RECONHECIMENTO JUDICIAL DA PATERNIDADE
EXAME HEMATOLÓGICO
RECUSA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Sumário


1- Em ação de reconhecimento judicial da paternidade, a repetida recusa, julgada injustificada, do pretenso pai a submeter-se a exames hematológicos é penalizada com a inversão do ónus da prova, em conformidade com o disposto no artigo 342º, nº 2 do Código Civil, cabendo ao mesmo a prova que não se verifica o facto em que se funda a ação: terá que provar que a autora não foi procriada por si.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Autora e Apelada: AA, em representação da sua filha menor BB
Réu e Apelante: CC,
outros Réus:  DD
Autos de: (apelação em) ação declarativa constitutiva sob a forma de processo comum.

.I- Relatório

A Autora, na qualidade de representante da sua filha, então menor, pediu que:
- se declare que o 1º Réu não é pai da menor;
- se declare que a menor é filha do 2º Réu;
- se ordene o cancelamento do registo de nascimento da menor quanto à paternidade aí estabelecida a favor do 1º Réu e
- se ordene o averbamento do registo da paternidade e avoenga paternas da menor como sendo a do 2º Réu.

Alegou, em síntese, que enquanto casada com o 1º Réu, manteve relações sexuais com o 2º Réu, durante os primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento da sua filha. Após o termino da relação com este 2º Réu, voltou novamente a coabitar com o seu marido, que, apesar de ter conhecimento que não era o pai biológico da menor, aceitou e assumiu a sua paternidade.
Pessoal e regularmente citados, nenhum dos RR apresentou contestação.
Foi realizada audiência final e proferida sentença que julgou a ação totalmente procedente, declarando que a Ré não é filha do 1º Réu, ordenando o cancelamento de tal filiação no seu registo de nascimento e declarando que a Ré é filha biológica do 2º Réu, ordenando o respetivo averbamento no seu registo de nascimento. 

 O presente recurso de apelação foi interposto pelo 2º Réu, com as seguintes
conclusões:

