CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO
FACTOS GENÉRICOS
MEDIDA DA PENA
Sumário


I- A necessidade de concretização e especificação dos factos imputados ao arguido, com indicação das respetivas circunstâncias de tempo e de lugar, decorre, desde logo, de serem asseguradas ao arguido todas as garantias de defesa por imperativo constitucional, cfr. artigo 32º, nº 1 da CRP. Na verdade, o arguido só poderá efetivamente defender-se se puder contraditar as provas que sejam oferecidas contra ele e que o possam prejudicar. Para tanto, o arguido terá de conhecer, com o necessário rigor, os factos que lhe são imputados, descritos de forma a que não subsistam dúvidas no seu espirito sobre qual o “pedaço de vida” em discussão. Pois pior do que não poder defender-se é, à semelhança de um processo tipo kafkiano, não saber do que defender-se.
II- A frieza de ânimo, para efeito de qualificação do crime de homicídio, é uma circunstância relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, reconduzindo-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução, em suma, um comportamento traduzido na firmeza, tenacidade e irrevogabilidade da resolução criminosa.
III- Nos casos de homicídio, por estar em causa o bem jurídico supremo, que é vida humana, e tratando-se de violência sobre mulheres em contexto familiar, os factos sãos sentido de forma muito particular e intensa pela comunidade, sendo, por isso, as exigências de prevenção geral muito elevadas.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de tribunal coletivo nº 1836/23...., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo Central Criminal de Guimarães – Juiz ..., em que é arguido AA, com os demais sinais nos autos, por acórdão lido e depositado em 03.07.2024, no que para aqui releva, foi decidido o seguinte (transcrição)[1]:
I. Condenar o arguido AA pela pártica, em autoria material e concurso efetivo:
- de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a), n.º 2, al. a), n.º 4 e 5 do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão;
- de um crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al.s b) e j) ambos do Código Penal, e 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições, na pena de 22 anos de prisão;
Em CÚMULO JURÍDICO das penas parcelares atrás referidas, na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão.
II. Condenar o arguido AA na pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas, nos termos do artigo 90.º do Regime Jurídico das Armas e Munições pelo período de 22 anos.
III. Declarar a indignidade sucessória do arguido AA relativamente à sucessão aberta por morte do cônjuge, BB, nos termos e para os efeitos previstos na alínea a) do artigo 2034.º e no artigo 2037.º do Código Civil, tal como estabelece o artigo 69.º-A do Código Penal.
IV. Não arbitrar qualquer quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos pelas vítimas CC e AA, dada a expressa recusa destes.
V. Declarar perdida a favor do Estado a faca apreendida nos autos – cfr. artigo 109.º, n.º 1 do Código Penal;
2. Não se conformando com tal acórdão condenatório, dele interpôs recurso o arguido, extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
1. O Recorrente foi condenado pela prática, em autoria material e concurso efetivo:
 - de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a), n.º 2, al. a), n.º 4 e 5 do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão; - de um crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al.s b) e j) ambos do Código Penal, e 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições, na pena de 22 anos de prisão; e em CÚMULO JURÍDICO das penas parcelares atrás referidas, na pena única de 23 (vinte e três) anos de prisão.
2. O Recorrente não se conforma com o acórdão proferido pelo Tribunal a quo, motivo pelo qual interpõe o presente recurso.
3. A sua discordância prende-se, essencialmente, com dois pontos: i) a condenação pelo crime de violência doméstica, uma vez que o Arguido entende que deveria ter sido absolvido da prática desse crime; e ii) a medida da pena aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado agravado, cuja redução se vai pedir a final.

DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

4. O Arguido discorda, em absoluto, da sua condenação pelo crime de violência doméstica, uma vez que entende que deveria ter sido absolvido da prática desse crime, dada a ausência total de prova produzida, por um lado, e a prescrição do crime, por outro.
5. Desde logo, e salvo o devido respeito, não existem factos dados como provados que pudessem ter levado à condenação do Arguido pela prática deste crime.
Com efeito, não existem factos concretos e devidamente circunstanciados em termos de tempo, espaço e modo da prática desse crime.
6. E o facto provado n.º 44 não é manifestamente suficiente para levar à sua condenação pelo crime de violência doméstica; aliás, nenhum destes factos integra o aludido crime.
7. Mais, os factos dados como provados no ponto n.º 3, para além de não corresponderem à verdade e não ter sido produzida qualquer prova nesse sentido, são desmentidos pela fundamentação do próprio Acórdão. Vejamos alguns excertos dessa fundamentação: “CC, filho mais novo do arguido, produziu um depoimento emocionado e carregado de dor que considerámos totalmente credível. Assim, esclareceu que viveu com os pais até há 9 anos (quando tinha 30 anos de idade) num ambiente marcado por uma violência constante, que se lembra existir desde quando era pequeno.” (pág. 14) e “Assim, AA, filho do arguido que saiu da casa dos pais aos 25 anos (há cerca de 15 anos), descreveu a vida em casa: “foi uma constante desde que me lembro de mim”. Relatou um episódio – que compreensivelmente o marcou - , num domingo de manhã, quando criança chegou a casa depois de um jogo de futebol da sua equipa e viu cabelos da mãe espalhados pelo chão e esta com uma marca no nariz.” (pág. 17).
8. Ou seja, os factos relatados pelas duas testemunhas, e que levaram à condenação do Arguido pelo crime de violência doméstica, não foram devidamente circunstanciados, limitando-se aquelas a proferir declarações vagas, imprecisas, não circunstanciadas, sendo que os últimos factos por elas relatados aconteceram, como as próprias afirmaram, há mais de 10 anos, uma vez que, conforme afirmaram ambas, e consta do Acórdão recorrido, ambos já tinham saído de casa dos pais há mais de 10 anos, pelo que os factos relatados teriam acontecido há mais de 10 anos, logo, estarão prescritos (cfr. artigo 118.º do Código Penal).
9. Motivo pelo qual se impugna a matéria de facto do ponto n.º 26 dos factos provados (“Os factos descritos em 7 ocorreram até à morte da vítima, agravando-se quando esta integrou as atividades organizadas pela Junta da Freguesia, no ano de 2020 ou 2021”), na medida em que não foi produzida qualquer prova do mesmo; pelo contrário, os dois filhos – testemunhas que levaram o Tribunal a quo a condenar o Arguido pelo crime de homicídio – apenas relataram episódios alegadamente ocorridos há mais de 10 anos, antes de saírem de casa de seus pais, conforme supra se alegou.
10. Assim, e salvo o devido respeito, a condenação do Arguido pela prática do crime de violência doméstica só se entende por alguma precipitação ou uma ânsia desmedida de o condenar a qualquer custo.

DA DIMINUIÇÃO DA PENA APLICADA PELA PRÁTICA DO CRIME DE HOMICÍDIO QUALIFICADO
11. Quanto à determinação da pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado, fixada em 22 anos de prisão, o Acórdão recorrido merece censura, salvo o devido respeito, por ser excessiva a pena aplicada ao Arguido.
12. A pena é desproporcional em relação aos factos dados como provados, além do mais há que considerar um conjunto de atenuantes que, salvo o devido respeito, não foram tidos em consideração pelo Tribunal a quo.
13. Com efeito, podemos enumerar alguns factos que deveriam ter sido relevados como atenuantes na pena a aplicar, mas que, de facto, não lhes foi atribuída a importância devida.
14. Ora, tendo em conta esta argumentação, julgamos que a pena aplicada no Acórdão recorrido, relativamente ao crime de homicídio qualificado, é manifestamente excessiva, atentos os seguintes factos:
- confissão, livre e espontânea do homicídio de que vinha acusado; e não o fez por estratégia processual para ver a sua pena diminuída, uma vez que já há muito o havia feito, designadamente em sede de inquérito, no decorrer de um interrogatório;
- ausência de antecedentes criminais, em 64 anos de vida;
- arrependimento;
- bom comportamento na prisão;
- estado de saúde débil, nomeadamente a doença de Fabry, uma doença rara e ainda pouco estudada, de contornos e consequências ainda não totalmente conhecidos pela ciência;
- tratar-se de Arguido inserido profissional, social e familiarmente;
- bom comportamento no estabelecimento prisional;
- ausência de factos de comprovem qualquer preparação do crime ou frieza de ânimo na sua execução.
15. Tendo em consideração a situação pessoal do Arguido e todos os factos acima alegados, dados como provados pelo Tribunal a quo, julgamos que a pena a aplicar pelo crime de homicídio qualificado deverá andar próxima do mínimo da moldura penal, o que se requer.
16. Recentemente, o STJ condenou Arguidos, pelo crime de homicídio qualificado, em penas bastante inferiores à aplicada ao Recorrente, nomeadamente:
- Acórdão do STJ de 04.06.2024 (relator João Rato) que condenou um Arguido, num crime de homicídio qualificado na pena de 17 anos de prisão;
- Acórdão do STJ de 22.11.2023 (relatora Tersa de Almeida) se decidiu a condenação do Arguido como autor material de um crime de homicídio qualificado na pena de 18 anos e 6 meses de prisão.
- Acórdão do STJ de 21.03.2024 (relator Orlando Gonçalves) que decidiu a condenação do Arguido como autor material de um crime de homicídio qualificado na pena de 17 anos de prisão;
- Acórdão do STJ de 08.11.2023 (relatora Ana Barata Brito) que condenou o Arguido, por um crime de homicídio qualificado, na pena de 15 anos de prisão.
17. Parece-nos, assim, e salvo melhor opinião, que a pena de 22 anos de prisão aplicada pelo crime de homicídio qualificado, será desproporcional e exagerada.
18. Em jeito de desabafo, apetece-nos perguntar: de que serve afinal o Arguido ter confessado, afirmar estar arrependido, não ter antecedentes criminais, ter bom comportamento na prisão e estar bem inserido, social, familiar e profissionalmente?
19. SEM PRESCINDIR do supra exposto, e por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que, face a tudo quanto resultou provado em audiência de julgamento bem como de tudo quanto consta do douto acórdão, a pena que em concreto foi fixada ao arguido se mostra desproporcionada, pena esta que deve ser reduzida quantitativamente para próximo do mínimo legal.
20. Violou, assim, o acórdão recorrido, e salvo melhor entendimento, o disposto nos artigos 40.º, n.º 1 e 2, 70.º, 71.º e 118.º, todos do Código Penal.
Nestes termos e nos mais de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve:
a) o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser o Arguido absolvido da prática do crime de violência doméstica;
b) a medida concreta da pena aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado ser julgada desadequada e excessiva, condenando-se o recorrente numa pena mais próxima do mínimo legal, com o que
V. Exas. farão, como sempre, JUSTIÇA!!!
3. O Ministério Público, na primeira instância, respondeu ao recurso interposto pelo arguido, defendendo que deverá ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida. 
4. Nesta instância, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no qual, pelas razões que indica, refere não assistir razão ao recorrente, pelo que o recurso não deverá obter provimento.
5. Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP, mas não foi apresentada qualquer resposta.
6. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1- Objeto do recurso

O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso[2] do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º e 412º, nº 1, todos do CPP.
Assim, considerando o teor das conclusões do recurso interposto, as questões a decidir reportam-se às seguintes matérias:
1- O recorrente sustenta que deveria ter sido absolvido da prática do crime de violência doméstica, com fundamento no seguinte:
- Impugnação da matéria de facto provada quanto aos pontos 3 e 26 dos factos provados do acórdão recorrido, porquanto:
a) Quanto ao ponto 3:
“… para além de não corresponderem à verdade e não ter sido produzida qualquer prova nesse sentido, são desmentidos pela fundamentação do próprio Acórdão”.
b) Quanto ao ponto 26:
“na medida em que não foi produzida qualquer prova do mesmo; pelo contrário, os dois filhos – testemunhas que levaram o Tribunal a quo a condenar o Arguido pelo crime de homicídio – apenas relataram episódios alegadamente ocorridos há mais de 10 anos, antes de saírem de casa de seus pais”, tendo ocorrido prescrição do procedimento criminal
-Inexistências de factos dados como provados que pudessem ter levado à condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica, uma vez que “.. não existem factos concretos e devidamente circunstanciados em termos de tempo, espaço e modo da prática desse crime”; e
2-  Excessividade da pena quanto ao crime de homicídio, devendo ser reduzida quantitativamente para próximo do mínimo legal

