MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO PROVISÓRIA
APOIO JUNTO DE OUTRO FAMILIAR
CONTACTO TELEFÓNICOS COM A PROGENITORA
ALTERAÇÃO DA MEDIDA - REDUÇÃO DOS CONTACTOS
AUDIÇÃO DOS PROGENITORES
DIREITO À CONTRADITA DO PARECER TÉCNICO
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE
Sumário


I. O princípio do contraditório surge consagrado na lei processual civil quer na sua versão geral, como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio (mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão), quer na sua vertente especial proibitiva, de emissão de qualquer decisão-surpresa de questões de direito (proibição pressuposta no direito constitucional a um processo equitativo, previsto no art.º 20.º, n.º 4, da CRP).

II. O princípio do contraditório encontra-se expressamente consagrado em sede de processo de promoção e protecção, sendo de cumprimento imperativo quanto aos factos que originarem a intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medida de promoção e protecção.

III. A alteração dos concretos termos de medida de promoção e protecção aplicada mediante homologação de acordo judicial, nomeadamente da frequência e horário de contactos telefónicos entre progenitor e criança/jovem a que foi aplicada a medida de apoio junto de outro familiar, impõe o cumprimento do contraditório com a audição do progenitor.

IV. Tendo a decisão que alterou a frequência e o horário desses contactos telefónicos sido proferida sem ter sido dada qualquer possibilidade ao progenitor de se pronunciar, e não sendo mencionada qualquer impossibilidade ou dificuldade na respectiva audição prévia, nem qualquer situação de urgência incompatível com a mesma, foi omitido um acto que a lei prescreve, susceptível de influir no exame e decisão dessa precisa questão; e, por isso, é a mesma nula, por violação do princípio do contraditório.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada
1.1.1. Em 17 de Fevereiro de 2022, no processo de regulação de responsabilidades parentais pertinente a AA, nascida a ../../2013, e a BB, nascido a ../../2009, filhos de CC e de DD, aqui Requeridos (processo n.º 54/22...., do Juízo de Família e Menores de Barcelos, Juiz ...), foi proferida decisão, fixando um regime provisório, determinando que os dois irmãos «ficarão a residir habitualmente com o pai, que exercerá as responsabilidades parentais relativas aos atos de vida corrente».

1.1.2. Em 10 de Outubro de 2023, tendo o Ministério Público instaurado um processo de promoção e protecção a favor de AA (actual processo n.º 54/22...., do Juízo de Família e Menores de Barcelos, Juiz ...),  por denúncia de alegado comportamento sexual impróprio do progenitor sobre ela - negado pelo próprio, que imputou à Requerida a manipulação da filha comum -, foi proferida decisão (que aqui se dá por integralmente reproduzida), aplicando a medida cautelar de apoio junto de tia materna (EE) e a suspensão imediata do regime de regulação de responsabilidades parentais, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Decisão
Pelo exposto, atentas as considerações tecidas e os preceitos legais citados, decido aplicar, urgente e provisoriamente, em benefício da criança AA a medida de promoção e proteção de apoio junto de outro familiar – cfr. art.s 37.º, n.º 1 e 35.º, al. b) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo pelo prazo de 6 (seis) meses, revista ao final de 3 (três).
Mais se determina, face à gravidade da situação relatada, a suspensão imediata do regime das responsabilidades parentais em curso, mas com aferição da necessidade/pertinência de se estabelecer um regime de convívios com os pais (não presenciais ou ao menos por ora) e o irmão.
(…)»

1.1.3. Em 05 de Novembro de 2023, no processo de promoção e protecção (processo n.º 54/22....), foi proferida sentença, homologando o «ACORDO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO» obtido em ../../2023 (que aqui se dá por integralmente reproduzido), aplicando a AA a medida de apoio junto de tios paternos (FF e GG), lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
CLÁUSULA PRIMEIRA
É aplicada à menor AA, a medida de promoção e protecção de “Apoio junto de outro familiar”, a executar junto dos tios paternos;

CLÁUSULA SEGUNDA
A presente medida será acompanhada pela técnica da Segurança Social, Dra. HH, na qualidade de gestora do processo, naquela entidade;

CLÁUSULA TERCEIRA
A presente medida pretende alcançar os seguintes objectivos:
a) Assegurar os cuidados básicos e de saúde da jovem AA;
b) Assegurar o cumprimento do direito à educação por parte da jovem;
c) Promover um regime de contactos/convívios da jovem com a família, nomeadamente com a mãe por videochamada, entre as 12h00 e as 21h30m, e com o pai da mesma forma assim que a jovem o queira em relação ao mesmo;
d)  Promover um melhor enquadramento social e familiar.

CLÁUSULA QUARTA
Os tios paternos comprometem-se a agir de acordo com os objectivos de intervenção acima definidos, bem como a cooperar com as orientações apesentadas pela técnica da Segurança Social gestora do processo;
CLÁUSULA QUINTA
A medida terá a duração de seis meses, sendo revista no final desse período e será constantemente acompanhada na sua execução pela técnica da Segurança Social gestora do caso, junto dos tios paternos e da menor.
(…)»

1.1.4. Em 27 de Novembro de 2023, no processo de promoção e protecção (processo n.º 54/22....), foi elaborada «INFORMAÇÃO SOCIAL» (que aqui se dá por integralmente reproduzida), propondo uma nova definição para a forma como deveriam ocorrer os contactos de AA com a Requerida, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Avaliação da situação
 Na sequência do acompanhamento da execução da medida aplicada de “apoio junto de outro familiar”, a favor da AA, é percetível que a criança está demasiado envolvida no litigio entre adultos no que diz respeito à sua guarda. Continua a alegar ter sido vítima de comportamentos de cariz sexual por parte do progenitor. Para além de que, no seu entender, essa é a razão suficiente para estar junto da mãe.
Na audição de AA, a própria encontrava-se bastante inquieta, manifestando vontade de estar próxima da família materna, mesmo tendo pouca ou nenhuma ligação com os familiares maternos, contudo, quando questionada sobre os convício com os irmãos, BB, II e JJ, pediu para estar com eles no próprio dia.
Com a progenitora tem mantido contacto telefónico, sem que as conversas se baseiam em expectativas cridas à AA, nomeadamente “daqui a um mês a minha mãe vem de férias e vem buscar-me”. Esta equipa tem vindo a observar que as expectativas criadas pela mãe têm dificultado o processo de integração da AA no agregado familiar dos tios paternos, apresentando esta um comportamento desafiador e provocador.
A AA foi encaminhada para consultas de psicologia na ..., com a Dra. KK, tendo a primeira consulta a 28/11/2023, tendo como objetivo apoiar a criança e promover a sua estabilidade emocional.

Parecer técnico
Face ao exposto, salvo melhor entendimento, somos do parecer que as partes devem ser notificadas do Plano de Intervenção que se anexa, com as ações previstas no âmbito da execução da medida protetiva em vigor. Nestas ações consta a definição da forma como devem ocorrer os contactos da AA com a mãe [Promover os contactos telefónicos com a progenitora, supervisionados pelos tios paternos]. Mais se sugere, muito respeitosamente, que as partes sejam advertidas para a necessidade de cumprirem com o referido plano, em prol do bem-estar emocional da AA.
(…)» 

1.1.5. Em 07 de Dezembro de 2023, no processo de promoção e protecção (processo n.º 54/22....), foi proferido despacho (que aqui se dá por integralmente reproduzido) ordenando a notificação aos Requeridos do plano de intervenção da Autoridade de Assessoria aos Tribunais, o que foi posteriormente cumprido, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Informação social que antecede:
Notifique os progenitores do plano de intervenção delineado pela EMAT, com a advertência que, por forma a tentar garantir a estabilidade emocional da AA, pai e mãe devem cumprir, rigorosamente, o referido plano.
(…)»

1.1.6. Em 28 de Dezembro de 2023, no processo de promoção e protecção (processo n.º 54/22....), a Requerida (DD) veio pedir que os telefonemas que realizava a AA fossem efectuados sem a presença dos tios paternos, lendo-se nomeadamente no seu requerimento (que aqui se dá por integralmente reproduzido):
«(…)
No acordo celebrado no dia ../../2023, foi acordado na primeira parte da alínea c) da Cláusula terceira que “a presente medida pretende promover um regime de contactos/convícios da jovem com a família, nomeadamente com a mãe por videochamada, entre as 21h00 e as 21h30”.
O horário foi alterado, a pedido dos tios paternos por conveniência dos mesmos tendo passado a ser das 19 H às 19H30, horário que a requerida aceitou.
Desde o dia ../../2023, a senhora técnica tem vindo a obstaculizar todos os contactos da menor AA quer com a aqui requerida quer com a família materna. Pois,
A senhora técnica determinou que todas as videochamadas são “supervisionadas pelos tios paternos” quando, na verdade, tal não consta do acordo celebrado.
Além disso,
A requerida não consegue falar todos os dias com a filha, ou porque esta foi passar o fim de semana com os filhos do requerido ou porque não é conveniente aos tios paternos
(…)
Alega a senhora técnica na informação social que “esta equipa tem vindo a observar que as expectativas criadas pela mãe têm dificultado o processo de integração da AA no agregado familiar dos tios paternos”.
Todavia,
Deveria concretizar as alegadas “expectativas criadas” dado que desde o dia ../../2023 todas as videochamadas são realizadas na presença dos tios paternos.
Até à presente data, mãe e filha não tiveram qualquer privacidade.
Conforme consta do doutro despacho proferido no dia 7 de dezembro de 2023, a AA sente-se próxima da mãe e anseia estar junto dela.
É normal que a AA queira estar com a mãe e não com os tios paternos, não resultando tal de quaisquer “expectativas criadas”.
Os factos ocorridos no passado dia 5 de Outubro de 2023 foram causados pelo pai da AA que colocou em perigo a saúde, a segurança e o desenvolvimento da menor AA.
Todavia,
É a aqui requerida que saiu penalizada uma vez que:
 - a AA foi entregue à guarda dos tios paternos;
- só pode falar com a AA 30 minutos por dia, e não é todos os dias;
- só pode falar com a AA na presença dos tidos paternos;
(…)»