“I – Na posição do recorrente o mesmo alega que a decisão está assente num elemento de prova que, o recorrente entende não ser válido, sendo ele, um relatório de perícia de investigação biológica de paternidade junto aos autos, onde se concluiu que o índice de parentesco entre BB e DD é de 0%, o que permite excluir a sua paternidade e por sua vez que, permite fixar que o índice de parentesco entre a BB e o aqui recorrente é de 99,99999999%.
II - Este documento junto aos autos em sede de julgamento, trata-se de um documento cuja sua veracidade sempre se poderá por em causa.
III – Como é dito na Douta Sentença, este relatório de investigação biológica de paternidade não foi ordenado pelo tribunal, pelo que, sempre terá que ser catalogado como mero documento.
IV – Este documento não contem elementos suficientes que atestem que, os intervenientes do referido exame de investigação biológica de paternidade sejam os aqui réus DD e CC e a menor BB, uma vez que, os respectivos nomes não se encontram completos e não contém nenhum elemento de identificação, que satisfaça a correspondência dos intervenientes aos dos presentes autos.
V – A respectiva entidade que supostamente elaborou o respectivo exame, para além de não ser conhecida, por ser entidade estrangeira, salvo melhor opinião, não poderá ser vista como entidade competente para a elaboração de tal exame biológico.
VI – O documento em causa não possui qualquer certificação da entidade que o emitiu, acrescento que, o documento junto aos autos trata-se de uma mera fotocópia, inexistindo sinais de autenticidade. 
VII – Ora, face a todas as falhas que aqui se aponto, o recorrente é do entendimento que tal documento nunca poderia ser valorado, como o foi, pelo Tribunal “ a quo”
VIII – O recorrente não concorda com a valoração que foi dada a este documento, pondo inclusive em causa a sua fidedignidade do mesmo.
IX – Como se sabe constitui causa de pedir nas acções de investigação da filiação o facto jurídico da procriação biológica, e esta pode ser demonstrada de forma directa, através dos exames hematológicos ou outros métodos cientificamente comprovados, ou de forma indirecta através do recurso das presunções legais estabelecidas no artigo 1871.° do Código Civil, ou de presunções naturais ou judiciais, apelando às regras de experiência comum.
X - Extrai-se do artigo 1801 ° do Código Civil o princípio da liberdade da prova, pelo que, no âmbito do processo de investigação da filiação, sempre será, não só admissível, como até, sempre que possível, exigível, a realização de perícia de ADN, os quais face ao avanço da ciência médica e da genética constitui a forma mais fiável
 XI – Era possível nos presentes autos proceder-se a um reconhecimento judicial da  filiação da ré BB de uma forma adequada, com o recurso a uma perícia, conforme o recorrente o solicitou.
XII – Isto porque, o Tribunal “a quo” invoca que a perícia requerida nos autos, relativamente ao recorrente, não foi possível concretizar, uma vez que, este se recusou, por duas vezes, a submeter-se ao exame necessário a fazer a prova científica e pericial da paternidade de BB. 
XIII  – Acontece que, tal facto não é verdadeiro, nem nunca se poderá dar como provado da forma que o foi, que o recorrente se recusou a realizar tal prova científica e pericial da paternidade.
XIV – Nunca poderá ser aceite pelo recorrente que, o Tribunal “a quo” considere que houve recusa do mesmo em realizar o exame.
XV – Acrescendo que, também não poderá ser aceite pelo recorrente que, o Tribunal “a quo” aceite como elemento de prova documental válido, o exame médico apresentado em sede de julgamento.
XVI – Como não é aceite pelo recorrente que, a suposta recusa injustificada de sujeição a exame torna a prova a cargo da A. quase impossível, donde resulta numa inversão do ónus da prova dessa paternidade, e assim, a prova da não paternidade fica agora a cargo do R. CC, nos termos dos artigos 417º n. 2 do CPC e 344º n. 2 do CC. 
XVII - A questão cuja apreciação o recorrente aqui suscita, é de se saber se, numa ação de investigação de paternidade se pode estabelecer a presunção legal de filiação constante da alínea e) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, assente numa inversão do ónus da prova, sem que tenha havido uma recusa culposa do investigado em realizar um teste de ADN.
XVIII - A apreciação desta questão é absolutamente essencial para uma melhor aplicação do Direito, sob pena de se abrir um precedente, capaz de abalar de forma drástica a segurança jurídica, mormente, no que à inversão do ónus da prova e à aplicação da presunção de paternidade diz respeito.
XVIII - Os contornos da apreciação da verificação de uma situação de inversão do ónus da prova para efeitos da aplicação da presunção de filiação constante da alínea e) do nº 1 do artigo 1871.º do Código Civil com base na inversão do ónus da prova fundamentada num comportamento notoriamente não culposo, assume particular relevância social.
XIX -  Essa relevância social existe por se tratar de uma matéria com repercussão ou, no limite, apta a causar alarme e controvérsia, por conexão com os valores socioculturais dominantes, podendo colocar em causa a eficácia do direito e/ou criar dúvidas sobre a sua credibilidade, quer na formulação legal, quer na aplicação casuística.
XX - Esta matéria vai muito para além dos interesses individuais dos sujeitos processuais, revestindo contornos de abrangência comunitária, em que existe um interesse da comunidade que ultrapassa a referida dimensão inter partes (cfr. art. 672.º n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil).
XXI - Esta questão que integra o objeto do presente recurso é suscetível de gerar colisão com os valores sócio culturais dominantes.
XXII -  Não existindo ainda sobre a referida questão jurisprudência firmada do Supremo Tribunal de Justiça;
XXIII -  A prova produzida e dada como assente pelo Tribunal de 1ª Instância nos autos é insuficiente para determinar a procedência da presente ação, impondo-se outro julgamento da matéria de facto e de direito.