2. A decisão recorrida

No acórdão recorrido foram considerados como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respetiva motivação de facto e de direito, na parte considerada relevante para a decisão do presente recurso (transcrição):
Factos provados
Discutida a causa e com interesse para a sua justa decisão, resultou provada a seguinte matéria de facto:
1. O arguido casou catolicamente com a vítima BB no dia 04 de setembro de 1982, na freguesia ... (...), concelho ....
2. Deste casamento, o arguido e a vítima tiveram dois filhos: AA, nascido em ../../1983, e CC, nascido em ../../1984.
3. Durante a constância do matrimónio, pelo menos desde que os filhos do casal frequentavam a escola primária, o arguido discutiu várias vezes com a vítima BB, chegando nessa ocasião a desferir-lhe socos na face e a puxar-lhe o cabelo, ao ponto de ela aparecer com hematomas nos olhos, com os lábios rebentados e aparecerem no interior da habitação marcas de sangue e bocados de cabelo espalhados pela casa.
4. Algumas dessas discussões ocorriam à noite, quando ambos estavam no quarto, sendo que o arguido batia a porta do quarto com força e a vítima gritava “pára AA, pára AA”.
5. Nestas ocasiões, os filhos do casal refugiavam-se no respetivo quarto e tapavam os ouvidos para não ouvir as discussões e gemidos da mãe a ser agredida.
6. Nesta altura, o casal morava no Lugar ..., nas ... (Guimarães).
7. Desde a altura referida em 3, no interior da habitação de ambos, o arguido, começou, de forma plúrima e repetida no tempo, a chamar a ofendida de “puta” e dizia que qualquer dia a matava e ainda que os filhos não eram dele.
8. No final da década de 2000, início da década de 2010, numa dessas discussões com a vítima nos termos anteriormente referidos, esta decidiu sair de casa e escondeu-se em casa de familiares durante alguns dias, com medo que o arguido lhe fizesse algum mal.
9. Durante este período, o arguido ligou várias vezes para a vítima e para os seus filhos, dizendo-lhes que se ela não voltasse para casa que a ia matar.
10. No ano de 2021 ou 2022, o casal começou a dormir em quartos separados.
11. Por vezes, a vítima questionava a vizinha se tinha ouvido alguma coisa.
12. O arguido era muito ciumento e possessivo, não permitindo que a vítima vestisse roupa mais vistosa ou arranjasse o cabelo, e tão pouco gostava que as amigas da vítima frequentassem a casa do casal, procurando assim isolá-la.
13. Na noite de 22 para 23 de junho de 2023, a hora não concretamente apurada – mas seguramente entre as 19h30m do dia 22 e as 00h47m do dia 23 – no interior da residência de ambos, situada na Rua ..., ... – Guimarães, o arguido, por motivos não concretamente apurados e munido com uma faca, com cabo em madeira e cerca de 20 cm de lâmina, dirigiu-se ao quarto onde se encontrava a dormir a ofendida BB.
14. Ali chegado, o arguido abeirou-se da ofendida, sem que esta se apercebesse da sua aproximação, e desferiu vários golpes, com força, na zona da cabeça, pescoço e tórax da vítima BB.
15. Na sequência desses golpes, a ofendida ficou prostrada, com a faca espetada no lado esquerdo do pescoço, numa profundidade de cerca de 5 cm.
16. A vítima não resistiu aos ferimentos infligidos pelo arguido, falecendo no local.
17. Realizada autópsia ao cadáver da vítima verificou-se que:
I - No exame do hábito externo:
a) foram observadas oito soluções de continuidade (de bordos regulares e infiltrados de sangue) cervicais e torácicas e com trajeto em profundidade no corpo da vítima:
- Lesão “A”, na região mandibular esquerda;
- Lesão “B”, na região ântero-lateral esquerda do pescoço;
- Lesão “C”, na face posterior esquerda do pescoço, com 3,2 cm de comprimento;
- Lesão "D”, na face posterior do pescoço, em forma de T invertido, com 7 cm e 4,5 cm de comprimento em cada segmento;
- Lesão “E”, na face posterior direita do pescoço, com 3,7 por 1,8 cm de comprimento;
- Lesão “F”, no terço superior do hemitórax direito, com 2,5 cm de comprimento;
- Lesão “G”, no terço superior do hemitórax esquerdo, acima do seio, com 8 cm por 6 cm de comprimento;
- Lesão "H”, na axila esquerda, abaixo do seio, com 2 cm de comprimento. estas lesões resultaram de traumatismo de natureza corto-perfurante, sendo compatíveis com a informação circunstancial de agressão com instrumento de gume afiado – “faca de cozinha”;
b) foram observadas outras quinze soluções de continuidade superficiais, sem atingimento de planos tecidulares profundos, compatíveis com lesões de defesa, nomeadamente:
- Uma na região mentoniana;
- Uma prolongando-se da região infra-auricular à região mandibular esquerdas;
- Uma no 1º dedo da mão direita;
- Doze nos 1º, 2º, 4º, 5º dedos e primeira prega interdigital da mão esquerda.
estas lesões resultaram de traumatismo de natureza cortante, sendo compatíveis com a informação circunstancial de agressão com instrumento de gume afiado – “faca de cozinha”; as lesões descritas ao nível de ambas as mãos, pelas suas características, número e localização, são compatíveis com “lesões de defesa”;
II. no exame do hábito interno, foi possível definir os seguintes trajetos em profundidade no corpo da vítima:
- Lesão “A”, na região mandibular esquerda: com trajeto penetrante no tecido celular subcutâneo e músculos da região lateral esquerda do pescoço, com continuidade para a lesão “B”. Esta lesão descreveu um trajeto no corpo da vítima de superior para inferior, de anterior para posterior e de lateral para medial;
- Lesão “B”, na região ântero-lateral esquerda do pescoço: com trajeto penetrante no tecido celular subcutâneo, continuando-se em profundidade, atingindo o músculo platisma, esternocleidomastoideu esquerdo, esternohioideu esquerdo, esternohioideu esquerdo, esternotiroideu esquerdo, omo-hioideu esquerdo, a cartilagem tiroideia e cricoide, à esquerda da linha média. Esta lesão descreveu um trajeto no corpo da vítima de posterior para anterior, de lateral para medial e de superior para inferior.
- Lesão “C”, na face posterior esquerda do pescoço: com trajeto penetrante no tecido celular subcutâneo e músculos da região postero-lateral esquerda do pescoço, com continuidade para a lesão “B”. Esta lesão descreveu um trajeto no corpo da vítima de superior para inferior, de posterior para anterior e de lateral para medial;
- Lesão "D”, na face posterior do pescoço: com trajeto penetrante no tecido celular subcutâneo, continuando-se em profundidade, atingindo o músculo trapézio esquerdo, esplénio da cabeça esquerdo, semi-espinhoso da cabeça esquerdo, semi-espinhoso do pescoço esquerdo, esplénio cervical esquerdo, longo do pescoço esquerdo, escaleno anterior, médio e posterior esquerdos e longo da cabeça esquerdo. Esta lesão descreveu um trajeto no corpo da vítima de posterior para anterior;
- Lesão “E”, na face posterior direita do pescoço: com trajeto penetrante no tecido celular subcutâneo, continuando-se em profundidade, atingindo o músculo trapézio direito, esplénio da cabeça direito, semiespinhoso da cabeça direito, esplénio cervical direito, longo do pescoço direito, escaleno anterior, médio e posterior direitos e veia jugular interna direita. Esta lesão descreveu um trajeto no corpo da vítima de posterior para anterior e de superior para inferior.
- Lesão “F”, no terço superior do hemitórax direito: com trajeto penetrante no tecido celular subcutâneo do terço superior da face anterior do hemitórax direito, continuando-se em profundidade, atingindo o músculo grande peitoral direito. Esta lesão descreveu um trajeto horizontal no corpo da vítima, ânteroposterior;
- Lesão “G”, no terço superior do hemitórax esquerdo: com trajeto penetrante tangencial no tecido celular subcutâneo do terço superior da face anterior do hemitórax esquerdo. Esta lesão descreveu um trajeto tangencial no corpo da vítima, no plano horizontal.
- Lesão "H”, na axila esquerda: com trajeto penetrante no tecido celular subcutâneo do terço superior da face lateral do hemitórax esquerdo, continuando-se em profundidade, atingindo o músculo pequeno peitoral esquerdo. Esta lesão descreveu um trajeto horizontal no corpo da vítima, lateral-medial.
18. A morte da vítima BB foi devida às lesões traumáticas cervicais acima descritas, as quais resultaram de traumatismo de natureza corto-perfurante, sendo compatíveis com a agressão com instrumento de gume afiado – “faca de cozinha” – usada pelo arguido.
19. Esta é uma causa de morte violenta.
20. No dia 23 de junho de 2023, pelas 06h30m, foi apreendido:
a) um robe de cor ..., de tecido polar, com uma etiqueta com os dizeres “... 52”, que apresentava vestígios hemáticos da vítima nas pontas de ambas as mangas e no rebordo inferior, o qual se encontrava dentro de um saco do lixo, depositado no caixote do lixo próximo da residência e que ali havia sido levado pelo arguido, momentos antes das 00h47m desse dia 23;
b) uma faca de cozinha, com uma lâmina de 20 cm de comprimento, cabo em madeira de cor ..., sem inscrições apostas, apresentando, na sua extensão total, vestígios hemáticos e, na lâmina, fios de cabelos, a qual se encontrava espetada no pescoço da vítima.
21. Ao atuar da forma acima descrita em 1. a 12., o arguido quis maltratar física e psiquicamente a vítima, sua esposa, muitas vezes na presença dos filhos menores e no interior da residência de ambos, prevendo e querendo provocar na mesma crises de ansiedade e sentimentos de instabilidade, tristeza, humilhação, vergonha, receio e as lesões e as dores que a mesma sofreu, bem como as consequências delas decorrentes, o que conseguiu.
22. Ao atuar da forma acima descrita em 13. a 20., o arguido agiu com o propósito de tirar a vida à sua esposa e de lesar o seu corpo e saúde, surpreendendo-a quando esta se encontrava a dormir, usando de uma faca e atingindo-a várias vezes em zonas do corpo que sabia alojar órgãos vitais para a vida, prevendo com isso que a poderia matar, resultado este que quis e efetivamente veio a acontecer.
23. O arguido sabia também que ao agir do modo supra descrito, concretamente ao abordar a ofendida no quarto quando esta estava a dormir e sem possibilidades de defesa, tal circunstância revelava qualidades da sua personalidade especialmente desvaliosas, por consistir num modo de execução particularmente frio e cauteloso.
24. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Mais se provou que:
25. A vítima não tinha telemóvel.
26. Os factos descritos em 7 ocorreram até à morte da vítima, agravando-se quando esta integrou as atividades organizadas pela Junta da Freguesia, no ano de 2020 ou 2021.
27. Após esfaquear a vítima e confirmar a sua morte, conforme descrito em 13 e 14, o arguido, pelas 00.47 horas, ligou para o filho CC, dizendo-lhe “a tua mãe está morta”.
28. O arguido não chamou socorro ou as autoridades.
29. O filho CC pediu ao vizinho dos pais, AA, que acorresse a casa destes a saber da mãe e telefonou para o 112 que, pelas 00.58 horas, entrou em contacto com o arguido.
30. Quando os bombeiros chegaram ao local, o arguido estava à porta do apartamento a falar com o vizinho AA e recusou a entrada na casa, afirmando que estava tudo bem.
31. O arguido apresentava-se calmo, sem qualquer marca ou vestígio visível de sangue no corpo ou na roupa.
32. Quando os bombeiros, após insistência, lograram aceder ao interior da habitação, não eram visíveis quaisquer vestígios de sangue até ao interior do quarto onde se encontrava a vítima.
33. A vítima estava deitada no chão do quarto, aos pés da cama, com a cabeça na direção da porta, em decúbito ventral, com a faca espetada no pescoço.
34. A maior concentração de manchas hemáticas era visível no lado esquerdo da cama, com projeções na cabeceira, com salpicos cabeceira, nas almofadas, na mesinha de cabeceira do lado esquerdo e na base do roupeiro; e com uma poça de sangue junto à vítima; havia manchas hemáticas no chão, junto ao lado esquerdo da cama e no percurso até ao local onde a vítima se encontrava prostrada.
35. Depois de os bombeiros localizarem a vítima e perceberem o seu estado de óbito, enquanto aguardavam a chegada da GNR e da PJ ao local, o arguido aguardou na cozinha, onde preparou e tomou um café.
36. À chegada da GNR, o arguido estava agitado e agressivo para com os agentes e bombeiros, sendo necessário manietá-lo, com algemagem.
37. Na noite dos factos, o arguido e a vítima jantaram em casa.
38. Na cozinha da casa do arguido, aquando da presença das autoridades no local, o caixote do lixo encontrava-se totalmente vazio, com um saco de plástico intacto colocado no recipiente.
39. No passeio da via pública, por baixo da janela da cozinha da casa do arguido, foi encontrada uma mecha de cabelo da vítima e uma gota de sangue desta.
40. Realizado exame pericial ao arguido, este apresentou-se “vigil, colaborante, com discurso fluente e coerente, algo hesitante”, com “aspecto físico saudável, com mobilidade e funcionalidade conservadas, sem estigmas de intoxicação ou abstinência de substâncias ou de outra doença física ou mental.”, apresentando “apenas descamação cutânea dispersa de tipo eczematoso.”.
41. Durante a avaliação pericial, o arguido apresentou-se sem alterações mnésicas, nem alterações da perceção, sem expressar ideação delirante, nem qualquer alteração formal ou do conteúdo do pensamento, com humor neutro, sem qualquer tonalidade depressiva.
42. Realizada a perícia, concluiu-se que o arguido “não tem evidência de sofrer de anomalia psíquica de qualquer natureza, nem de ter manifestado até à data de hoje, estados alterados de consciência”, pelo que “era, à data dos factos em apreço nos autos, e é, à data actual, capaz de avaliar a sua ilicitude e de determinar o seu comportamento em função dessa avaliação (…)”.
43. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
Das condições pessoais e sociais do arguido
44. Até à data da sua detenção, o arguido constituía agregado com a cônjuge, vitima, numa dinâmica familiar disfuncional, pautada por conflitos entre o casal, pelos ciúmes, controle e alcoolismo do arguido.
45. O arguido encontra-se reformado desde 2021, recebe pensão de reforma de cerca de € 500,00.
46. O arguido está habilitado com o 7º ano de escolaridade.
47. O arguido, durante duas décadas, trabalhou no sector da construção civil, ao serviço da empresa “EMP01...”; posteriormente, trabalhou como ferrageiro em diversos trabalhos temporários, no estrangeiro (..., ... e ...).
48. Nos últimos anos antes da reforma, o arguido esteve desempregado, a executar trabalhos temporários, através do Instituto de Emprego e Formação Profissional.
49. O arguido é seguido no Hospital ..., onde teve acompanhamento na especialidade de psiquiatria, com registo de consulta externa em 23.04.2019, que terminou “Sem outras propostas de momento por esta especialidade.”
50. O arguido tem registo de consulta externa em DSL (Doenças de Sobrecarga Lisossomal) nos dias 13.01.2017 (em que colocou questões sobre a doença de Fabry), 20.04.2018 (com queixas de diminuição da libido), 23.04.2019 (em que considera que do ponto de vista psicológico tem estado estável), 30.08.2019 (em que diz que situação familiar melhorou, inclusive em termos de casal, estável em termos emocionais), 14.02.2020 (em que se queixa que a fala está a desaparecer e nega tristeza ou labilidade emocional), 13.03.2020 (com queixas “da fala”) e 19.02.2021 (com queixas “da fala” e nega tristeza ou ansiedade).
51. O arguido não tem registos de acompanhamento na especialidade de Psicologia no Hospital ....
52. O arguido padece da doença de Fabry.
53. No meio comunitário de residência, o arguido revelava uma postura discreta, ajustada, pouco empática, mantinha relacionamento circunstancial com a comunidade vicinal, frequentando diariamente um café local, onde pouco interagia com os outros clientes, e, raramente era visto na companhia da vítima.
54. O arguido está em prisão preventiva no EP ... desde ../../2023.
55. Em contexto prisional, o arguido tem revelado uma postura aparentemente calma, de adaptação ao normativo institucional; é seguido pelos serviços clínicos do Estabelecimento Prisional ..., sob prescrição farmacológica.
56. Em contexto de entrevista, o arguido revelou facilidade em prestar informações, um discurso coerente, mas de algum entorpecimento emocional, referindo-se à vitima como “a falecida”.
57. O arguido recebe visitas regulares dos irmãos, cunhada e sobrinha; nunca tendo sido visitado pelos filhos, com que não tem contacto.
Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos alegados nos autos ou em audiência de julgamento com interesse para a decisão da causa, designadamente:
A. Que os factos descritos em 3 ocorressem, pelo menos, desde o final da década de 80, altura em que o filho mais velho tinha cerca de 3 anos.
B. Que quando a vítima perguntava à vizinha se ouviu alguma coisa, fosse no dia seguinte a ter discussões com o arguido.
C. Que, no início do ano de 2023, desagradado com a hora a que a vítima chegou a casa depois de ter ido a uma festa com as amigas, o arguido discutiu com a vítima BB e apertou-lhe o pescoço com força.
D. Que o arguido não permitisse que a vítima possuísse telemóvel próprio.
E. Que o arguido sofra de uma anomalia psíquica grave, que o torna incapaz, de avaliar a ilicitude dos seus atos ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
F. Que o arguido padeça de problemas cardíacos e de diabetes.
Motivação
A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º do CPP), sempre no confronto com as regras gerais da experiência e da norma do artigo 127º, do mesmo diploma legal, que estabelece o princípio da livre apreciação da prova. Desde logo, o arguido entendeu prestar declarações apenas em relação ao homicídio, anunciando uma confissão integral e sem reservas e arrependimento. Porém, nem aquela se verificou, neste este, apesar de proclamado, se nos revelou sincero, conforme passamos a analisar e, adiante, apreciaremos. Com efeito, admitindo o que não podia negar, o arguido relatou que, na noite dos factos, depois do jantar e sem qualquer discussão ou incidente prévio – tanto assim que até acertaram ir jantar a casa de uns amigos no sábado seguinte -, a mulher foi para o seu quarto descansar enquanto ele ficou na cozinha a ver um filme; nenhum deles saiu de casa após o jantar, designadamente para despejar o lixo. Mais tarde, quando se ia deitar, voltou à cozinha para encher um copo de água, altura em que abriu a gaveta e viu uma faca que não seria da casa pelo que pegou nela e, sem explicação (“algo se me deu”), foi ao quarto da mulher, que estava a dormir, e deu-lhe “dois” golpes no pescoço. Confrontado com as lesões da vítima, admitiu que a tivesse agarrado pelo cabelo e dado mais do que dois golpes, lamentando que a mulher não o tivesse mandado parar, já que era isso que ele queria ouvir para parar. Segundo o arguido, a vítima não falou nem reagiu. Disse o arguido que a deixou deitada na cama, com a faca espetada no pescoço, voltou à cozinha e sentou-se a pensar no sucedido; depois voltou ao quarto, foi vê-la e confirmou que estava no mesmo sítio, por isso morta. Então ligou ao filho CC a quem apenas disse, repetindo, “A tua mãe está morta”, sabendo que a partir daí viriam as autoridades, pelo que deixou a porta da entrada entreaberta. Negou (embora mais tarde viesse a admitir) ter despejado o lixo, ter usado o robe azul – apreendido nos autos e que identificou como seu – ou ter saído de casa, não encontrando explicação para o caixote de lixo da cozinha estar vazio nem para o saco de lixo ter sido encontrado no contentor, próximo de casa, além do mais, com o seu robe sujo com sangue da vítima. Proclamou o seu arrependimento e a vontade de pedir desculpa “à família da vítima”, sem nunca mencionar os filhos, não apenas da vítima, mas também seus (que apenas mencionaria quando voltou a usar da palavra, no final do julgamento). Serviram estas declarações para, conjugadamente com a restante prova a que se aludirirá, fazer assentar os factos sob os n.ºs 10, 13 a 16, 22 a 24, 27, 28.
Também da parcial confissão do arguido, conjugada com o seu modo de agir aquando dos factos, por inferência e com apoio nas regras da normalidade, extraem-se os elementos psicológicos e volitivos que lhe foram imputados, cujas condutas foram sempre praticadas com firme vontade e plena consciência da respetiva ilicitude. Sobre o relacionamento do casal antes do fatídico dia, embora afirmando-o normal e admitindo que dormissem em quartos separados (pois que a vítima queria ver novelas e ele não), negou, para depois recusar pronunciar-se sobre, a factualidade atinente à violência doméstica. Como veremos, esta versão negatória do arguido não nos convenceu, antes resultou totalmente infirmada por toda a prova que, solidamente, se formou em contrário, desde logo pelas declarações que ambos os filhos decidiram prestar.
CC, filho mais novo do arguido, produziu um depoimento emocionado e carregado de dor que considerámos totalmente credível. Assim, esclareceu que viveu com os pais até há 9 anos (quando tinha 30 anos de idade) num ambiente marcado por uma violência constante, que se lembra existir desde quando era pequeno. Lembra-se do tempo de escola e até do jardim infantil (no período em que viviam no Lugar ...) em que, fechados no quarto, ouviam a mãe a gritar para o pai “Pára” e estrondos contra móveis; depois disto, viam a mãe “negra”, toda marcada. De acordo com a testemunha, o pai exaltava-se por qualquer coisa (“saltava-lhe a tampa”). Admitindo que podia haver períodos (até de dois ou três anos) sem agressões, afirmou as discussões e os bate-boca como recorrentes, quase diários, designadamente por ciúmes. Recordou que o pai, por vezes, chamava a mãe de “puta”, dizia que “andava com outros” homens e não permitia que se maquilhasse. Quando se mudaram para as ... (tinha a testemunha 17 anos), assistiu a uma ou duas discussões, já que se apercebeu que o pai esperava estar sozinho com a mãe para os confrontos, pois era habitual, de manhã, ver as marcas no corpo da mãe e as mechas de cabelo dela pelo chão. Recordou um episódio na cozinha, quando teria 18 ou 19 anos, em que viu um prato a ir contra a parede, acorreu e viu a mãe no chão, com o pai por cima a dar-lhe socos na cabeça; ajudou-a a levantar-se e, nessa noite, tirou-a de casa, “escondeu-a” em casa da tia e a mãe fez queixa na polícia. Depois disto, o arguido ligava-lhe a perguntar pela mulher e a dizer que os matava se ela não voltasse. Ao fim de uma semana, a mãe, com as malas prontas, disse-lhe “estou pronta para voltar para casa”, voltou e “retirou a queixa”. Numa outra vez, numa viagem de regresso da casa da avó, na ..., viu o pai a dar-lhe socos na cara, por não gostar que ela estivesse com os seus familiares, pois “ela era propriedade dele”. Impressionou o sofrimento com que a testemunha recordava que “Se a comida não estivesse pronta, havia porrada”, “se faltassem medicamentos, havia porrada”. Mais relatou a testemunha que, numa outra ocasião, ao chegar a casa, ainda nas escadas, ouviu gritos da mãe e mal entrou no apartamento viu-a deitada no chão, na saída da casa de banho, coberta de sangue, com o pai a ver televisão. Por causa deste ambiente de terror, afirmou que, já adulto, aos fins de semana, só saía de casa depois de se garantir que os pais já estavam a dormir. Nos últimos anos, quando já não residia com os pais, admitiu que ia escassas vezes visitar a mãe (talvez duas vezes por mês e nas datas festivas), ali permanecendo pouco tempo, pois que não gostava da “energia daquela casa”. Não obstante, apercebeu-se que a mãe começou a dormir no quarto que era da testemunha e do irmão. Entende que, depois de uma pelo menos aparente “melhoria” (já que a mãe lhe escondia “muita coisa”), após a mãe integrar o grupo da junta de freguesia e passar a sair mais, em passeios e excursões (nos últimos dois anos) o pai, que a não acompanhava, “piorou”, tornando-se ainda mais ciumento e possessivo.
Este foi um depoimento totalmente sincero, carregado pela culpa por nunca ter tido coragem de enfrentar o pai, assumindo a testemunha ainda hoje sentir medo dele (tanto assim que pediu a prestação do testemunho na sua ausência). Ficou clara a impressão do ambiente de terror vivido naquela casa, onde a testemunha regressava sem gosto, quase por obrigação, apenas para ver e saber da mãe, o que fazia de forma mais ou menos concertada e alternada com o irmão (“vais lá tu ou vou eu?”).
Sobre a noite do homicídio, relatou a chamada do pai que recebeu pelas 00.45/00.50 h quando, já a dormir, ele lhe disse “ouvi um estrondo muito grande no quarto, a tua mãe deve ter caído”; à pergunta “Está tudo bem?”, o pai respondeu-lhe “Não, CC, a tua mãe está morta”. Disse a testemunha que, aturdida, desligou o telefone mas logo voltou a ligar e perguntou ao pai “como sabes que está morta?”, tendo ele dito “Meti-lhe as mãos no pescoço e vi”. Neste momento, a testemunha ligou para os bombeiros, encaminhou-se para as ... enquanto, depois de tentar ligar para o irmão (que não atendeu), ligou para o vizinho AA, a quem pediu para ver se estava tudo bem com a mãe. Quando chegou ao prédio, já lá estava a polícia, a ambulância e o dito AA que não o deixou subir ao apartamento.
Confirmou que o pai bebia muito (cerveja e vinho branco), que passava o tempo todo em casa, normalmente de roupão; que a mãe não tinha telemóvel porque não sabia mexer no aparelho.
Como dito, o depoimento, apesar de emotivo, foi absolutamente claro e esclarecedor, não vislumbrando o tribunal sinais de exagero ou de mentira: note-se que, perguntado sobre a possibilidade de arbitramento de uma quantia para reparação dos danos, a testemunha recusou-a, afirmando não querer nada do pai (com quem não fala desde a data dos factos); da mesma forma foi sincero em explicar a não utilização de telemóvel pela mãe, negando que tal resultasse de proibição imposta pelo arguido. Em conformidade, reputamos o depoimento de credível e nele assentamos a nossa convicção, em conjugação com a restante prova convergentemente produzida, para assentar os factos sob os n.ºs 3 a 10, 12, 21.
Sobre a matéria da violência doméstica, como dito, o depoimento desta testemunha, conjugado com o do irmão, que analisaremos de seguida, foi decisivo (já que os atos, ocorridos sempre no interior da residência e escondidos pela vítima, não tinham outros testemunhos diretos).
Apesar de o arguido recusar pronunciar-se sobre estes factos, não se olvida o ato posterior ao crime pelo próprio assumido e que comprova a forma como tratava não apenas a mulher, mas também os filhos: depois de assassinar a esposa da forma em que o fez, depois de se sentar a pensar no sucedido, depois de confirmar a sua morte, o arguido, fria e calculisticamente, em vez de poupar o filho ao que sabia ser a mais terrível das notícias, decidiu colocá-lo na mais cruel posição possível: acorda-o para, de chofre, lhe dar a notícia “a tua mãe está morta”; desliga o telefone e deixa-o a angustiar. O arguido nem sequer cuidou de ligar para o 112, certo de que esse encargo seria assumido pelo filho, tanto assim que deixou a porta entreaberta, para permitir a entrada do filho e das autoridades. Ora, esta atitude é claramente de um pai que não protege e que não ama, antes revela o absoluto desprezo e indiferença para com os sentimentos dos outros: momentos antes, com a faca, teve o definitivo ataque para com a esposa; agora, com a mesma crueldade embora de forma não fatal, levou a cabo a derradeira agressão para com o filho. Este foi, portanto, o culminar de uma vida de violência, conforme reiterou o outro filho e testemunha, AA.
Assim, AA, filho do arguido que saiu da casa dos pais aos 25 anos (há cerca de 15 anos), descreveu a vida em casa: “foi uma constante desde que me lembro de mim”. Relatou um episódio – que compreensivelmente o marcou -, num domingo de manhã, quando criança chegou a casa depois de um jogo de futebol da sua equipa e viu cabelos da mãe espalhados pelo chão e esta com uma marca no nariz. Noutros casos, relatou estar presente quando ouvia o pai chamar a mãe de “puta” e “minha cabra”; recordou que, “no inicio” (quando crianças) ele e o irmão só ouviam os gritos da mãe que dizia “pára AA”; admitindo que com o tempo ela passou a responder-lhe também, pois, “nesta última fase já estava farta”. Referiu que estes episódios ocorriam por fases, mas o ambiente da casa era sempre pesado, ao ponto de os filhos da testemunha (agora adolescentes) não quererem ir a casa dos avós. Descreveu o pai como muito ciumento, que não deixava a mãe vestir o que queria, levando-a a deixar de se tratar (sabendo ele, por fotografias antigas que, no passado, era uma mulher muito vaidosa); já da mãe referiu que tratava de tudo para que nada faltasse ao pai. Recordou a vez em que, já a morar fora de casa, recebeu um telefonema a dizer que a mãe estava de robe, à porta da entrada do prédio, toda pisada; foi com ela à GNR apresentar queixa e o irmão levou-a para casa da madrinha. Acha que dois dias depois, o pai foi buscar a mãe a casa da madrinha “e parecia que não tinha acontecido nada”, tendo voltado a viver juntos, mesmo contra o conselho e pedido dos filhos. Confirmou que o pai ameaçava a mãe que “Qualquer dia dou cabo de ti”, “qualquer dia atiro-te lá abaixo” e era comum dizer que os filhos não eram dele. Com evidente mágoa, referiu não ter uma única memória boa partilhada com o pai. Esclareceu que, mesmo depois de ter saído de casa e até à morte da mãe, ia lá quase todos os dias, por vezes à noite, só para escutar à porta e perceber se havia barulhos; se ouvisse a voz do arguido, entrava para verificar se estava tudo bem. Recordou que, anos depois do irmão sair de casa, a mãe passou a dormir no quarto que era deles tendo numa das vezes que lá foi se percebido que a mãe estava fechada à chave no quarto.
