CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
IMPUTAÇÕES GENÉRICAS
DIREITO DE DEFESA
Sumário

I - Não se podem considerar como “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal «as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32.º da Constituição».
II - Reproduz matéria genérica dizer-se que desde o início da relação, que aconteceu em Fevereiro de 2022, até ao dia 8 de Outubro de 2022 o arguido, com frequência, chamava à ofendida “filha da puta”, “senhora puta”, “puta com categoria”, “malandra” e “burra”, por desconhecimento das circunstâncias de modo, tempo e lugar em que o arguido apelidava a ofendida com tais impropérios, não podendo, por isso, ser considerados.
III - O que é relevante para a caracterização dos maus-tratos psíquicos é que estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretenda exercer sobre a vitima, de que decorre uma maior vulnerabilidade desta.

Texto Integral

Acordam, em Conferência os juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

1. Por sentença datada de 04 de abril de 2024, decidiu o Juízo Local Criminal de Cantanhede_

a) Condenar o arguido, , em autoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão;

b) Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses, acompanhada de regime de prova, que deverá contemplar a frequência do programa para agressores de violência doméstica;

c) Condenar a arguida , em autoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do Cód. Penal, dispensando-se a aplicação de qualquer pena á arguida, nos termos do artigo 143º, nº 3, alínea b) do Código Penal;

d) Condenar o arguido … no pagamento à ofendida  da quantia de € 800,00 (oitocentos euros), a título de reparação, em conformidade com o disposto nos artº 82º-A, nº 1 do Cód. Processo Penal e 21º da Lei nº 112/2009, de 16/09;

e) Julgar totalmente procedente por provado o pedido de indemnização cível e, em consequência, condenar o demandado … a pagar ao demandante Centro Hospitalar …, a quantia de € 133,91 (cento e trinta e três euros e noventa e um cêntimos) a título de danos patrimoniais, acrescida dos juros à taxa legal desde a notificação para contestar até integral pagamento e condenar a demandada … a pagar ao demandante Centro Hospitalar …, a quantia de € 112,07 (cento e doze euros e sete cêntimos) a título de danos patrimoniais, acrescida dos juros à taxa legal desde a notificação para contestar até integral pagamento;

f) Julgar totalmente improcedente por não provado o pedido de indemnização cível e, em consequência, absolver a demandada … do pedido formulado pelo demandante …;

2. Inconformado, recorre arguido, formulando as seguintes conclusões:

I- Não existe qualquer prova testemunhal ou documental produzida na audiência de discussão e julgamento que permita considerar como provados os factos identificados na sentença.

II- O relatório do INML de fl.s 76 a 82, conclui que a ofendida/arguida … não apresenta quaisquer vestígios de agressão na zona do estômago, pelo que desde logo deverá ser dado como não provado o facto enunciado em 15.

III- As lesões (equimoses) sofridas no membro superior direito, membro superior esquerdo e membro inferior esquerdo, não são consequência de qualquer agressão, mas o resultado de uma queda ocorrida, o que sempre foi defendido pelo arguido, sendo certo que, conforme resulta do depoimento da ofendida, a mesma tem dificuldades de equilíbrio, fruto do seu estado depressivo e medicação diária que toma.

IV- A Ofendida não recebeu qualquer assistência médica ou hospitalar, continuando a fazer a sua vida normal, após ter abandonado a casa de morada de família.

…».

2. O Ministério Público e a arguida, em resposta ao recurso, defendem a improcedência do mesmo.

3. Nesta Relação o Digno Procurador Geral Adjunto defende a manutenção da sentença recorrida.

4. Cumpridos o disposto no artigo 417º, do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais, nada obsta ao conhecimento do Recurso.

II. FUNDAMENTENÇÃO DE FACTO.

A primeira instância decidiu a matéria de facto como segue:

«(…) Factos provados

1. Os arguidos viveram em comunhão de cama, mesa e habitação desde, pelo menos, Janeiro de 2022 e até ao dia 19 de Setembro de 2022.

2. Fixaram residência, inicialmente, ….

3. E, após esta data, na Rua ….

4. No dia 1 de Julho de 2022, cerca das 14h30m, no exterior da residência, estando o arguido … a colocar tijolos, apercebe-se que … ali se encontrava.