XXIV – Pois, determinando-se que, o documento correspondente a uma exame biológico de paternidade da ré EE não tem o valor jurídico que lhe foi atribuído e determinando-se que não há inversão do ónus da prova como foi determinado, não se logra provar nos autos, que o recorrente teve relações sexuais de cópula completa com a autora durante o período legal de conceção.
XXV -  Não se logrou provar nos autos que o recorrente se tenha recusado a realizar teste de ADN;
XXVI - Uma vez que, não se pode ignorar que o recorrente informou o Tribunal a quo de que, se encontrou de baixa médica e no segundo exame, o recorrente recusou a sua realização em virtude de se ter sentido coagido a fazê-lo.
XXVII - Não é legal, sendo completamente ilusório e desproporcional impor ao recorrente, após este ter manifestado ser sua vontade colaborar nos autos, a imposição de se deslocar ao Instituto de Medicina Legal através de mandados. 
XXVIII - Sendo que, não se pode considerar nunca que o Recorrente se recusou duas vezes a realizar teste de ADN;
XXIX - O Recorrente não pode ser prejudicado nos seus direitos de defesa pelo facto de ter ocorrido um erro judicial, de não terem notificado atempadamente a PSP da revogação dos mandados de condução ao Instituto de Medicina Legal.
XXX - Não estão por isso preenchidos os requisitos legais para operar uma inversão do ónus da prova constantes do nº 2 do artigo 344º do Código Civil.
XXXI - Não podendo operar, no presente caso, a presunção de paternidade constante do artigo 1871.º, nº 1, alínea e) do Código Civil uma vez que a autora não logrou fazer prova de que teve relações sexuais com o Recorrente durante o período legal de conceção.
XXXII - Estando o Tribunal a quo obrigado a aplicar a regra constante do artigo 414° do Código de Processo Civil que estabelece que, em caso de dúvida sobre a realidade de um facto, ela se terá de ser resolvida contra a parte à qual o facto aproveita (ou seja contra o Recorrido).
XXXIII - A presente ação de investigação da paternidade deveria ter sido julgada pelo Douto Tribunal a quo como improcedente, por não provada e o ora Recorrente absolvido do pedido.
XXXIV - Ainda que assim não se entendesse, o que não se concede e só por mera cautela de patrocínio aqui se invoca, sempre se teria ainda assim que concluir que:
XXXV - No caso de o Tribunal considerar o teste de ADN imprescindível para a decisão da presente ação judicial, o Tribunal a quo não esgotou todas as vias possíveis à sua realização.
XXXVI - O Tribunal a quo confrontado com a não realização dos testes de ADN e tendo em conta que se considera justificada a sua não realização, deveria ter promovido que se ordenasse ao Instituto de Medicina Legal o agendamento de novo teste, até porque, em sede de julgamento o recorrente requereu que fosse realizado novo teste.
XXXVII - Sendo que o Recorrente disponibilizou-se a realizar testes de ADN duas vezes nos autos, previamente à audiência de julgamento por escrito e posteriormente em sede de julgamento.
XXXVIII - A não realização do teste de ADN não se deveu a facto ou ação culposa do ora Recorrente.
XXXIXL - Mas à inação do Douto Tribunal a quo que não cuidou de ordenar a emissão de de novo agendamento pelo Instituto de Medicina Legal para recolha do material biológico do Recorrente e realização do teste de ADN.
XL - Não estando reunidos no presente processo os pressupostos da inversão do ónus da prova constantes do n° 2 do artigo 344° do Código Civil.
XLI -  A Douta Sentença viola o disposto nos artigos 1871º, nº 2, 342º e 344º, todos do Código Civil, bem como os artigos 412º, 414º e 417º do Código de Processo Civil. XLII - Não se aplicando no presente caso a presunção constante da alínea e) do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, porque a autora não logrou fazer prova da ocorrência de relações sexuais entre ela e o ora Recorrente no período da conceção.
XLIII -  Não subsistindo quaisquer dúvidas de que o Douto Tribunal a quo errou na interpretação e aplicação do direito, pelo urge revogar a Douta Sentença.
XLIV -  Devendo ser proferido Acórdão a julgar a ação improcedente por não provada e a absolver o Recorrente do pedido, por força do disposto nos referidos normativos.
Subsidiariamente,
XLV - Caso assim não se entenda – o que não se concede e apenas por mera cautela de patrocínio aqui se refere V. Exas. deverão ordenar a baixa do processo ao Tribunal de 1.ª Instância para que seja emitida ordem ao Instituto de Medicina Legal do Porto para o agendamento de recolha do material biológico do Recorrente. 
XLVI - Negar ao ora Recorrente a possibilidade de realizar o teste de ADN é uma violação dos seus mais elementares direitos de personalidade, mais precisamente o direito à sua identidade genética.
XLVII – Até porque nos autos não consta nenhum documento válido e fidedigno que ateste a paternidade da ré BB.
XLVIII - O direito à identidade pessoal, constitucionalmente consagrado, no artigo 26.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, inclui, além do mais, os vínculos de filiação, existindo um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da sua descendência, ou seja, da extensão familiar de cada um.
XLIL-  Tal direito fundamental do conhecimento da descendência biológica, é um direito personalíssimo e imprescindível.
L - O respeito pela verdade biológica sugere claramente a inderrogabilidade do direito de investigar.
LI - Razão pela qual tem que ser dada ao ora Recorrente a possibilidade de realizar teste de ADN, não podendo a presunção legal de paternidade ser efectuada com sacrifício da verdade biológica e da imposição ao ora Recorrente de um filho que não seja filho biológico.
LII – Até porque, determinando-se que nos autos não é legítimo determinar-se a reversão do ónus da prova e determinando-se que, o documento junto aos autos em sede de julgamento, será certo que é inviável determinar-se provada a matéria de facto que se deu como provada.
LIII – Pelo que, a Sentença que se recorre terá que ser integralmente revogada.”
 