Sem ordem cronológica – o que se compreende pela espontaneidade com que ia relatando os episódios que, como se percebe, eram múltiplos ao longo de vários anos – recordou as vezes em que chegou a meter-se no meio dos dois, para impedir o pai de avançar sobre a mãe, referindo-se à situação em que (com cerca de 20 anos de idade) agarrou o pai por trás e ele disse “está a dar-me aquilo no coração” ao que o largou e logo ele lhe desferiu um soco na cara que lhe abriu o lábio. Diz que, já adulto, disse ao pai “Se voltas a tocar num cabelo da mãe, dou cabo de ti”, considerando que ele passou a ter respeito (ou receio?) por si, tendo havido “uma paragem” na violência, até ele sair de casa. Porém, garantiu que mesmo depois de sair da casa dos pais, viu muitas vezes a mãe com a cana do nariz inchada, limitando-se a dizer “ele é teu pai”. De acordo com a testemunha, a mãe “protegia-o sempre”, encobrindo o seu sofrimento. Embora admitindo que o álcool punha o pai diferente (o que até identificava pela fala), garante que não era a causa do seu comportamento, pois que também era violento logo pela manhã.
Confirmou que, nos últimos anos, a mãe integrou um grupo da junta de freguesia e passou a ter mais atividades (ginástica, passeios), o que era do desagrado do pai, que chegou a queixar-se-lhe “ela agora anda sempre fora de casa”, pois que o almoço não se faria sozinho (mesmo tendo a mãe deixado tudo preparado).
No dia da morte da mãe, esclareceu que falou ao telefone com os dois, tendo até ficado com boa ideia do pai, que estava calmo e “apaziguador”. Com a mãe falou pelas 19.30 horas, mais uma vez a pedir-lhe calma, tendo gravada a frase que ela lhe disse: “não te preocupes, acredita na mãe, vai ficar tudo bem.”
Em lágrimas e claro sofrimento, recordou que, mais tarde, não atendeu a chamada do irmão e pediu à companheira para também não a atender, como que antevendo que trazia notícias trágicas; só quando a cunhada DD ligou, atendeu e recebeu a frase rápida “o teu pai matou a tua mãe”, após o que tem poucas memórias dessa noite, embora sabendo que não foi a casa dos pais.
Confirma o vinho que os pais bebiam (identificando as garrafas fotografadas a fls. 117) bem como o robe usado pelo pai, que sempre usava dentro de casa; garantiu que a mãe recusava usar telemóvel (mesmo tendo os filhos lhe oferecido um).
Com emoção, recordou a perda da mãe, que considerou o elemento agregador da família e a “muleta” do pai, afirmando que durante cerca de dois meses não quis saber pormenores do crime, que na sua cabeça queria ver como um acidente.
Finalmente, à semelhança do irmão, recusou a possibilidade de arbitramento de qualquer reparação ou indemnização.
Ora, como dito, este depoimento, absolutamente sincero e credível, concordante com o testemunho do irmão, confirmou o ambiente de terror vivido naquela casa pela vítima, durante largos anos, sempre em silêncio e em encobrimento, embora não totalmente conseguido em relação aos filhos que, como dito, o perceberam – até porque também o viveram –, levando-os a, por um lado, querer sair daquela casa e não mais lá voltar (pelo pai), e por outro, a um constante estado de alerta e sobressalto que os punham em cuidados (pela mãe), ao ponto de o filho CC só sair (à noite) depois de garantir que os pais já dormiam ou de o filho AA ir escutar à porta da casa a perceber se havia necessidade de entrar (do que se dispensava se tudo estivesse calmo). Veja-se o pressentimento do filho AA que não quis atender as chamadas na fatídica noite, como que se ao assim agir evitasse a realidade de que não podia fugir. Todos estes factos são absolutamente elucidativos do que era o ambiente vivido dentro daquelas quatro paredes, conforme demos por assente sob os n.ºs 3 a 10, 12, 21.
AA, vizinho residente no ... andar do mesmo prédio do casal, conhecia o arguido e a vítima, tendo já feito “um servicinho” na casa deles. A testemunha relatou que nunca teve problemas com estes vizinhos, nunca tendo ouvido discussões, apesar de afirmar que o arguido tinha um problema com álcool, pois que o vira muitas vezes embriagado e, outras tantas, à janela, a fumar, sempre com o copo de vinho branco na mão. Sobre a vítima, descreveu-a como pessoa alegre, bem disposta e sorridente. Da noite dos factos, recordou estar a dormir quando, perto da 1 hora da manhã, recebeu telefonema do CC a pedir-lhe “vai-me lá abaixo, acho que aconteceu uma tragédia”. Disse que desceu ao apartamento dos vizinhos, onde encontrou a porta de entrada entreaberta, ouvindo o arguido ao telemóvel. Este, quando se apercebeu da sua presença, perguntou-lhe o que fazia ali, afirmou-lhe que estava tudo bem e não o deixou entrar em casa, expulsando-o aos empurrões, razão porque não chegou a ver a vítima. De acordo com a testemunha, cerca de dez minutos depois, chegaram os bombeiros, que entraram na casa e mandaram ligar para a GNR “porque a senhora está morta”. Do contacto com o arguido nesta noite, apercebeu-se que este cheirava a álcool. Confrontado com a fotografia da faca retirada do pescoço da vítima, identificou-a como sendo igual à faca que antes o arguido usou para cortar pão, no lanche que lhe ofereceu. Com este depoimento, assentamos os factos elencados sob os n.ºs 29 a 31.
EE, Guarda-Principal da GNR ..., foi o agente autuante de fls. 4, cujo teor reiterou. Esclareceu que, na noite dos factos, em serviço de piquete, foi chamado ao local por uma agressão em contexto de violência doméstica, com uso de arma branca. No local, viu a senhora deitada, com vários ferimentos e a faca alojada no pescoço. O arguido, na cozinha, tinha um discurso pouco coerente, exaltado e agressivo (estado que já havia sido reportado pelos bombeiros que primeiro chegaram ao local), tendo sido necessário manietá-lo. A testemunha acionou a Polícia Judiciária para os ulteriores procedimentos. Recordou a presença de um vizinho e do filho da vítima, este muito transtornado, tendo sido encaminhado para o hospital, sem que fosse possível ouvi-lo em declarações. Sobre o local do crime, referiu que foi encontrado cabelo no exterior, junto à varada, o quarto tinha muito sangue, mas não havia vestígios pelo resto da casa. Fizeram diligências nos contentores próximos da casa, onde encontraram um saco de lixo com roupa com sangue, o que foi fotografado (a fls. 115 a 118) e apreendido nos autos (a fls. 32). Com este depoimento, assentamos os factos elencados sob os n.ºs 31 a 34, 36, 38.
FF, Inspetor da PJ de ... que na noite dos factos estava em serviço de piquete, foi acionado para o local, tendo lavrado os autos e relatório cujos teores reiterou (a fls. 20 e ss). Conformou que, chegado ao local, encontrou o arguido na cozinha, algemado pela GNR, por estar agressivo; no quarto, observou projeções de sangue por trás da cama (onde terão começado as agressões); sangue na sanita e cabelos. Já o arguido apresentava-se sem sangue aparente nas mãos, embora se tenha vindo a apurar a existência de vestígios de sangue que se confirmaram ser da vítima. Porque estranharem o caixote do lixo estar vazio, procuraram nos contentores nas proximidades sacos idênticos aos que existiam na casa e encontraram um saco, com roupão com sangue, o qual foi apreendido e se mostra fotografado (a fls. 111 a 118).
GG, Bombeiro das ..., descreveu a chamada que recebeu pelas 00.50 horas, do filho do arguido; no local, encontraram a porta aberta, subiram ao apartamento em cujo interior estava o arguido, com a porta entreaberta, com um amigo no exterior, afirmando que não havia problema nenhum; o arguido começou por recusar o acesso que só franqueou ao fim de 3 ou 4 minutos quando, recuando na porta, os deixou entrar e disse “ela está aqui morta”, apontando para a vítima, deitada no chão, próxima da entrada do quarto, com a faca espetada no pescoço. A pergunta do colega, o arguido disse “não durmo com ela há seis meses, não sei quem cá vem pinar à noite, ouvi um barulho, vim ver e ela estava morta”; por indicação dos bombeiros, retirou-se para a cozinha onde tirou e bebeu um café, enquanto aguardavam pela chegada do Comandante e da GNR. O arguido estava agitado e agressivo, mesmo para com os agentes da GNR que entretanto chegaram ao local e que tiveram de o algemar. O arguido exalava cheiro a álcool. À saída, viram o filho à entrada do prédio, onde não lhe foi permitido entrar. Fica assim corroborada a prova dos factos sob os n.ºs 30 a 36, 38.
HH, residente no mesmo andar (2º direito) do prédio do arguido e da vítima, na noite dos factos, pelas 23.30/00.00 horas (quando estava à janela a fumar o último cigarro), viu o arguido a sair e levar o lixo, o que estranhou por nunca antes tal ter acontecido, já que era sempre a vítima que levava o lixo de manhã, quando saía. Pouco depois, alertada pelo filho sobre o aparato que se gerou, veio à porta e viu o arguido no hall, com os agentes, a quem perguntou o sucedido tendo ele respondido “foi a BB que se sentiu mal”. Esclareceu que, nesse dia, cerca das 19.00 horas, esteve com o arguido e com a vítima, sem que nenhum se apresentasse alterado, apenas esta se mostrava “cansada”.
Sobre situações anteriores, a testemunha apenas relatou atitudes da vítima que estranhou, e agora talvez compreenda: várias vezes a vítima perguntava-lhe se ouvia alguma coisa de casa dela, tendo até perguntado “ouço o quê?”, não percebendo o propósito da questão, já que nunca ouvira discussões, apenas vozes; era habitual as amigas da vizinha tocarem na sua campainha, sem que a da casa desta estivesse avariada; uma vez, em que foi com ela foi tomar o pequeno almoço, a vítima revelou-se receosa por passar a estar mais tempo em casa, “não sabia se se ia dar bem”, sem nunca se queixar do marido; numa outra ocasião, quando ia arranjar umas calças da vítima (pois que é costureira), viu-lhe uma negra na perna que, segundo a vítima, resultou duma pancada num móvel;
também sobre arranjos de roupa, recordou que ela recusou algumas ideias por serem mais destapadas e o marido não gostar, levando a testemunha a perguntar se o marido era ciumento, ao que ela respondeu que sim.
Sobre os filhos, refere que o AA ia muitas vezes a casa dos pais, ao passo que o CC ia menos vezes e costumava ficar à porta do prédio, onde a mãe ia ter com ele.
II, sem conhecer o arguido, esclareceu que conheceu e se tornou amiga da vítima cerca de 2 anos antes da sua morte, por conta das atividades da junta da freguesia, que ambas passaram a frequentar (confirmando o relato dos filhos e permitindo assentar, datando, o facto descrito sob o n.º 26), que as aproximou. Apesar de a vítima frequentar a casa da testemunha, esta esclareceu que nunca entrou na casa dela, tendo uma vez dito “não a convido porque o meu marido não é muito simpático”, contando que já chegara a pôr uma amiga fora de casa.
Relatou o cuidado que ela sempre tinha com o marido, acautelando que tinha sempre o almoço ou o jantar pronto, como sucedeu numa vez que, após um convívio partidário no Porto (em abril de 2023) foram ambas a um concerto nas ..., relatando-lhe a vítima no dia seguinte que o marido lhe apertou o pescoço quando chegou a casa pelas 23.00 horas na noite anterior (facto que, não obstante, por não verificado, foi dado como não provado). A vítima também lhe confidenciou que ele a insultava, que lhe dizia que os filhos não eram dele; deu-lhe a entender que não a deixava usar telemóvel (assim controlando todas os seus contactos, que passavam pelo telefone fixo da casa), que não gostava que se cuidasse (por isso usava o cabelo preso e sempre roupas largas), embora nunca tenha dito que lhe tenha batido. Sobre o dia da morte, recordou que ela estava muito bonita, a usar um vestido que a testemunha lhe oferecera e que mereceu os elogios de toda a gente na atividade desse dia (bingo), achando que o sucedido se deveu a ciúmes.
JJ, Inspetor da PJ de ... integrou a equipa dos homicídios que foi contactada pelo piquete para acorrer ao local. Aí, inquiriu um vizinho após o que acedeu ao apartamento onde apreendeu e examinou os objetos retratados no auto de fls. 32 e 33. No local, encontrou o arguido na cozinha, sentado, com dois agentes; nessa altura viram o balde do lixo vazio pelo que, com a ajuda dos militares da GNR, procuraram nos contentores da proximidade, onde recolheram o saco, conforme fotografias fls. 115 a 117. Confirmou que, apesar do banho de sangue no quarto, não havia rastos ou vestígios no arguido ou na casa, com exceção de umas gotas que encontraram na casa de banho.
Pela defesa, foram ouvidos dois irmãos do arguido: KK afirmou visitá-lo na prisão, juntamente com as duas irmãs e a sua companheira, referindo a doença (Fabry) de que ambos sofrem; afirmou que nunca assistiu a insultos ou agressões, relatando apenas um caso em que, parado no carro ao lado do irmão, este o ignorou, vindo mais tarde a saber (pelo arguido) que era mulher que o proibia de estar com a família; também LL aludiu também à doença que partilha com o irmão e bem assim das visitas que faz no estabelecimento prisional, onde o encontra “debilitado” e arrependido.
Ora, na certeza de que as doenças de que padecem o arguido apenas (e facilmente) se comprovam de forma documental (o que não ocorreu quanto aos alegados, mas não comprovados, problemas cardíacos e diabetes) e que a sua atual reclusão (que porventura perspetiva longa) não será motivo de alegria ou ânimo, nada de novo ou relevante foi trazido por estas testemunhas, sendo que a informação prestada pelo irmão não nos mereceu qualquer credibilidade, sequer relevância: porque razão estaria o arguido impedido (por ordem da mulher) de olhar ou acenar ao irmão, no carro? Não será mais plausível que, a ter acontecido, o arguido o não tenha visto? Como dito, irrelevante.
Complementarmente com toda esta prova, mereceu especial relevância as perícias realizadas nos autos, atenta a idoneidade, isenção e indiscutível conhecimento técnico que se reconhece aos Peritos que subscreveram os competentes relatórios periciais, os quais não foram objeto de impugnação ou reserva por nenhum dos sujeitos processuais. Deste modo, valorou-se positivamente, os relatórios de exame ao local de fls. 86 a 119 (factos n.ºs 15, 31 a 34, 38 e 39), de ADN de fls. 283 a 284 e 287 (facto n.º 39); de autópsia de fls. 303 a 317 e 321 a 323 (factos n.º 17 a 10) e de perícia psiquiátrica forense de fls. 398 a 400 (factos n.º 40 a 42).
Mais atentamos nas certidões de assento de nascimento de fls. 11 e 12, 272 a 274 (factos n.º 1 e 2), nos autos de exame ao hábito externo do cadáver de fls. 26, de apreensão de fls. 32 (facto n.º 20); de exame direto de fls. 33; informação da ... de fls. 69 (factos n.ºs 27 e 28); ficha do CODU de fls. 182; transcrição da comunicação com o INEM de fls. 201 a 204; informações clínicas do arguido, certificado de registo criminal e relatório social de fls. 402 a 404 (factos n.ºs 43 a 57).
Analisada toda a prova, revisitemos, agora, as declarações do arguido. Sabemos – e já deixamos dito supra – o que nos disse. Vejamos o que não disse, porque omitiu ou porque mentiu, assim apreciando a credibilidade das suas declarações e a autenticidade do seu anunciado arrependimento, repetido no final da audiência.
Ora, sabemos que quanto à violência exercida sobre a esposa durante a constância do casamento, e que resultou provada, o arguido nada disse.
Quanto à noite do homicídio: tendo referido que jantara com a vítima em casa (facto n.º 37), o arguido não explicou como o balde do lixo da cozinha não tinha qualquer resíduo (facto n.º 38) que necessariamente resulta da refeição (quer da sua confeção, quer da limpeza que se lhe seguiu); negou ter ido despejar o saco de lixo, porém sabemos que foi ele quem o fez, já depois do jantar e depois crime (pois que, sendo a única pessoa com vida na casa, até foi visto pela vizinha e no saco foi encontrado um robe seu com vestígios hemáticos resultantes dos ferimentos da vítima); nota-se que o arguido não se limitou a retirar e despejar o saco do lixo, ele chegou ao ponto de colocar no recipiente um saco novo! A irrefutabilidade desta prova destituiu valor à admissão do arguido que, depois de com ela confrontado, entendeu admitir o que era óbvio e antes negara. O arguido também afirmou que desferiu apenas dois golpes, no pescoço, porém sabemos que foram arrancadas mechas de cabelo (facto n.º 39) e desferidos múltiplos ataques ao corpo da vítima, produzindo nela extensos e profundos golpes (facto n.º 17) que, para além de lhe causarem a morte, quase separaram a cabeça do corpo; disse (para depois negar) que a vítima não reagiu, não falou e não se mexeu, porém sabemos que tinha múltiplos golpes defensivos (nas mãos, braços e pernas – facto n.º 17, I, b), pelo que necessariamente falou/gritou, também sabemos que foi encontrada fora da cama onde foi atacada (facto n.º 33), pelo que movimentou-se, com a faca espetada no pescoço, deixando o rasto de sangue que é visível no quarto até ao local onde ficou prostrada; sabemos que os golpes de faca produziram projeções abundantes de sangue da vítima (facto n.º 34) e que o arguido, para os desferir, tinha de estar sobre ela, no entanto apresentou-se às autoridades sem vestígios (pelo menos visíveis) de sangue na roupa e no corpo (facto n.º 31), o que necessariamente significa que ele se lavou, facto que não referiu; também sabemos que o arguido, para agredir a vítima da forma que o fez, esteve sobre ela, no interior do quarto, donde saiu e onde diz ter reentrado para a verificar, com o que teria de deixar marcas de sangue no percurso do quarto à cozinha (pelo menos), marcas que não existiam (facto n.º 32) o que, mais uma vez significa que, necessariamente, o arguido, depois do crime, cuidou de limpar o sangue no chão da casa, fora do quarto. Perante a evidência desta prova e das conclusões que dela necessariamente se retiram, o arguido, na última sessão de julgamento, entendeu admitir que, para além de despejar o lixo, a vítima afinal mexeu-se, após o primeiro ataque, tentando segurar a faca, com o que sofreu os golpes que lhe foram verificados, em número superior ao inicialmente indicado de dois.
De tudo quanto se deixa dito resulta, para nós claro, que na noite dos factos, depois de matar a mulher, o arguido agiu de forma incrivelmente meticulosa e cuidadosa, lavando-se, vestindo-se, preparando a casa para o que sabia ser o inevitável encontro com as autoridades, que, no entanto, nunca chamou.
A contrastar com esta atitude de cuidado, o absoluto desprezo e indiferença para com o corpo da esposa, prostrado no chão à porta do quarto, com a faca no pescoço, relativamente ao qual não teve um único gesto de atenção que, por vezes, evidenciam o remorso ou o arrependimento do homicida: não pediu ajuda (ao 112 ou aos vizinhos) para tentar salvar a vítima, não tentou retirar-lhe a faca do pescoço, não voltou o corpo (em decúbito ventral) para ver-lhe a respiração, para tentar fazer manobras de reanimação, para dar um último beijo à esposa ou até para cobrir o corpo dela (que apenas vestia uma cueca) com um lençol, não apenas por decoro da esposa mas até para se poupar a vê-la em tal chocante estado (recorde-se que ele andava pela casa ocupado com as limpezas e, depois, ficou calmamente a aguardar pela chegada das autoridades) e, talvez mais importante, para poupar os filhos a verem a mãe em tal estado, caso eles lá acorressem após a sua chamada. Nada disto se viu no comportamento do arguido naquela noite em que, embora refletindo e agindo metodicamente, apenas pensou e cuidou de si. Não há, pois, qualquer vislumbre de arrependimento na atitude do arguido, nem na noite dos factos, nem posteriormente, designadamente em julgamento onde, como deixamos vastamente analisado, nada do que disse fez denotar sequer empatia (pela esposa ou pelos filhos), muito menos pesar ou contrição, o que não se alterou com as suas últimas declarações, onde fez referência a um “pedido de desculpa à família e aos filhos”, vazia de sentido ou emoção. Nas declarações e atitude do arguido, quanto muito, vislumbra-se apenas o lamento pela situação em que ele se encontra, pelo seu estado de saúde e pela vida que lhe sobra viver.
Temos, assim, que nem o arrependimento foi sincero, nem a confissão (ainda que tardiamente completada) foi integral (já que muito ficou por admitir e esclarecer) ou sequer espontânea (já que a negação inicial apenas foi revertida depois da evidência da prova produzida).
Enquadramento jurídico-penal
Cumpre agora subsumir o manancial fáctico apurado no respetivo enquadramento jurídico.
O arguido AA vem acusado pela prática, como autor material, na forma consumada, em concurso efetivo, de um crime de violência doméstica e um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma.
Analisemos, portanto, cada um dos tipos legais em causa.
O crime de VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Como dito, o arguido vem acusado de um crime de violência doméstica, na pessoa da ofendida BB (p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a), n.º 2, al. a), n.º 4 e 5 do Código Penal).
O artigo 152.º do Código Penal, sob a epígrafe «Violência doméstica», preceitua: “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge (…); é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) (…); é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.” (…) 4 – Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 – A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 – (…)” (destaque nosso).
Este tipo legal de crime, na vertente da violência exercida pelo agente sobre o cônjuge, ex-cônjuge ou pessoa com quem vive em condições análogas às dos cônjuges, visa proteger o bem jurídico da saúde destes enquanto bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, o qual pode ser afetado por uma multiplicidade de comportamentos que atingem a dignidade pessoal daquela (cf., neste sentido, Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, I, Coimbra, 2012, p. 512).
Acompanhando a progressiva consciencialização da gravidade individual e social dos comportamentos violentos perpetrados no seio da família e abandonando a conceção tradicionalmente prevalecente do lar conjugal como um espaço tendencialmente autorregulador da atuação dos seus membros e subtraído, por natureza, à intervenção do direito penal, o legislador assumiu o inequívoco propósito de prevenir e reprimir as mais relevantes formas da chamada violência doméstica, convocando, para o efeito, o subsidiário sistema das reações criminais. Como se escreve no Acórdão do STJ, de 07.02.2018: (…) [o] crime de violência doméstica é um caso paradigmático de neocriminalização fundamentada, revelando a preocupação do legislador em recorrer à via repressiva para erradicar tanto quanto possível esta forma de violência, muito disseminada na sociedade, onde ainda persistem resquícios de uma mentalidade patriarcal hoje completamente anacrónica, sendo embora certo que o fenómeno é transversal a toda a sociedade, e não específico de certos estratos sociais, que geralmente incide sobre as mulheres, e que até há pouco tempo não merecia uma censura social correspondente à sua danosidade e à sua reprovabilidade. Este tipo de violência é com efeito de enorme gravidade: praticada geralmente na sombra do lar, sem testemunhas, dirigida contra pessoas indefesas, quer pela fragilidade física, quer pela idade (menoridade ou idade avançada), quer pela “hierarquia” de posições (no caso de o ofendido ser filho), quer pela relação de domínio psíquico que o agressor consegue, pela violência ou pela astúcia, estabelecer sobre a vítima, acabando na grande maioria das vezes por reduzi-la a um ser sem vontade própria, sem capacidade de afirmação pessoal, muito menos de reacção perante qualquer agressão, inclusivamente sem capacidade de denúncia junto das autoridades, ou mesmo de familiares ou confidentes, das violências sofridas (acessível em www.dgsi.pt/jstj, Processo nº312/15.9POLSB.S1, relator MAIA COSTA). Este tipo legal de crime foi, pois, criado na sequência da consciencialização de que no seio da família existem frequentemente situações violentas, ao arrepio dos valores inerentes a tal instituição num Estado de Direito, que consagra que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, nomeadamente no seio familiar (cfr. artigos 13º e 67º, da Lei Fundamental) e a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges no casamento (cfr. artigo 1671º, nº1, do Código Civil).
Este crime, à semelhança do antecedente crime de maus tratos, pode unificar, através do elemento da reiteração, várias condutas subsumíveis a diversos tipos legais de crime, designadamente, à ofensa à integridade física, à ameaça, à coação, à difamação, à injúria ou à violação.
A necessidade de criminalização das condutas abrangidas pelos ilícitos penais em apreço adveio da progressiva consciencialização acerca da gravidade de um fenómeno social do qual “são vítimas pessoas particularmente vulneráveis e indefesas em razão dos vínculos, nomeadamente de natureza familiar ou análoga, que as liga às pessoas dos seus agressores e em resultado dos quais se estabelecem entre estes e aquelas relações de subordinação ou de domínio de facto, que as colocam em situação de dependência económica e/ou emocional” (cf. Ac. da Rel. do Porto, de 30.01.2008, proc. nº0712512, in www.dgsi.pt).
Para além disso, e como se refere no mesmo douto acórdão, “pretendeu-se, pois, contrariar um sentimento de impunidade – encorajado pelo facto de tais condutas serem habitualmente praticadas em círculos privados ou muito restritos, longe dos olhares alheios, nem sempre denunciadas e ainda mais raramente reclamada a sua punição até às últimas consequências, seja por medo de represálias, vergonha de expor publicamente a situação ou falta de capacidade para o fazer (circunstâncias, aliás, propiciadoras da sua proliferação) –, bem como travar a espiral de violência em que se traduzem e os demais efeitos nocivos que desencadeiam, reprimindo a sua prática”.
Confrontando este novo tipo legal de crime com o anterior artigo 152.º, nº1, al. a), e nº2, do Código Penal, na redação anterior à Lei nº59/07, de 4.09, conclui-se que, aparentemente, o âmbito de proteção daquele (mais recente) é mais amplo, na medida em que deixou de exigir o carácter reiterado da conduta. Contudo, parece que a intenção do legislador foi esclarecer que o preenchimento do ilícito penal em apreço não depende de uma atuação reiterada, não devendo, todavia, prescindir-se da especial violência e gravidade do mal infligido quando esteja em causa uma ação isolada – o que, aliás, vinha sendo o entendimento sufragado pela generalidade da jurisprudência na vigência do anterior crime de maus tratos (cf., neste sentido, o Ac. da Rel. do Porto, de 30.01.2008, supra citado), sob pena de se incluírem nesta norma incriminadora situações que não refletem necessariamente o fenómeno da violência doméstica.
Determinados factos que integram o crime de maus tratos podem assumir relevância penal autónoma: as ofensas à integridade física, as ameaças, as injúrias ou as difamações que, via de regra, se recortam no crime de maus tratos são suscetíveis de constituir, de per si, ilícitos típicos singularmente valoráveis, que, assim avaliados, acabam por refletir uma conduta menos desvaliosa do que aquela que corresponde à imagem global dos factos pressuposta pelo tipo incriminador consagrado no artigo 152.º, nº1, do Código Penal.
A Jurisprudência tem densificado as exigências do tipo legal de crime da violência doméstica, nos seguintes termos: “Nem toda a ofensa inserida no meio da vida familiar e doméstica representa imediatamente maus tratos, pois estes pressupõem a ofensa da integridade física ou psíquica de modo especialmente desvalioso e por isso particularmente censurável”, sendo que “decisivo é atentar no caracter violento do acto ou na sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma” – cf. Ac. do TRP de 2.12.2015 e 8.07.2015, ambos in www.dgsi.pt. Também já se expendeu que “no crime de violência doméstica, a conduta apta a lesar o bem jurídico - a saúde física, psíquica e emocional - há-de ultrapassar o razoável, exigindo-se que revele um tratamento degradante ou humilhante, colocando em causa a própria dignidade da pessoa humana, como seja a redução da pessoa a uma coisa sem vontade própria e sem o reconhecimento da sua personalidade” – cf. Ac. do TRP de 18.02.2015 e 10.09.2014, ambos in www.dgsi.pt.
Sufragamos, igualmente, o entendimento de que “sendo hoje inequívoco que a tutela da violência doméstica se projeta não apenas sobre casos de reiteração ou habitualidade de comportamentos violentos, mas também potencialmente aplicável a uma conduta violenta, não é qualquer ação isolada de violência exercida no âmbito doméstico que poderá ser qualificada como de maus tratos com vista ao preenchimento do tipo. Importa, nesses casos, descortinar se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus tratos” – cf. Ac. TRE de 24.02.2015, in www.dgsi.pt.
Constituem elementos objetivos do ilícito criminal em referência, a produção de uma ação que, por qualquer modo, cause uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem, ou de algum modo perturbe, modifique ou altere desfavoravelmente o estado de equilíbrio psicossomático da pessoa. Para além disso, a ação típica poderá ainda traduzir uma ofensa ao equilíbrio psíquico da vítima (humilhações, provocações, molestações, ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaças, coação, sequestro, injúria, difamação, coação sexual, etc.).