5. … foi pegar em tijolos, para ajudar o arguido no trabalho que estava a fazer.

6. Contudo, ao fazê-lo, magoou-se nas mãos.

7. De imediato o arguido a chamou de “burra”.

8. Dizendo-lhe, ainda que “não sabia fazer nada”.

9. Estando o arguido com um tijolo na mão, arremessou-o para os pés de ….

10. Atingindo-a no pé esquerdo.

11. Como consequência directa e necessária desta agressão, ficou … com o pé inchado, sofrendo hematoma ao nível do médio pé.

12. No dia 19 de Setembro de 2022, cerca das 21h00m, na residência do casal, enquanto jantavam, gerou-se uma discussão entre os dois arguidos.

13. A arguida levantou-se da mesa.

14. Dizendo-lhe o arguido … que em casa dos pais dele ninguém se podia levantar sem ter terminado a refeição.

15. Após, o arguido … desferiu um pontapé na zona do estômago à arguida ….

16. O que fez com que esta caísse no chão.

17. Vendo que o arguido vinha novamente na sua direcção, a arguida … atirou com um copo de vidro na direcção do arguido.

18. Atingindo-o na zona da testa.

19. Como consequência directa e necessária destas agressões, sofreu … as seguintes lesões:

- Membro superior direito: equimose arroxeada na face posterior do cotovelo, medindo 9cm x 7cm e sobre a qual assentam duas escoriações, a maior das quais medindo 1,5cm x 1cm e a menor medindo 2cm x 0,3cm; e discreto edema subjacente às lesões;

- Membro superior esquerdo: equimose arroxeada no terço médio da face anterior do braço, medindo 2cm x 1,5cm; equimose arroxeada no terço distal da face posterior do braço, medindo 1cm de diâmetro; equimose arroxeada na face dorsal da mão, medindo 3cm de diâmetro;

- Membro inferior esquerdo: duas equimoses arroxeadas no terço distal da face ântero-medial da perna, a maior das quais medindo 4cm x 2cm e a menor medindo 1,5cm de diâmetro.

20. Tais lesões determinaram um período de doença fixável em oito dias, sem afectação da capacidade de trabalho geral.

21. Como consequência directa e necessária das agressões da arguida …, sofreu …, as seguintes lesões:

- Crânio: escoriação com crosta sanguínea, na região frontal à direita, medindo 1,5cm x 1cm;

- Membro superior direito: equimose arroxeada no terço médio da face medial do antebraço, medindo 5cm x 2cm.

22. Tais lesões determinaram um período de doença fixável em cinco dias, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional.

23. A partir desta data os arguidos mantiveram-se a viver na mesma casa, mas fazendo vida separada.

24. No dia 20 de Setembro de 2022, pelas 21h00m, gerou-se uma discussão entre os arguidos.

25. Na sequência da qual, a arguida … disse que ia telefonar à GNR.

26. Tendo o arguido … dito para chamar, que ela ia ver o que lhe ia acontecer.

27. Nesse mesmo dia, o arguido … chamou à arguida … “puta”.

28. E disse-lhe que ela tinha o sorriso de uma puta.

29. Desde o início da relação e até ao dia 8 de Outubro de 2022, data em que a arguida … saiu de casa, o arguido, com frequência, chamava a … nomes, como: “filha da puta”, “senhora puta”, “puta com categoria”, “malandra” e “burra”.

30. O arguido … agiu, em todas estas situações, com o propósito conseguido de ofender a honra, o bom nome e a sensibilidade de …, sua companheira, e de lhe causar um sentimento de insegurança e intranquilidade e de perturbar o seu equilíbrio psicológico, e, ainda, de a molestar fisicamente, maltratando-a, e, dessa forma, provocar-lhe sofrimento físico e psíquico, afectando a sua dignidade enquanto pessoa humana.

31. A arguida … agiu com o propósito conseguido de ofender o corpo e a saúde de ….

32. Os arguidos agiram sempre, em todas estas situações, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

33. Em 19/9/2022, foram ambos demandos/arguidos admitidos no Serviço de Urgência … da entidade demandante.

34. Os cuidados de saúde prestados pela entidade demandante aos assistidos foram necessários em virtude das lesões que apresentaram e que foram consequência direta e necessária das agressões perpetradas mutuamente.