Não foi apresentada resposta.

.II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Enunciando as questões a apreciar por ordem lógica, começando pelas que preterem o conhecimento de outras, há que verificar:
.a.- se o tribunal pode decidir do mérito da ação sem a realização de exames periciais para apurar da relação de paternidade entre a filha da autora e os Réus,
.b.- se o tribunal fundou a sua convicção na inversão do ónus da prova quando se não verificavam os seus pressupostos.
.c - se o tribunal teve em atenção na fixação da matéria de facto prova inadmissível.

.III-  Fundamentação de Facto

A seleção da matéria de facto na sentença é a que se segue.

Factos provados:

1.  No dia 29 de novembro de 2005, nasceu BB, na freguesia ..., concelho ....
2.  BB está registada como sendo filha do R. DD e AA por ter nascido na constância do matrimónio destes.
3.  AA manteve relações sexuais de cópula completa com CC nos primeiros 120 dias dos trezentos que precederam o nascimento de BB.
4. Foi destas relações que nasceu BB.
5.  CC não compareceu no dia 24/10/2023 no serviço de genética e biologia forenses para a realização do exame de paternidade, não tendo também justificado a falta, tendo sido condenado nos termos do artigo 417º do CPC.
6.  Designada nova data e conduzido o réu sob mandados ao mesmo serviço, o mesmo recusou-se a efetuar a colheita necessária à realização do exame por ter sido conduzido sob mandados.