Deste modo, as condutas previstas e punidas pelo artigo 152º, do CP, podem ser da mais diversa natureza, sendo a sua enumeração meramente exemplificativa (e não taxativa) – vide TAIPA DE CARVALHO (Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume II, artigos 152º e 152º-A, 2ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p.515) e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE (Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, Outubro, 2010, p.465, ponto 4) – o que bem se compreende, visto que o bem jurídico protegido por esta incriminação é complexo e plural – a saúde, numa aceção biopsicossocial –, e pode ser lesado por uma multiplicidade de comportamentos.
Assim, este ilícito típico é um crime de execução não vinculada, podendo as condutas que o integram ser muito variadas, não restringindo a forma sob a qual a conduta criminosa pode ser empreendida, exigindo-se apenas que esses atos ou omissões sejam adequados a afetar o bem jurídico supra identificado.
Do que fica sobredito resulta que no crime de violência doméstica o comportamento imputado ao agente, normal e tendencialmente, pode ser suscetível de integrar, numa situação de concurso aparente, alguns outros crimes (como os de ofensa à integridade física simples (cfr. artigo 143º, nº1, do CP), de injúria (cfr. artigo 181º, do mesmo diploma legal), de ameaça (cfr. artigo 153º, do diploma em apreço), de coação (cfr. artigo 154º, do CP), de sequestro simples (cfr. artigo 158º, nº1, do mesmo diploma legal), de devassa da vida privada (cfr. artigo 192º, do diploma em referência), de gravações e fotografias ilícitas (cfr. artigo 199º, do diploma em apreço) e de perseguição (cfr. artigo 154º-A, nº1, do CP)), que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma, acabando por ser unificados naquele único crime (de violência doméstica), que, como referimos supra, é específico impróprio, pois a qualidade especial do agente ou o dever que sobre ele impende constitui o fundamento da agravação relativamente aos crimes que as condutas já integravam (vide, por todos, o Ac. do TRC de 10.01.2018, acessível em www.dgsi.pt).
Quanto ao elemento subjetivo deste tipo-de-ilícito trata-se de um crime exclusivamente doloso, restringindo-se ao conhecimento dos elementos objetivos típicos e à vontade de agir por forma a preenchê-los (dolo genérico).
A alínea a), do nº2, do artigo 152º, do CP, prevê uma agravação do limite mínimo da pena de prisão de um para dois anos, quando o crime é praticado: a) em função da idade: [i] contra menor de 18 (dezoito) anos; e [ii] na presença de menor de 18 (dezoito) anos; b) em função do local: [i] dentro do domicílio comum, isto é, no local da coabitação; e [ii] no domicílio da vítima nos casos de ex-cônjuge ou agente que “tenha mantido” relações análogas à dos cônjuges.
Isto posto e revertendo ao caso concreto, verifica-se que o arguido e a vítima casaram entre si no dia 04/09/1982 e tiveram dois filhos – cfr. factos provados n.ºs 1 e 2.
Encontra-se igualmente assente que, durante a constância deste casamento, e durante mais de 30 anos, começando quando os filhos eram ainda crianças e prolongando-se até à morte da esposa, o arguido, repetidamente, menosprezava e humilhava a vítima, sua esposa, muitas vezes na presença dos filhos ou sabendo-os presentes, embora fechados/escondidos no quarto. Tal comportamento do arguido traduziu-se no tratamento com insulto e injúria (“puta”), na agressão violenta com socos no rosto, empurrões contra paredes e móveis, puxões de cabelo, chegando a arrancar-lhe mechas (que ficavam espalhadas pelo chão, para trauma dos filhos), deixando-a com hematomas, lábios rebentados, marcas de sangue. Para além disto, ameaçava matá-la e, talvez pior, afirmava que os filhos não eram seus, insinuação que sabemos ferir a honra de qualquer mulher.
O arguido, com esta sua conduta ao longo de mais de três décadas, manteve a mulher (e os filhos) dominada por um ambiente de terror de que era refém, logrando que se mantivesse submissa e silenciosa, apoucada por insultos, incapacitada de reação ou defesa pelas ameaças e até impedida sequer de decidir vestir ou maquilhar-se em desagrado do marido. Quando a vítima, auxiliada pelos filhos, depois de mais uma sova, finalmente, “ousa” sair de casa e apresentar queixa nas autoridades, prontamente o arguido logra convencê-la a regressar a casa, mantendo a relação que a viria a matar, apesar de já não partilharem o quarto.
Temos, assim, que o conjunto dos factos dados como provados, globalmente apreciado, permite indubitavelmente concluir que foi alcançado e (infelizmente) ultrapassado o patamar mínimo de gravidade que justifica a integração na previsão normativa do crime de violência doméstica, não só (mas também) pela reiteração, como pela gravidade dos atos, que se repetiram no tempo, até à morte da vítima.
Foi deste modo atingida, no entender do tribunal, a particular dimensão da dignidade e livre desenvolvimento da personalidade na relação de proximidade relacional porque se gerou um importante desequilíbrio de forças, à custa da afetação, com a descrita intensidade, de bens jurídicos pessoais importantes da vítima, como sejam a honra, a saúde psíquica e física devido, essencialmente: (i) à gravidade e reiteração dos factos provados; (ii) em particular, ao carácter intenso e prolongado, dessas agressões, que duraram mais de 30 anos como se provou.
Acresce que o arguido agiu sempre com dolo, direto e intenso.
Em face do exposto, há que concluir pela prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica.
Uma vez que os factos ocorreram na residência comum do casal (onde a vítima deveria sentir-se segura), alguns deles na presença dos filhos menores, verifica-se ainda a agravante do n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal.
Finalmente, diga-se que, apesar de estarmos em presença de múltiplos atos criminosos, alguns dos quais ocorridos há mais de dez anos, por se tratar de um crime habitual (porque de prática reiterada da mesma ação), não há aqui lugar a qualquer prescrição, pois que o respetivo prazo só começa a correr após a data da prática do último ato – cfr. artigo 118º, n.º 2, alínea b), do CP e, a título de exemplo, os acórdãos do TRC de 09.10.2019 e do TRG de 22.02.2021, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
O crime de HOMICÍDIO
Nos termos do artigo 131º, do CP, quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.
O bem jurídico protegido é a vida humana, bem jurídico considerado como o mais precioso e que por isso exige a maior proteção jurídico-penal.
Com efeito, a Constituição da República Portuguesa impõe no artigo 24º, nº1, que a vida humana é inviolável, sendo certo que este é o pressuposto essencial de todos os outros direitos fundamentais.
Estamos, pois, em face da mais forte tutela penal, sendo a vida e a sua inviolabilidade que conferem sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de direito.
Qualquer pessoa pode ser agente deste crime e qualquer pessoa, diferente do agente, pode ser (também) sujeito passivo do mesmo, tratando-se, portanto, de um crime comum (vide FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p.15).
É um crime de dano quanto ao bem jurídico, de resultado quanto ao objeto de ação – já que para se consumar é necessário que a morte ocorra –, instantâneo – pois que se consume com a morte e aí se esgota – e de execução livre – pode ser executado por qualquer forma (vide PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. Cit. p.393, ponto 3.).
A conduta tipificada é a de matar outra pessoa, ou seja, o facto humano destinado a provocar a morte de alguém, o que pode ocorrer não só por ação, como também por omissão (comissão por omissão; omissão imprópria).
Exige-se, ainda, que exista um nexo de causalidade entre o resultado morte e a conduta do agente, pois que o “causar a morte” significa que tem de se estabelecer o indispensável nexo de imputação objectiva do resultado à conduta (vide FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p.16).
O tipo subjetivo deste ilícito-típico reclama o dolo em qualquer das suas formas, contempladas no artigo 14º, do CP (direto, necessário ou eventual), tratando-se de um tipo (…) relativamente ao qual se verifica aquilo que a doutrina chama de total congruência entre a sua parte objectiva e a parte subjectiva (vide FIGUEIREDO DIAS, ob. Cit. p.17).
Transpondo as considerações vindas de expor para o caso dos autos, verifica-se que a conduta praticada pelo arguido AA é suscetível de integrar o tipo legal de crime previsto no artigo 131º, do CP.
Na verdade, da prova produzida em audiência de julgamento resultou apurado que o casal, constituído pelo arguido e pela vítima BB, vivia uma relação conjugal deteriorada, vivendo na mesma casa, mas a dormirem em quartos separados.
Neste contexto, na noite de 22 para 23 de junho de 2023, a hora não concretamente apurada, mas seguramente entre as 19h30m do dia 22 e as 00h47m do dia 23, no interior da residência de ambos, o arguido, por motivos não concretamente apurados, muniu-se com uma faca, com cabo em madeira e cerca de 20 cm de lâmina, e dirigiu-se ao quarto onde se encontrava a dormir a esposa BB. Aí chegado, o arguido abeirou-se da ofendida, sem que esta se apercebesse da sua aproximação, e desferiu nela vários golpes, com força, na zona da cabeça, pescoço e tórax, deixando-a prostrada, com a faca espetada no lado esquerdo do pescoço, numa profundidade de cerca de 5 cm, vindo a confirmar que a mesma já não respirava.
Em consequência direta e necessária desta atuação do arguido, a vítima BB apresentou, entre o mais: no exame do hábito externo, para além de quinze soluções de continuidade superficiais, sem atingimento de planos tecidulares profundos, oito soluções de continuidade (de bordos regulares e infiltrados de sangue) cervicais e torácicas e com trajeto em profundidade no corpo da vítima (na sua região mandibular esquerda, na região ântero-lateral esquerda do pescoço; nas faces posteriores esquerda e direita do pescoço, no terço superior do hemitórax direito e do hemitórax esquerdo e na axila esquerda), lesões todas resultantes de traumatismo de natureza corto-perfurante, compatíveis com agressão com instrumento de gume afiado – “faca de cozinha”; no hábito interno, oito lesões, com trajetos penetrantes no tecido celular subcutâneo atingido.
A violenta morte da aludida BB – que, conforme se alcança das imagens de fls. 317, quase foi decapitada - adveio destas lesões traumáticas cervicais acima descritas, as quais resultaram de traumatismo de natureza corto-perfurante, compatíveis com a agressão com instrumento de gume afiado – “faca de cozinha” – usada pelo arguido.
O arguido agiu com o propósito, concretizado, de tirar a vida à sua esposa, quando esta dormia, golpeando-a repetidamente com a faca de cozinha de que se muniu para o efeito, ciente que ao atuar desse modo lhe provocaria a morte, o que efetivamente quis e veio a acontecer.
Mais sabia que este seu comportamento era proibido e criminalmente punido, não se abstendo, contudo, de o empreender.
Em face do que fica sobredito não restam, pois, dúvidas de que no caso vertente se mostram preenchidos todos os elementos do tipo legal fundamental de crime de homicídio, na forma consumada.
Do homicídio qualificado
O legislador, além do tipo simples de homicídio, previsto no citado artigo 131º, previu no artigo 132º o homicídio qualificado, por cuja prática está o arguido acusado.
Estatui o nº1, do referido artigo 132º, do CP, que se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.
Trata-se de um tipo de culpa agravada de homicídio por força da cláusula geral da especial censurabilidade ou perversidade, concretizada de acordo com um elenco de circunstâncias não automático e não taxativo.
A técnica utilizada pelo legislador foi a técnica dos exemplos-padrão que permite, por um lado, que o tribunal rejeite a subsunção ao tipo “qualificado” de uma situação da vida formalmente subsumível a alguma das alíneas do n.º 2 do artigo 132.º, mas que não revela a especial censurabilidade pressuposta pela qualificação e, por outro, a enumeração é meramente exemplificativa, outras circunstâncias não descritas são susceptíveis de revelar a censurabilidade e perversidade pressupostas no n.º1 (vide PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob. Cit. p.400, ponto 3).
A respeito da especial censurabilidade elucida TERESA SERRA que ela se refere às componentes da culpa atinentes ao facto, ou seja, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude (vide Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Almedina, Coimbra, 1992, p.63-65). Efetivamente, (…) [c]omo se sabe, a ideia de censurabilidade constitui o conceito nuclear sobre o qual se funda a concepção normativa da culpa. Culpa é censurabilidade do facto ao agente, isto é, censura-se ao agente o ter podido determinar-se de acordo com a norma e não o ter feito. No artigo 132.º, trata-se de uma censurabilidade especial: as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores (vide TERESA SERRA, ob. Cit. p.63-65).
Diversamente, com a especial perversidade visa-se, essencialmente, uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de, como escreve TERESA SERRA, ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade. Significa isto pois, um recurso a uma concepção emocional da culpa e que pode reconduzir-se «à atitude má, eticamente falando, de crasso e primitivo egoísmo do autor, de que fala BINDER. Assim poder-se-ia caracterizar uma atitude rejeitável como sendo aquela em que prevalecem as tendências egoístas do autor. Especialmente perversa, especialmente rejeitável, será então a atitude na qual as tendências egoístas ganharam um predomínio quase total e determinaram quase exclusivamente a conduta do agente... Importa salientar que a qualificação de especial se refez tanto à censurabilidade como à perversidade. A razão da qualificação do homicídio reside exactamente nessa especial censurabilidade ou perversidade revelada pelas circunstâncias em que a morte foi causada. Com efeito, qualquer homicídio simples, enquanto lesão do bem jurídico fundamental que é a vida humana, revela já a censurabilidade ou perversidade do agente que o comete (ob. Cit. p.64).
O crime de homicídio qualificado constitui, pois, um tipo qualificado por um critério generalizador de especial censurabilidade ou perversidade, determinante de um especial tipo de culpa, mediante uma cláusula geral concretizada na enumeração não exaustiva dos exemplos-padrão enunciados no n.º 2 deste preceito, cuja confirmação se deve obter, no caso concreto, pela ponderação, na sua globalidade, das circunstâncias do facto e da atitude do agente (vide o Acórdão do STJ de 09.10.2019, acessível em www.dgsi.pt,), isto é, pela ponderação das circunstâncias externas e internas subjacentes ao comportamento criminoso que se censura.
Entre as circunstâncias que são suscetíveis de revelar uma imagem do facto agravada estão as imputadas na acusação pública por referência às alíneas b) e j), do nº2, do artigo 132º, do CP, nos termos do qual: é suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente (…) b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau (…) j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas; (…) – sublinhado e destacado nossos.
A qualificação a que respeita a citada alínea b), do nº2, do artigo 132º, do CP – que, como vem de referir-se, mostra-se imputada ao arguido –, foi introduzida pela Lei nº 59/2007, de 04 de setembro, abrangendo as relações conjugais e as análogas, incluindo tanto as uniões de facto entre pessoas de sexo diferente, como entre as pessoas do mesmo sexo.
Todavia, o legislador não se limitou a prever a agravação do homicídio cometido na pessoa do cônjuge, tendo-o alargado a relações familiares pretéritas e a relações familiares não parentais, ao incluir neste exemplo-padrão o ex-cônjuge, a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.
Afirma FIGUEIREDO DIAS acerca desta circunstância qualificativa que (…) [n]ão parece exacto, como defende Fernanda Palma, cit. 53, que nestes casos «não é necessária nenhuma motivação especial do agente para que o homicídio seja qualificado. Basta que o agente tenha consciência da sua relação de parentesco com a vítima…». Exacto é, pelo contrário, que ainda nestas hipóteses se exige que a prática do homicídio revele uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, indiciada (mas não «automaticamente» verificada) por aquele ter vencido «as contra-motivações éticas relacionadas com os laços de parentesco» (vide Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p.29-30).
Alargada ao cônjuge ou ex-cônjuge da vítima ou àquele que, ainda que do mesmo sexo e sem coabitação, com ela mantém ou manteve relação análoga à dos cônjuges, a especial censurabilidade ou perversidade resulta da particular energia criminosa revelada na ultrapassagem de especiais deveres ético-sociais de respeito inerentes a tais tipos de relacionamento – sublinhado nosso (vide TERESA QUINTELA DE BRITO, O homicídio qualificado (art. 132º), Direito Penal – Parte Especial”: Lições, Estudos e Casos, Coimbra Editora, 2007, p.215-217; ainda FERNANDO SILVA, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, Quid Juris, 2008, p.72ss).
Com efeito, a razão da agravação é a de que, para além do dever de respeito que assiste a quem mantém com outrem uma relação desta natureza, os laços afetivos estabelecidos por tal via são um fator de entrega, de abandono e de refreamento – e consequente desproteção e vulnerabilidade –, que não existiria quando a potencial vítima é outra qualquer pessoa.
Mesmo sem o vínculo formal do casamento, sempre que a mera relação de namoro evolui para uma relação análoga à dos cônjuges, numa vivência de comunhão afetiva potenciadora de uma maior desinibição, criam-se, entre os companheiros, deveres de cooperação, de respeito e de proteção, que se prolongam para além do fim da relação, o que justifica e impõe um juízo de censura penal agravado.
Revertendo ao caso dos presentes autos, da mobilização probatória resultou demonstrado que o arguido e a vítima casaram entre si no dia ../../1982, tendo este casamento sido dissolvido por morte desta, provocada por aquele no dia 23.06.2023.
Estavam, pois, casados há 40 anos, circunstância que deveria ter funcionado como travão para a ação do arguido, tanto mais que partilhava a mesma habitação com a vítima.
Como se estatui no artigo 1671º, do CC, o casamento baseia-se na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, preceituando o artigo 1672º, subsequente, que os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência. Respeitar o outro cônjuge significa, desde logo, não lesar a sua integridade física ou moral, nem ofender os seus direitos individuais, os direitos conjugais que a lei lhe atribui e os seus interesses legítimos (vide ALBERTO DELGADO, O Divórcio, 1980, p.48 e ANTUNES VARELA, Direito da Família, 1987, p.345ss).
Embora a dormir em quartos separados, arguido e vítima eram casados entre si, formando um casal, num casamento deteriorado por décadas de violência doméstica (conforme supra se apurou) que culminou na noite do crime em análise, com morte causada por múltiplas facadas produzidas por acção voluntária e consciente do arguido.
Cumpre, pois, indagar se o contexto em que o arguido atingiu a vítima revela especial censurabilidade ou perversidade, que decorre da revelação de um desrespeito acrescido ou de um desprezo extremo do autor do crime pelo bem jurídico protegido, traduzindo um modo próprio de o agente estar em sociedade que revela um grau de perigosidade que pode merecer particular atenção.
Ora, como se apontou supra, o arguido decidiu pôr termo a um casamento de 40 anos sentenciando a morte da sua esposa, em absoluto desprezo pelo valor da sua vida e indiferente aos planos e desejos que esta tivesse para os anos que lhe restavam viver. Ao assim agir, o arguido evidenciou o seu exacerbado egoísmo, tornando o seu comportamento criminoso ainda mais censurável, revelando características particularmente desvaliosas e censuráveis, com uma culpa agravada, pois que não soube respeitar a liberdade da vítima, antes dispondo desta como se de uma coisa sua se tratasse, objetificando-a.
Deste modo, apesar de manter-se casado com a vítima durante 40 anos e de daí ter derivado uma especial relação pessoal entre ambos, de solidariedade e de entreajuda, da qual resultou até o nascimento de dois filhos, o arguido, movido por egoísmo, ciúme e por sentimento de posse, ao matar a sua esposa, decidiu quebrar abruptamente essa relação, traindo-a.
Em face de tudo quanto vem de expor-se julgamos que no caso vertente se verifica a qualificativa a que alude a alínea b), do nº2, do artigo 132º, do CP.
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Uma outra circunstância qualificativa imputada na acusação pública é a que se mostra prevista alínea j), do nº2, do artigo 132º, do CP, sob a forma de frieza de ânimo. Ora, esta frieza traduz-se numa atuação calculada, reflexiva, em que o agente toma a deliberação de matar e firma a sua vontade de modo frio, denotando sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima: o agente, tendo oportunidade de refletir sobre a sua intenção ou plano, ponderou a sua atuação, mostrando-se indiferente perante as consequências do seu ato, persistindo no propósito criminoso que assumiu. Para verificar a presença desta circunstância agravante há que, mais uma vez, fazer uma ponderação global das circunstâncias externas e internas que rodearam o homicídio, analisar a imagem global do facto e procurar nela (como ensina o Prof. Eduardo Correia in Direito Criminal, II, 1965, 301-303) a “firmeza , tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada”, a “forte intensidade criminosa”, a “mora habens” que mostra não só que o criminoso teve uma larga oportunidade, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contramotivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos transitoriamente, desistir do seu desígnio, mas ainda que a paixão lhe endureceu totalmente a sensibilidade e sobretudo que a força criminosa é de tal maneira intensa que o agente , largo tempo depois de tomar a resolução pratica o respectivo crime sem hesitação com mero “ déclancher “ da decisão tomada prévia e longinquamente (…)”. Ora, descendo ao caso em apreço, dadas as circunstâncias que antecederam a prática do crime, impõe-se concluir que o arguido agiu a coberto de evidente sangue frio, pressupondo um lento, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo na preparação e execução do desígnio de matar, que levou a cabo com manifesta insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida da vítima.
Com efeito, sem que nada fizesse a vítima suspeitar de tal ataque (já que não ocorrera qualquer discussão ou incidente), o arguido esperou pelo momento em que a esposa estaria em situação de absoluta indefesa: deitada, a dormir. Chegado o momento, sem mais ninguém em casa que o pudesse parar ou defender a esposa, o arguido, com o desígnio formado de matar a sua esposa, foi munir-se da faca de cozinha e, de forma silenciosa (para não acordar ou alertar a vítima), entrou no quarto, observou-a deitada, a dormir e escolheu o momento e a posição para, colocando-se sobre ela, começar a golpeá-la, logo na zona do pescoço. O arguido desferiu não um, nem dois, mas oito golpes profundos e quinze superficiais, estes últimos indicadores de tentativas de defesa da vítima, que terá reagido, da forma que pôde (usando as mãos e as pernas) quando pôde  (já seguramente após os primeiros golpes, na zona de pescoço, que a acordaram para a morte).
Poderia dizer-se que não se provou (nem alegado vinha) grande ou anterior planificação deste crime. Porém, como se refere no recente acórdão do STJ de 15.12.2022 (disponível em www.dgsi.pt): “(…) para a verificação da circunstância qualificativa da frieza de ânimo não se exige que a vontade de cometer o crime de homicídio se tenha formado com grande planificação ou com grande antecipação temporal porque esses atributos já são os pertinentes ao preenchimento dos outros dois indícios da premeditação, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas. (…)” Ora, no período que se seguiu ao fim do jantar, na quietude da casa – com o arguido sozinho a ver um filme e a esposa no seu quarto, a dormir -, o arguido teve uma janela de oportunidade em que, ao invés de optar pela omissão de atuação, pensadamente decidiu agarrar na faca e dirigir-se ao quarto da mulher em execução do seu pensado propósito de esfaquear a vítima. Revelou sangue-frio, espírito insensível, imperturbada calma e reflexão ao assim atuar, o que traduz frieza de ânimo, por comportamento firme, tenaz e irrevogável da resolução criminosa, que persistiu ao longo das sucessivas facadas. A violência das agressões está espelhada no número de golpes e nas regiões corporais escolhidas; as lesões que a vítima apresenta nos membros superiores, atingindo o pescoço e a zona acima do seio esquerdo (do lado do coração) demonstram bem a posição de subordinação em que se encontrava, sem possibilidade de recorrer a qualquer outro meio para se defender que não os próprios membros. Impressiona a energia criminosa que transparece da execução do ilícito.
Em suma, a frieza de ânimo está evidenciada na postura do arguido, não apenas nos momentos que antecederam, mas também nos que sucederam as agressões: no método empregue, no procedimento utilizado e na irrelevância que assumiu perante as consequências derivadas do seu ato.
Com efeito, a firmeza, tenacidade e irrevogabilidade da resolução previamente tomada reveladora da forte intensidade da vontade criminosa é também denunciada e denuncia a frieza de ânimo no procedimento do arguido após as agressões: vai à cozinha pensar no que fez, volta a confirmar a morte, sem nunca pedir ajuda, limitando-se a alertar/alarmar o filho com o facto já consumado.
De toda a sequência de factos, não está provado que o arguido tenha por algum momento perdido o autodomínio, o controlo de si, que tenha havido um corte com a realidade, que tivesse ocorrido uma alteração ou perturbação emocional, que ficasse afetado no seu entender e querer, com perda de controlo dos seus atos, condicionante da sua capacidade de posicionamento ético, de volição e de determinação. Diferentemente, o que resulta da matéria de facto provada é que o arguido prosseguiu as agressões, sem perder o discernimento, a vontade, nem o poder de refletir. Também não perdeu a sua capacidade de fazer opções, nem de tomar decisões, o que é evidenciado pela sua postura após o crime: seguramente coberto de sangue da vítima (como decorre dos golpes que esta exibiu e dos vestígios hemáticos que pintaram o quarto de vermelho), lavou-se, limpou os vestígios de sangue que deixara pela casa, despejou e trocou o saco do lixo, desfez-se do roupão com marcas de sangue, aguardou serenamente a chegada das autoridades que nem sequer chamou, perante quem se apresentou calmo e limpo, negando qualquer incidente que justificasse a sua intervenção, tudo com total indiferença perante o corpo que jazia à porta do quarto.
Por todo o exposto, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, com a conduta descrita o arguido incorreu em responsabilidade criminal pela prática de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131º e 132º, nº2, alíneas b) e j), do Código Penal. Finalmente, porque se verificam duas circunstâncias qualificativas do crime de homicídio, a qualificação do ilícito operará por efeito de uma – a prevista na alínea b) do nº2 do artigo 132º - reservando-se e a circunstâncias que não serviu para a qualificação do ilícito - a prevista na alínea j) - para a graduação da pena.
Da agravação pelo uso de arma
De acordo com a acusação do Ministério Público, o crime de homicídio imputado ao arguido, para além de qualificado é, ainda, agravado pelo uso de arma, nos termos do artigo 86º, n.ºs 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições (RJAM). Estatui o n.º 3 da citada norma: «As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravados de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma». Em complemento, estabelece-se no nº 4: «Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do nº 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente». Como se diz no nº 3, a agravação aí prevista só não terá lugar quando «o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma». Ora, o uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo legal fundamental é o previsto no já citado artigo 131º do CP; pode ser um fator de agravação se, para além de preencher um dos exemplos-padrão («meio particularmente perigoso» ou «prática de um crime de perigo comum» da alínea h) do nº 2 do artigo 132º), revelar «especial censurabilidade ou perversidade». Daqui resulta que, enquanto a agravação do nº 3 do artigo 86º, encontrando fundamento num maior grau de ilicitude, tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, já a do artigo 132º só operará se o uso de arma ocorrer em circunstâncias reveladoras de uma especial maior culpa: além, para haver agravação, basta o uso de arma no cometimento do crime; aqui não. Por outras palavras, O nº 3 do artigo 86º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respetivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. A agravação do artigo 86º, nº 3, não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de acionar efetivamente essa outra agravação.
Isto posto, regressando ao caso sob jub iudice, temos que, como já dito, o uso de arma não é elemento do crime de homicídio e, no caso, não levou ao preenchimento do tipo qualificado do artigo 132º. Não havendo, assim, fundamento para afastar a agravação daquele artigo 86º, nº 3 que, há que convocar esta circunstância, por força da qual, como dito, a moldura do crime sofre um agravamento de um terço, no seu limite mínimo (uma vez que o máximo é já coincidente com o limite legal inultrapassável de 25 anos).

