IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
INCUMPRIMENTO DO ÓNUS
JANELAS E ABERTURAS
SERVIDÃO DE VISTAS
Sumário


- Improcede, por falta de sustento e cumprimento dos ónus previstos no art. 640º, do C.P.C., a impugnação da decisão da matéria de facto motivada pela apelante, com prejuízo para a revisão do mérito da sentença com base nesse fundamento.
- São irregulares e inadmissíveis as aberturas, com 1,76 metros de largura e 1,08 metros de altura, que distam 80 centímetros do solo, instaladas na parede que deita imediatamente para o prédio vizinho e onde foi colocada caixilharia em alumínio, com um vidro transparente e outro que deixa passar a luz (fosco), mas através do qual, em ambos os sentidos, que possibilita a entrada de luz e a visualização de vultos (em graus diversos, conforme estejam mais próximos ou longínquos da janela irregular, sendo possível identificar cores, formas e objectos) de um lado para o outro.
- Essas aberturas não se subsumem à previsão excepcional do art. 1363º, do Código Civil, e não deixam de potenciar alguma devassa visual do prédio vizinho que viola o seu direito de gozo pleno, estabelecido no citado art. 1305º, do Código Civil, ou seja, pode este vizinho devassado exigir a sua eliminação.

Texto Integral


Rel. – Des. José Manuel Flores
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º - Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves

Recorrente(s): AA;

Recorrido(s): BB.           

*
Acordam os Juízes na 3ª Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. RELATÓRIO

BB, por si e em representação da Herança Aberta por óbito de CC, intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, na qual peticiona a condenação desta no seguinte:

a) a proceder à demolição, em toda a sua extensão, da parede que estabelece a estrema norte do seu prédio relativamente aos prédios da autora, na parte que ultrapasse a altura de 75 cm acima da cota do solo dos prédios da Autora, ou, caso assim o Tribunal não entenda e em alternativa, a proceder ao fecho/emparedamento das janelas construídas na indicada parede, de forma a impedir as vistas para o prédio da autora;
c) a proceder à remoção das chapas em zinco colocadas a norte do seu prédio e que fazem a condução das águas pluviais vindas do telhado em direcção ao interior dos prédios da autora ou, caso o Tribunal assim não entenda e em alternativa, a colocação de um caleiro que impeça a escorrência da água para o interior dos prédios da autora;
d) a proceder à demolição da chaminé, em chapa inox, construída a norte do prédio da Ré identificada no art. 44º do presente articulado;
e) a proceder ao fecho de todos e quaisquer tubos ou aberturas na parede divisória de escoamento de águas pluviais provindas do prédio da Ré em direcção aos prédios da Autora;
f) no pagamento da quantia de 30,00 € (trinta euros) a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia de atraso na realização das obras, contado da data do trânsito em julgado da decisão dos presentes autos; e
g) no pagamento de uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos até à presente data decorrentes da limitação do seu direito de propriedade, num valor a fixar pelo Tribunal, mas, ainda assim, em quantia nunca inferior a 3 000,00 € (três mil euros), a que deverá acrescer uma taxa diária nunca inferior a 25,00 € (vinte e cinco euros) por cada dia de atraso na realização daquelas obras, contado desde a citação da presente acção até à conclusão das obras.

A Ré, citada, apresentou contestação, na qual pugnou pela ilegitimidade activa da autora, bem como pela improcedência da acção e, por conseguinte, sua absolvição.
Foi a Autora convidada a suprir a excepção de ilegitimidade processual activa, fazendo intervir nos autos os demais herdeiros do falecido CC, o que aquela fez, tendo sido chamados DD, EE e FF, sendo que estes apresentaram declaração a aderir aos articulados oferecidos pela autora.
Procedeu-se ao julgamento após foi aferido que os presentes autos têm como objecto imóvel de AA e GG, em virtude de ter sido adquirido enquanto casados no regime de comunhão de adquiridos (entretanto, divorciados, sendo que, todavia, o mesmo não foi, ainda, partilhado, encontrando-se, desta feita, integrado no património comum do ex-casal).
Verificada a ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário, foram as partes notificadas para sobre tal aspecto se pronunciarem e, eventualmente, pedindo a intervenção provocada de GG para se associar à Ré nos presentes autos, o que fizeram, sendo que aquele, citado, nada disse, pelo que nada impede de, face ao estado dos autos, proferir decisão.

A final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, tudo ponderado de facto e de Direito, julgar parcialmente procedente a presente acção e, por via disso:
A )condenar a Réus AA e GG a preceder ao fecho das janelas irregulares referidas no ponto 7 e 9 a 13 dos factos provados;
b) condenar os Réus AA e GG na realização de obras que impeçam a condução e gotejamento das águas pluviais vindas do telhado para o interior dos prédios da autora, referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados;
c) absolver os Réus AA e GG do demais peticionado pelos Autores BB, EE e FF; e
d) condenar na responsabilidade pelas custas:
a. os Autores BB, DD, EE e FF na proporção de 60%; e
b. os Réus AA e GG na proporção de 40%.”

Inconformada com esta decisão, a Ré recorreu, formulando as seguintes
Conclusões

1º - A Recorrente não se conforma, totalmente, com a douta decisão proferida e que aqui damos por reproduzida, pois não se decidiu bem, não só porque a mesma não reflecte todos os termos das questões que foram colocadas ao M§ Juiz, mas sobretudo porque há errónea interpretação dos factos e inadequada aplicação do direito, salvo o devido respeito por opinião contrária.
 