*

III - Factos não provados

Da audiência de julgamento não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa, nomeadamente:


*

IV - Motivação da decisão de facto

Este Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada da prova produzida.

Desde logo, foram consideradas as declarações prestadas pelo arguido … no que se reporta à agressão de que foi vítima perpetrada pela arguida …, já que explicou a desavença que teve com aquela e que culminou nas agressões supra dadas como provadas, o que, em parte foi também confirmado pela arguida.

Já relativamente aos factos que lhe são imputados na acusação, valoraram-se apenas as suas declarações quanto ao facto de ter confirmado que tinha discussões frequentes com a arguida, não se valorando as suas declarações quando nega que proferido as expressões supra descritas ou que a tenha agredido, pois neste particular valoraram-se as declarações da arguida …, enquanto ofendida.

Com efeito, valoraram-se também as declarações da ofendida …, quanto aos factos e comportamentos supra descritos de que foi vítima por parte do arguido …, pois que de uma forma clara e coerente, descrevendo as situações de discussão ocorridas na residência comum, sendo que o arguido reagia da forma supra descrita, proferindo expressões injuriosas e agredindo-a.

Relativamente à agressão perpetrada ao arguido …, embora tenha referido que foi para se defender de uma agressão iminente, confirmou ter-lhe atirado o copo que o atingiu na testa.

Valoraram-se também as declarações da testemunha …, Militar da GNR … que, prestando um depoimento coerente e credível, descreveu que estava de patrulha e foi comunicado para se deslocarem a casa dos arguidos, sendo que quando ali chegou estava tudo calmo, no entanto, ambos apresentavam ferimentos e cada um relatou a sua versão dos factos, tendo sido após conduzidos ao Hospital.

Foram consideradas as declarações da testemunha …, para quem o arguido trabalhou, o qual, de forma coerente e credível, confirmou que em dia que não consegue precisar, mas no mês de Setembro do 2022, o arguido andou a trabalhar para ele, sendo que já à noite apareceu em casa, num estado exaltado, pedindo ajuda, referindo ter sido agredido pela mulher com um copo e apresentando um hematoma na testa, pelo que se deslocou à residência de ambos, tendo constatado que também a arguida … apresentava lesões num braço.

Mais se valoraram as declarações prestadas pelas testemunhas …, amigos do arguido, que convivem com este com frequência e se pronunciaram quanto à forma como o mesmo é visto no meio social e profissional onde está inserido.

Foram também valorados os relatórios de perícia médico-legal de fls. 76 a 78 e 80 a 82, os autos de notícia de fls. 3 a 4 e 28 a 29, o relatório fotográfico de fls. 6 e 43, as informações clínicas de fls. 107 e 223 a 225, o relatório social referente à arguida … e os certificados do registo criminal dos arguidos juntos ao processo electrónico.

Com efeito, não se valorou a versão apresentada pela arguida quando refere que agiu em legítima defesa e para afastar uma agressão iminente, …

III. APRECIAÇÃO DO RECURSO

I. Impugnação de facto

A questão essencial a decidir consiste em saber se o tribunal errou ao julgar provado o ponto de facto provado sob o n.º 15, ou seja, saber se as lesões sofridas pela ofendida AA referenciadas no ponto de facto provado n.º 19 resultaram de um pontapé desferido pelo arguido no estômago daquela.

Para tanto, convoca o Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal de fls. 76 a 82, na parte em que concluiu que a ofendida AA não apresenta quaisquer vestígios de agressão na zona do estômago, bem como as declarações da vitima.

E, de facto, consta da mencionada perícia que na zona do tronco, a examinanda não apresenta alterações cutâneas visíveis.

Mas se esta omissão poderia ser irrelevante para modificar o facto impugnado, assume importância, quando comparamos o evento relatado pela vítima em audiência com as lesões observadas no exame médico.

Diz a ofendida que estava na banca da cozinha a lavar a loiça quando o arguido se virou para a saída que ia dar à garagem.

Aí, nessa porta para garagem, disse ao arguido:

 

Daqui resulta que a ofendida estava na banca da cozinha a lavar a loiça, foi à mesa apanhar as coisas que lá estavam, sendo este o momento em que o arguido a pontapeou fazendo-a cair ao chão que era de cimento e areia.