1.1.7. Em 18 de Janeiro de 2024, no processo de promoção e protecção (processo n.º 54/22....), sob conforme promoção do Ministério Público, foi proferido despacho (que aqui se dá por integralmente reproduzido) indeferindo a pretensão da Requerida (DD), lendo-se nomeadamente no mesmo
«(…)
Conforme bem refere a Digna Magistrada do Ministério Público, enquanto não há conhecimento do desfecho do Inquérito nº 2928/23.0JABRG, é de toda a conveniência que os contactos telefónicos ente a criança e a progenitora ocorram sob supervisão dos tios, por forma a obviar a suspeitas de contaminação do seu discurso, o que se julga ser igualmente do interesse da requerente.
(…)
Pelo exposto, indefere-se o requerido.
(…)»
           
1.1.8. Em 21 de Fevereiro de 2024, no processo de promoção e protecção (processo n.º 54/22....), foi elaborada «INFORMAÇÃO SOCIAL» (que aqui se dá por integralmente reproduzida), propondo uma nova definição para a forma como deveriam ocorrer os contactos de AA com a Requerida, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Avaliação da situação
 (…)
No dia 25 de janeiro, o tio FF estabeleceu contacto com a técnica, questionando quem era o técnico de referência para o acompanhamento do processo de promoção e proteção da AA. A técnica confirmou o facto da equipa se encontrar em fase de restruturação, mas que, em qualquer momento, a poderia sempre a contactar e quês esta equipa se encontrava disponível para dar resposta às suas solicitações. O tio comunicou então que, em decisão conjunta com a esposa, não estariam disponíveis, após os seis meses de vigência da medida, em se manterem como responsáveis e cuidadores da AA, pelo que entendia ser relevante a marcação de uma reunião, não só para formalização desta decisão, mas também para partilha de acontecimentos e ponderação de medida de promoção e proteção alternativa. Adiantou, então, alguns dos motivos para a não continuidade da medida, especificando a instabilidade de AA a vários níveis, quer no cumprimento de regras básicas, quer em princípios basilares da educação, quer nas relações com os próprios tios. Embora com acompanhamento em psicologia, o tio não observa mudanças no comportamento da sobrinha, considerando-a “inteligente, mas manipuladora” (sic). A entrevista no âmbito da avaliação pericial a ser realizada no Instituto de Medicina Legal ... estava agendada para 31 de janeiro, segundo informação transmitida por FF.
(…)
Os tios referem que a AA não expressa afeto, tem dificuldades e resiste a nível alimentar (embora na escola faça as refeições como as outras crianças), é provocadora, não admite um erro seu, recusa mudar de atitudes em simples ações do quotidiano.
Como positivo, referem o desenvolvimento do gosto pela leitura e o início da prática de natação.
Relativamente à família, entendem que os contactos telefónicos diários com a mãe se revelam de pouca qualidade e sem conteúdo, sendo recorrente a mãe ficar a filmar a filha mais nova ou os animais, sem mais nenhuma interação relevante. Quanto ao progenitor, referem os encontros já expostos anteriormente e na relação com os irmãos percecionam afastamento e desinteresse. Pais e irmãos nunca contactaram os tios para saberem da AA ou para saberem se eles precisavam de alguma coisa. A mãe enviou uma grande quantidade de roupa para a filha, sendo que a tia salienta que a necessidade até seria mais calçado. Nunca perguntaram pelas notas da filha/irmã ou acerca do seu comportamento. Os tios, para evitaram a instabilidade de AA, manifestaram aos familiares que seria preferível visitarem a mesma em sua casa ou nas redondezas de ..., sendo que, desde então, os convívios ou contactos são mais escassos.
No dia 20, a equipa reuniu com a menor, no seu contexto escolar. AA tem presente e verbaliza que, dentro de dois meses, a decisão do Tribunal termina, aspirando, assim, ter a oportunidade de ir viver com a sua progenitora para .... Este continua a ser o seu foco, pelo que a técnica a elucidou que a decisão judicial poderá não ir de encontro ao seu desejo, mas antes com o que seja considerado como necessário, benéfico e vantajoso para si. (…)
Sobre os contactos com a progenitora, refere falar com esta todos os dias, pelas 19h00. Sabe que a mãe mudou de casa e agora já não trabalha no parque de campismo, prevendo o início de atividade num supermercado. Relativamente às videochamadas, refere que a mãe a põe a ver a irmã e os seus animais. O companheiro da mãe não vive naquela casa, acrescentando que “é raro ele ir lá” (sic).
AA assume que tem comportamentos desajustados na casa dos tios, concretizando, a título de exemplo, que não come, que não quer ir para a cama, não ajuda nas tarefas de casa, que não se dirige aos tios pelo nome deles ou mesmo por tios. Foi orientada para uma maior consciencialização das suas atitudes e a importância e necessidade de mudança.
Tendo a menor presente a próxima data de revisão de medida, a equipa questionou-a sobre a sua pretensão quanto ao futuro, estando, desde o início, esclarecida da impossibilidade de ir viver com a progenitora, até porque esta poderá estar numa fase de reorganização da sua vida pessoal e profissional. AA aponta a possibilidade de ir viver com o seu irmão JJ (seu padrinho).
(…)

Parecer técnico
Em resposta à solicitação do Digníssimo Tribunal, importa então esclarecer:
(…)
3. Relativamente à “conveniência de se manterem os contactos da jovem com a família, nomeadamente com a mãe por videochamada, bem como com o pai, caso estejam a ocorrer”, a equipa de ATT entende que os contactos com a mãe, até agora diários, devem acontecer em dias fixos, concretamente ao domingo de manhã e às 3ª, 5ª e 6ª feiras, entre as 20h30 e 21h00, sugestão que aqui se propõe, deixando-se à consideração de V. Exas. Esta redução de contactos pretende, especialmente, traduzir-se numa melhoria da qualidade desse momento, pois, segundo os tios, o facto de os convívios serem diários leva à inexistência de comunicação e interação. Quanto aos convívios com o progenitor, recorda-se que, à data da conferência de pais, havia sido sugerido a supervisão de convívios paterno-filiais no CAFAP do Centro Social de ... (...), possibilidade recusada pela menor. Contudo, como explanado, convívios esporádicos têm acontecido, pelo que a equipa entende que, no momento, estão reunidas condições para se iniciarem visitas da menor ao progenitor, em contexto supervisionado.
4. Atendendo à intenção manifestada pelos tios, de não verem prorrogada a medida de promoção e proteção nas suas pessoas, foi acordado que, após a audição da AA por parte da técnica, audição já concretizada, se realizará reunião conjunta com tios e menor, de modo a serem ponderados conjuntamente compromissos a serem assumidos pela menor, na eventualidade da prorrogação da medida.
(…)»

1.1.9. A «INFORMAÇÃO SOCIAL» de 21 de Fevereiro de 2024 não foi notificada aos Requeridos.

1.1.10. Em 27 de Fevereiro de 2024, no processo de promoção e protecção (processo n.º 54/22....), sob conforme promoção do Ministério Público, foi proferido despacho (que aqui se dá por integralmente reproduzido) fixando um novo regime de contactos telefónicos da Requerida (DD) a AA, lendo-se nomeadamente no mesmo
«(…)
Na esteira do proposto pela ATT, perfilhado pela Digna Magistrada do Ministério Público, determina-se que doravante os contactos telefónicos com a progenitora, ditos de “pouca qualidade”, deem acontecer em dias fixos, concretamente ao domingo de manhã e às 3ª e 5ª feiras entre as 12h30 e 21h00.
(…)»

1.1.11. Em 01 de Março de 2024, no processo de promoção e protecção (processo n.º 54/22....), a Assessoria Técnica aos Tribunais elaborou um «Pedido de retificação» (que aqui se dá por integralmente reproduzido), relativo aos dias em que deveriam ocorrer os contactos de AA com a Requerida, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Contudo, em contacto efetuado pelo tio, e na sequência do seu conhecimento da decisão judicial já proferida, constatamos que a proposta da ATT e decisão judicial em conformidade, não se coaduna com as rotinas da família, pelo que, respeitosamente, se sugere que os mesmos contactos aconteçam antes à 4ª e 6ª feia entre as 19h00 e 19h30 e aos domingos, especificamente entre as 13h00 e 13h30.
(…)»