2º - O fundamento específico de recorribilidade, nos termos do artigo 637º n.º 2 do C.P.C. é o seguinte:
- Se a aqui Recorrente viola direitos reais e de personalidade dos Autores com as obras por si realizadas.
 3º - O presente recurso versa sobre matéria de facto e de direito sendo de sublinhar o seguinte:
1º- Toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento foi gravada;
2º- O tribunal valorou e apreciou de forma incorreta a prova, nomeadamente:
 - os depoimentos de  HH E II, depoimentos gravados no sistema digital Habilus, atinente aos presentes autos de processo n.º 1668/21.... do Juízo Local Cível de ... – Juiz ...;
 - O relatório pericial junto aos autos a fls. e ss. dos presentes autos.
 4º - É quanto ao 2º ponto atrás descrito que começa a discordância da Recorrente quanto à apreciação da prova feita pelo Tribunal “a quo” e salvo melhor opinião, é nosso humilde entendimento que o seguinte ponto de facto consideramos incorretamente julgado, havendo violação do princípio de liberdade do julgamento nos termos do disposto nos artigos 640, n.º 1 al. a) do CPC:
- Pontos 13 da matéria de facto dos factos provados, que deve ser alterado e ser considerado como não provado o trecho seguinte: “ (…) e outro que deixa passar a luz, mas através do qual, em ambos os sentidos, se vêem vultos desfocados de pessoas, de objectos e/ou outros.” 
 5º - O douto tribunal recorrido concluiu que, sendo possível verificar vultos e formas nas aberturas do muro edificado pela Recorrente, do lado da propriedade dos Apelados para a propriedade desta, que o inverso também sucede. Acontece que, é nesta apreciação que reside a nossa discordância com a posição vertida pelo douto tribunal “ a quo”, uma vez que, em nenhum momento resulta do referido relatório de verificação e das fotografias juntas, a possibilidade de visualização de sombras, vultos ou objectos da propriedade da aqui recorrente para a propriedade dos Apelados.
 6º - Na verdade, os registos fotográficos juntos pelos Apelados, nomeadamente as fotografias identificadas como docs. n.º 8 a 10, juntas com a p.i. não permitem ver qualquer vulto, objecto ou pessoa da propriedade da Recorrente para a propriedade dos Autores, pelo que, o raciocínio indutivo é o seguinte: que não é possível vislumbrar vultos, pessoas e objectos da propriedade da Recorrente para a propriedade dos Apelados.
 7º - O outro meio de prova que confirma o avançado na supra conclusão 6º, é o relatório de verificação não judicial qualificada de fls. 100 a 103v., que é novo meio de prova, autónomo e diferenciado e que situa-se entre a prova pericial e a prova testemunhal, representando um misto dos dois , mas que devido ao facto de ser realizado perante um perito com conhecimentos específicos, onde efectua o devido compromisso de honra e procede à elaboração de relatório, induz-nos a afirmar que este meio de prova aproxima-se bastante da prova pericial e por isso, presume-se subtraído à livre apreciação do mesmo.
 8º - Assim sendo, por força deste relatório de verificação, o perito, que prestou compromisso de honra e é um técnico especialista na área, referiu que os vidros que existem nas aberturas são duplos, compostos por um vidro transparente e outro fosco. – cfr. pág. 5 do relatório de fls. 100 a 103v.
 9º - Ao arrepio do constatado pelo perito, o douto tribunal recorrido referiu que um dos vidros duplos deixa passar luz, ao invés de expressar que é fosco, o que não podemos admitir e por isso, deve ser alterado o ponto 13 dos factos dados como provados, no sentido de invocar que um vidro é transparente e o outro é fosco.
 10º - Acresce ainda que, o próprio relatório contém fotografias – quer do lado exterior, quer do lado interior – e a verdade é que, do lado interior, isto é, na propriedade da Recorrente, em nenhum momento é perceptível a possibilidade de visionamento de pessoas, vultos e objectos.
 11º- Pelo que, a assunção na sentença agora colocada em crise é meramente um juízo valorativo, que não assenta na prova produzida, mas em conjecturas e conclusões subjectivas. Ora, as conclusões subjectivas, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova e nessa medida, as afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão.  –  cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 05.06.2023, in http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/fde7b31f803de0788025
12º - Pelo que, a afirmação constante no ponto 13 é uma conclusão subjectiva que deve ser eliminada do citado ponto 13, nos termos supra expostos.
 14º - Além disso, a adicionar à prova documental, temos prova testemunhal que confirma a impossibilidade de visualização de pessoas, vultos e bens na propriedade dos Apelados. Assim, atente-se aos seguintes depoimentos:
  - Depoimento de HH, gravado no sistema digital Habilus, atinente aos presentes autos de processo n.º 1668/21.... do Juízo Local Cível de ... – Juiz ..., datado de  30.01.2023, com inicio às 11: 41 e termo às 11:59 e duração de 17m:52s, sendo que de seguida indicamos os minutos de inicio e de termo da gravação, dando como reproduzidas aqui as transcrições efectuadas no corpo das alegações:  Inicio Minuto 4:18 - Termo minuto 4:32; Inicio Minuto 6:28 - Termo Minuto 6:36;  Inicio Minuto 7:16 - Termo Minuto 8:23
 - Depoimento de II, depoimento gravado no sistema digital Habilus, atinente aos presentes autos de processo n.º 1668/21.... do Juízo Local Cível de ... – Juiz ..., datado de 30.01.2023, com início às 12: 08 e termo às 12:33 e duração de 24m:57s, sendo que de seguida indicamos os minutos de inicio e de termo da gravação, dando como reproduzidas aqui as transcrições efectuadas no corpo das alegações: Inicio Minuto 6:03 - Termo Minuto 06:35;Inicio Minuto 06:54 - Termo Minuto 07:16 
15º - Ambos os depoimentos demonstram à saciedade que não é possível visualizar do terreno da Recorrente para o terreno dos Apelados.
  16º - Perante isto, por força dos artigos 341º e 342º n.º 1 do C.C., competia aos Apelados fazer prova dos factos que alegaram, o que não conseguiram fazer. E por isso, o ponto 13 deve ser alterado, no sentido de passar a ter a seguinte redacção:
“ 13. - Nas aberturas referidas no ponto 12 dos factos provados foram colocadas caixilharia em alumínio, sem empenas e lacadas a branco, onde foi colocados, em cada uma, um vidro transparente e outro fosco.”
17º - O restante texto do facto provado n.º 13 deve passar para o elenco dos factos não provados e por isso, ser adicionado uma nova alínea que indique como não provado o seguinte:
“E que deixa passar a luz, mas através do qual, em ambos os sentidos, se vêem vultos desfocados de pessoas, de objectos e/ou de outros.”
 18º - Com a alteração da matéria de facto, e mesmo que a mesma não seja considerada, também a aplicação do direito aos factos dados como provados padece de uma incorrecta apreciação e aplicação, na nossa humilde opinião.
             
19º - Assumimos que a questão crucial neste ponto prende-se com a classificação jurídica das aberturas constantes do muro construído e que na nossa humilde opinião, são parte integrante do mesmo, apesar do artigo 1360 n.º 1 do C.C. não define o que seja uma "janela".
20º - Contudo, o conceito desta é-nos dado por exclusão de partes, com base no disposto no artigo 1363, o qual caracteriza as aberturas de tolerância, ou seja, as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar - estas, com as reduzidas dimensões e os efeitos que lhes são peculiares, destinar-se-ão apenas a permitir a entrada da luz e do ar - ao passo que as janelas têm uma função mais ampla - estas, sendo aberturas maiores que aquelas, além de permitirem a entrada da luz e do ar, também possibilitam as vistas e a saída de objectos com ocupação e devassamento do prédio vizinho; assim sendo, são de considerar janelas todas as aberturas na parede que não possam considerar-se frestas, seteiras ou óculos para a luz e ar e, claro está, maiores que estas últimas (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Volume III, segunda edição, 223; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Boletim do Ministério da Justiça 203; 169; acórdão da Relação do Porto, Colectânea de Jurisprudência , 1988, T1, 198).
 21º - As aberturas existentes no muro aqui em discussão, são estruturas fixas e não amovíveis, não sendo possível abri-las e deitar vistas sobre o prédio dos Autores, com a possibilidade dos Réus debruçarem-se na mesma e olharem para a direita, esquerda, para cima e para baixo, e até arremessarem objectos ou poderem transpô-las e introduzirem-se na propriedade dos Apelados e por isso, na nossa humilde opinião, são parte integrante da parede do edifício, logo, não são de modo algum janelas. 
 22º - À conclusão supra evidenciada acresce um outro argumento, reconhecido, de forma implícita na sentença agora colocada em crise, pois a mesma reconhece que estas aberturas não são idóneas a apreciar as vistas sobre o prédio vizinho ou a conversar, e por isso, não permitem a visibilidade para o prédio vizinho e, sendo assim, não se viola o objectivo ou um dos objectivos que o artigo 1360 n.1 do Código Civil pretende atingir.
 23º- E mesmo que haja possibilidade de visualizar vultos, a verdade é que o ónus da prova de que essas aberturas permitiam a visibilidade para o prédio vizinho caberá aos Autores (artigo 342 n. 1 do Código Civil), o que não conseguiram,e por isso forçoso é concluir contra ela, ou seja, concluir que tais vãos não permitem a visibilidade sobre o prédio vizinho.
 24º- Em suma, para nós o objectivo da lei foi atingir uma dupla finalidade, senão completamente e de modo absoluto pelo menos em parte, ou seja, evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto tanto das vistas como do devassamento como o arremesso ou quer de objecto, facilidade esta que, contudo só ocorrerá quando as provas tenham a possibilidade física de ocupar ou invadir o prédio vizinho para além da linha divisória e, em tal posição, ver ou arremessar ou deixar cair objectos.
 25º- Ora isto é coisa que manifestamente não poderá ocorrer neste caso, dada a fixidez, e permanência das aberturas, a fazer parte da parede do prédio dos Réus, parede que não tem soluções de continuidade, e bem assim a não visibilidade a partir das mesmas., algo que encontramos presente no sumário do Ac. TRC, de 11-10-2017, proc. 107/15.0T8MBR.C1 transcrito no corpo das alegações e que aqui damos como reproduzido e constante no seguinte link:  www.dgsi.pt 
 26º - Assim sendo, as aberturas em questão não podem ser consideradas janelas e por isso, não estão limitadas as restrições do artigo 1360º do C.C., porque estamos na presença de frestas irregulares, as quais são toleradas e nessa medida, a Recorrente teria que ser absolvida do pedido de condenação de fecho das aberturas referidas nos pontos 7 e 9 a 13 dos factos dados como provados.
 27º - Mas mesmo que assim não se entenda, é nosso humilde entendimento que a douta sentença recorrida padece de grave vício de insuficiência da matéria para dar uma resposta cabal e necessária à questão da possibilidade de visibilidade da propriedade da Ré para a propriedade dos Autores.
 28º - Vício que inquina toda a decisão “a quo” e por isso, nos termos do artigo 662º n.º 2 al. c) do C.P.C., tem a mesma que ser revogada e proceder-se à ampliação da matéria de facto para apurar a matéria fáctica que permita apurar se realmente há devassa da propriedade dos Autores.
 29º - Por tudo o supra exposto, voltamos a reiterar que considera-se o seguinte ponto de facto incorretamente julgados, havendo violação do princípio de liberdade do julgamento nos termos do disposto nos artigos 640, n.º 1 al. a)  do CPC:
- Ponto da matéria de facto dos factos provados, que deve ser alterado e ser considerado como não provado o trecho seguinte: “ (…) e outro que deixa passar a luz, mas através do qual, em ambos os sentidos, se vêem vultos desfocados de pessoas, de objectos e/ou outros.” 
 