Ora, se a ofendida, como afirma, gosta de ter as coisas arrumadas, não é crível que tenha o chão da cozinha (admitindo-se que é de cimento) cheio de areia.

Por outro lado, se a ofendida estava a apanhar as coisas da mesa e se o arguido a partiu toda, dando-lhe um pontapé brutal na zona do estômago, nos termos por aquela descritos, dificilmente se concebe que uma agressão deste tipo não tivesse deixado vestígios na zona abdominal, no cotovelo e no joelho direitos, como, sucedeu, no caso em apreço.

Ademais, não podemos deixar de considerar que a compatibilidade das lesões com a acção do arguido definida no exame médico - «resultaram de traumatismo de natureza contundente compatível com a informação prestada» - foi determinada em função de circunstâncias não provadas em audiência, como sejam, os empurrões da ofendida para o chão e a agressão com um ferro nos dois membros superiores.

Note-se, aliás, que o mesmo sucedeu com o episódio de 5 de julho de 2022. As lesões sofridas pela ofendida, segundo a informação por esta prestada na urgência, terão resultado de «uma queda do tijolo no pé» e não da acção do arguido, como afirmou em audiência.

Deste modo, não se pode afirmar, como se afirma na sentença sindicada que o relato da ofendida, AA é claro e coerente.

Aliás, se assim fosse, não haveria fundamento para que o tribunal tivesse acreditado apenas numa parte do depoimento da ofendida, …

São, pois, muitas as dúvidas, sobre a causa que determinou a queda da ofendida ao chão, dúvidas essas que impõem a observância do princípio in dubio pro reo, decidindo a favor do arguido, julgando procedente o recurso de facto.

Consequentemente, altera-se o facto provado n.º 15 e os que dele dependem directa e necessariamente para não provados.

Assim:

Os factos provados n.ºs 15 e 16, são transferidos para o elenco dos factos não provados.

Mais se altera para não provado:

 - A designação «novamente» do facto provado n.º 17;

- A primeira parte - como consequência directa e necessária destas agressões, sofreu … as seguintes lesões - do ponto de facto n.º 19; 

 - O ponto de facto n.º 34, na parte em que se reporta aos cuidados de saúde prestados pela entidade demandante à ofendida como consequência directa e necessária da agressão do arguido (facto 34);

– O Ponto de facto n.º 35

Relativamente aos epítetos narrados no ponto de facto n.º 29, reproduz matéria genérica, desconhecendo-se as circunstâncias de modo, tempo e lugar em que o arguido apelidava a ofendida com tais impropérios, não podendo, por isso ser considerados.

E isto porque, «não se podem considerar como “factos” as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, pois a aceitação dessas afirmações para efeitos penais inviabiliza o direito de defesa e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art.º 32.º da Constituição. Por isso, essas imputações genéricas não são “factos” suscetíveis de sustentar uma condenação penal» - (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Acórdão do STJ de 15-11-2007 - Proc. 07P3236, rel. Cons. Santos Carvalho).

 O mesmo se diga quanto às alegações do ponto n.º 30 que, ao fim e ao cabo, mais não traduz do que a fórmula tabelar normalmente utilizada na descrição do dolo para o crime de violência doméstica.

Porém, no nosso caso, a matéria de facto provada n.ºs 1 a 14, 17 a 28, não consente, por si só, a conclusão que o arguido agiu com o propósito de ferir a sensibilidade de da companheira, e de lhe causar um sentimento de insegurança e intranquilidade e de perturbar o seu equilíbrio psicológico, e ainda, de a molestar fisicamente, maltratando-a e, dessa forma, provocar-lhe sofrimento físico e psíquico, afectando-a na sua dignidade enquanto pessoa humana, não, podendo, por isso, ser atendida no enquadramento jurídico-penal.

Do ponto de facto n.º 30, resta apenas provado que o arguido, nas situações descritas actuou com o propósito conseguido de ofender a honra, o bom nome e a integridade física da ofendida. 

 

 II. Qualificação jurídico-penal    

Modificada a matéria de facto, importa decidir se a conduta do arguido resultantes dos factos ora   provados é susceptível de integrar a prática do crime de violência doméstica pelo qual foi condenado.

Dispõe o artigo 152º, nº 1, al. b), do Código Penal:

Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Esta pena é elevada de dois a cinco anos, quando o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicilio comum ou no domicilio da vitima (nº 2, do mesmo artigo 152º).