1.1.12. O ««Pedido de retificação» de 01 de Março de 2024 não foi notificada aos Requeridos.

1.1.13. Em 08 de Março de 2024, no processo de promoção e protecção (processo n.º 54/22....), sob conforme promoção do Ministério Público, foi proferido despacho (que aqui se dá por integralmente reproduzido) rectificando os dias antes indicados para os contactos telefónicos entre a Requerida (DD) e AA, lendo-se nomeadamente no mesmo
«(…)
Atento o teor a informação e da douta promoção que antecedem, determino que doravante os contactos telefónicos entre a progenitora e a AA se realizem às quartas e sextas-feiras, entre as 19h00 e as 19h30 e aos dominós entre as 13h00 e as 13h30, horários que se coadunam com as rotinas da família.
(…)»

1.1.14. Em 15 de Julho de 2024, no processo de promoção e protecção (processo n.º 54/22....), sob conforme promoção do Ministério Público, foi proferida decisão (que aqui se dá por integralmente reproduzida), aplicando a AA a medida de apoio junto da irmã consanguínea II, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Alteração de medida a título cautelar
O presente processo de promoção e proteção diz respeito à menor de idade AA, nascida a ../../2013, filha de CC e de DD.
Por acordo de promoção e proteção foi aplicada a seu favor a medida de “Apoio junto de outro familiar”, efectivada junto dos tios paternos, FF e GG, com a duração de seis meses – artº. 35º, n.º 1, al. b) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.
Subjacente à aplicação desta medida estava e está a necessidade de indagar a situação de alegado abuso sexual, acometido ao progenitor, que desencadeou a intervenção protectiva.
Sucede que, os tios da criança vieram manifestar a sua indisponibilidade para continuar a acolher a AA após o término da medida acordada.
Importando proceder à alteração da medida procedeu-se à audição da Técnica gestora de caso, dos progenitores, da irmã consanguínea da criança, II, bem como do seu companheiro, LL.
Na esteira do sugerido pela EMAT, tentou-se chegar a uma decisão negociada que passava pela aplicação de nova medida de apoio junto de outro familiar, desta feita efectivada junto da referida irmã da criança, II. Esta manifestou a sua total disponibilidade para acolher a irmã.
Porém, a progenitora, que reside em ..., opôs-se à aplicação da medida, invocando problemas de relacionamento com a II.
Não obstante, não indicou qualquer outra alternativa para a AA, pois, como admitiu, ainda que tenha indicado o nome de uma sua irmã como hipótese, não forneceu a morada da mesma, nem antes, nem durante a diligência cuja finalidade bem conhecia.
Desconhecem-se, pois, no presente, alternativas na família alargada para acolher a AA para além da sugerida pela EMAT.
Urge acautelar o superior interesse desta criança, salvaguardando-se o seu bem estar físico e emocional.
Posto isto.
A Digna Magistrada do Ministério Público requereu a aplicação a título cautelar a favor da menor da medida de “apoio junto de outro familiar”, efectivada na pessoa da irmã II, com a duração de seis meses, a rever ao final de três. – artº 37º, nº 3 da LPCJP.
Nos termos do art.º 37.º, n.º 1, da LPCJP, a título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.
A situação presente demanda a substituição imediata da medida a título cautelar, enquanto se procede à definição da situação da criança, por não serem conhecidas outras alternativas na família alargada.

Decisão:
Pelo exposto, decido aplicar a título cautelar e provisório a favor da menor a medida de apoio junto de outro familiar, efectivada na pessoa da irmã II, com a duração de seis meses, a rever ao final de três. - artº 37º, nº 3 da LPCJP.
(…)»

*
1.2. Recurso

1.2.1. Fundamentos
Inconformada com os despachos proferidos em 27 de Fevereiro e 08 de Março de 2024, a Requerida (DD) interpôs recurso de apelação, pedindo nomeadamente que «as videochamdas sejam realizadas diariamente, no horário das 19h às 19h30 e sem a presença dos tios paternos».

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

1. Os presentes autos tiveram início em outubro de 2023 tendo a Digna Magistrada do Ministério Público requerido a aplicação imediata da medida provisória de promoção e protecção a favor da menor AA nascida em ../../2013, de “apoio junto de outro familiar”, mais precisamente, na pessoa da tia da recorrida EE. 

2. Por despacho proferido no 10 de outubro de 2024, foi decidido “aplicar, urgente e provisoriamente, em beneficio da criança AA a medida de promoção e protecção de “apoio junto de outro familiar” (…) pelo prazo de 6 (seis) meses, revista ao final de 3 (três).
Mais se determina, face à gravidade da situação relatada, a suspensão imediata do regime das responsabilidades parentais em curso, mas com aferição da necessidade/pertinência de se       estabelecer um regime de convívios com os pais (não presenciais ao menos por ora) e o irmão”.

3. Nesse douto despacho, tomamos conhecimento dos fundamentos invocados pela Digna Magistrada do Ministério Público para o referido pedido de aplicação imediata da medida provisória de promoção e protecção a favor da menor AA consistindo os mesmos em que “A AA é filha de DD, residente em ..., ...68 ..., ...10 ..., e de CC, residente na R. dos ..., ..., ....
Por sentença, datada de 17.02.2022, proferida no âmbito do processo RRP n.º       54/22...., foi, perante a falta de acordo dos pais, fixado um regime provisório de regulação das responsabilidades parentais relativamente à AA, bem como a seu irmão BB, que conta catorze anos de idade, no qual ficou estabelecido que os menores “ficarão a residir  habitualmente com o pai, que exercerá as responsabilidades parentais relativas aos atos de vida  corrente.”
Tal acção encontra-se ainda em curso, pois que a progenitora, nas alegações ali apresentadas referiu residir no seu local de trabalho, um parque de diversão com alojamento, requerendo que se solicitasse às autoridades sociais francesas a elaboração de relatório sobre as suas condições sociais, económicas e habitacionais, o que foi deferido pelo Tribunal.
Sucede que, no passado dia 06 do corrente mês, a PJ comunicou à Segurança Social que tinha sido contactados pela GNR ... reportando que a AA se tinha refugiado em casa de uma vizinha a quem pediu para não a deixar voltar para a casa do pai, alegando que, há cerca de um    mês, este lhe tocou na zona genital.
Nessa noite, com a anuência do pai, a AA pernoitou em casa da referida vizinha.
No dia 6, pela manhã, elementos da PJ procederam à inquirição da criança, a qual reiterou que, no decorrer do último verão, o pai lhe “passou” a mão pela zona anal e genital, uma das vezes por cima da roupa e, outra, por dentro das cuecas.
Tais ocorrências ter-se iam verificado quando a AA se encontrava na cama do pai, tentando    adormecer.
Ainda nesse mesmo dia, a equipa Técnica da ATT entrevistou o menor BB, que disse nada saber sobre a denúncia apresentada, verbalizando, uma vez mais, que pretende ficar a viver com o pai, posição que já tinha manifestado nos autos de RERP.
O progenitor, igualmente contactado, negou as acusações que lhe são imputadas. Aditou que nos últimos tempos a AA se mostrava muito ensonada pela manhã e que recentemente a surpreendeu, às 04h00, a conversar com a mãe.
Nessa altura, proibiu-lhe os contactos. Mais disse que tinha visto no telemóvel da filha uma mensagem dirigida à mãe, na qual referia que já tinha o esquema montado.
O pai referiu ainda que o telemóvel da filha, cujo número facultou, contém informações fundamentais. As técnicas da ATT foram ainda informadas que a progenitora da criança prevê chegar a Portugal no próximo dia 13.» 

4. No dia 13 de outubro de 2023, a recorrente veio dar a saber que se encontrava em Portugal razão pela qual requereu que lhe fosse entregue a sua filha AA.

5. Se, na altura dos factos, esta residisse em Portugal, a AA ter-lhe-ia sido entregue e não teria a mesma sido confiada à sua tia, EE residente na rua ..., em ....

6. Por despacho proferido no dia 25 de outubro de 2023, foi indeferida a entrega da menor AA atento o teor do despacho datado de 10 de outubro de 2023.

7. No dia ../../2023, a recorrente veio requerer, novamente, a entrega dos seus filhos menores, ou só da sua filha AA caso o seu filho BB mantivesse a vontade de ficar com o pai.

8. Não obstante entender que a AA lhe deveria ter sido entregue, a recorrente aceitou no dia ../../2023, assinar um acordo de promoção e protecção tendo a menor AA sido entregue aos tios paternos.

9. Entre outras medidas, foi acordado “promover um regime de contactos/convívios da jovem com a família, nomeadamente com a mãe por videochamada, entre as 21h00 e as 21h30m, e com o pai da mesma forma, assim que a jovem o queira em relação ao mesmo”.

10. Com vista a demonstrar que a acusação do progenitor, de montagem de um esquema é infundada, a recorrente veio requerer a notificação do DIAP – Secção de Barcelos para juntar aos presentes autos, todos os sms que trocou com a filha, recolhidos no âmbito do inquérito nº 2928/23.0JABRG.

11. Reiterou o pedido no dia 16 de novembro de 2023.

12. Até ao dia de hoje, o pedido da recorrente nunca foi objecto de pronúncia.

13. Ao longo de todo o processo, o tribunal tem vindo a desconsiderar a recorrente.
 
14. Nos processos de promoção e protecção prevalecem os direitos e interesses das crianças mas não podem deixar de serem tidos em atenção os direitos dos pais, neste caso, da mãe.

15. A recorrente está a ser tratada pelo tribunal como se fosse culpada pelos factos que determinaram a abertura dos presentes autos.