30º - E em consequência do supra exposto, deve a sentença colocada em crise ser revogada e alterada nos termos supra exposto, com a consequente absolvição da Apelante nos termos supra expostos, tendo sido violadas as disposições legais constantes dos seguintes artigos: Artigo 640º, n.º 1 al. a) do C.P.C., artigos 341º, 342º, n.º 1, 1360º e 1363º todos do C.C..
 Pelo que, decidindo conforme o alegado nas doutas conclusões,…

A Recorrida BB respondeu ao recurso, culminando as suas alegações com pedido da sua improcedência.

2. QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas[2] que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[3]
As questões enunciadas pelo/a(s) recorrente(s) podem sintetizar-se da seguinte forma:
- Saber se ocorreu erro no julgamento da matéria de facto e, em caso afirmativo, se a Recorrente deve ser absolvida do pedido de condenação de fecho das aberturas referidas nos pontos 7 e 9 a 13 dos factos dados como provados.
- Saber se há necessidade de ampliar a matéria de facto para conhecer dessa matéria;
- Saber se a sentença recorrida fez incorrecta interpretação e aplicação dos artigos 341º, 342º, n.º 1, 1360º e 1363º todos do C.C..

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO JULGADA

Nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil,
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No que toca à especificação dos meios probatórios - «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).

Como refere Abrantes Geraldes[4], sendo certo que actualmente a possibilidade de alteração da matéria de facto é agora assumida como função normal da Relação, verificados que sejam os requisitos que a lei consagra, certo é que nessa operação “foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislado optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.
De acordo com este mesmo autor e Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, em síntese, o sistema actual de apelação que envolva a impugnação sobre a matéria de facto exige ao impugnante, o seguinte:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenha sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos[5];
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considera oportunos; (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos[6], exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos e pendor genérico e inconsequente;(…).

Sublinha ainda o mesmo autor que não existe, quanto ao recurso da matéria de facto despacho de aperfeiçoamento.
Tendo em mente esta exigência do dispositivo do citado art. 640º, entende ainda Abrantes Geraldes que, mediante uma apreciação rigorosa, decorrente do princípio da auto-responsabilidade das partes[7], sempre com respeito do princípio da proporcionalidade, da letra e espírito da lei, “a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: A falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (cf. arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b)); Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a)); Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g., documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc); Falta de indicação exacta, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente cada segmento da impugnação.”
Sobre esta última exigência temos seguido posição, em consonância com o que tem sido a evolução da jurisprudência deste Tribunal da Relação de Guimarães e de outros tribunais de recurso, que, como ficou dito em Ac. de 19.11.2020[8], por nós subscrito, é a seguinte: “Em síntese, as conclusões têm a importante função de definir e delimitar o objecto do recurso e, desta forma, circunscrever o campo de intervenção do tribunal superior encarregado do julgamento.
Deste modo, sendo a impugnação de matéria de facto uma autêntica questão fundamental, susceptível de conduzir a decisão diferente, deve ela ser incluída nas conclusões das alegações, de forma sintética mas obviamente com indicação expressa e precisa dos pontos de facto impugnados e com as correspondentes conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio.[9]
Essa leitura veio entretanto a ser mitigada com o Ac. uniformizador de jurisprudência proferido pelo S.T.J., em , no qual ficou dito que, sic: “O recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, cumpre o ónus constante do nº 1, c), do art. 640º, se a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, constar das conclusões, mas também da leitura articulada destas últimas com a motivação do vertido na globalidade das alegações, e mesmo na sequência do aludido, apenas do corpo das alegações, desde que, do modo realizado, não se suscitem quaisquer dúvidas.
Ficou por isso expressa uniformização de jurisprudência nos seguintes termos: Nos termos da alínea c), do nº 1, do artigo 640º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.

Além disso, como já acima se foi adiantando e afirma Ana Geraldes, in “Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto”,:
« (…) tal como se impõe que o Tribunal faça a análise crítica das provas (de todas as provas que se tenham revelado decisivas), (…), também o recorrente, ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos.
Como é sabido, a prova de um facto não resulta, regra geral, de um só depoimento ou parte dele, mas da conjugação de todos os meios de prova carreados para os autos.
E ainda que não existam obstáculos formais a que um determinado facto seja julgado provado pelo Tribunal mediante o recurso a um único depoimento a que seja atribuída suficiente credibilidade, não deve perder-se de vista a falibilidade da prova testemunhal quotidianamente comprovada pela existência de depoimentos testemunhais imprecisos, contraditórios ou, mais grave ainda, afectados por perjúrio.
Neste contexto, é facilmente compreensível que se reclame da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorrectamente julgados, ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado.
Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, às restantes provas, v.g., documentais, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada.”