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Em conclusão, o arguido AA constituiu-se autor material, na forma consumada, da prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, al.s b) e j) ambos do Código Penal, agravado pelo uso de arma, nos termos do artigo 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições.
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Da (IN)imputabilidade do arguido

Importa, por último, fazer uma breve referência à (suscitada) questão da inimputabilidade do arguido, em razão de anomalia psíquica.
Dispõe o art.º 20.º do Código Penal que “É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”.
Em sede de contestação, embora sem apresentar qualquer suporte documental, o arguido invocou a sua inimputabilidade “por força de uma anomalia psíquica grave, que o torna incapaz, de avaliar a ilicitude dos seus actos ou de se determinar de acordo com essa avaliação”, inimputabilidade que afirmou existir “antes, no momento, e posteriormente à prática do crime de homicídio de que vem acusado”.
Ora, realizada a avaliação pericial do arguido, conforme consta da factualidade provada, apurou-se que este não apresenta qualquer sintomatologia psicótica, nomeadamente esquizofrenia ou outras perturbações psicóticas, depressão major, perturbação bipolar ou perturbação de personalidade estruturadas. Com efeito, o arguido “não tem evidência de sofrer de anomalia psíquica de qualquer natureza, nem de ter manifestado até à data de hoje, estados alterados de consciência”.
À data dos factos, não padecia o arguido de doença mental, antes possuía capacidade para avaliar o carácter proibido dos seus atos ou para se determinar de acordo com essa avaliação (como até atesta o cuidado que ele teve em limpar o local do crime), capacidade que mantém no presente.
Redunda, assim, não comprovada a alegada inimputabilidade do arguido, plenamente capaz de avaliar a sua ilicitude e de determinar o seu comportamento em função dessa avaliação, por isso, imputável.