16. Quando, na verdade, a acusação da menor AA recaiu apenas sobre o pai de quem a recorrente se encontra separada desde finais de dezembro de 2021.

17. Em dezembro de 2023, a recorrente foi notificada do plano de intervenção da Segurança Social.

18. No dia 28 de dezembro de 2023, requereu que as videochamadas fossem realizadas sem a presença dos tios paternos e que a menor convivesse e passasse fins de semana com a família materna inclusive a sua tia materna, EE e indicou como meios de prova, a audição da menor, da técnica bem como da recorrente.

19. Por despacho proferido no dia 18 de janeiro de 2024 e sem qualquer referência aos meios de prova requeridos, a recorrente viu o seu pedido indeferido.

20. Nos despachos recorridos foi decidido que “na esteira do proposto pela ATT, perfilhado pela Digna Magistrada do Ministério Público, determina-se que doravante os contactos telefónicos com a progenitora, ditos de “pouca qualidade”, devem acontecer em dias fixos, concretamente ao domingo de manhã e às 3ª e 5ª feiras, entre as 20h30 e 21h00” e “atento o teor da informação e da douta promoção que antecedem, determino que doravante os contacto telefónicos entre a progenitora e a AA se realizem às quartas e sexta-feiras, entre as 19h00 e as 19h30 e aos domingos entre as 13h00 e as 13h30, horários que se coadunam com as rotinas da família”, respectivamente.

21. Em nenhum dos despachos recorridos, foi assegurado o direito do contraditório.

22. O acordo celebrado no dia ../../2023 sofreu alterações sem que tenham sido dada, previamente, à recorrente, a possibilidade de exercer o seu direito de contraditório.

23. Desconhecendo mesmo, os motivos subjacentes em cada um dos despachos recorridos.
 
24. Desconhecemos o significado de “contactos telefónicos (…) de pouca qualidade”.

25. Sabemos é que o Tribunal não permitiu que a recorrente fosse ouvida previamente à prolacção de cada despacho recorrido.

26. O tribunal só se preocupa em ouvir a técnica e o Ministério Público.

27. A mãe da menor é totalmente ignorada mesmo que esteja em causa matéria que venha a coartar os seus direitos como é o caso dos despachos recorridos, nos quais não lhe foi dada qualquer possibilidade de exercer previamente, o seu direito do contraditório.

28. Viu, assim, os contactos por videochamada com a filha AA serem reduzidos a três dias por semana.

29. Além de serem supervisionados pelos tios paternos, os referidos contactos deixaram de ser diários no horário fixado das 19h às 19h30 para passarem a ser aos domingos de manhã, às 3ªs e 5ªs, das 20h30 às 21h. Horário esse que veio, posteriormente, a ser alterado pelo segundo despacho recorrido no qual a fundamentação é inexiste, passando o mesmo a ser das 19h às 19h30.

30. A recorrente é tratada pelo Tribunal como se não existisse.

31. A menor também não foi ouvida.

32. Apesar de esta ter manifestado em tribunal vontade em ficar com a recorrente, o Tribunal decidiu entregá-la não à mãe, nem mesmo à tia avó materna, mas sim aos tios paternos, que mantêm a proximidade com o pai da menor, autor dos factos. 

33. O tribunal aguarda a decisão que virá a ser proferida no referido inquérito sem saber quando isso ocorrerá.

34. Entretanto, a recorrente que não teve qualquer responsabilidade nos factos que desencadearam a abertura dos presentes autos, vê restringidos os seus direitos, não podendo conversar com a filha a não ser na presença dos tios paternos e não o podendo fazer todos os dias, mas sim e apenas três vezes por semana.

35. Quem colocou a menor AA em situação de perigo grave para a saúde, segurança e desenvolvimento da mesma foi o pai.

36. O Tribunal não tem nem nunca teve motivos para afastar a menor AA da recorrente.

37. Basta ver que em nenhum dos despachos proferidos nos presentes autos, o Tribunal referiu em concreto, em que situação de perigo colocou a recorrente, a menor para determinar a decisão de afastamento.

38. Os despachos recorridos violaram o artigo 104.º, n.º 3 da LPCJP.
*
1.2.2. Contra-alegações
O Ministério Público apresentou contra-alegações, pedindo que não se admitisse o recurso.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas contra-conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

1 - Nos processos de promoção e protecção só são recorríveis, nos termos do art.º 123.º, n.º 1 da Lei no 147/99, de 1 de Setembro, as decisões que se pronunciem sobre a aplicação, alteração e cessação de medidas de promoção e protecção.

2 - É inquestionável que, pelo despacho recorrido, não foi aplicada, alterada ou feita cessar medida de promoção e protecção.

3 - É, por isso, de indeferir o recurso interposto pela recorrente do despacho do Tribunal que apenas alterou o regime convivial que, por videochamada, ficou estabelecido, em função da informação da parca qualidade dos contactos, face à sua regularidade diária.
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1.2.3. Processamento subsequente (do recurso)
1.2.3.1. Em 11 de Abril de 2024 foi proferido despacho pelo Tribunal a quo, a rejeitar o recurso interposto, por alegada inadmissibilidade legal, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Posto isto, concordámos na íntegra com as considerações tecidas pela Digna Magistrada do Ministério Público.
Com efeito, face à natureza deste processo e os interesses que nele se debatem, o legislador restringiu a possibilidade de recurso, limitando-o às decisões que aplicam, alteram ou fazem cessar medidas de promoção e protecção, de modo a que não se frustre o objectivo de uma decisão célere – neste sentido vide decisão de reclamação proferida pelo Senhor Presidente da Relação de Lisboa de 27/04/2007, no processo n.º 3234107.
No que tange à requerida junção aos presentes autos das sms trocadas entre a progenitora e a menor de idade, que terão sido juntas ao Inquérito n.º 2928/23.0JABRG, sendo certo que o Tribunal não se pronunciou sobre o requerido, no despacho proferido em27/02/2024, determinou se solicitasse ao referido Inquérito informação sobre o seu estado, caso não se mostrasse viável o envio do despacho final.
Como se referiu na promoção sob a ref.: ...18, «a análise e ilações a retirar dos elementos probatórios coligidos no Inquérito cabe ao seu titular sendo feita no âmbito desses autos e não destes, pelo que relevante para este processo é o despacho final que ali vier a ser proferido e não as mensagens de per si.».
No caso vertente, a medida de promoção e protecção aplicada à criança AA foi de “apoio junto de outro familiar”, a executar junto dos tios paternos, sendo inquestionável que, no despacho recorrido, não foi aplicada, alterada ou feita cessar medida de promoção e protecção.
Decisão:
Nestes termos, decide-se pela rejeição do recurso interposto, por inadmissibilidade legal.
(…)»

1.2.3.2. Tendo a Requerida (DD) reclamado do despacho que rejeitara o seu recurso, em 01 de Agosto de 2024, neste Tribunal da Relação de Guimarães, foi proferida decisão sumária (que aqui se dá por integralmente reproduzida), deferindo a mesma e admitindo o recurso interposto pela Requerida [1], lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Consigna-se ainda que se verificou que, nos autos principais de promoção e proteção (apenso C), foi já proferida nova decisão que, de forma provisória, altera o acordo de promoção e proteção alcançado, estando agora provisoriamente aplicada medida de apoio junto de outro familiar (agora uma irmã paterna da menor).
Ainda assim, não existindo qualquer despacho que tenha alterado o regime de contactos com a mãe da menor, temos de entender que se mantêm aqueles que estão determinados nos despachos que foram colocados em crise por via do recurso interposto e, assim, haverá que apreciar a reclamação apresentada quanto à não admissão do recurso.
**
(…)
Facilmente se percebe pelo seu teor que o segundo despacho “retifica” o primeiro, sem o dizer, quanto aos dias em que deverão estabelecer-se os contactos com a progenitora, pelo que, em rigor, está em causa apenas um despacho com a redação que lhe foi dada em 08/03/2024, sendo, por isso, o recurso interposto tempestivo.
(…)
Lidas as alegações de recurso, percebe-se que a recorrente, colocando em causa os despachos proferidos, pretende não apenas a sua revogação tendo em vista a manutenção dos contactos diários com a filha e sem a presença dos tios, como a realização de diligências de prova.
Ora, os despachos proferidos não versam sobre a realização de tais diligências de prova e a inexistência de despacho sobre a pretensão da mãe da menor com vista à sua realização não permite a apresentação de recurso, naturalmente por falta de objeto.
Mas ainda que assim se não entendesse, a decisão que não admita a realização de diligências de prova não é suscetível de recurso, como resulta do despacho reclamado, pois que a Lei de Promoção e Proteção estabelece restrições sobre as decisões suscetíveis de recurso.
(…)
O mesmo não acontece, contudo, com a questão decidida nos despachos proferidos e questionada por via de recurso e que está relacionada com os contactos a estabelecer entre a menor e mãe.
A medida de promoção e proteção provisória aplicada foi a de apoio junto de outro familiar, nos termos do art.º 37.º, n.º1 e 35.º, alínea b), da Lei de Promoção e Proteção (decisão de 10/10/2023), logo então se determinando “a suspensão imediata do regime das responsabilidades parentais em curso, mas com aferição da necessidade/pertinência de se estabelecer um regime de convívios com os pais (não presenciais ao menos por ora) e o irmão”.
Neste exato enquadramento, e após realização de conferência, foi obtido acordo de promoção e proteção, em 02/11/2023, para aplicação daquela medida que estabeleceu, na cláusula terceira do acordo, como objetivo da medida, “promover um regime de contactos/convívios da jovem com a família, nomeadamente com a mãe por videochamada, entre as 21h00 e as 21h30m, e com o pai da mesma forma, assim que a jovem o queira em relação ao mesmo”.
Foi esta cláusula do acordo que foi alterada nos dois despachos proferidos.
Quer isto dizer que estes dois despachos (em que o segundo é uma mera retificação do primeiro) alteram o objetivo da medida de promoção e proteção aplicada, no que se refere ao regime de contactos com a progenitora, não podendo afirmar-se que a medida em vigor após os despachos objeto de recurso é a mesma para a qual a mãe deu o seu acordo no âmbito destes autos. Não o é, precisamente no que diz respeito à frequência dos contactos a estabelecer consigo.
É assim claro que, nos termos do art.º 123.º citado, as decisões proferidas, porque alteram os termos em que, na execução da medida de promoção e proteção, seriam estabelecidos os contactos com a progenitor, são suscetíveis de recurso.
Diga-se, aliás, que não faria sentido que o legislador tivesse tido a preocupação de assegurar a recorribilidade da decisão a proferir quanto aos contactos entre irmãos (art.º 123.º já referido) e não permitisse que a decisão que altera o regime dos contactos a estabelecer com os progenitores, no âmbito de uma mesma medida de promoção e proteção, não pudesse ser objeto de recurso.
Entendemos assim que é admissível o recurso interposto, na parte em que coloca em causa a decisão proferida quanto à frequência e aos termos dos contactos a estabelecer entre a progenitora da menor e esta, nos termos do art.º 123.º da Lei de Promoção e Proteção.
**
Decisão:

Nos termos expostos, defere-se em parte a presente reclamação, e em consequência, por legal e tempestivo, admite-se o recurso interposto do despacho que em 27/02/2024 e 08/03/2024 alterou os termos em que eram estabelecidos os contactos entre a progenitora e a menor, o qual é de apelação, com subida imediata, em separado, e com efeito meramente devolutivo – arts.º 123.º e 124.º, n.º2, da Lei de Promoção e Proteção, 629.º, 645.º, n.º2, 647.º, n.º1, do C. P. Civil.
Sem custas.
(…)»
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC, aqui aplicáveis ex vi do art.º 17.º, do CIRE), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC, e do art.º 17.º, do CIRE) [2].
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [3], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
Mercê do exposto (nomeadamente, do âmbito dos dois despachos recorridos, limitado à frequência e horário dos contactos telefónicos a estabelecer entre a Requerida e a filha), uma única questão está agora submetida à apreciação deste Tribunal ad quem:

· Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação do direito nomeadamente violando o princípio do contraditório (ao não ouvir previamente a Requerida quanto à alteração da frequência e horário em que eram estabelecidos os contactos entre ela e a filha), devendo ser alterada a decisão de mérito proferida (nomeadamente, revogando a mesma, por forma a que a Requerida possa exercer o seu direito de contraditório sobre a alteração pretendida pela Assessoria Técnica aos Tribunais quanto à frequência e horários dos contactos a estabelecer entre ela e a filha) ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação da questão enunciada, encontram-se assentes os factos elencados em «I - RELATÓRIO» (documentalmente assentes nos autos principais e respectivos apensos), que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Princípio do contraditório - Em geral
4.1.1. Princípios enformadores do processo civil

Os princípios gerais de Direito procuram descrever, ordenar e fixar os princípios fundamentais da ciência jurídica, tendo por objecto conceitos, definições, classificações, aplicação e coordenação, dentro do sistema, uno e coerente, de princípios e normas, sendo estas as leis de direito positivo que serão estatuídas em conformidade com aqueles princípios.
Com efeito, qualquer «sistema jurídico-processual pressupõe opções globais de política legislativa reconduzidas a determinados princípios gerais que vão orientar o legislador nas diversas concretizações normativas. Tal como as traves mestras de um edifício, umas vezes expostas e, outras, apenas pressentidas, porque integradas na respectiva estrutura, os princípios enformam todo o nosso sistema processual civil, servindo para sustentar e congregar normas dispersas, para auxiliar o intérprete e aplicador do direito na adopção das soluções mais justas ou para impor aos diversos sujeitos determinadas regras de conduta processual».
Ora, sendo o «elemento sistemático (…) um dos que devem ser tidos em conta pelo intérprete e aplicador do direito, nos termos do art. 9º do CC», as concretas «soluções legais deverão ser encontradas não apenas através da letra da lei, mas procurando reconstituir o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema jurídico.
É por isso que o recurso aos grandes princípios do nosso sistema processual civil constitui um instrumento fundamental para a busca das soluções mais acertadas e resolução de dúvidas que ao intérprete se deparam.
Tais princípios exercem, assim, e em simultâneo, uma função aglutinadora de normas dispersas pelo CPC e de clarificação das razões que inspiraram a adopção de determinadas soluções» (António Santos Abrantes Geraldes, Temas de Reforma do Processo Civil, I Volume, 2.ª edição, Almedina, págs. 23-27, com bold apócrifo).
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4.1.2. Princípio do contraditório (em processo civil)
Lê-se no art.º 3.º do CPC que o «tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição» (n.º 1), só «em casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida» (n.º 2); e que o «juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem» (n.º 3).
Reconhece-se aqui que, estando em causa conflitos de natureza privada - e não pública - o Tribunal apenas intervém para os dirimir se previamente solicitado por uma parte, que lhe traz os factos sobre que versa o litígio e formula o pedido de tutela jurisdicional pretendido (princípio do dispositivo); e tendo depois a parte contrária o direito de sobre eles se pronunciar, sendo, porém, dever do Tribunal assegurar a possibilidade do seu exercício (princípio do contraditório).

Sendo estes dois princípios basilares de todo o processo civil (ínsitos ao «processo equitativo» [4] que o n.º 4 do art.º 20.º da CRP consagra como direito [5]), o princípio do contraditório surge consagrado na lei processual civil quer na sua versão geral (de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio) [6], quer na sua vertente especial proibitiva, de emissão de qualquer decisão-surpresa de questões de direito [7] .
Assim, e por sua imposição, todas as fases do processo decorrem num diálogo entre as partes, sob a direcção do juiz (v.g. articulados, audiência prévia, audiência final, recursos); e todas as diligências ou actos relacionados com a proposição ou produção de meios de prova pressupõem o cumprimento dessa estrutura dialéctica ou bipolar (as partes podem, em igualdade de circunstâncias, apresentar todos os meios probatórios potencialmente relevantes, podem decidir fazê-lo até ao momento que considerem acentuar a sua relevância, a admissão ou produção da sua prova é feita com audiência contraditória, e podem apreciar a prova produzida por si, pelo outra parte, e pelo tribunal).
Considera-se, deste modo, que só a permanente audição de ambas as partes permite que, simultaneamente: se apure a verdade (material) e se alcance a justa composição do litígio (art.º 411.º do CPC); e se controle o modo como o Tribunal exerce a sua actividade, com vista precisamente a alcançar esse fim.
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A omissão do cumprimento do princípio do contraditório pode, em regra, influir no exame ou na decisão da causa, consubstanciando por isso uma nulidade [8].
Com efeito, lê-se no art.º 195.º n.º 1 do CPC, que, fora «dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa». Estão aqui em causa as chamadas nulidades secundárias, inominadas ou atípicas (por oposição às principais, nominadas ou típicas), onde precisamente se contem a violação daquele princípio.
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4.2. Em particular - Processo de promoção e protecção
4.2.1. Critério de decisão - Princípios orientadores da intervenção
Lê-se no art.º 4.º n.º 1 al. a) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo [9] que qualquer intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo deverá obedecer sempre ao «interesse superior da criança e do jovem», isto é, a «intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto».
É, pois, o «interesse superior da criança» o critério supremo a ter em consideração na decisão judicial, encontrando-se consagrado: na lei ordinária (art.ºs 1878.º, n.º 1, 1905.º, n.º 1, 1906.º, n.ºs 2, 5, 7 e 1978.º, n.º 2, todos do CC, art.º 4.º, n.º 1, al. a) da LPCJP, e art.ºs 147.º-A, 180.º, n.º 1 e 2 da OTM); na CRP; e na Convenção sobre os Direitos da Criança (art.ºs 3.º, n.º 1, 9.º e 18.º).
Lê-se nomeadamente nesta última, no seu: art.º 3.º, que «todas as decisões relativas às crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança»; e no seu art.º 9.º, n.º 1, que «a criança não será separada dos seus pais contra a vontade destes, a menos que a separação se mostre necessária, no interesse superior da criança».
Trata-se, sem dúvida, de um conceito indeterminado, que carece de ser preenchido, por forma a que seja utilmente actuado, em cada caso concreto. «O legislador emite ao tribunal um comando a fim de que este decida de acordo com o interesse do menor. A utilização deste conceito pelo legislador permite uma extensão dos poderes interpretativos do juiz e confere-lhe o poder de decidir em oportunidade» (Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, 5.ª edição, Revista, Aumentada e Actualizada, Almedina, Abril de 2016, pág. 31, com bold apócrifo).