Por sua vez, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.2.2012, Abrantes Geraldes, 1858/06[10], afirmou-se, relativamente ao regime semelhante do art. 690ºA, do Código de Processo Civil revogado, que:
 «Insurgindo-se contra uma decisão fundada em determinados meios de prova que ficaram concretizados na motivação, era suposto que se aprimorasse na enunciação dos reais motivos da sua discordância traduzidos na análise crítica (e séria) da prova produzida e não na genérica discordância quanto ao facto de o tribunal de 1ª instância ter dado mais relevo a umas testemunhas do que a outras. Ónus esse que deveria passar pela análise conjugada dos diversos meios de prova, relevando os que foram oralmente produzidos e os de outra natureza constantes dos autos.
Em face de tantas e tão graves distorções em relação aos trâmites impostos pela lei, não seria exigível que a Relação desse seguimento à referida pretensão genérica, justificando-se a rejeição do recurso na parte respeitante à decisão da matéria de facto.
Com efeito, o regime legal instituído não acolhe de forma alguma a impugnação genérica e imotivada de todos os pontos inscritos na base instrutória, do mesmo modo que se afastou de um modelo alternativo que impusesse à Relação a realização de um segundo julgamento. O que está subjacente ao regime vigente é a impugnação especificada e motivada dos pontos relativamente aos quais existe discordância, levando a que a Relação repondere a decisão que foi tomada sobre determinados pontos de facto, servindo-se dos meios de prova que se mostram acessíveis.
Resulta deste excurso pela doutrina e jurisprudência que o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida não é observado quando o apelante: (i) se insurge genericamente quanto à convicção formada pelo tribunal a quo; (ii) se limita a sinalizar que existe um meio de prova, v.g., testemunha, que diverge dos factos tidos como provados pelo tribunal a quo, pretendendo arrimar – sem mais – nesse meio de prova uma decisão de facto diversa da expressa pelo tribunal a quo.
Com efeito, o tribunal de primeira instância – no âmbito do contexto de justificação – elabora uma motivação-documento em que explicita as razões que permitem, ou não, aceitar os enunciados fácticos como verdadeiros. Nessa motivação, o juiz a quo valora o conjunto dos meios de prova que foram carreados para o processo, expressando uma convicção que tem que ser objectivável e intersubjectiva[11]. O standard de prova do processo civil é, na maioria dos casos, o da probabilidade prevalecente (“more-likely-than-not”) que se consubstancia em duas regras fundamentais: (i) entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais e (ii) deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa[12].
Assim sendo, cabe ao apelante – para efeitos de cumprimento do ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida – argumentar, de forma concretizada, no sentido de que os meios de prova produzidos no processo, apreciados em conjunto e de forma crítica, impõem uma convicção diversa quanto à reconstituição dos factos, atingindo essa diferente versão dos factos o patamar da probabilidade prevalecente, arredando - do mesmo passo - a versão aceite pelo tribunal a quo. Cabe ao apelante colocar-se na posição do juiz a quo e exercitar - ele próprio - a apreciação crítica da prova, hierarquizando a credibilidade dos meios de prova (enunciando os parâmetros que majoram ou diminuem a credibilidade de cada meio de prova), concluindo por uma versão alternativa dos factos. Deste modo, este exercício não se basta com a mera enunciação da existência de meios de prova em sentido oposto/diverso da versão dos factos tida como provada pelo tribunal a quo. A existência de sentidos díspares dos meios de prova é conatural a qualquer processo judicial pelo que o cumprimento do ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto não pode ter-se por observado com tal enunciação singela.
É incumbência do apelante actuar numa dupla vertente: (i) rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo, (ii) tentando demonstrar que a prova produzida inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente. Assim, não chega sinalizar a existência de meios de prova em sentido divergente, cabendo ao apelante aduzir argumentos no sentido de infirmar directamente os termos do raciocínio probatório adoptado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorrecto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente.
 Em suma, não observa o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida o apelante que se abstém de desconstruir a apreciação crítica da prova, realizada pelo tribunal a quo na decisão impugnada, limitando-se a assinalar que existe um meio de prova em sentido diverso do aceite como prevalecente pelo mesmo tribunal.
Com refere Abrantes Geraldes[13] - As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se a final, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.

Tendo em mente a interpretação do art. 640º, que acima enunciamos, analisemos a pretensa impugnação da Apelante.
*
Descendo ao caso.

A Apelante sindica, em primeiro lugar, a decisão do item 13. dos factos provados.
Nesse ponto, foi julgado assente que: 13. Nas aberturas referidas no ponto 12 dos factos provados foram colocadas caixilharia em alumínio, sem empenas e lacadas a branco, onde foi colocados, em cada uma, um vidro transparente e outro que deixa passar a luz, mas através do qual, em ambos os sentidos, se vêem vultos desfocados de pessoas, de objectos e/ou de outros.  
No seu entender (item 16º das suas conclusões) o ponto 13 deve ser alterado, no sentido de passar a ter a seguinte redacção:
“13. - Nas aberturas referidas no ponto 12 dos factos provados foram colocadas caixilharia em alumínio, sem empenas e lacadas a branco, onde foi colocados, em cada uma, um vidro transparente e outro fosco.”
Além disso, deve, no seu entender, o restante texto do facto provado n.º 13 passar para o elenco dos factos não provados e por isso, ser adicionado uma nova alínea que indique como não provado o seguinte: “E que deixa passar a luz, mas através do qual, em ambos os sentidos, se vêem vultos desfocados de pessoas, de objectos e/ou de outros.”
A Apelante cumpre assim o previsto no citado art. 640º, no que respeita à identificação do objecto da impugnação.

Sobre a matéria questionada, pode ler-se na decisão recorrida, além de mais, o seguinte.
“Faz-se, ainda, especial menção para a parte final do descrito no ponto 13 dos factos provados, havendo-se a dizer que se considera que o vidro colocado não é opaco no sentido alegado (ou seja, que deixa passar a luz, mas não permite ver através dele), uma vez que se percebeu, do dito relatório de verificação não judicial qualificada que é possível ver vultos, objectos e/ou outros, o que se apoia nas fotografias tiradas.
De facto, do lado exterior é possível visualizar a existência de objectos juntos à janela, que se percebem ser os vasos que ali se encontrava, sendo que apesar de algo desfocados, não deixam de ser identificáveis, donde se pode concluir que o mesmo se passará quer com pessoas (ainda que a uma maior distância da janela, as mesmas se apresentem como vultos), quer com outros bens ou objectos, o que de resto (com maior relevo) foi referido pela testemunha JJ, que foi a pessoa prestou serviços para a Ré, colocado os caixilhos das janelas da casa e vidros, sendo que o mesmo referiu que os mesmos pouca visibilidade permitem, no sentido de que apenas é possível ver sombras (o que de resto há-de ser sempre interpretado e aferido em conformidade com as fotografias [que no processo informático estão a cores] juntas com o dito relatório da verificação não judicial qualificada, pois das mesmas é possível ver mais do que meras sombras, sendo possível, inclusive e relativamente a elementos mais próximos da mesma, distinguir e identificar cores, formas e objectos).
Cabe, ainda, dizer que quanto a este aspecto todas as demais testemunhas depuseram, sendo que por exemplo a testemunha KK referiu, igualmente, que o vidro permite ver sombra e vultos; já a testemunha LL limitou-se a dizer que com aquela janelas, os Autores perderam a privacidade (acabando, no entanto, por dizer que a janela era fusca); a testemunha HH referiu que nada se consegue ver (nem vultos); por fim, a testemunha II disse, igualmente, que não é possível ver-se através dos vidros.
Sucede que, como se referiu, face às fotografias juntas com o relatório da verificação não judicial qualificada, o Tribunal deixou de ter dúvidas sob a opacidade do vidro em questão e, com elas interpretado o dito pelas testemunhas, tendo concluído pela demonstração da factualidade assente, pelas razões que supra se expuseram.”
A Apelante, por sua vez, alega, em suma: que as fotos juntas pelos Apelados com a p.i. não permitem ver qualquer vulto ou objecto ou pessoa da propriedade da Recorrente para a propriedade dos Autores; que o relatório de verificação não judicial qualificada junto confirma isso porque apenas concluiu que os vidros em causa são duplos, compostos por um vidro transparente e outro fosco, nada se avistando naquele sentido e, por fim, que nesse sentido depõem as testemunhas HH e II.
Será assim? Vejamos…
As fotos juntas com a p.i. nas quais se vêem as aberturas em questão são imagens da perspectiva do lado da Autora para o lado da Apelante, sendo perceptível numa das imagens (9) um espelhamento próprio de uma película do género da referida em h), dos factos não provados e na outra (8) um fundo branco.
De facto destas imagens não resulta o que concluiu a sentença mas também a mesma não as invoca neste particular tema, sendo certo, por outro lado, que aquilo que a Apelante delas extrai é posto em causa quer pelas imagens de fls. 5 do mencionado relatório, onde é possível observar objectos e cores no interior dessas janelas, quer pelos testemunhos citados pela sentença em crise que conferem a possibilidade de avistamento de vultos e sombras, motivação que a Recorrente convenientemente omite e deixou de referir, como era seu ónus nos termos acima expostos.
Em suma, resulta dessa prova positiva, no sentido em que conclui a sentença, quer no rol dos factos enumerados como provados em 13, quer no plano instrumental, na respectiva motivação, que um dos vidros é completamente transparente e por isso não impede qualquer visão para a propriedade da Apelada e que o outro é fosco, ou seja, permite a passagem de luz e, em determinadas circunstâncias, permite o avistamento de vultos e/ou sombras, inclusive de cores, com a amplitude que a dimensão das aberturas em causa evidencia.
Esta última característica é confirmada pelos citados testemunhos, de onde se destaca, em parte, o da pessoa que instalou essas janelas e cuja razão de ciência não foi posta em causa, mas também pela dedução que resulta da experiência comum e do que as imagens expostas denotam, ao abrigo do disposto no art. 349º, do Código Civil: esses vidros permitem, no sentido inverso, ver objectos e ou pessoas do lado da propriedade da Autora que estejam deles próximas, sendo a versão apresentada pelas testemunhas indicadas pela Recorrente infundada e contrariada por aqueles dados probatórios.
De resto, refira-se que é incompreensível a alegada violação do disposto no art. 640º, C.P.C., dado que se trata de norma processual que se limita a regular a forma como deve ser interposto o recurso.
Assim como é impróprio invocar, em sede de julgamento da prova produzida, o disposto nos arts. 341º e 342º, do Código Civil, que é respeitante ao ónus da prova e não ao que, em sede de julgamento de facto o juiz deve atender (cf. art. 413º, do C.P.C.).
Improcede, portanto, a impugnação desse item 13..