.IV- Fundamentação de Direito

O presente recurso vem interposto da decisão que julgou verificados todos os elementos que integram a causa de pedir desta ação.
Para tanto, o Recorrente põe em causa a validade dos meios de prova utilizados pelo tribunal, afirmando que este não podia ter entendido que se verificavam os pressupostos para a inversão da prova e que se baseou num documento inválido.
Visto que o Recorrente não funda o seu inconformismo numa diferente valoração da prova sujeita à livre apreciação do tribunal, mas tão só no que entende ter sido a violação de normas que regulam a produção de prova, entende-se que não se está perante uma simples impugnação da matéria de facto, para a qual se exige o cumprimento dos ónus previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil, mas perante um recurso que apenas se funda na aplicação do Direito.
Isto posto, verifiquemos se o tribunal violou as normas relativas à produção e apreciação da prova nos termos alegados pelo Recorrente.

Da ação e os meios de prova admissíveis
Na presente ação é impugnada a filiação constante do registo, por não corresponder à verdade biológica e pretende-se a declaração da filiação da então menor ao Recorrente, como a que corresponde à verdade biológica.   
Para que a impugnação da paternidade possa proceder é mister que o Autor prove que “de acordo com as circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável”, como impõe o artigo 1839º, nº 2, do Código Civil.
As formas do estabelecimento da paternidade têm como ideal a correspondência entre a filiação legalmente estabelecida e a verdade biológica (sem prejuízo de se poder entender que existe alguma mitigação da mesma com a tutela de outros interesses nas ações relativas a esta matéria, como a estabilidade e preservação da família constituída), pelo que não se restringem os elementos probatórios que podem ser produzidos, desde que legalmente admissíveis no nosso sistema jurídico. Entre estes meios admissíveis, salientam-se os exames de sangue e quaisquer outros métodos cientificamente comprovados (artigo 1801º do Código Civil), por um lado e por outro, permite-se a ilisão das presunções de paternidade através da simples contraprova e não, como é comum nas presunções meramente iuris tantum, mediante a prova do contrário (artigo s 350 nº 2, 1801 e 1871 nºs 1 e 2 do Código Civil).
A causa de pedir na ação de reconhecimento judicial da paternidade consiste na relação de procriação biológica ou geração. O ónus da prova dessa relação compete ao investigante.
Este pode efetuar tal prova direta ou indiretamente, pelo recurso a presunções legais, embora estas cedam mediante contraprova.
Se a parte contrária tiver, culposamente, tornado impossível a prova do onerado também se pode inverter este ónus (artigo 344 nºs 1 e 2 do Código Civil).
É certo que hoje os exames hematológicos e os testes de ADN são a prova rainha das ações de reconhecimento da paternidade e já não se aceita que se possa considerar que não incide sobre o investigado o dever de se submeter aos mesmos em defesa da sua integridade pessoal, nem da reserva da intimidade da vida privada e familiar. (cf, por demonstrativo, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05/09/2019, no processo 6554/15.0T8MAI.P1).
Mas tal não significa que não se possa realizar a prova da procriação por qualquer outro meio, nomeadamente através do recurso às presunções previstas no artigo 1871º do Código Civil.
A previsão inserida na alínea e) do n.º 1 do artigo 1871º do Código Civil, através da Lei n.º 21/98, de 12 de maio, pela sua abrangência, tem aqui particular importância: para se presumir a paternidade basta que se demonstre que o pretenso pai manteve relações sexuais com a mãe do investigante durante o período legal da conceção (sem que se levantem dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado).
Com efeito, as presunções legais de paternidade aproximam-se muito das presunções naturais ou judiciais, sendo “presunções fracas”: consideram-se ilididas quando existam dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado, como dispõe o nº 2 do artigo 1871º do Código Civil.
Esta presunção não é injusta para o investigado, dado que este pode ilidi-la facilmente pelo recurso à prova científica e “constitui, além, disso, um expediente apto à desmotivação da falta de comparência, sob os mais variados pretextos, aos exames: presumindo-se a paternidade, com a correspondente inversão do ónus da prova, o investigado sentir-se-á, decerto, estimulado em colaborar na realização da perícia em vez de - como é aliás, comum - com recurso aos mais diversos pretextos, frustrar ou inviabilizar a produção dessa prova.”, como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo  171/10.8TBSAT.C1, em  09/10/2013.