Importa, porém, que, não obstante se estar perante um «conceito aberto», o mesmo seja objecto de clarificação, por forma a que seja seguramente actuado, já que é «dever da nossa administração da justiça procurar que as decisões não sejam tão díspares com situações concretas e fácticas semelhantes» (Dulce Rocha, «Desjudicializou-se demasiado no caso das crianças», Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 67, Junho de 2010, pág. 25).
Torna-se, por isso, necessária uma avaliação rigorosa e interdisciplinar de todos os factores pessoais, e condições ambientais, que rodeiam a criança, a realizar de forma livre de preconceitos ou ideias pré-concebidas.
Logo, «o superior interesse da criança só poderá ser definido através de uma rigorosa avaliação concreta e objectiva, determinada por uma perspectiva global e sistemática, de natureza interdisciplinar, visando a satisfação da permanente necessidade da criança de crescer harmoniosamente, em ambiente de amor, aceitação e bem-estar, salvaguardando-se a continuidade das suas relações afectivas positivas» (Paulo Guerra, «Confiança Judicial com vista à adopção - Os difíceis trilhos de uma desejada nova vida», Revista do Ministério Público, n.º 194, Ano 26, Outubro/Dezembro, pág. 81).
O interesse da criança prende-se, assim, «com uma série de factores atinentes à situação concreta desta que devem ser ponderados à luz do sistema de referências que hoje vigora na nossa sociedade, sobre as necessidades do menor, as condições materiais, sociais, morais e psicológicas adequadas ao seu desenvolvimento estável e equilibrado e ao seu bem-estar material e moral» (Rui António H. L Epifânio, Organização tutelar de menores, contributo para uma visão interdisciplinar do direito de menores e de família, 2.ª edição, Almedina) [10].
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Contudo, e para além deste nuclear critério de decisão do «superior interesse da criança», a «intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo» deverá obedecer igualmente aos demais princípios enunciados no art.º 4.º da LPCJP, nomeadamente: «c) Intervenção precoce - a intervenção deve ser efetuada logo que a situação de perigo seja conhecida; d) Intervenção mínima - a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo; e) Proporcionalidade e atualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade; f) Responsabilidade parental - a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem; g) Primado da continuidade das relações psicológicas profundas - a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante; h) Prevalência da família - na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável» (com bold apócrifo).
Logo, a medida escolhida «deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontra, nomeadamente em que a decisão é tomada e só deve interferir o estritamente na sua vida e da sua família»; e deve ainda ser escolhida e concretizada «de modo a que os pais assuma os seus deveres para com a criança ou jovem, quanto tal for possível», ou, quando assim não seja, privilegiando na mesma a sua integração numa família (esta «abrangendo qualquer célula familiar, seja biológica ou não») (Paulo Guerra, Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada, 4.ª edição, Almedina, 2020, pág. 37).
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4.2.2. Processo (de promoção e protecção) de jurisdição voluntária
Lê-se no art.º 100.º da LPCJP que o «processo judicial de promoção dos direitos e proteção das crianças e jovens em perigo, doravante designado processo judicial de promoção e proteção, é de jurisdição voluntária».
É-se, assim, remetido para a disciplina dos art.ºs 986.º a 988.º do CPC, segundo a qual : o «tribunal pode (…) investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes», só sendo «admitidas as provas que o juiz considere necessárias» (art.º 986.º, n.º 2); nas «providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna» (art.º 987.º); «as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração», entendendo-se por estas «tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso» (art.º 988.º, n.º 1); e das «resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça» (art.º 988.º, n.º 2) [11].
Compreende-se, por isso, que se afirme que enquanto «nos processos de jurisdição contenciosa, o tribunal é chamado a exercer a função jurisdicional própria dos órgãos judiciários, elaborando e formulando a solução concreta que decorre do direito substantivo aplicável, nos processos de jurisdição voluntária, a função exercida pelo juiz não é tanto de intérprete e aplicante da lei, como de verdadeiro gestor de negócios - negócios que a lei sob a fiscalização do Estado através do poder judicial» (Ac. da RL, de 07.12.2006, Soares Curado, Processo n.º 10140/2006-7) [12].

Dir-se-á, porém, que o facto do processo judicial de promoção e protecção assumir a natureza de jurisdição voluntária (v.g. livre investigação dos factos e da prova,  critério de julgamento de conveniência e oportunidade, alteração superveniente das resoluções judiciais [13]) visa apenas «uma preponderância de tramitação e de decisão que não é de natureza estritamente legal, conferindo uma ampla margem de iniciativa jurisdicional ao tribunal», e não que tenha deixado de «ter princípios e regras específicas, nomeadamente a observância de um processo justo e equitativo, afastando-se de uma jurisdição arbitrária» (Ac. da RP, de 06.02.2020, Joaquim Correia Gomes, Processo n.º 497/17.0T8OBR.P1, com bold apócrifo).
Acresce que a «não sujeição a critérios de legalidade estrita subjacente aos processos de jurisdição voluntária não comporta a possibilidade de disciplinar o processo sem obediência aos elementares princípios do processo civil, a menos que outros devam prevalecer - como o superior interesse da criança - e, então, caberá densificar tal «superior interesse» que faça claudicar tais princípios pela supremacia de outros» (Ac. da RL, de 25.09.2018, Carla Câmara, Processo n.º 26748/15.7T8SNT-B.L1-7, com bold apócrifo).
Com efeito, e nos termos do art.º 549.º n.º 1 do CPC [14], serão ainda aplicáveis aos processos judiciais de promoção e protecção as disposições gerais e comuns do processo civil (onde nomeadamente se inclui a consagração - e os termos em que se acha feita - do princípio do contraditório).
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4.2.3. Princípio do contraditório (em processo de promoção e protecção)
Lê-se no art.º 85.º da LPCJP que: os «pais, o representante legal e as pessoas que tenham a guarda de facto da criança ou do jovem são obrigatoriamente ouvidos sobre a situação que originou a intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medida de promoção e proteção» (n.º 1); mas ressalvam-se «do disposto no  número anterior as situações de ausência, mesmo que de facto, por impossibilidade de contacto devida a desconhecimento do paradeiro, ou a outra causa de impossibilidade, e os de inibição do exercício das responsabilidades parentais» (n.º 2).
Este artigo está incluído no Capítulo VI da LPCJP, de «Disposições processuais gerais», cujo art.º 77.º inicial desde logo esclarece que as «disposições do presente capítulo aplicam-se aos processos de promoção dos direitos e de proteção, adiante designados processos de promoção e proteção, instaurados nas comissões de proteção ou nos tribunais».

Mais se lê, no art.º  104.º da LPCJP, que a «criança ou jovem, os seus pais, representante legal ou quem tiver a guarda de facto têm direito a requerer diligências e oferecer meios de prova» (n.º 1); no «debate judicial podem ser apresentadas alegações escritas e é assegurado o contraditório» (n.º 2); e o «contraditório quanto aos fatos e à medida aplicável é sempre assegurado em todas as fases do processo, designadamente na conferência tendo em vista a obtenção de acordo e no debate judicial, quando se aplicar a medida prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 35.º», isto é, de confiança a pessoa selecionada para a adopção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adopção (n.º 3).
Este artigo está incluído no Capítulo IX da LPCJP, pertinente ao «processo judicial de promoção e proteção».

Logo, também em sede de processo de promoção e protecção o princípio do contraditório se encontra consagrado em termos amplos (sendo mesmo de cumprimento imperativo quanto aos factos que originarem a intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medida de promoção e protecção).
Precisando, «implica que os pais têm direito, por si ou através dos seus mandatários, a requerer diligências, a oferecer meios de prova e a fazer alegações escritas. A audição dos pais sobre a situação que originou a intervenção e sobre a aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção é obrigatória, nos termos dos artigos 85.º e 107.º, n.º 1, al. b), da LPCJP; estes têm o direito a consultar o processo (artigo 88.º, n.ºs 3 e 4, da LPCJP); o direito de alegar (artigo 114.º, n.º 1 e 3, da LPCJP); direito de requerer provas (artigo 117.º) e de fazer alegações no debate judicial (artigo 119.º da LPCJP).
Em particular, quando esteja em causa a medida prevista no artigo 35.º, n.º 1, al. g) da LPCJP deve observar-se o princípio do contraditório quanto aos factos e à medida a aplicar em todas as fases do processo, nomeadamente na conferência para a obtenção de acordo e no debate judicial» (Ac. do STJ, de 19.10.2021, Maria Clara Sottomayor, Processo n.º 686/18.0T8PTG-A.E1.S1).
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4.3. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.3.1. Juízo do Tribunal a quo
Concretizando, verifica-se que, tendo sido provisoriamente decidido que  AA, então de 09 anos de idade, ficaria a residir com o Requerido (CC), seu pai - encontrando-se a Requerida (DD) sua mãe, a trabalhar e residir em ..., veio posteriormente a ser instaurado um processo de promoção e protecção a favor dela por denúncia de alegado comportamento sexual impróprio do progenitor sobre a filha (que o mesmo negou, acusando a Requerida de estar a manipular a filha, para obter a sua guarda, como reiteradamente vem pedindo nos autos).
Mais se verifica que em 05 de Novembro de 2023 foi homologando o «ACORDO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO», aplicando a AA a medida de apoio junto de tios paternos (FF e GG), consignando-se expressamente na sua Cláusula Terceira que a dita medida se propunha nomeadamente promover «um regime de contactos/convívios da jovem com a família, nomeadamente com a mãe por videochamada, entre as 12h00 e as 21h30m».
Verifica-se ainda que, propondo a Assessoria Técnica aos Tribunais, em 21 de Fevereiro de 2024, uma redução dos contactos telefónicos entre a Requerida (DD) e a filha para quatro dias por semana, bem como a alteração do horário antes acordado com ela, veio o Ministério Público a promover que se proferisse conforme decisão, e o Tribunal a quo a fazê-lo, por despacho de 27 de Fevereiro de 2024, sem que previamente tivesse ouvido a Requerida para o efeito, nomeadamente dando-lhe conhecimento do teor da «INFORMAÇÃO SOCIAL» de 21 de Fevereiro de 2024, para que sobre ela se pronunciasse.
Por fim, verifica-se que, de novo sob prévia iniciativa da Assessoria Técnica aos Tribunais, e sob conforme promoção do Ministério Público, veio a ser proferido despacho em 08 de Março de 2024, alterando novamente os dias concretos (agora reduzidos a três) e as horas em que a Requerida (DD) poderia falar telefonicamente com a filha, de novo sem a ouvir ou consultar previamente para o efeito.