Mais defende a Apelante (itens 27º e  28º) que a decisão recorrida padece de vício de insuficiência da matéria para dar uma resposta cabal e necessária à questão da possibilidade de visibilidade da propriedade da Ré para a propriedade dos Autores, vício que inquina toda a decisão “a quo” e por isso, nos termos do artigo 662º n.º 2 al. c) do C.P.C., tem a mesma que ser revogada e proceder-se à ampliação da matéria de facto para apurar a matéria fáctica que permita apurar se realmente há devassa da propriedade dos Autores.
Ora, esta afirmação, para além de ir além do objecto limitado do recurso, pretendendo, sem motivo expresso, inquinar “toda a decisão a quo”, carece de sustento.
Com efeito, por um lado, embora a recorrente o não refira expressamente, situamo-nos no âmbito da impugnação da matéria de facto, prevista no art.º 640º, do Código de Processo Civil, impondo-se ao recorrente que pretenda impugnar aquela matéria, o cumprimento dos ónus ali referidos para que seja admissível o recurso da matéria de facto.
Efectivamente, nos termos do art.º 662º nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil, a Relação deve, mesmo oficiosamente, alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, quando repute deficiente, obscura ou contraditória aquela decisão sobre determinados pontos da matéria de facto, ou quando considere indispensável a sua ampliação, se do processo constarem todos os elementos que lhe permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto (os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente).
 Todavia, como temos vindo a defender, cremos que no seguimento do entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, se essa alteração da matéria de facto (mesmo em termos de ampliação) partir da iniciativa da parte, aquela terá de dar cumprimento aos ónus que a lei lhe impõe no art.º 640º, do C.P.C., ou seja, e no essencial, indicar os concretos pontos da matéria de facto (provados ou não provados) que pretende ver alterados, assim como os meios de prova nos quais se baseia para ver alterados aqueles pontos de facto em concreto.
Ora, partindo desse pressuposto, julgamos que foi aqui incumprido o disposto no nº 2, al. a), desse art. 640º, razão pela qual, de acordo com esta mesma norma, se rejeita esta ampliação.
Sem prejuízo disso, está patente nos itens 12. e 13. e, instrumentalmente, na motivação da decisão da matéria de facto, qual a devassa verificada, não se vislumbrando razão para aqui considerar, a esse respeito, preenchida a previsão do citado art. 662º, nº 2, al. c), do Código de Processo Civil, em alguma das suas vertentes, nomeadamente o da alegada insuficiência.
 
3.2. FACTOS A CONSIDERAR

a) Factos provados. 
1. Consta da caderneta predial urbana da matriz n.º ...89, da União de Freguesias de ... e ..., do concelho ..., que a herança de CC, com o NIF ...25, é titular do prédio sito no Lugar ..., da referida União de Freguesias, composto por casa de um pavimento com 5 divisões para habitação e logradouro.
2. Consta da caderneta predial urbana da matriz n.º ...5, da União de Freguesias de ... e ..., do concelho ..., que a herança de CC, com o NIF ...25, é titular do prédio sito no Lugar ..., da referida União de Freguesias, afectado a habitação.
3. Consta da de 10 de Fevereiro de 2023, emitida pela Conservatória do Registo Predial ..., que não foram encontrados prédios iguais em situação, composição e confrontações aos referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados.
4. Consta do procedimento simplificado de habitação de herdeiros e registos, realizado na conservatória do registo civil ..., sob o n.º ...07/2020, a 10 de Novembro de 2020, que CC faleceu no estado de casado com BB sobre o regime da comunhão de adquiridos, tendo esta declarado, na qualidade de cabeça-de-casal, que aquele pereceu no dia 23 de Agosto de 1988, na freguesia e concelho ..., que não deixou testamento ou qualquer disposição de última vontade, sendo que são seus herdeiros a própria e os seus três filhos DD, EE e FF.
5. Há mais de 30 anos que a Autora BB e os Chamados DD, EE e FF e, anteriormente a si, os anteriores donos, vêm limpando e cuidando dos prédios referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados, sendo que pelo menos a primeira e segunda neles pernoita, faz as suas refeições, guardando os seus haveres e fazendo ali o centro da vida familiar, suportando as respectivas contribuições e impostos, o que fazem vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
6. Consta da descrição predial, da Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...10, da freguesia ..., averbada na respectiva matriz urbana sob o n.º ...90, que o prédio composto por casa com um pavimento e logradouro, sito em ..., da União de Freguesias ... e ..., está registado, pela AP. ...95 de 26/10/2011, por compra em processo de insolvência, em nome de GG e AA, casados entre si no regime de comunhão de adquiridos.
7. Os prédios referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados confrontam com o prédio referido no ponto 6 dos factos provados, nos seus lados, respectivamente, sul-norte.
8. A Autora, chamados e Ré são familiares, sendo que, desde há vários anos, o agregado familiar da Ré mantém um conflito de vizinhança com o agregado familiar da Autora, que é composto pela filha DD, pelo genro e netos da Autora.
9. Na confrontação referida no ponto 7 dos factos provados, existia, em toda a extensão da sua linha divisória, um muro em blocos de cimento, encimado por uma rede e uma malha de ocultação em polietileno, de cor ..., de altura não concretamente definida, mas suficiente para impedir a visão de um prédio para o outro.
10. A Ré, na confrontação referida no ponto 6 dos factos provados, procedeu a obras, alteamento o muro referido no ponto 9 dos factos provados, passando o mesmo a ter uma altura de 2,10 metros, contados da cota do solo dos prédios referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados, e configurando uma parede onde passou a apoiar um telhado, já ali existente, composto por chapas de zinco, e, assim, a configurar um espaço que passou integrar a habitação implantada naquele prédio.
11. Antes das obras referidas no ponto 10 dos factos provados, a ligação entre o telhado de chapas de zinco e o muro existente era realizado por ferros verticais, no qual a rede e malha de ocultação se encontrava apoiada.
12. Na parede referida no ponto 10 dos factos provados e no âmbito das obras ali referidas, foram criadas duas aberturas, com 1,76 metros de largura e 1,08 metros de altura, sendo que estas distam 80 centímetros do solo.
13. Nas aberturas referidas no ponto 12 dos factos provados foram colocadas caixilharia em alumínio, sem empenas e lacadas a branco, onde foi colocados, em cada uma, um vidro transparente e outro que deixa passar a luz, mas através do qual, em ambos os sentidos, se vêem vultos desfocados de pessoas, de objectos e/ou de outros.  
14. No telhado de zinco, referido no ponto 10 dos factos provados, e anteriormente às obras ali referidas, existia um caleiro no limite daquelas chapas que fazia a recolha das águas pluviais que nele escorriam e que evitava a sua queda no interior dos prédios referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados.
15. Com as obras referidas no ponto 10 dos factos provados, o caleiro mencionado no ponto anterior foi colocado por debaixo do telhado de zinco, o que levou a que, desde então, as águas pluviais que escorram pelo dito telhado e pinguem para o logradouro dos prédios referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados.
16. As obras referidas no ponto 10 dos factos provados incluíram a feitura de uma chaminé em chapa inox, sendo que a mesma se inicia a uma altura de 2,12 metros e termina a uma altura de 3,10 metros, contados da cota do solo dos prédios referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados, e que serve para expelir os fumos de uma salamandra colocado no interior da habitação.
17. A chaminé referida no ponto 16 dos factos provados tem 98 centímetros, sendo que os últimos dez centímetros do seu topo dizem respeito ao seu chapéu com aba, donde fumo que é expelido, quer pelo lado inferior, quer pelo superior da sua aba.
18. A chaminé referida no ponto 16 dos factos provados dista, dos seus pontos mais próximos, de cada uma das três janelas da casa implementada nos pontos 1 e 2 dos factos provados, para si voltadas, respectivamente, 5,47 metros, 11,25 metros e 13,75 metros.
19. A janela, referida no ponto 18 dos factos provados, mais próxima da dita chaminé, está a uma altura de 1,45 metros do solo, tem uma altura de 1,03 metros e uma largura de 1,50 metros.
20. A janela, referida no ponto 18 dos factos provados, com a distância intermédia da dita chaminé, está a uma altura de 1,40 metros do solo, tem uma altura de 1 metro e uma largura de 1,38 metros.
21. A janela, referida no ponto 18 dos factos provados, com a maior distância da dita chaminé, está a uma altura de 1,40 metros do solo, tem uma altura de 1 metro e uma largura de 1,56 metros.