.1.Da inversão do ónus da prova
As partes estão vinculadas a um especial dever de cooperação para a justa composição do litígio, como decorre do artigo 417º nº 1 do Código de Processo Civil, que impõe o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade a todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, devendo responder ao que lhes for perguntado, submeter-se às inspeções necessárias, facultar o que for requisitado e praticar os atos que forem determinados. A violação deste dever é sancionado com multa (sejam ou não partes).
Acresce que o tribunal aprecia livremente o valor da recusa das partes que recusam a colaboração forem partes.
Se, além disso, com tal recusa a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, ocorrerá a inversão do ónus da prova. Para que ocorra esta inversão a lei é terminante na exigência que a contraparte tenha tornado impossível a prova pelo onerado. Entende-se que esta “impossibilidade” abrange a grave dificuldade na prova, que a torne, na prática, de uma dificuldade elevada ou grave. Com efeito, “o regime previsto no art. 344º, nº 2, "não pressupõe que o único meio de prova idóneo para a demonstração de determinado facto seja o inviabilizado pela conduta culposa da parte. Basta que se trate de meio de prova de especial relevância, isto é, que só por si fosse idóneo para garantir a procedência da acção". (cf Freitas Rangel in O Ónus da Prova no Processo Civil, 301)
 A livre valoração da recusa é diferente da inversão do ónus da prova, mantendo-se no primeiro caso a parte onerada com a prova do facto e perdendo-a no segundo, transferindo-se para a contraparte o ónus da prova da não verificação do facto.
Tem sido entendimento da jurisprudência que, porque os  exames genéticos constituem hoje prova plena do ponto de vista científico da paternidade, se o pretenso pai  culposamente impede a respetiva realização, recusando, sem justificação atendível, submeter-se a eles, assim impedindo a descoberta da verdade por uma forma direta, cai na previsão do n.º 2 do art.º 344.º do Código Civil  (cf neste sentido, entre outros, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no processo 737/13.4TBMDL.G1.S1, de 03/10/2017, com ampla jurisprudência e doutrina)
Atenta a natureza do facto a provar, dúvidas não há que o método por excelência para a sua prova será através do recurso à ciência, com exames, sendo, portanto, estes capitais para a determinação da filiação biológica (sendo todos os demais meios de prova aproximativos, por presunções, indiretos). Desta forma, ao impossibilitar a realização da prova pericial o pretenso pai impede a prova direta do facto, preenchendo-se, pois, a previsão do n.º 2 do artigo 344º do Código Civil.
A repetida recusa do pretenso pai em submeter a exames hematológicos, consideradas judicialmente injustificadas, terão que ser penalizadas com a inversão do ónus da prova em conformidade com o disposto no artigo 342º, nº 2 do Código Civil, cabendo ao mesmo a prova que não se verifica o facto em que se funda a ação: terá que provar que a autora não foi procriada por si.

concretização
A motivação da sentença para justificar a demonstração dos factos não registais dados como provados (pontos 1 e 2 da matéria de facto) referiu: o relatório de perícia de investigação biológica de paternidade junto aos autos, as declarações de parte da Autora e o depoimento do 2º réu. Mais mencionou que tal relatório não constitui prova pericial por não ter sido ordenada pelo tribunal, mas que lhe confere o valor de documento. Por fim, afirmou que mesmo que nada disso valesse, a recusa injustificada do 2º Réu à sujeição a exame tornou a prova a cargo da Autora quase impossível, e concluiu pela inversão do ónus da prova dessa paternidade, nos termos dos artigos 417º n. 2 do Código de Processo Civil e 344º nº 2 do Código Civil.
Ora, basta ter ocorrido a inversão do ónus da prova para que se torne desnecessário averiguar da validade dos demais meios de prova produzidos, porquanto não foi produzida qualquer contraprova da relação de procriação do 2º Réu.

