exceção dilatória de litispendência e, em consequência, absolveu a recorrida, BB, da instância, e substitui-la por outra em que julgue procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, por infração das regras de competência internacional dos tribunais nacionais para conhecerem do presente processo de inventário subsequente a divórcio para partilha dos bens comuns do extinto casal formado por recorrente e recorrida e, em consequência, absolver a última da instância.
(...)
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V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência:
a- revogam a decisão recorrida que julgou procedente a exceção dilatória de litispendência e, em consequência, absolveu a recorrida, BB, da instância:
b- julgam procedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, por infração das regras de competência internacional dos tribunais nacionais para conhecerem do presente processo de inventário subsequente a divórcio para partilha dos bens comuns do extinto casal formado por recorrente e recorrida e, em consequência, absolvem a última da instância.
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Custas do recurso pelo recorrente uma vez que, apesar do recurso ter parcialmente procedido, o resultado manteve-se inalterado (a absolvição da recorrida da instância) e, portanto, nele ficou “vencido” (art. 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 03 de outubro de 2024

José Alberto Moreira Dias – Relator
Alexandra Maria Viana Parente Lopes – 1ª Adjunta
Pedro Maurício – 2º Adjunto


[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 92.
[3] Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, Lisboa 1997, pág. 108.
No mesmo sentido, Remédio Marques, “Ação Declarativa”, 3ª ed., 2011, Almedina, pág. 268, em que expende: “A competência internacional (dos tribunais portugueses) é a fração de poder jurisdicional atribuída a estes tribunais portugueses, no seu conjunto, relativamente à fração de poder jurisdicional atribuída, por leis nacionais, estrangeiras ou tratados ou convenções internacionais, a tribunais estrangeiros sempre que o litígio seja transfronteiriço, isto é, quando apresente elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras (v.g., o contrato foi celebrado nos EUA, mas o réu reside em Portugal)”.
[4] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 104, em que definem como pressupostos processuais, como sendo “os elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo u indeferindo a providência requerida. Trata-se das condições mínimas indispensáveis para, à partida, garantir uma decisão idónea e uma decisão útil da causa. Não se verificando algum desses requisitos, como a legitimidade das partes, a capacidade judiciária de uma delas ou de ambas, o juiz terá, em princípio, que abster-se de apreciar a procedência ou improcedência do pedido, por falta de um pressuposto essencial para o efeito”. 
[5] Acs. STJ., de 21/05/2009, Proc. 4986/06.3TVLSB.S1; de 29/04/2010, Proc. 622/08.1TVPRT.S1; RG., de 13/07/2022, Proc. 3731/21.8T8BRG.G1; de 06/02/2020, Proc. 52/19.0T8PTL.G1., R.L., de 04/07/2024, Proc. 94/21.5T8ALM.L1-6; de 11/05/2023, Proc. 28028/21.0T8LSB.L1-8; R.C., de 26710/2021, Proc. 3239/20.9T8CBR-A.C1; RE., de 12/05/2022, Proc. 4239/20.4T8STB.E1.
[6] Ac. R.L., de 23/02/2023, proc. 4398/12.9T8LSB.L1-8
[7] Acs. RG., de 10/07/2023, proc. 3081/21.0T8BCL-A.G1; RP., de 08/10/2020, Proc. 98/19.8YTCBR.
[8] Ac. R.P. de 08/10/2020, Proc. 98/19.8YRCBR, em que se lê: “O Regulamento (UE) 2016/1103 do Conselho, de 24 de junho de 2016, que implementa a cooperação reforçada o domínio da competência, da lei aplicável, do reconhecimento e da execução de decisões em matéria de regimes matrimoniais, abrange as decisões relativas à partilha dos bens do casal dissolvido por divórcio”.
[9] Ac. STJ., de 15/12/2011, Proc. 1468/10.2TBBRG.G1.S1, em que se lê: “São realidades diferentes, que podem não conduzir a situações coincidentes, a competência internacional dum tribunal e a determinação da lei interna a aplicar ao caso”.