b) Factos não provados.

a) Os prédios referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados foram adquiridos pela Autora e seu falecido cônjuge CC, por transacção judicial estabelecida com MM, no âmbito do processo sumário n.º 742/82, da ... Secção, ... Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de ....
b) Em virtude do mencionado no ponto 8 dos factos provados, a mãe da Ré injuriar, em tom elevado, a Autora e a sua filha, bem como, arremessar lixo e água suja resultante de limpezas em direcção ao interior dos prédios daquela.
c) A Ré observa tudo quanto se passa no interior dos prédios da Autora, controlando quem entra e quem sai e os actos da vida quotidiana do agregado familiar da Autora.
d) A Autora passa o dia a olhar e provocar a Ré e seus pais, sendo frequente a existência de conflitos e troca de palavras.
e) A Autora encosta-se na divisória a ouvir as conversas da Ré e sua família.
f) O muro referido no ponto 9 dos factos provados tinha uma altura aproximada de 75 centímetros, contada desde a cota do solo dos prédios referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados.
g) A malha referida no ponto 9 dos factos provados tinha uma altura de 1 metro.
h) No vidro referido no ponto 13 dos factos provados foi colocado foi aplicada uma película adesiva com efeito espelhado na face exterior virada aos prédios referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados, e que permite a visão de quem esteja no interior dessa habitação, sendo possível observar toda a extensão do logradouro, pátio e casa daqueles prédios, incluindo o seu interior e o da garagem.
i) A pelicula referida impede qualquer possibilidade de, a partir dos prédios referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados, poder verificar se existe alguém a observar pelo lado interior da habitação em que se encontra inserido o vidro.
j) A existência dos vidros com as peliculas referidas nas alíneas h) e i) dos factos não provados, quer nos termos descritos no ponto 13 dos factos provados, coíbem a Autora e as pessoas que com ela residem de realizarem actos da via quotidiana, mormente de se deslocarem para o exterior da habitação em traje mais informal ou de realizar refeições ao ar livre e no pátio exterior.
k) A existência dos vidros, quer nos termos referidos nas alíneas h) e i) dos factos não provados, quer nos termos descritos no ponto 13 dos factos provados, coíbem a Autora e as pessoas que com ela residem de realizarem actos da via quotidiana, mormente de se deslocarem para o exterior da habitação em traje mais informal ou de realizar refeições ao ar livre e no pátio exterior.
l) As obras em causa não foram objecto de licenciamento camarário.
m) Em virtude do circunstancialismo narrado no ponto 15 dos factos provados, as águas pluviais escorriam pela face exterior do muro divisório, se espalhassem pelo pátio em cimento dos prédios da Autora e provocassem um alagamento da entrada da habitação e da garagem ali existentes, bem como de toda a área exterior da habitação.
n) A Autora não autorizou o acesso ao seu prédio para que a Ré, após o ter retirado em virtude das obras mencionadas no referidos no ponto 10 dos factos provados tinham, colocasse um caleiro no telhado.
o) Os fumos provenientes da utilização da chaminé mencionada nos pontos 16 dos factos provados são dirigidos para o interior da habitação implementada nos prédios referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados, tornando irrespirável o ar no interior dos cómodos da mesma.
p) Em virtude do referido na alínea o) dos factos provados, o agregado familiar da Autora tem de manter as janelas dos compartimentos da mencionada habitação fechadas, o que impede o seu arejamento e o evitar de humidades e surgimento fungos e bolores.
q) O uso da chaminé mencionada nos pontos 16 dos factos provados permite que a fuligem decorrente da combustão dos materiais seja dirigida e caia sobre o pátio e no interior da habitação dos prédios referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados.
r) Junto ao muro divisório entre os prédios referidos nos pontos 1 e 2 dos factos provados e o referido no ponto 6 dos factos provados, existe um tubo de drenagem de águas pluviais do lado do último, colocado pela Ré, o qual as conduz para o interior dos prédios primeiramente referidos, provocando o alagamento do mesmo (logradouro e garagem) quando chove, estando numa cota superior à do prédio referido nos ponto 2 dos factos provados.

3.3. DO DIREITO APLICÁVEL

Manteve-se inalterada decisão da matéria de facto.
A Apelante fazia depender parte do seu pedido de modificação da decisão recorrida daquela pretensão instrumental fáctica.
Posto isto, fica inelutavelmente prejudicado o seu conhecimento ou a pretendida alteração da decisão de mérito recorrida com base nessa pretensa modificação, o que aqui se declara (cf. arts. 608º, n.º 2, 663º, n.ºs 2 e 6, ambos do Código de Processo Civil).

Subsidiariamente, defende a Apelante que a decisão não deixa de violar o disposto nos arts. 1360º e 1363º, do Código Civil, e que (item 26º) “as aberturas em questão não podem ser consideradas janelas e por isso, não estão limitadas as restrições do artigo 1360º do C.C., porque estamos na presença de frestas irregulares, as quais são toleradas e nessa medida, a Recorrente teria que ser absolvida do pedido de condenação de fecho das aberturas referidas nos pontos 7 e 9 a 13 dos factos dados como provados”.
Em suma, a Apelante entende que:
- As aberturas existentes no muro aqui em discussão, são estruturas fixas e não amovíveis, não sendo possível abri-las e deitar vistas sobre o prédio dos Autores, com a possibilidade dos Réus debruçarem-se na mesma e olharem para a direita, esquerda, para cima e para baixo, e até arremessarem objectos ou poderem transpô-las e introduzirem-se na propriedade dos Apelados e por isso, na nossa humilde opinião, são parte integrante da parede do edifício, logo, não são de modo algum janelas;
- Estas aberturas não são idóneas a apreciar as vistas sobre o prédio vizinho ou a conversar, e por isso, não permitem a visibilidade para o prédio vizinho;
- E mesmo que haja possibilidade de visualizar vultos, a verdade é que tais vãos não permitem a visibilidade sobre o prédio vizinho.