Da recusa à submissão aos exames e inversão do ónus da prova;
Verifiquemos, pois, antes de mais, se, como invoca o Recorrente, não se recusou a submeter a exames hematológicos sem justificação atendível. Pretende que o ter sido conduzido sob mandados que haviam sido dados sem efeito justifica que se recuse à colheita necessária à realização do exame. Entende que tais mandados não deviam ter sido cumpridos, porquanto não havia faltado injustificadamente ao primeiro exame.
No entanto, a razão que apresenta não tem a virtualidade de justificar a recusa em efetuar a colheita, visto que o facto de ter sido conduzido ao local por entidades policiais não contendia de forma alguma com a possibilidade de permitir a recolha de sangue. O modo como chegou ao local do exame não o impedia ou dificultava que permitisse que os técnicos efetuassem a competente recolha de sangue, pelo que essa factualidade não tem a virtualidade de permitir que o Recorrente falte ao dever de colaboração com a justiça que sobre si impendia.
O mesmo funda tal recusa no facto de se sentir vexado, mas esse sentimento não tem qualquer relação com a recolha de sangue, pelo que tal recusa nunca poderia ser justificada por não ter ido livremente ao local do exame, mas escoltado por agentes da PSP.
Assim, independentemente da validade dos mandados de condução, a recusa do interveniente, já no local, em permitir a colheita de amostras biológicas mostra-se injustificada.
Com efeito, mesmo que se considere que o Recorrente foi indevidamente conduzido ao local da colheita (não tendo ido pelos seus meios, mas conduzido pela autoridade policial) não impossibilitava, nem dificultava, nem de qualquer outra forma contendia com a manutenção do seu dever, o qual devia e podia cumprir.
Do exposto resulta que a justificação apresentada pelo Recorrente não retira a culpa na sua recusa em submeter-se aos exames.
O mesmo afirma igualmente que a primeira vez que faltou aos exames (em 24 de outubro de 2023) se fundou na impossibilidade de se deslocar por razões médicas, mas não apresentou tempestivamente atestado médico. O requerimento que apresentou, já fora de prazo, vinha acompanhado de atestado médico que não inculcava que estivesse impedido de se deslocar, como foi decidido, por despacho transitado de 31-10-2023, que o condenou em multa pela falta injustificada.
Acresce que o mesmo em requerimento de 30-11-2023 vem afirmar que “a sua recusa actual do Réu/ora Requerente em realizar o teste de ADN no âmbito destes autos, se prende com o facto de entender que este teste volvidos todos estes anos é uma clara intromissão da sua vida privada, operada por quem geriu a seu belo prazer e em claro abuso de direito a possibilidade de interpor uma ação judicial, e além do mais fere de forma profunda as suas convicções religiosas”.
Não apresenta agora, nas alegações e conclusões de recurso, estas razões para se recusar ao exame, antes afirma pretender fazê-lo.
No entanto, é já tardia a apresentação da sua pretensão: como é sabido em processo civil, tendo em conta a segurança jurídica, existem tempos e modos para o exercício de direitos processuais, entre os quais a apresentação de requerimentos probatórios e a produção de prova.
Ora, o comportamento do Recorrente determinou por duas vezes que se tornasse impossível a realização da prova pericial, sem que tenha sido apresentada alguma razão que pudesse de forma cabal justificar a sua falta de colaboração na obtenção desse meio.
Não é possível continuar a arrastar os autos para a produção de um meio de prova que o Recorrente impediu que fosse obtida por duas vezes, injustificadamente.
Assim, o Recorrente não podia pretender que se viesse a retomar fase processual anterior, tornando a tentar-se a realização da perícia, depois de ter obstado à produção de prova pericial e depois de iniciada a audiência final, já depois de decorridos todos os prazos para a apresentação de novos meios de prova.
Por outro lado, como vimos, a sua falta injustificada ao 1º exame marcado e a recusa, também injustificada, em permitir a obtenção de amostra para o 2º exame marcado impossibilitaram que obtenção dessa prova (não obstante, agora, em sede de recurso venha afirmar pretendê-la), determinou a inversão do ónus da prova.
Tanto bastaria para que a ação procedesse, visto que não foi apresentada qualquer elemento probatório que infirmasse a relação de procriação entre o 2º Réu e a Autora, tornando desnecessária a apreciação da validade do documento.