AS PENAS
Escolha e medida concreta das penas
De acordo com o artigo 70º do Código Penal, é critério de escolha da pena, quando ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, a preferência pela segunda, “sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
No caso, temos que o arguido AA incorreu na prática, consumada, de um crime de violência doméstica, punível com pena de 2 a 5 anos de prisão, e um crime de homicídio qualificado agravado, punível com pena de 16 anos a 25 anos de prisão. Uma vez que ambos os crimes só admitem pena de prisão, cumpre-nos, apenas, determinar as respetivas medidas, dentro dos aludidos limites e de acordo com o disposto no artigo 71º do CP, para o que atendemos à culpa e às exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que, não fazendo parte dos tipos de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.
Aplicando os critérios fixados no aludido artigo 71.º, nº1, conjugado com o artigo 40.º, nº1, as penas de prisão concretas serão determinadas de modo a promover a tutela do bens jurídicos violados, em ordem à estabilização da expectativa comunitária na validade das normas violadas (prevenção geral positiva ou de integração), sem que o seu quantum ultrapasse a medida da culpa do arguido, pois esta, não sendo fundamento da pena, é seu pressuposto e limite inultrapassável (artigo 40.º, nº2, do CP), em nome do respeito pela dignidade humana, consagrado no artigo 1.º da CRP. Serão igualmente ponderadas as exigências de prevenção especial que o caso demanda. Tendo presente que a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade, à culpa cabe a função de estabelecer um limite que não pode ser ultrapassado. Na lição de Figueiredo Dias, a aplicação de uma pena visa acima de tudo o “restabelecimento da paz jurídica abalada pelo crime”. Há uma “medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto de pena, pois “abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua função primordial”. Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)” atuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena – cfr. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2007, p. 79 a 82. Isto posto, somos a considerar que o arguido atuou com vontade firme e persistente de maltratar durante anos, mesmo décadas, e, finalmente, matar a vítima, sua esposa e mãe dos seus filhos, agindo sempre com dolo direto, na sua modalidade mais intensa.
O grau de desvalor das suas ações está à vista, desde logo, quer pelo longo período de reiteração da violência, quer pelo valor vida por fim atingido, ante o qual manifestou absoluta indiferença e insensibilidade, pela forma de execução, fria e préordenada, aproveitando-se do estado maior de vulnerabilidade da vítima, no interior do quarto da casa onde viviam, onde legitimamente se sentia segura, sem lhe conferir a mais leve possibilidade de defesa, já que esperou que a mesma adormecesse para a atacar. Ao assim atuar, sabia o arguido que surpreenderia a vítima, não apenas desarmada, mas sem qualquer capacidade de resposta pois que só depois de acordada, mas seguramente aturdida e já ferida pelos primeiros golpes, teria a noção do que lhe estava a suceder. A agressão do arguido, com recurso a faca, pressupôs a sua proximidade e contacto físico com a vítima, cujo corpo repetidamente golpeou, indiferente à dor que causava, aos gritos que por certo ouvia, tudo sem hesitar ou deixar-se sensibilizar pelos contra-motivos éticos relacionados com os laços que com ela mantinha, sua esposa, companheira de mais de 40 anos e mãe dos seus filhos. Esta frieza de ânimo, não considerada para efeitos de qualificação do crime, é agora atendida na medida da pena. Há, ainda, a relevar que, atingida na cama, a vítima foi encontrada no chão, perto da porta, assim se percebendo que a morte não foi imediata, sendo incalculável a dor e desespero que terá sentido, ao percecionar a morte, com a faca espetada no pescoço. Também a violência doméstica reclama uma reação forte do sistema de justiça, dado o flagelo que atualmente constitui na nossa sociedade, que encara de forma cada vez mais preocupante os crimes praticados no seio da vida familiar, por vezes denotando uma escalada de violência, de que este processo é aliás a triste confirmação. Do exposto ressalta, pois, um culpa superior à média. Acresce que o arguido abandonou a vítima a esvair-se em sangue, com a faca espetada no pescoço, sem nunca pedir socorro, antes preocupado e empenhado em limpar e limpar-se dos vestígios do sangue, assim se afastando do crime que, no entanto, não poderia esconder nem negar. Esta conduta do arguido, bem como a que assume para com o filho CC, a quem dá a notícia da morte da mãe nos termos em que o fez, evidencia, mais uma vez, profundo desprezo e insensibilidade para com a pessoa humana, não apenas a que morrera às suas mãos, mas também os filhos, que hão-de viver com o trauma desta tragédia. A ilicitude situa-se, pois, em grau muito elevado. É certo que o arguido é delinquente primário, porém tal circunstância, embora abonatória, não traduz uma atenuante de significativo relevo já que corresponde, apenas, à obrigação geral, de todo e qualquer cidadão, de não cometer crimes e de viver de acordo com os padrões pré-estabelecidos em sociedade, não lesando o tecido social. Finalmente, reforçar que tanto o crime de violência doméstica como o crime de homicídio, ambos delitos violentos, estão a assumir crescente preocupação entre nós, pela aumento da sua frequência, fonte de intranquilidade e insegurança social, o que vale dizer que a via da pena deve exercer um fator de imprescindível dissuasão, como forma de contenção de instintos primários, de potenciais delinquentes, sendo prementes as necessidades de evitar tais delitos, finalidade traduz os propósitos de prevenção geral. E muito embora o arguido seja uma pessoa integrada socialmente, nada fazendo prever a sua sucumbência à reincidência, nem por isso as penas devem deixar de fazer-lhe sentir, interiorizando os seus efeitos, a gravidade extrema dos seus atos.
Tudo ponderado, julgamos justo, adequado, proporcional e necessário aplicar ao arguido penas parcelares que se fixam na segunda metade das respetivas molduras:
i. Pelo crime de violência doméstica, a pena de 4 anos de prisão;
ii. pelo crime de homicídio qualificado agravado, a pena de 22 anos de prisão.
O cúmulo jurídico
Em face das penas parcelares encontradas, cabe proceder ao seu cúmulo jurídico, ao abrigo do disposto no artigo 77.º do Código Penal, cujo nº1 preceitua: “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. N.º 2 do mesmo normativo estabelece que “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Nos termos do nº3 da citada norma legal, “se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”.
Aplicando o critério legal para a determinação da pena única de prisão, verifica-se que a moldura se define, no limite mínimo, em 22 anos e, no limite máximo, em 25 anos de prisão (limite máximo a que se reduz o que seria o total de 26 anos de prisão).
Ponderando os factos na sua globalidade, afigura-se justo, adequado, proporcional e necessário fixar a correspondente pena única de prisão em 23 anos de prisão.
Dada a medida da pena única fixada, não há lugar à ponderação da sua substituição – cfr. artigos 43.º, nº1, 45º, 50º, 58.º, nº1, do Código Penal. *
Inaplicação da Lei do Perdão (Lei nº 38-A/2023, de 02 de agosto):
A aludida lei veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (cfr. artigo 1º), abrangendo as sanções penais referentes aos ilícitos praticados até às 00h do dia 19.06.2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, “... nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”.
Ora, porque à data dos factos o arguido (nascido em ../../1960) contava já com mais de 30 anos de idade, por força do artigo 2º do citado diploma, não cabe no âmbito subjetivo de aplicação da aludida lei do perdão (limitado a “pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto”), que, desde logo por isso, se não lhe aplicará.
Pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas
O Ministério Público requer que seja aplicada ao arguido a pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas, nos termos do artigo 90.º do Regime Jurídico das Armas e Munições (Lei das Armas, na versão dada pela Lei n.º 50/2019, de 24.06).
Apreciando.
Sob a epígrafe Interdição de detenção, uso e porte de armas, estatui o aludido artigo 90º que “1 - Pode incorrer na interdição temporária de detenção, uso e porte de arma ou armas quem for condenado pela prática de crime previsto na presente lei ou pela prática, a título doloso ou negligente, de crime em cuja preparação ou execução tenha sido relevante a utilização ou disponibilidade sobre a arma. 2 - O período de interdição tem o limite mínimo de um ano e o máximo igual ao limite superior da moldura penal do crime em causa, não contando para este efeito o tempo em que a ou as armas, licenças e outros documentos tenham estado apreendidos à ordem do processo ou em que o condenado tenha estado sujeito a medida de coacção ou de pena ou execução de medida de segurança. 3 - A interdição implica a proibição de detenção, uso e porte de armas, designadamente para efeitos pessoais, funcionais ou laborais, desportivos, venatórios ou outros, bem como de concessão ou renovação de licença, cartão europeu de arma de fogo ou de autorização de aquisição de arma de fogo durante o período de interdição, devendo o condenado fazer entrega da ou das armas, licenças e demais documentação no posto ou unidade policial da área da sua residência no prazo de 15 dias contados do trânsito em julgado. 4 - A interdição é decretada independentemente de o condenado gozar de isenção ou dispensa de licença ou licença especial. 5 - A decisão de interdição é comunicada à PSP e, sendo caso disso, à entidade pública ou privada relevante no procedimento de atribuição da arma de fogo ou de quem o condenado dependa. 6 - O condenado que deixar de entregar a ou as armas no prazo referido no n.º 3 incorre em crime de desobediência qualificada.” Em causa está uma faca com 20 cm de lâmina e cabo de madeira, vulgo, “faca de cozinha” o que, por força do artigo 2.º, n.º 1, al. m), da citada Lei das Armas, configura arma branca (ali definida como “todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm, (…)”
No domínio das redações anteriores à Lei n.º 50/2019, em relação às “facas de cozinha”, formou-se entendimento Jurisprudencial no sentido de que as mesmas “têm uma aplicação definida (a afectação às lides domésticas), não se transformando numa arma branca proibida pelo simples facto de ser desviada dessa sua aplicação/afectação” (cfr. a título de exemplo, o acórdão do TRL de 20/12/2011, disponível em www.dgsi.pj). Porém, na sua atual versão, a lei, no seu artigo 3º, por força do aditamento operado pela Lei n.º 50/2019, na al. ab) classifica como armas da classe A “As armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção, quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse (…);” Assim, as armas brancas de utilização definida, rectius, as armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção, passam a ser consideradas como proibidas “quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse”.
O objeto detido/utilizado pelo arguido era uma faca com lâmina de 20 cm de comprimento. Assim, porque dotada de uma lâmina cortante e perfurante com comprimento superior a 10cm, a referida faca integra o conceito de arma branca que integra a classe A. À aplicação de uma pena acessória, tal como como acontece em relação à pena principal, subjaz um juízo de censura global pelo crime praticado, daí que para a determinação da medida concreta de uma e outra se imponha o recurso aos critérios estabelecidos no art.º 71.º do Código Penal. Consequentemente, na graduação desta sanção acessória, devemos, mais uma vez, atender à culpa do agente e às exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra este. A medida máxima aplicável da pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas está fixada por referência ao limite superior da moldura penal do crime cometido com arma, no caso, o crime de homicídio.
No caso, atendendo aos factos dados por provados, entende-se fixar a sanção acessória em paralelismo com a pena encontrada para o homicídio, fazendo coincidir a medida de ambas.
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Da INDIGNIDADE SUCESSÓRIA do arguido
O Ministério Público requer ainda que seja declarada a indignidade sucessória do arguido em relação à sucessão aberta por óbito da vítima, seu cônjuge, BB.
Apreciando. No artigo 2033º, nº1, do Código Civil (CC), estabelece-se como princípio geral que têm capacidade sucessória, além do Estado, todas as pessoas nascidas ou concebidas ao tempo da abertura da sucessão, não excetuadas por lei.
Com efeito, extinguindo-se a personalidade jurídica do falecido (cfr. artigo 68º, nº1, do CC), a morte abre uma crise nas relações jurídicas de que era titular e que devam sobreviver-lhe.
Tais relações desligam-se do seu primeiro titular (o de cujus) e até que se liguem a um novo sujeito é necessário que ocorra uma série de atos/factos que se encadeiam num processo mais ou menos longo, designado por fenómeno sucessório ou sucessão por morte. O núcleo da sucessão não está tanto na transferência dos direitos e obrigações do falecido para outras pessoas, mas sim no chamamento dessas pessoas à titularidade das suas relações jurídicas.
Designa-se de vocação sucessória o chamamento à sucessão feita pela lei ou pelo de cujus no momento da morte.
São três os pressupostos da vocação sucessória, que poderemos resumir neste enunciado: o destinatário da vocação é o titular da designação sucessória prevalecente no momento da morte do de cujus, contanto que, nesse momento, exista e tenha capacidade sucessória.
Na verdade, há situações, na perspetiva relacional entre quem morre e quem lhe vai suceder (e por isso se vem entendendo, por vezes, mais apropriado o conceito de legitimidade em detrimento da capacidade) em que a lei não suporta a transmissão beneficente. Uma dessas situações prende-se com a vida humana e o respeito que merece, pois que é inviolável (cfr. artigo 24º, nº1, da Constituição da República Portuguesa). Daí que se estabeleça no artigo 2034º, alínea a), do CC, que carecem de capacidade sucessória, por motivo de indignidade: a) O condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adotante ou adotado. Esclarece o artigo 2035º, nº1, que a condenação a que se referem as alíneas a) (…) do artigo anterior pode ser posterior à abertura da sucessão, mas só o crime anterior releva para o efeito.
Sobre os efeitos da indignidade rege o artigo 2037º, do CC, com o seguinte teor: 1. Declarada a indignidade, a devolução da sucessão ao indigno é havida como inexistente, sendo ele considerado, para todos os efeitos, possuidor de má fé dos respectivos bens. 2. Na sucessão legal, a incapacidade do indigno não prejudica o direito de representação dos seus descendentes.
De acordo com este normativo, como fruto da reação da lei perante os factos delituosos praticados pelo chamado contra o autor da herança ou alguns dos seus familiares mais próximos, a indignidade torna a devolução inexistente, retroagindo, assim, os seus efeitos até ao momento da vocação. A inexistência retroativa da devolução faz com que as ações possessórias e o poder de administração relativos aos bens em princípio pertencentes ao indigno passem logo para as pessoas a quem, na falta dele, compete a devolução da sucessão. Isto significa que a declaração de indignidade apaga a vocação sucessória (cfr. artigos 2032º, nº1 e 67º, ambos do CC; vide PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora, 1998, p.43).
Sobre a declaração de indignidade disciplina o artigo 2036º, do mesmo diploma legal, que: 1. A ação destinada a obter a declaração de indignidade pode ser intentada dentro do prazo de dois anos a contar da abertura da sucessão, ou dentro de um ano a contar, quer da condenação pelos crimes que a determinam, quer do conhecimento das causas de indignidade previstas nas alíneas c) e d) do artigo 2034.º. 2. Caso o único herdeiro seja o sucessor afetado pela indignidade, incumbe ao Ministério Público intentar a ação prevista no número anterior. 3. Caso a indignidade sucessória não tenha sido declarada na sentença penal, a condenação a que se refere a alínea a) do artigo 2034.º é obrigatoriamente comunicada ao Ministério Público para efeitos do disposto no número anterior. Coube à Lei nº 82/2014, de 30 de dezembro, dar a atual redação deste artigo 2036º. Como se pode ler na exposição de motivos do Projeto de Lei nº632/XII (3ª), que esteve na génese da referida Lei nº82/2014: (…) Com o presente projeto de lei pretende-se melhorar as condições de efectividade da declaração de indignidade sucessória contra os condenados pelo crime de homicídio por violência doméstica. Com efeito, analisada a situação concluiu-se que a indignidade sucessória já está prevista na lei (Código Civil) para estes casos em que o homicídio é praticado contra o autor da sucessão. A indignidade sucessória tem de ser declarada por sentença civil decorrente de ação proposta pelos interessados. Ora, o que parece faltar é a possibilidade de fazer operar a indignidade nos casos em que não há contrainteressados na herança que tomem a iniciativa de propor a acção. Nestas situações o homicida poderá locupletar-se com a herança dos bens da sua própria vítima! – o que parece manifestamente injusto. Parece assim que uma solução possível seria a sentença penal, desde logo, poder declarar a indignidade sucessória. Assim, propõe-se acrescentar ao Código Penal, no capítulo referente aos efeitos das penas, um novo artigo que permita que a sentença condenatória penal possa, desde logo, declarar a indignidade sucessória do condenado.
Assim, a par da modificação do artigo 2036º, do CC, a Lei nº 82/2014 introduziu no CP o artigo 69º-A, onde se estabelece que a sentença que condenar autor ou cúmplice de crime de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adotante ou adotado, pode declarar a indignidade sucessória do condenado, nos termos e para os efeitos previstos na alínea a) do artigo 2034.º e no artigo 2037.º do Código Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 2036.º do mesmo Código.
Dos normativos supra citados resulta que a indignidade sucessória baseia-se numa circunstância de raiz puramente subjetiva, traduzida numa atitude de repúdio da lei pelos factos graves cometidos – antes ou depois da abertura da sucessão – por alguém contra o autor da herança, o seu cônjuge ou familiares mais próximos (vide PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume VI, Coimbra Editora, 1998, p.37). Como esclarecem MIGUEZ GARCIA/J. M. CASTELA RIO, a declaração de indignidade sucessória não é uma pena acessória, mas um efeito substantivo civil do crime (vide Código Penal, Parte Geral e Especial, 3ª edição, Almedina, 2018, p.417). Este efeito substantivo civil do crime (que não pena acessória), exige a declaração judicial de indignidade, sendo por via dela que o indigno perde a sua capacidade sucessória (cfr. Acórdão do STJ de 17.12.2019, acessível em www.dgsi.pt). Como elucida o Acórdão do STJ de 07.11.2019 (no mesmo sítio da internet), a respeito do citado artigo 69º-A, do CP, [a] parte final desta norma revela a autonomia da via nele prevista de declaração da indignidade sucessória relativamente ao que se dispõe no art.º 2036.º do CC. Ou seja, a declaração nos termos do art.º 69.º-A do CP não pressupõe qualquer enxerto cível nem está sujeita ao princípio do pedido, operando automaticamente – sublinhado nosso. Em face do que fica sobredito, verificamos que o arguido cometeu um crime de homicídio doloso, na forma consumada, contra o cônjuge de quem é herdeiro legitimário e legítimo (nos termos dos artigos 2157º e 2133º, nº1, alíneas a) e b), ambos do CC). Em conformidade, preenchidos os respetivos pressupostos legais, declara-se a indignidade do aludido AA para suceder na herança aberta por óbito do seu cônjuge, BB, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 2034°, alínea a) e 2037º, ambos do CC, em obediência ao disposto no artigo 69°-A do CP.
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Do arbitramento de REPARAÇÃO às vítimas
De acordo com o artigo 82.º-A do CPP, “não tendo sido deduzido pedido de indemnização no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham” (nº 1).
Por força do preceituado no artigo 67.º-A, nº1, al. a) – i), do CPP, considera-se «Vítima» a “pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime”; já a al) ii do mesmo normativo estende o conceito de vítima a “Os familiares de uma pessoa cuja morte tenha sido diretamente causada por um crime e que tenham sofrido um dano em consequência dessa morte;” Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo estatui que “Para os efeitos previstos na subalínea ii) da alínea a) do n.º 1 integram o conceito de vítima, pela ordem e prevalência seguinte, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens, ou a pessoa que convivesse com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e os ascendentes, na medida estrita em que tenham sofrido um dano com a morte, com exceção do autor dos factos que provocaram a morte.” (destaque nosso). De acordo com o n.º 3, “As vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.” Ora, o artigo 1º do CPP dá-nos as definições destes conceitos, nos seguintes termos: alínea J) «Criminalidade violenta» as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos; alínea l) «Criminalidade especialmente violenta» as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos (…)” Isto posto, temos que a vítima dos autos, BB, tinha dois filhos maiores de idade - AA, nascido em ../../1983, e CC, nascido em ../../1984 -, os quais, nos termos expostos, assumem a qualidade de vítimas especialmente vulneráveis a quem, nos termos do artigo 21.º da Lei nº112/09, de 16.09 (na sua atual redação, introduzida pela Lei nº 24/17, de 24.05),
 “(…) é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável. 2. Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.
Paralelamente, o artigo 16.º, nºs 1 e 2, do Estatuto da Vítima (EV), aprovado pela Lei nº130/2015, de 4.09, preceitua: “1- À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão relativa a indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável. 2 - Há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal em relação a vítimas especialmente vulneráveis, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser. 3 – (…)”.
Trata-se, nas palavras de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, de um meio subsidiário de reparação das perdas e danos causados pelo crime, não tendo havido dedução de pedido de indemnização no processo penal (…) nem no processo civil (vide Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, abril 2011, p.245, nota 1).
O arbitramento dessa reparação torna-se, porém, obrigatório em relação às vítimas especialmente vulneráveis, por força do nº2, do citado artigo 16º, do Estatuto da Vítima (como aí se lê: [h]á sempre lugar à aplicação). Esta regra sofre (apenas) uma exceção, no caso de a vítima expressamente manifestar oposição a tal reparação.
Ora, em sede de audiência de julgamento ambas as vítimas (filhos da falecida) expressaram recusar o arbitramento de qualquer indemnização em seu favor, razão porque, nos termos expostos, não lhes será arbitrada qualquer quantia a título de reparação pelos prejuízos (eventualmente) sofridos, ao abrigo do artigo 82.º-A do CPP, pese embora a condenação do arguido pela prática de crimes (a violência doméstica e homicídio qualificado agravado por uso de arma) que legitimariam a atribuição oficiosa de indemnização aos ofendidos com este fundamento legal.
Nesta medida, não se arbitrará qualquer compensação às vítimas.