A decisão recorrida, por sua vez, considera o seguinte.
“Ora, no caso concreto sabe-se que as referidas janelas irregulares visam, essencialmente, ser uma fonte de luz da divisão que, em virtude das obras realizadas, foi criada. Ou seja, percebe-se, das características destas janelas irregulares, que estas não são idóneas a apreciar as vistas sobre o prédio vizinho ou a conversar (referindo-se aqui a um diálogo frente a frente) com alguém que esteja do outro lado, mas possibilita a entrada (e, embora seja óbvio, a saída) de luz e a visualização de vultos (em graus diversos, conforme estejam mais próximos ou longínquos da janela irregular, sendo possível identificar cores, formas e objectos) de um lado para o outro.
Existe, por isso, um nível de indiscrição a proteger, em que face às concretas características das janelas irregulares que ali foram colocadas tal não se mostre tão premente como uma “regular”, a verdade é que as mesmas já tocam na protecção que o legislador pretende ver resguardada com as normas previstas.
Tem-se, por isso, que estas aberturas hão de estar sujeitas às regras às regras aplicáveis para a abertura de uma janela (note-se que, no limite, poder-se-ão classificar aquelas aberturas irregulares como “obra semelhante”) e, por isso, o tipo de janela irregular aberta no caso concreto o podia ser sem deixar entre esta e o prédio vizinho um intervalo de metro e meio. (…) Posto isto e tudo demais que se expôs, considera-se que deverão os Réus preceder ao fecho das aberturas (as ditas janelas irregulares identificadas) referidas no ponto 7 e 9 a 13 dos factos provados.”
Em face das teses que assim se confrontam, urge tomar posição.
Para o que aqui releva, dita o citado art. 1360º, nº 1 que: O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio.
Já o art. 1362º, nº 1, do Código Civil, estipula que: a existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião.
Por sua vez, o art. 1363º, do mesmo Código, estabelece que: 1. Não se consideram abrangidos pelas restrições da lei as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas. 2. As frestas, seteiras ou óculos para luz e ar devem, todavia, situar-se pelo menos a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não devem ter, numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros; a altura de um metro e oitenta centímetros respeita a ambos os lados da parede ou muro onde essas aberturas se encontram.
No entendimento da Apelante estamos perante aberturas que não podem ser consideradas “janelas” e, por isso, não estão limitadas pelo dispositivo do art. 1360º, nº 1, sendo antes “frestas irregulares” que são “toleradas”.

O que está em causa?
O direito de propriedade dos Autores e o seu pleno gozo, incluindo o de nele terem privacidade.
A esse respeito ficou dito no recente Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no Proc. Processo: 1802/22.2T8CHV, em 19.9.2024, o seguinte - “O direito de propriedade é um direito real que tem por objecto coisas corpóreas, móveis ou imóveis (art. 1302º do CC) e cujo conteúdo se encontra sujeito ao princípio da elasticidade, caracterizado por poderes de compressão e expansão (cf. Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Juris, p. 334). Adquirido o direito por um dos modos estabelecidos no artigo 1316º do CC, o seu titular, como se dispõe no artigo 1305º do Código Civil, goza, de modo pleno e exclusivo, dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas. Tal significa que o titular do direito de propriedade não tem acima dele qualquer outro poder que o limite (é pleno), podendo exigir de outrem o respeito dos seus poderes sobre a coisa (é um poder exclusivo), bem como recorrer aos tribunais para obter de terceiro a restituição da coisa que lhe pertence (cf. art. 1311º do CC) e até de defender a sua propriedade por acção directa, nos termos dos artigos 1314º e 336º do CC.
Porém, estes poderes de uso, fruição e disposição não são absolutos. Devem ser exercitados dentro dos limites da lei e sofrem as restrições impostas por lei.
Entre as restrições impostas ao proprietário encontram-se as que derivam de relações de vizinhança, restrições que se justificam “em virtude da impossibilidade de os direitos do proprietário serem exercidos plenamente sem afectação dos direitos dos vizinhos” (Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, p. 95).
Nessas restrições derivadas de relações de vizinhança constam, para o que aqui importa, as construções e edificações referidas nos artigos 1360º a 1364º do Código Civil, cujo regime legal se diferencia pelo tipo e características das aberturas.
Essas limitações prendem-se com a “necessidade de proteger o prédio vizinho do devassamento e a intimidade da vida privada do seu proprietário”, impedindo que o proprietário seja “objecto de indiscrição de estranhos” (Pedro Vaz Mendes, Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, Universidade Católica Editora, p. 284). Uma dessas restrições encontra-se regulamentada no artigo 1360º do Código Civil (…).”
Conforme se assinala em Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 13.7.2022[14], “Em termos jurídicos, o actual art.º 1360.º, n.º 1, do Código Civil, corresponde ao art.º 2325.º, através do qual se tinha em vista não só evitar que o prédio vizinho fosse facilmente objecto da indiscrição de terceiros, bem como de ser devassado com o arremesso de objectos. Esta dupla finalidade era assumida de modo indubitável pelos doutrinadores de então como PIRES DE LIMA, que chegou a escrever que se pretendia “evitar que sobre o prédio vizinho se arremessassem objectos, e, sobretudo, que fossem devassados com vistas das portas e janelas [in Lições de Direitos Reais (3.ª Edição), p. 256/257], ou como DIAS FERREIRA, o qual salientava que “ para se não arremessarem objectos sobre esses prédios, e sobretudo para eles não serem devassados com vistas das janelas, não é permitido abrir janelas sobre prédios vizinhos, sem deixar o interstício legal [in Código Civil Português – Anotado (2ª edição), Vol. IV (1909), p. 262 – no proémio do citado art.º 2325.º preceituava-se que “o proprietário que levantar muro, parede ou outra edificação junto à sua extrema do seu terreno não poderá nela abrir janela, porta, nem fazer eirado ou varanda, que deitem directamente sobre o prédio do vizinho, sem deixar, entre cada uma dessas obras e este prédio, o intervalo de metro e meio.”
Neste conspecto, descendo ao caso em apreço, é entendimento unanime neste processo, que de qualquer modo resulta evidente, de que as aberturas em questão não cabem na previsão literal do art. 1363º, do Código Civil, e, por isso, não constituem excepção admitida por essa norma.
Mais, todos os intervenientes processuais acolhem implicitamente a ideia de que as mesmas não constituem “janelas” tais como elas são entendidas pelo legislador do citado art. 1360º, nº 1, do Código Civil.
Por isso, a sentença apelida-as de “janelas irregulares” e a Apelante diz que são “frestas irregulares”, neste último caso sem, contudo, explicitar em que norma se pode acolher a afirmação de que são “toleradas” (cf. art. 639º, nº 2, do C.P.C.).
Em nosso entender, o conceito de “janela” como abertura que permite o fluxo de ar e, ao potencial vizinho devassador do prédio alheio, debruçar-se sobre o mesmo e assim potenciar esse risco, deve ser actualizado (art. 9º, do C.C.) em função da actual realidade construtiva ou arquitectónica, na qual estão em voga aberturas como as que aqui se discutem ou ainda maiores (por vezes abrangendo toda a fachada da edificação), de dimensão tal que permitem uma ampla vista sobre o prédio devassado sem necessidade de qualquer invasão física do espaço aéreo do prédio assim dominado, como seria aquela resultante da existência de um parapeito que permitisse o simples debruçar sobre essa vista.
Sem prejuízo disso, julgamos que neste caso essa discussão técnica é irrelevante.
Estamos sem dúvida perante uma abertura semelhante a uma janela, que permite não só a passagem de luz como também torna possível a quem está no interior da construção da Apelante vislumbrar a partir da mesma aquilo que se passa no prédio vizinho da Apelada, que varia consoante a proximidade das pessoas e/ou objectos em relação às referidas “janelas” de vidro fosco.
Essa devassa não é impedida, conforme notámos, pela existência do referido vidro fosco ou pela circunstância de se tratarem de janelas fixas ou sem possibilidade de abertura, sendo certo que nas normas em apreço o legislador procurou prevenir, além da devassa física (v.g. com o arremesso de objectos ou substâncias), sobretudo a devassa de vistas.
Deste modo, não deixam estas de constituir aberturas que potenciam alguma devassa visual do prédio da Apelada que, em nosso entender, viola o seu direito de gozo pleno, estabelecido no citado art. 1305º, do Código Civil, ou seja, como afirma a sentença, consubstanciam ainda algum grau de indiscrição a proteger de acordo com o legislador.
Veja-se, nesse sentido, o que ficou dito no Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 7.12.2006[15]: São de qualificar como aberturas irregulares, as aberturas, situadas a 82 cms do sobrado, com a largura de 1,55m e a altura de 1,06m, constituídas por uma estrutura em alumínio e vidro martelado fosco, dividido, de cada um dos lados, por três prumos ou barras de alumínio, com intervalos superiores a 5 cms, só permitindo a entrada directa de luz, de ar e avistar, de frente, o prédio vizinho através de uma abertura central móvel, com 61 cm. de largura e 52 cm. de altura, dividida por prumos de alumínio com intervalos de 14 cms, onde estão colocados vidros martelados foscos, situada a 42 cm. dos limites laterais, a 49 cm. do limite inferior e a 1,37/1,38 cm. do sobrado, mas que não permite o debruçamento sobre o prédio vizinho. (…) 5º- A construção e uso das “aberturas irregulares” pode conduzir à constituição, por usucapião, de uma servidão atípica (de vista, luz e ar), que confere ao respectivo titular não só o direito de manter tais aberturas, mas também o direito à manutenção das vistas e de luz e do ar, pelo que não pode deixar de se lhe reconhecer o direito de impedir que o proprietário do prédio vizinho as vede ou tape bem como o direito de impor a este a observância do disposto no nº2 do artigo 1362º do C. Civil. 6º- Daí o proprietário de prédio vizinho não poder, à frente de cada “abertura irregular”, construir edifício a menos de metro e meio.”
Resulta desta jurisprudência que essas aberturas irregulares não deixam de proporcionar vistas que podem, inclusive, conduzir à constituição de uma servidão atípica que onera definitivamente a propriedade do devassado e que, por isso, este tem o direito de ver restituída ao seu pleno gozo (cf. art. 1311º, nº 1, do C.C.), v.g.,  a qualquer momento, antes dessa servidão estar constituída, pode tapar ele próprio essas aberturas, v.g. com a construção de um muro ou outra construção que elimine essa devassa a fim de, directamente, a impedir ou obstar à constituição desse ónus sobre a sua propriedade.
Nesse sentido vide também o Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 12.10.2017[16], no qual ficou dito, em caso semelhante (cf. art. 8º, nº 3, do C.C.): “Os orifícios que os recorridos abriram na parede do seu prédio são frestas; a existência destas frestas nunca poderá originar uma servidão de vistas a cargo do prédio dos recorrentes; nunca houve uma servidão de vistas, sobre o mesmo prédio, em benefício do prédio dos recorridos; e a pretensão dos recorrentes não constitui um abuso do direito. Temos, finalmente, o caminho aberto para chegar à decisão do presente litígio. (…) A circunstância de as frestas abertas pelos recorridos terem, em todas as suas dimensões, mais de 15 centímetros, em violação do disposto no artigo 1363.º, n.º 2, CC, não pode deixar de ter consequências jurídicas.”
No caso presente, essas consequências, além da pedida eliminação, não estão em discussão, nem a Apelante formulou em primeira instância qualquer pedido reconvencional nesse sentido, pelo que a consequência resultante da apontada ilegalidade construtiva só pode ser a declarada na al. a) da sentença, pelo que improcede a apelação.