[10] Ac. RG., de 19/09/2024, Proc. 907/08.7TBEPS-F.G1
[11] Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, Almedina, 2020, pág. 157; Ac. STJ., de 15/01/2019, Proc. 27881/15.0T8LSB-A.L1.A.S1.
[12] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 99.
No mesmo sentido Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, Almedina, 4ª ed., págs. 156 a 157, para quem a alínea c) consagra um “caso excecional e subsidiário de competência, que alarga a competência internacional dos tribunais portugueses às situações em que o direito invocado apenas se possa efetivar por meio de ação proposta em território português (como já anteriormente ao CPC de 1961 se dispunha) ou em que seja apreciavelmente difícil para o autor a sua propositura no estrangeiro (como resulta do DL 38/2003, que substituiu, no CPC de 1961, a expressão “não ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro”, introduzida pelo DL 329-A/95 e encerrando alguma ambiguidade. Referenciam-se, assim, com o fito de prevenir conflitos negativos de jurisdição e evitar situações com claro objetivo de denegação de justiça, quer os casos de impossibilidade absoluta, quer os de impossibilidade relativa, ou dificuldade, em tornar efetivo o direito por meio de ação instaurada em tribunal estrangeiro. Esta relevância concedida aos casos de impossibilidade relativa, já antes preconizada (…), tem aplicação privilegiada em casos de refúgio político. Tal dificuldade tem de ser manifesta: a oneração do autor com a propositura da ação no estrangeiro tem como limite a razoabilidade do sacrifício que lhe é exigido, à luz do princípio da boa fé. Em qualquer das duas categorias de situações, a impossibilidade (absoluta ou relativa) tanto pode ser jurídica como de facto ou material. Verifica-se a primeira hipótese quando nenhuma jurisdição com as quais o caso se encontra conexo se considera competente para o conhecimento da ação ou quando a jurisdição estrangeira não reconhece, em abstrato, o direito carecido de tutela. É o caso, objeto de várias decisões jurisprudenciais, de portugueses residentes em país estrangeiro que não conhece o divórcio e que por isso instauram a respetiva ação em Portugal. (…). Na segunda hipótese incluem-se tradicionalmente as situações de guerra ou de ausência de relações diplomáticas. A afirmação da competência dos tribunais portugueses depende ainda da existência de algum ponderoso elemento de conexão pessoal ou real, entre o objeto do litígio e a ordem jurídica nacional, nomeadamente a nacionalidade de uma ou de ambas as partes ou a situação dos bens em causa na ação, exigência que tem por desideratum evitar a conversão deste fator atributivo de competência numa “lição de altruísmo judiciário””.
Ac. STJ., de 15/05/2014, Proc. 208/12.3TVLSB.L1.S1, em que se lê que a expressão «dificuldade apreciável» “permite considerar certas situações, que não sendo assimiláveis à impossibilidade, evidenciam um grau de dificuldade que permite fundadamente supor que a parte não arrostará com uma ação num Estado cuja ordem jurídica seja norteada por regras e princípios muito diversos da ordem jurídica portuguesa ou que, pela distância e dificuldade de língua, imponha custos desproporcionadamente elevados dificilmente suportáveis por um português de condição média, constituindo tal situação um modo de denegação da justiça. Não se deve, porém, reconduzir a “dificuldade apreciável” o facto de ação ter de ser proposta no estrangeiro, e, país distante, mas situado na Europa e de a língua desse país, no caso a Roménia, ser pouco falada em Portugal” (destacado nosso).
Acs. STJ., de 31/03/2022, Proc. 1457/20.9T8STR.E1.S1; de 08/06/2018, Proc. 30508/15.7T8LSB.L1.S1.  
[13] Acs. R.P., de 19/05/2022, Proc. 91/20.8T8VNFR-A.P1; RL., de 21/12/2015, Proc. 98/13.1TBPVC-A.L1-1.