Ponderou-se exclusivamente para o efeito o juízo técnico da Assessoria Técnica aos Tribunais, quando considerou que: «os contactos telefónicos diários com a mãe se revelam de pouca qualidade e sem conteúdo, sendo recorrente a mãe ficar a filmar a filha mais nova ou os animais, sem mais nenhuma interação relevante»; que a redução dos mesmos a «dias fixos, concretamente ao domingo de manhã e às 3ª, 5ª e 6ª feiras, entre as 20h30 e 21h00», traduzir-se-ia «numa melhoria da qualidade desse momento, pois, segundo os tios, o facto de os convívios serem diários leva à inexistência de comunicação e interação»; e que esta sua primeira proposta não se coadunou «com as rotinas da família», propondo, por isso, num segundo momento que «os mesmos contactos aconteçam antes à 4ª e 6ª feira entre as 19h00 e 19h30 e aos domingos, especificamente entre as 13h00 e 13h30».

Ora, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não o poderia ter feito, por assistir à Requerida (DD) o direito a contraditar previamente aquele parecer técnico da Assessoria Técnica aos Tribunais.
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4.3.2. Juízo do Tribunal ad quem
Com efeito - e tal como já foi expressamente declarado por este Tribunal da Relação de Guimarães (na decisão sumária da reclamação apresentada pela Requerida ao despacho do Tribunal a quo de 11 de Abril de 2024, que não lhe admitiu o recurso que interpusera daquelas suas outras duas decisões, de 2 de Fevereiro e de 08 de Março de 2024) -, tendo-se alterado a Cláusula Terceira do acordo de promoção e protecção a que a Requerida (DD) expressamente anuíra (nomeadamente, a frequência antes diária dos contactos telefónicos a estabelecer com a filha), é apodítico que se alterou parte dos concretos termos da medida aplicada.
Logo, e singelamente nos termos dos 85.º da LPCJP, a Requerida (DD) teria obrigatoriamente que ser ouvida sobre esta revisão dos termos da concreta execução da medida de promoção e protecção antes aplicada, já que nada resulta dos autos que permitisse excepcioná-lo.
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Dir-se-á, ainda, que a Requerida (DD), não obstante viver e trabalhar em ..., reclama desde o início do processo de promoção e protecção, e reiteradamente, que a filha lhe seja confiada; e que, tendo aceite que, cautelar e provisoriamente, a mesma fosse confiada a respectivo  familiar paterno, não renunciou à possibilidade de falar todos os dias com ela, fazendo-o por meio de videochamada (isto é, podendo não só  falarem uma com a outra, como reciprocamente se verem).
Ora, é a própria Assessoria Técnica aos Tribunais que refere, na sua informação aos autos, que: a «AA tem presente e verbaliza que, dentro de dois meses, a decisão do Tribunal termina, aspirando, assim, ter a oportunidade de ir viver com a sua progenitora para ...», continuando este «a ser o seu foco»; sobre «os contactos com a progenitora, refere falar com esta todos os dias, pelas 19h00», sabendo que «a mãe mudou de casa e agora já não trabalha no parque de campismo, prevendo o início de atividade num supermercado»; e relativamente às videochamadas, «refere que a mãe a põe a ver a irmã e os seus animais».
Do exposto resulta que existe uma forte vinculação afectiva entre a Requerida (DD) e filha, que aquela se esforça por manter diariamente; e que nomeadamente o faz partilhando com esta parte significativa da sua remanescente vida familiar, isto é, a filha mais nova (irmã uterina dela) e os animais domésticos que já foram seus (sendo os mesmos reconhecida fonte de afectos securizantes).
Tendo presente este concreto quadro factual, por um lado, e os princípios da proporcionalidade e actualidade (a decisão de aplicação de uma medida de promoção e protecção só pode interferir na vida da criança/do jovem e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade), da responsabilidade parental (a intervenção deve ser efetuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem), do primado da continuidade das relações psicológicas profundas (a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante), e da prevalência da família (na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família), por outro, sempre se justificaria a prévia audição da Requerida (DD), por indesmentivelmente, com a imposta redução dos contactos telefónicos à filha, poder ver prejudicada a proximidade e vinculação com a mesma.

Precisa-se, a propósito, que a dita redução assentou num juízo de valor sobre a qualidade dos contactos telefónicos diários mantidos entre ambas; e na prognose de que, com a sua diminuição, aumentaria a dita qualidade.
Contudo, só com a audição da Requerida (DD) e da própria AA se poderia ter a certeza de que não era gratificante para ambas (nomeadamente para a criança/jovem) a forma como os telefonemas diários se desenrolavam até então, isto é, de que não eram eficazes para manter junto da filha a certeza do amor da mãe e da vontade desta de a ter junto de si. Admite-se que a partilha do ambiente doméstico da Requerida (DD) pudesse ajudar precisamente esse seu propósito, de mostrar à filha que aquela era (ou também era) a sua casa, onde os seus animais de estimação esperavam por ela; e admite-se ainda que nem todos os dias a criança/jovem tivesse acontecimentos ou vivências que considerasse relevantes para partilhar com a mãe, ou que esta (vivendo sozinha, com uma criança pequena e animais para cuidar, e trabalhando fora) tivesse, renovada e permanentemente, a energia suficiente para suscitar na filha, e manter com ela,  uma conversa ao longo de toda a duração dos telefonemas diários.
Nesta outra (possível) perspectiva, a diminuição dos contactos telefónicos - recorda-se, de diários para três dias por semana - poderia ser vista pela criança/jovem como um abandono ou desinteresse da mãe; ou, pelo menos, dificultar a manutenção da partilha dos seus cotidianos; ou, seguramente, ser vista pela Requerida (DD) como uma imerecida e injustificada compressão dos seus direitos maternais, sem que daí resultasse qualquer benefício para a filha.
Logo, e também mercê desta outra ponderação, deveria a Requerida (DD) ter sido ouvida.
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Dir-se-á, por fim, e agora ponderando os concretos dias da semana, e horários, fixados para realização dos já reduzidos telefonemas, que os mesmos foram decididos pela exclusiva ponderação das «rotinas da família», isto é, dos tios paternos a quem a AA foi confiada.
Ora, sem se saber antecipadamente se a Requerida (DD) teria simultânea disponibilidade para os viabilizar nesses precisos dias e horas, sempre teria a mesma que ser ouvida para o efeito, sob pena de não se estar sequer a falar de uma redução (para três dias) dos anteriores contactos (diários), mas sim de uma redução superior àquela, ou (no limite) mesmo de uma anulação prática dos ditos telefonemas.
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Face ao exposto, considera-se ter havido uma efectiva violação do direito de contraditório que assistia à Requerida (DD), na prolação dos despachos recorridos; e, a ser assim, são os mesmos nulos [15].
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Deverá decidir-se, em conformidade, pela total procedência do recurso de apelação interposto pela Requerida (DD), declarando nulos os despachos recorridos; e, por isso, respondo o regime de videochamadas diárias entre ela e a filha, no horário das 19h.00m às 19h.30m.
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V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso de apelação interposto pela Requerida (DD) e, em consequência, em

· Declarar nulos (por violação do princípio do contraditório) os despachos proferidos pelo Tribunal a quo em 27 de Fevereiro e em 08 de Março de 2024, repondo-se, assim, o anterior regime de videochamadas diárias entre ela e a filha, no horário das 19h.00m às 19h.30m.
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As custas da apelação seriam pelo Ministério Público, que ficou vencido (art.º 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC), estando, porém, o mesmo isento delas (art.º 4.º, n.º 1, al. a), do RCP).
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Guimarães, 03 de Outubro de 2024.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício;
2.ª Adjunta - Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais.