A Apelante será responsável pelas custas do recurso, atendendo ao disposto no art. 527º, do Código de Processo Civil.

4. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação.

Custas pela Apelante.  
*
Sumário[17]:
- Improcede, por falta de sustento e cumprimento dos ónus previstos no art. 640º, do C.P.C., a impugnação da decisão da matéria de facto motivada pela apelante, com prejuízo para a revisão do mérito da sentença com base nesse fundamento.
- São irregulares e inadmissíveis as aberturas, com 1,76 metros de largura e 1,08 metros de altura, que  distam 80 centímetros do solo, instaladas na parede que deita imediatamente para o prédio vizinho e onde foi colocada caixilharia em alumínio, com um vidro transparente e outro que deixa passar a luz (fosco), mas através do qual, em ambos os sentidos,  que possibilita a entrada de luz e a visualização de vultos (em graus diversos, conforme estejam mais próximos ou longínquos da janela irregular, sendo possível identificar cores, formas e objectos) de um lado para o outro.
- Essas aberturas não se subsumem à previsão excepcional do art. 1363º, do Código Civil, e não deixam de potenciar alguma devassa visual do prédio vizinho que viola o seu direito de gozo pleno, estabelecido no citado art. 1305º, do Código Civil, ou seja, pode este vizinho devassado exigir a sua eliminação.
*
Guimarães, 03-10-2024


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
[2] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
[4] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Ed., p. 155 e ss.
[5] Cf. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.2.2015, relatado por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza :II - A impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em 1.ª instância, razão pela qual se impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação. III - Não observa tal ónus o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado. IV - A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do NCPC (2013). V - O incumprimento de tais ónus – prescritos para a delimitação e fundamentação do objecto do recurso de facto – impedem a Relação de exercer os poderes-deveres que lhe são atribuídos para o respectivo conhecimento. – in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/83d97510a180fd5f80257df1005b598c?OpenDocument
[6] Com se refere no Ac. do Supremo Tribunal de Justiçam, de 27.9.2018, infra citado: “Por outro lado, não basta transcrever os depoimentos que se invocam para alterar as respostas dadas. É necessário dizer porquê. Qual a razão pela qual deve ser num sentido e não noutro. Essa análise crítica também não foi feita pela Recorrente”.
[7] E, como acentua o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça infra citado, do princípio da cooperação, pretendendo-se que, por essa via, a 2ª instância facilmente aceda à informação tida pelo recorrente como interessante, em lugar de despender tempo nessa actividade – “há um mínimo de exigência e rigor a impor ao recorrente que impugna a matéria de facto, sob pena de, perante a ambiguidade, inconcludência e prolixidade na elaboração da peça recursória, transferir para a 2ª instância tarefas funcionais desmesuradas, exorbitantes e desproporcionadas que, nos termos legais, àquele cabem.
[8] In http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/9484dd49e64d74d28025863a00574f6a?OpenDocument 
[9] No mesmo sentido vide Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLSB.L1.S1, relatora Ana Luísa Geraldes; Ac. 07.07.2016, proc. 220/13.8TTBCL.G1.S1, relator Gonçalves Rocha; Ac. STJ de 16.05.2018, proc. 2833/16.7T8VFX.L1.S1, relator Ribeiro Cardoso; Ac. STJ de 06.06.2018, proc. 552/13.5TTVIS.C1.S1, relator Pinto Hespanhol; Ac. STJ de 31.10.2018, proc. 2820/15.2T8LRS.L1.S1 e Ac. STJ de 06.11.2019, proc. 1092/08.0TTBRG.G1.S1, ambos relatados por Chambel Mourisco, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[10] In http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/8e86daac001d58518025799f00505946?OpenDocument
[11] cf. LUÍS FILIPE SOUSA, in Prova Testemunhal, 2013, pp. 319-330
[12] cf. LUÍS FILIPE SOUSA, in Prova por Presunção no Direito Civil, 2017, 3ª ed., pp. 165-180.
[13] Ob.cit., p. 159
[14] In http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/75602bdd116700d3802588bb003077e5?OpenDocument
[15] In http://www.gde.mj.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/8d443a8a2324782a8025725d003b7f83?OpenDocument
[16] In https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/4cd2ee8f3878528d802581bc002ee2f0?OpenDocument
[17] Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.