.2- validade do documento
Não obstante, sempre se dirá que o Recorrente pretende que se não considere válido o documento apresentado, mas carece de razão: o documento apresenta-se como um relatório de perícia de investigação biológica de paternidade efetuado em condições que se desconhecem.
Para afastar a sua relevância, o Recorrente afirma que os nomes das partes não estão completos, nem os mesmos identificados por outro elemento, tal como é desconhecida a entidade, estrangeira, que o terá elaborado e o mesmo não está autenticado. Nenhuma destas omissões põe em causa a validade do documento; pode, porventura, diminuir o convencimento da veracidade material do mesmo, mas como vimos não é possível aqui discutir a bondade da livre convicção exercida pelo julgador da primeira instância, por não ter sido impugnada a matéria de facto com observância dos ónus impostos no artigo 640º do Código de Processo Civil.
 Como vimos, neste recurso apenas se pode discutir a legalidade da prova apresentada, não se o juízo relativo à sua livre valoração, visto que não foram postos em causa os concretos factos dados como provados e cumpridos os demais ónus previstos no artigo 640º nº 1 do Código de Processo Civil.
De qualquer forma, não se pode dizer que a decisão está assente nesse documento, quando refere um conjunto de outros meios de prova sujeitos, também, à livre apreciação do tribunal, entre as quais as declarações da mãe da então menor.
De qualquer modo, cabia ao Réu a prova de que a menor não foi procriada por si, em virtude de ter inviabilizado com o seu comportamento a prova direta desse facto ou, pelo menos, a contraprova desse facto, visto que se provou, o que não foi impugnado neste recurso, que a mãe da autora manteve relações sexuais de cópula completa com o 2º réu nos primeiros 120 dias dos trezentos que precederam o seu nascimento, mostrando-se preenchida a previsão da presunção estipulada no artigo 1871º, nº 1, alínea e), do Código Civil.

 Em resumo:
Não foi possível realizar a perícia requerida nos autos, relativamente ao recorrente, uma vez que, este se recusou, por duas vezes, a submeter-se ao exame necessário a fazer a prova científica e pericial da paternidade, o que invalida a baixa do processo ao Tribunal de 1.ª Instância para que seja emitida ordem ao Instituto de Medicina Legal do Porto para o agendamento de recolha do material biológico do Recorrente, com base numa tardia alteração de posição processual do Recorrente, já depois de terminada a fase para requerer tal prova;
Não foi negada ao Recorrente a possibilidade de realizar o teste de ADN, o que ocorreu é que o mesmo se negou a realizá-la por duas vezes na fase processual a tanto destinada;
Também não foi erroneamente determinada a inversão do ónus da prova, porquanto esta se baseou na repetida recusa injustificada do Recorrente em submeter-se aos exames necessários para a prova direta da matéria dos autos, nos termos do artigo 344º, nº 2 do Código Civil;
Por fim, não foi admitida prova inválida, nem valorado documento que não podia ser atendido nos autos, por nada impedir a sua admissão e sujeição à livre apreciação do tribunal, com vista à formação da sua convicção.
Há que confirmar a sentença proferida.

.V- Decisão:

Por todo o exposto, julga-se a apelação improcedente e em consequência mantém-se a decisão recorrida.
Custas pela pelo Recorrente (artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil)

Guimarães, 03-10-2024

Sandra Melo
Elisabete Coelho de Moura Alves
Conceição Sampaio