[1] Não obstante esta decisão, em 06 de Setembro de 2024 o Tribunal a quo voltou a proferir o mesmo despacho de rejeição do mesmo recurso, com os mesmos exactos fundamentos, que, por isso, não pode deixar de se ter por ineficaz .
[2] «Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem). 
[3] Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
[4]  Definindo o que seja um processo equitativo, afirma-se que o mesmo postula «a efectividade do direito de defesa no processo, bem como dos princípios do contraditório e da igualdade de armas (…). Um processo equitativo e leal deve assegurar a cada uma das partes, o poder de expor as suas razões de facto e de direito perante o tribunal, antes que este tome uma decisão. É o direito de defesa dos interessados perante tribunais onde se discutem questões que lhe dizem respeito. As partes devem, por outro lado, poder exercer o direito de defesa em condições de igualdade, devendo-lhes ser assegurado o princípio do contraditório. (…) O conteúdo do direito de defesa e do principio do contraditório resulta, prima facie que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efectiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes do tribunal decidir, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de umas e outras» (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Cimbra Editora, 2005, págs. 192 a 194).
[5] O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem igualmente considerado o contraditório como um elemento integrante do princípio do processo equitativo, inscrito como direito fundamental no artigo 6º, § 1º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
[6] Compreende-se que se afirme que resultam «estes preceitos duma conceção moderna do princípio do contraditório, mais ampla do que a do direito anterior à sua introdução no nosso ordenamento. Não se trata já apenas de, formulando um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção. Este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma concepção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indirecta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão» (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, pág. 7).    
Neste mesmo sentido, de uma ampla consagração do princípio do contraditório:
. na doutrina - António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, pág. 19; e Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Novembro de 2015, págs. 21 e 22.
. na jurisprudência - Ac. do STJ, de 24.03.2017, Fernanda Isabel Pereira, Processo n.º 6131/12.7TBMTS-A.P1.S1; Ac. da RC, de 10.07.2019, Luís Cravo, Processo n.º 249/19.2T8CNT.C1; Ac. da RP, de 02.12.2019, Eugénia Cunha, Processo n.º 14227/19.8T8PRT.P1; ou Ac. da RP, de 21.03.2024, Manuela Machado, Processo n.º 999/13.7TMPRT-E.P1.
[7] A vantagem deste regime, de proibição de decisões surpresa, é clara e evidente: para o julgador, «porque depois da audição das partes e de analisar iguais ou diferentes pontos de vista, pode proferir uma decisão com maior convicção e segurança»; e para as partes, «por lhes ser dada a possibilidade de apresentarem os seus argumentos a favor ou contra a decisão, de algum modo a podendo ainda influenciar», sendo que não «raras vezes acontece que na análise de determinada questão colocada ao tribunal na acção escapa à discussão um aspecto relevante e decisivo, (…) impondo-se tomá-lo em consideração na decisão a proferir» (Fernando Pereira Rodrigues, O Novo Processo Civil. Os Princípios Estruturantes, 2013, Almedina, pág. 49). 
Precisando a proibição de «decisões-surpresa», dir-se-á que esta «vertente do princípio tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficiosos que as partes não tenham suscitado (…). Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho-saneador, sentença, instância de recurso)» (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, pág. 9).
Logo, o «juiz pode decidir uma questão com base numa norma não invocada pelas partes (art. 5º, nº 3), mas não sem que antes estas tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre esse enquadramento jurídico (nº 3 ora comentado). Esta possibilidade só pode surgir depois de a potencial relevância da norma para a decisão resultar clara na ação. Para tanto, se necessário, o tribunal deverá proporcionar um contraditório específico sobre a questão. Isto vale para a decisão liminar, como vale para o despacho saneador, como vale para a sentença final» (Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, 2013, Almedina, Outubro de 2012, págs. 27 e 28).
Precisando o que seja a «manifesta desnecessidade» de audição das partes (ou da parte contrária ao requerente), pelo Tribunal, antes de decidir (oficiosamente, ou mercê de prévio requerimento), pondera-se antes de mais que, tal «como o princípio do contraditório não deve obscurecer o objetivo da celeridade processual, também esta não pode conduzir a uma dispensa do contraditório sob o pretexto da sua desnecessidade. Tal dispensa é prevista a título execional, de modo a que apenas se justificará quando a questão já tenha sido suficientemente discutida ou quando a falta de audição das partes não prejudique de modo algum o resultado final» (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, pág. 20) [7].
«Pode assim não ter lugar o convite para discutir uma questão de direito quando as partes, embora não a tenham invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente a tiveram em conta sem sombra de dúvida, designadamente por ter sido apresentada uma versão fáctica, não contrariada, que manifestamente não consentia outra qualificação. Pode ele também não ter lugar quando a questão seja decidida favoravelmente à parte não ouvida (o que sempre implicaria a irrelevância da omissão: art. 195-1) ou quando seja proferido despacho que convide uma das partes a sanar uma irregularidade (art. 146-2; art. 590-3) ou uma insuficiência expositiva (art. 590-4; art. 639-3)» (José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, págs. 10 e 11).   
Dir-se-á, porém, que, suscitando-se «dúvida sobre se existe, ou não, manifesta desnecessidade na audição das partes, por uma questão de cautela, deve optar-se pela audição, pois que se evita que as partes venham, posteriormente, invocar a nulidade da decisão por falta da sua audiência prévia» (Fernando Pereira Rodrigues, O Novo Processo Civil. Os Princípios Estruturantes, 2013, Almedina, pág. 50, com bold apócrifo).
[8] Neste sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, pág. 382 (para a formulação geral do princípio do contraditório), onde se lê que «a ampla consagração do princípio do contraditório implica a necessidade da prática de atos (máxime, de notificação para a tomada de posições da parte) que a lei só genericamente prescreve (art. 3-3) e que, como tal, igualmente integram a previsão do n.º 1»; e pág. 10 (para a formulação particular da proibição de decisões surpresa), onde se lê que a «omissão do convite às partes para tomarem posição sobre a questão oficiosamente levantada gera nulidade, a apreciar nos termos gerais do art. 201».
Neste último sentido, Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Novembro de 2015, pág. 22, onde se lê que uma decisão-surpresa é, «salva manifesta desnecessidade, uma decisão nula, em princípio, nos termos do artigo 195º, pois pôde influir no exame ou na decisão a causa».
Na jurisprudência, Ac. do TCAN, de 28.02.2014, Carlos Medeiros de Carvalho, Processo n.º 00123/13.6BECBR.
[9] A Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (doravante LPCJP) foi aprovada pela Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro, sendo desde então alvo de sucessivas alterações, incluindo as introduzidas pela Lei n.º 26/2018, de 5 de Julho.
[10] Precisa-se, ainda, o óbvio: a intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e jovem em perigo, nomeadamente a escolha da concreta medida que remova aquele perigo e promova estes direitos e protecção, norteia-se exclusivamente pelo seu superior interesse, e não por qualquer propósito de premiar ou castigar os seus progenitores ou cuidadores (à margem, ou de forma inconciliável, com aquele critério de decisão).
Logo, os «direitos da criança prevalecem sempre sobre os direitos dos pais, sendo a decisão sempre tomada em favor daquela, conforme o seu interesse e não contra os pais» (Paulo Guerra, Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada, 4.ª edição, Almedina, 2020, pág. 26).
Compreende-se, por isso, que se afirme que «o tribunal deve assumir (nesse sentido, parcialmente) a defesa do interesse que a lei lhe confia – no caso dos processos de promoção e protecção, o “interesse superior da criança e do jovem”, como expressamente afirma a al. a) do art. 4.º da LPCJP – ainda que essa defesa implique fazê-lo prevalecer sobre outros interesses que eventualmente estejam envolvidos ou mesmo em oposição» (Ac. do STJ, de 16.03.2017, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo n.º 1203/12.0TMPRT-B.P1.S1).
[11] Compreende-se, por isso, que no Ac. do STJ, de 29.04.2021, Rijo Ferreira, Processo n.º 4661/16.0T8VIS-R.C1.S1, se afirme que da «natureza dos processos de jurisdição voluntária decorre um particular regime processual por modo a que o tribunal avoque a defesa do interesse que a lei lhe confia: simplificação processual, inquisitório, não sujeição a critérios de legalidade estrita (devendo antes adoptar-se em cada caso a solução mais conveniente e oportuna) e a não definitividade das resoluções (que sempre podem ser alteradas em função das circunstâncias)».
[12] No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 29.04.2021, Rijo Ferreira, Processo n.º 4661/16.0T8VIS-R.C1.S1, onde se lê que  enquanto «nos processos de jurisdição contenciosa há um conflito de interesses entre as partes que ao tribunal compete dirimir de acordo com os critérios estabelecidos no direito substantivo, nos processos de jurisdição voluntária há, diversamente, um interesse fundamental tutelado pelo direito que ao juiz cumpre regular nos termos mais convenientes e oportunos».
[13] Precisa-se, porém, que «o princípio da alterabilidade das decisões proferidas nos processos de jurisdição voluntária não tem carácter absoluto, só devendo ser aplicado quando se verifiquem circunstâncias supervenientes justificativas da modificação da anterior decisão» (Ac. da RP, de 14.09.2021, Anabela Miranda, Processo n.º 43/17.5T8ARC-K.P1).
[14] Lê-se no art.º 549.º n.º 1 do CPC que os «processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum».
[15] Neste sentido, Ac. da RP, de 21.03.2024, Manuela Machado, Processo n.º 999/13.7TMPRT-E.P1, onde se lê que, tendo «a decisão recorrida sido proferida, a promoção do Ministério Público, sem ter sido dada qualquer possibilidade à apelante de se pronunciar, e não sendo mencionada qualquer impossibilidade ou dificuldade de audição prévia da progenitora, nem qualquer situação de urgência incompatível com tal prévia audição, foi omitido um ato que a lei prescreve, o qual se afigura suscetível de influir no exame e decisão da questão a decidir nos autos, pelo que se impõe declarar nula a decisão recorrida».