3- Apreciação do recurso

3.1- O recorrente sustenta que deveria ter sido absolvido da prática do crime de violência doméstica, com fundamento no seguinte:
- Impugnação da matéria de facto provada quanto aos pontos 3 e 26 dos factos provados do acórdão recorrido, porquanto:
a) Quanto ao ponto 3:
“… para além de não corresponderem à verdade e não ter sido produzida qualquer prova nesse sentido, são desmentidos pela fundamentação do próprio Acórdão”.
b) Quanto ao ponto 26:
“na medida em que não foi produzida qualquer prova do mesmo; pelo contrário, os dois filhos – testemunhas que levaram o Tribunal a quo a condenar o Arguido pelo crime de homicídio – apenas relataram episódios alegadamente ocorridos há mais de 10 anos, antes de saírem de casa de seus pais”, tendo ocorrido prescrição do procedimento criminal
-Inexistência de factos dados como provados que pudessem ter levado à condenação do arguido pela prática do crime de violência doméstica, uma vez que “.. não existem factos concretos e devidamente circunstanciados em termos de tempo, espaço e modo da prática desse crime.
Vejamos.
O recorrente, pese embora se insurja contra os pontos da matéria de facto provada do acórdão recorrido que indica, não ajusta a sua alegação às regras da impugnação ampla da matéria de facto a que se alude no artigo 412º, nºs 3  e 4 do CPP, preceito legal que, de resto, não invoca.
Na verdade, quanto aos pontos da matéria de facto provados que indica, pese embora afirme não corresponderem à verdade e que não se fez prova dos mesmos, não cumpriu o ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da decisão recorrida, de acordo com o previsto no nº 3 al. b) e nº 4 do artigo 412º do CPP. Nessa medida, este Tribunal da Relação, enquanto tribunal de recurso, está legalmente impedido de reapreciar a prova produzida, averiguando da ocorrência de eventual erro de julgamento, recorrendo, nomeadamente, à prova gravada.
Efetivamente, o artigo 412º, nº 3, aI. a) e b), do CPP é claro ao estabelecer que quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, assim como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
Foi propósito do legislador com a referida norma delimitar claramente o âmbito do recurso interposto sobre a decisão a matéria de facto, em termos de o permitir apenas nos casos em que haja uma identificação do concreto erro de julgamento ocorrido, bem como dos específicos meios de provas que concretamente o demonstram.
Por outro lado, o nº4 do artigo 412 do CPP dá concretização naquela norma, estabelecendo que no caso de as provas terem sido gravadas, as especificações previstas na aI. b) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 3 do art.º 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
A identificação concreta do erro de julgamento, por via da indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e dos meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida são verdadeiramente essenciais para que o tribunal de recurso possa conhecer do mérito da impugnação da decisão da matéria de facto.
Acresce que, conforme tem sido, unanime e repetidamente, sustentado pela jurisprudência[3] e doutrina[4], o recurso da matéria de facto visa a deteção do erro de julgamento em matéria de facto, constituindo um remédio jurídico, e não um segundo julgamento como se não tivesse ocorrido um julgamento anterior.
O erro de julgamento da matéria de facto tem de ser especificamente apontado, com indicação dos factos concretos a que o mesmo se reporta e especificação das respetivas provas.
No caso vertente, como dissemos, o recorrente não indicou as provas que impõem decisão diversa da recorrida por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 3 do art.º 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
A mera omissão de tais indicações nas conclusões do recurso conduziria à formulação de convite para as completar, nos termos do nº 3 do artigo 417º do CPP, se tais indicações constassem da motivação. Não constando da motivação, nem sequer é admissível o convite para correção, visto o aperfeiçoamento previsto naquela última norma não permitir a modificação do âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação (nº 4 do mesmo artigo).
Neste sentido, vide Ac. TC nº 140/2004, de 10.03, procº nº 565/2003, DR, II série, de 17.04.2004, segundo o qual “Não é inconstitucional a norma do artigo 412°, nº 3 do CPP interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nela exigida tem como efeito o não conhecimento da matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências”.
Por conseguinte, decide-se não conhecer do mérito do recurso quanto à impugnação ampla da matéria de facto, o que constitui motivo da sua rejeição nesta parte, em conformidade como dispostos nos artigos 417º, nº 6 als. a) e b) e 420º, nº 1 al. a), ambos do CPP.
Todavia, no sentido de demonstrar a razão que lhe assiste, o recorrente invoca (apenas) a fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido. Ou seja, o recorrente somente invoca, como fundamento da sua tese recursiva, o próprio texto do acórdão recorrido, o que nos poderia levar a concluir que teria escolhido a via da impugnação restrita da matéria de facto provada. O mesmo é dizer a suscitação dos vícios decisórios do nº 2 do artigo 410º do CPP. Mas não, o recorrente também não invocou a verificação de qualquer dos referidos vícios, os quais, porém, são de conhecimento oficioso desta Relação.
Nesta conformidade, tendo em conta a alegação do recorrente, deixamos claro que a apreciação a que iremos proceder da matéria de facto irá cingir-se ao texto da decisão recorrida em si mesmo e/ou conjugada com as regras da experiência comum.     
Assim, e adiantando não se verificarem quaisquer dos vícios do nº 2 do artigo 410º do CPP (repete-se não invocados pelo recorrente), quanto aos pontos 3 e 26 dos factos provados, da fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido, resulta que os depoimentos efetuados pelos dois filhos do arguido e da vítima falecida foram julgados credíveis e decisivos para a convicção alcançada pelo tribunal recorrido. E ao contrário do afirmado pelo recorrente, os referidos factos não são desmentidos, antes foram confirmados por eles, tendo relatado factos ocorridos enquanto viveram com os pais na mesma casa, mas também factos ocorridos depois desse momento até ao dia do episódio de que resultou a morte da mãe. Efetivamente, depois de se autonomizarem dos pais, os dois filhos nunca se desinteressaram pela mãe. É o que se pode concluir, nomeadamente, do excerto da fundamentação do acórdão recorrido quando refere que relativamente ao depoimento efetuado pelo filho CC “ Este foi um depoimento totalmente sincero, carregado pela culpa por nunca ter tido coragem de enfrentar o pai, assumindo a testemunha ainda hoje sentir medo dele (tanto assim que pediu a prestação do testemunho na sua ausência). Ficou clara a impressão do ambiente de terror vivido naquela casa, onde a testemunha regressava sem gosto, quase por obrigação, apenas para ver e saber da mãe, o que fazia de forma mais ou menos concertada e alternada com o irmão (“vais lá tu ou vou eu?”).”  E o mesmo se diga quanto ao depoimento efetuado pelo filho AA. De facto, relativamente a este depoimento pode ler-se no acórdão recorrido. “..este depoimento, absolutamente sincero e credível, concordante com o testemunho do irmão, confirmou o ambiente de terror vivido naquela casa pela vítima, durante largos anos, sempre em silêncio e em encobrimento, embora não totalmente conseguido em relação aos filhos que, como dito, o perceberam – até porque também o viveram –, levando-os a, por um lado, querer sair daquela casa e não mais lá voltar (pelo pai), e por outro, a um constante estado de alerta e sobressalto que os punham em cuidados (pela mãe), ao ponto de o filho CC só sair (à noite) depois de garantir que os pais já dormiam ou de o filho AA ir escutar à porta da casa a perceber se havia necessidade de entrar (do que se dispensava se tudo estivesse calmo).”
Nesta medida é incompreensível a alegação do recorrente de que não se fez prova dos factos e a invocação da prescrição do procedimento criminal quanto ao crime de violência doméstica, uma vez que, e dada a natureza de crime habitual, o respetivo prazo só corre desde o dia da prática do último ato, cfr. artigo 119, nº 2 al. b) do CPP. 
Mais invocou o recorrente que, referindo-se ao crime de violência doméstica, “.. não existem factos concretos e devidamente circunstanciados em termos de tempo, espaço e modo da prática desse crime.” Isto porque, segundo alega “os factos relatados pelas duas testemunhas, e que levaram à condenação do Arguido pelo crime de violência doméstica, não foram devidamente circunstanciados, limitando-se aquelas a proferir declarações vagas, imprecisas, não circunstanciadas”.
Porém, sem razão.
Na verdade, como escrevemos no Ac. RG de 05.07.2021, processo 2/20.0GEBRG.G1, disponível em www.dgsi.pt, relatado pela aqui relator, “A questão suscitada pelo recorrente relativa à deficiente descrição e concretização dos factos imputados ao arguido na acusação e/ou na sentença tem sido objeto de apreciação por parte da jurisprudência sobretudo quanto à narração dos factos relativos aos crimes habituais e aos crimes de trato sucessivo, que se caraterizam por as condutas do agente se prolongarem no tempo. Ou seja, situações em que a conduta do agente se repete, com contornos muito semelhantes ou até da mesma forma, por um período considerável de tempo, dificultando o processo da sua memorização por parte daqueles que posteriormente tenham necessidade de relatar os factos em tribunal, com o necessário rigor, o mesmo é dizer, localizando-os no tempo e no espaço, por forma individualizada, especificada e contextualizada. Desta circunstância decorrem naturais dificuldades de prova desses factos, que não podem ser ultrapassadas por via de um menor rigor na narração dos factos, em prejuízo do direito de defesa do arguido.
Assim, a propósito do crime de tráfico de produtos estupefacientes, segundo o Ac. STJ de 15.12.2011, processo 17/09.0TELSB.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt, “Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante deste STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o imputado comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente.” No mesmo sentido, vide v.g. Ac STJ de 21.02.2007, processo 06P4341, disponível em www.dgsi.pt.
No que concerne ao crime de violência doméstica, como se refere no Ac. RP de 08.07.2015, processo 1133/13.9PHMTS.P1, publicado em www.dgsi.pt, estamos no âmbito do direito penal, o qual revestindo quanto ao processo natureza acusatória, e sendo regido pelos princípios da tipicidade e da legalidade quanto ao crime impõe particulares exigências ao nível da certeza, da clareza e da precisão e da completude dos actos imputados de tal forma que o arguido acusado deles se possa eficazmente defender, e daí que a própria norma processual impunha a narração dos factos imputados e sendo possível “ o lugar, o tempo e a motivação da sua pratica…” artº 283º 1b) CPP, o que é relevante não apenas para eficazmente o arguido/ acusado poder exercer o seu direito de defesa (porque no dia X estava no local Y e não no local A, etc …), mas também para averiguar da ausência de condições de procedibilidade (v.g exercício do dto de queixa) ou factos extintivos do procedimento criminal (v.g. prescrição) ou até da existência de crime.
(…) Desde há muito o STJ tem entendido que devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados / imputados na acusação (e consequentemente na sentença) conceitos vagos e imprecisos, genéricos e conclusivos porquanto isso não apenas impede um eficaz exercício do direito de defesa, como impede o exercício do contraditório ínsito naquele.”.
Relativamente à questão em apreço quanto ao crime de violência doméstica, vide ainda, no mesmo sentido, v.g. Ac STJ de 20.02.2019, processo 25/17.7GEEVR.S1; Ac RP de 13.11.2019, processo 109/19.7GAARC.P1 e Ac RC de 17.01.2018, processo 204/10.8GASRE.C1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Em sentido idêntico, segundo Maia Costa[5]  “A narração dos factos deverá ser tanto quanto possível concreta, em termos de tempo e de lugar e, havendo vários agentes, quanto à intervenção particular de cada um, sendo irrelevantes imputações genéricas ou coletivas, a não ser como enquadramento de factos devidamente individualizados”.
A necessidade de concretização e especificação dos factos imputados ao arguido, com indicação das respetivas circunstâncias de tempo e de lugar, decorre, desde logo, de serem asseguradas ao arguido todas as garantias de defesa por imperativo constitucional, cfr. artigo 32º, nº 1 da CRP. Na verdade, o arguido só poderá efetivamente defender-se se puder contraditar as provas que sejam oferecidas contra ele e que o possam prejudicar. Para tanto, o arguido terá de conhecer, com o necessário rigor, os factos que lhe são imputados, descritos de forma a que não subsistam dúvidas no seu espirito sobre qual o “pedaço de vida” em discussão. Pois pior do que não poder defender-se é, à semelhança de um processo tipo kafkiano, não saber do que defender-se.
Todavia, do acima transcrito nº3 al. b) do artigo 283º do CPP, quanto aos factos que devem constar da acusação e/ou sentença, decorre não ser obrigatória a indicação do lugar e da data dos factos, da motivação e do grau de participação do agente, e das circunstâncias relevantes para a determinação da pena. Com efeito, como decorre expressamente da letra da lei, tais indicações apenas serão de efetuar no caso de ser possível.
Porém, impõe-se que “a indicação os limites temporais da ação se mostrem suficientemente demarcados, adstritos a um concreto período de tempo, circunstância que conjugada com a descrição dos atos integrantes da atividade, dos respetivos intervenientes e local onde ocorreram não conduz a uma compressão inadmissível do exercício dos direitos de defesa do arguido ou da sua posição processual, em suma posto que transpareça devidamente enquadrada pelos demais elementos na norma referidos e que em caso de dúvida sustentada sobre a concreta data do «evento», mostrando-se tal relevante, nomeadamente, mas não só, para efeitos de prescrição, adopte o tribunal a posição [fáctica] que menos prejudica, ou dito de outro modo, mais beneficia o agente do crime”, cfr. Ac RC de 25.02.2015, processo 369/13.7GAMGL.C1, disponível em www.dgsi.pt
Nesta ordem de ideias, no âmbito penal, o nosso ordenamento jurídico acolheu o princípio do processo justo e equitativo, que por imposição constitucional decorre dos artigos 20º, nº 4 e 32º, nº 1 e 5 da CRP, consubstanciado em princípios fundamentais do processo penal, como seja o contraditório, do acusatório e da igualdade de armas, consagrados no CPP e em instrumentos de direito internacional, cfr. v.g. artigo 6º da CEDH, que fazem parte do direito português, cfr. artigo 8º da CRP.”
No caso em apreço, lendo a fundamentação da matéria de facto do acórdão, considerando apenas o seu texto e as regras da experiência comum, face ao longo período de tempo a que se reporta a atuação do arguido - que é essencialmente levada a cabo de forma em tudo semelhante, sobre a mesma vítima, no mesmo local, ou seja, no interior da habitação do casal - julgamos que os factos se mostram descritos de forma suficientemente circunstanciada, em termos de tempo, lugar e de motivação da sua prática, sem que com isso se mostre violado, por forma intolerável, qualquer direito do arguido.
Assim, ao contrário do que defende o recorrente, os factos provados no acórdão recorrido não são, pois, vagos e imprecisos, integrando, pois, o crime de violência doméstica pelo que bem andou o tribunal recorrido ao condená-lo, com base neles, pela prática do referido tipo legal de crime.
3.2- O arguido / recorrente insurge-se contra a medida da pena em que foi condenado pela prática do crime de homicídio qualificado, a qual considera ser manifestamente excessiva, devendo, no seu entender, ser reduzida para próximo do limite mínimo da respetiva moldura, atento os seguintes factos:
- confissão, livre e espontânea do homicídio de que vinha acusado; e não o fez por estratégia processual para ver a sua pena diminuída, uma vez que já há muito o havia feito, designadamente em sede de inquérito, no decorrer de um interrogatório;
- ausência de antecedentes criminais, em 64 anos de vida;
- arrependimento;
- estado de saúde débil, nomeadamente a doença de Fabry, uma doença rara e ainda pouco estudada, de contornos e consequências ainda não totalmente conhecidos pela ciência;
- tratar-se de Arguido inserido profissional, social e familiarmente;
- bom comportamento no estabelecimento prisional;
- ausência de factos de comprovem qualquer preparação do crime ou frieza de ânimo na sua execução.

Assim, importa agora sindicar a medida concreta da pena, quanto ao crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma, de 22 anos de prisão, em que o arguido foi condenado em primeira instância.
Nesta sede, não podemos deixar de salientar - quanto aos limites de controlabilidade da determinação da pena em sede de recurso  - que entendemos ser de seguir o entendimento da doutrina  e da jurisprudência  de que “é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de fatores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas a determinação do quantum exato de pena só pode ser objeto de alteração perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efetuada” .
A aplicação da pena visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, cfr. nº 1 do artigo 40º do CP, pelo que, tendo em conta estes desideratos, a determinação da sua medida concreta faz-se de acordo com os critérios fixados no artigo 71º, n.º 1 e n.º 2 do C. Penal. Numa primeira aproximação, a pena deve ser concretizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento.
A medida concreta da pena há-de encontrar-se no espaço de liberdade fornecido por uma moldura que tem como limite máximo a culpa do agente e como limite mínimo as exigências de prevenção geral positiva .
Na verdade, importa precisar que:
- A culpa do agente assinala o limite máximo da moldura penal, dado que não pode haver pena sem culpa, nem a pena pode ser superior à culpa, de acordo com princípios fundamentais da Constituição da República Portuguesa, do Código Penal e no respeito pela dignidade inalienável do agente ;
- As exigências de prevenção geral (traduzidas na necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, no respeito pelas legitimas expectativas da comunidade) têm uma medida ótima de proteção, que não pode ser excedida, e um limite mínimo, abaixo do qual não se pode descer, sob pena de se pôr em causa a crença da comunidade na validade da norma violada e os sentimentos de confiança e segurança dos cidadãos nos institutos jurídico-penais; trata-se, aqui, de determinar qual a pena necessária para assegurar o respeito pelos valores violados, pelo que, a pena a aplicar não pode ultrapassar os limites de prevenção geral, uma vez que, como dispõe o artigo 18º, nº2 da C.R.P., só razões de prevenção geral podem justificar a aplicação de reações criminais; e
- Dentro desses dois limites atuam, na graduação da pena concreta, os critérios de prevenção especial de ressocialização, pois só se protege eficazmente os bens jurídico – penais se a pena concreta servir a reintegração do agente ou não evitar a quebra da sua inserção social.
Em suma, a realização da finalidade de prevenção geral que deve orientar a determinação da medida concreta da pena abaixo do limite máximo fornecido pelo grau de culpa, relaciona-se com a prevenção especial de socialização por forma que seja esta finalidade a fixar, em último termo, a medida final da pena.
 Para graduar concretamente a pena há que respeitar ainda, como supra ficou dito, o critério fornecido pelo n.º 2 do artigo 71º do C. P., ou seja, atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele. Este critério é fornecido, exemplificativamente, nas suas alíneas e podem e devem ajudar o tribunal a concretizar, no sentido de vir a quantificar, quer a censurabilidade ao facto a título de culpa, quer as exigências de prevenção geral e de prevenção especial.
A exigência de as referidas circunstâncias, favoráveis ou desfavoráveis ao agente (atenuantes ou agravantes), não integrarem o tipo legal de crime, ressalta de já terem sido levadas em conta pelo legislador na determinação da moldura legal, o que, no caso contrário, violaria o princípio ne bis in idem.
No caso vertente, quanto ao crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma, o tribunal de primeira instância condenou o arguido /recorrente na pena de 22 anos de prisão, partindo de uma moldura abstrata de 16 a 25 anos de prisão.
O tribunal recorrido fundamentou a medida da pena nos seguintes termos:
Aplicando os critérios fixados no aludido artigo 71.º, nº1, conjugado com o artigo 40.º, nº1, as penas de prisão concretas serão determinadas de modo a promover a tutela do bens jurídicos violados, em ordem à estabilização da expectativa comunitária na validade das normas violadas (prevenção geral positiva ou de integração), sem que o seu quantum ultrapasse a medida da culpa do arguido, pois esta, não sendo fundamento da pena, é seu pressuposto e limite inultrapassável (artigo 40.º, nº2, do CP), em nome do respeito pela dignidade humana, consagrado no artigo 1.º da CRP. Serão igualmente ponderadas as exigências de prevenção especial que o caso demanda. Tendo presente que a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade, à culpa cabe a função de estabelecer um limite que não pode ser ultrapassado. Na lição de Figueiredo Dias, a aplicação de uma pena visa acima de tudo o “restabelecimento da paz jurídica abalada pelo crime”. Há uma “medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto de pena, pois “abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua função primordial”. Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)” atuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena – cfr. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2007, p. 79 a 82. Isto posto, somos a considerar que o arguido atuou com vontade firme e persistente de maltratar durante anos, mesmo décadas, e, finalmente, matar a vítima, sua esposa e mãe dos seus filhos, agindo sempre com dolo direto, na sua modalidade mais intensa.
O grau de desvalor das suas ações está à vista, desde logo, quer pelo longo período de reiteração da violência, quer pelo valor vida por fim atingido, ante o qual manifestou absoluta indiferença e insensibilidade, pela forma de execução, fria e préordenada, aproveitando-se do estado maior de vulnerabilidade da vítima, no interior do quarto da casa onde viviam, onde legitimamente se sentia segura, sem lhe conferir a mais leve possibilidade de defesa, já que esperou que a mesma adormecesse para a atacar. Ao assim atuar, sabia o arguido que surpreenderia a vítima, não apenas desarmada, mas sem qualquer capacidade de resposta pois que só depois de acordada, mas seguramente aturdida e já ferida pelos primeiros golpes, teria a noção do que lhe estava a suceder. A agressão do arguido, com recurso a faca, pressupôs a sua proximidade e contacto físico com a vítima, cujo corpo repetidamente golpeou, indiferente à dor que causava, aos gritos que por certo ouvia, tudo sem hesitar ou deixar-se sensibilizar pelos contra-motivos éticos relacionados com os laços que com ela mantinha, sua esposa, companheira de mais de 40 anos e mãe dos seus filhos. Esta frieza de ânimo, não considerada para efeitos de qualificação do crime, é agora atendida na medida da pena. Há, ainda, a relevar que, atingida na cama, a vítima foi encontrada no chão, perto da porta, assim se percebendo que a morte não foi imediata, sendo incalculável a dor e desespero que terá sentido, ao percecionar a morte, com a faca espetada no pescoço. Também a violência doméstica reclama uma reação forte do sistema de justiça, dado o flagelo que atualmente constitui na nossa sociedade, que encara de forma cada vez mais preocupante os crimes praticados no seio da vida familiar, por vezes denotando uma escalada de violência, de que este processo é aliás a triste confirmação. Do exposto ressalta, pois, um culpa superior à média. Acresce que o arguido abandonou a vítima a esvair-se em sangue, com a faca espetada no pescoço, sem nunca pedir socorro, antes preocupado e empenhado em limpar e limpar-se dos vestígios do sangue, assim se afastando do crime que, no entanto, não poderia esconder nem negar. Esta conduta do arguido, bem como a que assume para com o filho CC, a quem dá a notícia da morte da mãe nos termos em que o fez, evidencia, mais uma vez, profundo desprezo e insensibilidade para com a pessoa humana, não apenas a que morrera às suas mãos, mas também os filhos, que hão-de viver com o trauma desta tragédia. A ilicitude situa-se, pois, em grau muito elevado. É certo que o arguido é delinquente primário, porém tal circunstância, embora abonatória, não traduz uma atenuante de significativo relevo já que corresponde, apenas, à obrigação geral, de todo e qualquer cidadão, de não cometer crimes e de viver de acordo com os padrões pré-estabelecidos em sociedade, não lesando o tecido social. Finalmente, reforçar que tanto o crime de violência doméstica como o crime de homicídio, ambos delitos violentos, estão a assumir crescente preocupação entre nós, pela aumento da sua frequência, fonte de intranquilidade e insegurança social, o que vale dizer que a via da pena deve exercer um fator de imprescindível dissuasão, como forma de contenção de instintos primários, de potenciais delinquentes, sendo prementes as necessidades de evitar tais delitos, finalidade traduz os propósitos de prevenção geral. E muito embora o arguido seja uma pessoa integrada socialmente, nada fazendo prever a sua sucumbência à reincidência, nem por isso as penas devem deixar de fazer-lhe sentir, interiorizando os seus efeitos, a gravidade extrema dos seus atos.
Tudo ponderado, julgamos justo, adequado, proporcional e necessário aplicar ao arguido penas parcelares que se fixam na segunda metade das respetivas molduras”

No sobredito contexto, vejamos então se a referida pena de prisão, quanto ao crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, como pretende o recorrente, deverá ser reduzida para um valor próximo do mínimo legal.

Da fundamentação da decisão recorrida, resulta que foi tida em conta cada um dos fatores suscetíveis de influenciar a medida concreta da pena de acordo com dos princípios gerais de determinação acima enunciados.
Na verdade, a medida da pena foi fixada tendo presente o grau de ilicitude dos factos e da culpa, bem assim segundo as exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir.
O grau de ilicitude dos factos, subsumíveis ao tipo legal de crime de homicídio, assume uma gravidade muito elevada, atenta a gravidade objetiva da forma como o arguido pôs termo à vida da vítima.
No caso concreto verificamos a circunstância frieza de ânimo foi usada pelo tribunal recorrido como motivo de agravamento da medida da pena, o que não nos merece qualquer reparo, até porque a circunstância que serviu para qualificar o homicídio foi o facto de a vítima ser cônjuge do arguido.
Efetivamente, no acórdão recorrido julgaram-se provadas e verificadas duas circunstâncias qualificativas: concretamente as previstas nas alíneas b) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.
Assim, concorrendo duas circunstâncias qualificativas, uma deve qualificar o crime de homicídio e a outra funcionar como agravante, emprestando maior gravidade à conduta do agente e, consequentemente, relevando na determinação da medida da pena[6], o que o tribunal coletivo considerou.
Frieza de ânimo é uma circunstância relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, reconduzindo-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução, em suma, um comportamento traduzido na firmeza, tenacidade e irrevogabilidade da resolução criminosa.
A frieza de ânimo tem sido definida pela jurisprudência do STJ como o agir de forma calculada, planeada quanto ao local e ao momento, com imperturbada calma, revelando-se indiferença e desprezo pela vida, firmeza, tenacidade, sangue frio, um lento, reflexivo e cauteloso processo na preparação e na execução do crime, de forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e pela vida humana (cfr. ac. do STJ de , proc. n.º 405/13.7 JABRG.G1.S1, in www.dgsi.pt). Assim, de acordo do elenco dos factos provados temos por preenchida a circunstância qualificativa contemplada pela al. j), do n.º 2, do artigo, 132.º do Código Penal.”
A culpa com que o arguido atuou é muitíssimo elevada, uma vez que, para além de ter agido com dolo direto, ou seja, ter representado os factos e agido com a intenção de os realizar (artigo 14º, n.º 1 do C. Penal), agiu com frieza de ânimo, ou seja, com reflexão anterior sobre a morte da vítima, friamente quando decidiu matar a esposa, no interior do domicílio comum, num momento de sossego do lar, quando ela estava a dormir no seu quarto e ele a ver TV noutra divisão da casa, não lhe dando a mínima hipótese de se defender. E é persistente, evidenciando um inabalável propósito de tirar a vida à vítima, considerando o número de golpes com que a atingiu com a faca. Este contexto evidencia, com enorme clareza, que o arguido, que não padece de qualquer doença do foro psíquico, em rigor, nenhum valor atribui à vida humana, no caso da pessoa da vítima. 
A pena deve, tanto quanto possível, neutralizar o efeito do delito, passando a surgir este, sem sombra de dúvidas, como um exemplo negativo para a comunidade e contribuindo, ao mesmo tempo, para fortalecer a consciência jurídica da comunidade, procurando dar satisfação ao sentimento de justiça do mundo circundante que rodeia o arguido e que nos casos de homicídio, por estar em causa o bem jurídico supremo, que é vida humana, e porque está em causa violência sobre mulheres em contexto familiar, é  sentido de forma muito particular e intensa  (função de prevenção geral).
No que concerne às razões de prevenção especial (positiva e negativa), embora também com relevância por via da culpa, importa atender:
- À idade do arguido (na data dos factos o arguido tinha 63 anos de idade), enquanto reveladora de maturidade da sua personalidade;
- À confissão dos factos relativamente ao homicídio, com pouco relevo para a descoberta da verdade, tendo em conta que o arguido foi detido logo após ter praticado os factos, sendo que não evidencia ter interiorizado o enorme desvalor da sua conduta; nessa medida, os factos praticados pelo arguido e a sua posição perante eles revela que o arguido é detentor de uma personalidade completamente insensível à conformação com o valor tutelado pela norma penal violada, quando é certo que está em causa o valor supremo que é a vida humana.
- Ao facto de ser primário; de ter bom comportamento na prisão (que é o comportamento expectável de quem se encontra em prisão preventiva); de padecer da doença de Fabry; e de ser modesta condição socio económica e com integração social e instrução escolar baixa (reformado da construção civil e ferrageiro, com o 7º ano de escolaridade), o que, como foi salientado pelo tribunal recorrido, não tem relevante valor atenuativo da pena.
Em face do quadro descrito, sendo as exigências de prevenção geral e especial muito elevadas, julgamos que não ocorre violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efetuada da pena cominada. Neste particular, não podemos deixar referir que os arestos do STJ invocados pelo recorrente têm as suas especificidades próprias, não sendo, pois, transponíveis para o caso em apreço, o qual é necessariamente diferente, impondo-se a aplicação de pena mais severa.    
Assim, o quantum da pena respeita os princípios da necessidade, proibição de excesso ou proporcionalidade das penas, observando o preceituado no artigo 18º, nº 2, da CRP, sendo adequada à reposição da validade da norma infringida e não ultrapassa a medida da culpa elevadíssima do arguido.
Por conseguinte, julgamos ser de manter a medida da pena de 22 anos de prisão quanto ao crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, nos termos fixados pela primeira instância. 

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e, em consequência, manter integralmente o acórdão recorrido.
Custas pelo arguido / recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 4 Ucs– artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1 do C.P.P. e artigo 8º, nº 9 do R.C.P. e tabela III anexa a este último diploma legal.
Notifique, remetendo cópia à primeira instância.
Texto integralmente elaborado e revisto pelo seu relator – artigo 94º, nº 2 do CPP, encontrando-se assinado eletronicamente pelos seus signatários na 1ª página, nos termos do disposto no artigo 19º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.
Notifique.
Guimarães, 24.09.2024

Armando Azevedo (relator)
Cristina Xavier da Fonseca (1º adjunto)
Anabela Varizo Martins (2ª adjunto)


[1] Nas transcrições das peças processuais irá reproduzir-se a ortografia segundo o texto original, sem prejuízo da correção de erros ou lapsos manifestos, bem assim da formatação do texto da responsabilidade do relator.
[2]De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr.  Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
[3] Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Segundo o Prof. Germano Marques da Silva “o recurso sobre a matéria de facto não significa um novo julgamento, mas antes um remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância” Forum Justitiae, Maio 99. Em sentido idêntico sustenta Damião Cunha ao afirmar que os recursos “…são entendidos como juízos de censura crítica « e não como «novos julgamentos», in O Caso Julgado Parcial, Publicações Universidade Católica, 2002, pág. 37.
[5] In Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 4ª edição revista, pág. 961.
[6] Cfr. Figueiredo Dias / Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª edição, pág. 79 e Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Tipos de Culpa e Medida da Pena, Almedina, 1997, pág. 102; Acórdãos do STJ de 3.11.2021, proc. 3613/19.3JAPRT.P1.S1, de 9.10.2019, proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, de 07.05.2015, proc. 2368/12.7JAPRT.P1.S2, de 25.03.2015, proc. 1504/12.8PHLRS.L1.S1, de 12.09.2012, proc. 1221/11.6JAPRT.S1 e de 18.01.2012, proc. 306/10.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.