O que é relevante para a caracterização dos maus-tratos psíquicos é que estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretenda exercer sobre a vitima, de que decorre uma maior vulnerabilidade desta.

Sobre este tipo de crime, a jurisprudência tem vindo a pronunciar-se, da qual destacamos, a Relação de Coimbra, no Acórdão de 29 de janeiro de 2014 (www.dgsi.pt) - que chamando à colação dois arestos anteriores – proferidos nos processos nºs 3827/2002 e 256/05.2GCAVR.C1 –recordou que:

«Não são os simples atos plúrimos ou reiterados que caracterizam o crime de maus tratos a cônjuge, o que importa é que os factos, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter na possibilidade de vida em comum, coloquem a pessoa ofendida numa situação que se deva considerar de vítima, mais ou menos permanente, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade, dentro do ambiente conjugal.

(…) Tal crime basta-se com a consolidação no estado vivencial da vítima de um estado de compressão na sua liberdade pessoal e de um apoucamento da dignidade que a um qualquer ser humano é devida».

No elenco dos factos que, ora, resultaram provados, inexistem dúvidas que, no dia 1 de julho de 2022, o arguido, nas circunstâncias descritas, apelidou a ofendida de burra, disse-lhe que não sabia fazer nada e arremessou um tijolo em direcção aos pés de …, atingindo-a no pé esquerdo, causando-lhe directa e necessariamente um hematoma ao nível médio do pé.

Também não existem dúvidas que no dia 20 de setembro de 2022, nas circunstâncias descritas nos pontos de facto n.ºs 24 a 28, o arguido chamou a ofendida de puta…que tinha um sorriso de puta.

Como não existem dúvidas que o arguido ofendeu a integridade física, a honra e consideração da arguida, ….

Contudo, não se encontra demonstrado nos autos, que as agressões físicas e as expressões utilizadas pelo recorrente constituam o conceito de maus-tratos, no sentido apontado pelo citado artigo 152º.

A factualidade apurada não evidencia, à luz da experiência comum, a existência de maus-tratos infligidos pelo arguido à ofendida: que aquele, ao insultar e agredir esta, tenha agido com humilhação, desprezo ou especial desconsideração da mulher. Os actos praticados pelo recorrente não revelam, ao nível do desvalor da acção e resultado, uma intensidade tal que seja suficiente para lesar o bem jurídico, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.

Desaparece, assim, o elemento especial e caracterizador do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152º, do Código Penal em relação aos crimes de injúrias e ofensa à integridade física.

A conduta do arguido integra, assim, os elementos objectivos e subjectivos de dois crimes de injúrias previstos e punidos pelo artigo 181º, nº 1 e um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo 143º, nº, 1, ambos do Código Penal e não já o do crime de violência doméstica.

Deste modo, deve o arguido ser absolvido: (i) pela prática de um crime de violência doméstica pelo qual vinha condenado [alíneas a) e b) da sentença recorrida] -; (ii) da subsequente indemnização de 800€ fixada à ofendida pelo Tribunal recorrido, nos termos dos artigos 82.º A, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 21.º, da Lei 112/2009, de 16 de setembro [alínea d) da sentença recorrida] e (iii) do pedido cível deduzido pelo Centro Hospitalar … contra o arguido, no valor de 133,91€ [alínea e) da sentença recorrida].

Por seu turno, condena-se o arguido, …, como autor material, em concurso real e na forma consumada, pela prática de dois crimes de injúrias, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º1, do Código Penal e um crime de ofensa à integridade física  previsto e punido pelo artigo 143.º, do Código Penal.

III. Medida da pena

V. DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em conceder provimento parcial ao Recurso interposto pelo arguido, revogando as decisões inscritas nas alíneas a), b), d) e e) da sentença recorrida.

Consequentemente:

a) Absolvem o arguido da prática do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 1, alínea a) do Código Penal;

b) Absolvem o arguido da obrigação de pagar à ofendida e ao demandante, Centro Hospitalar …, as quantias fixadas na sentença, ora revogada.

 c) Condenam o arguido, em autoria material, na forma consumada, pela prática de dois crimes de injúrias previsto e punido pelo artigo 182.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 10 (dez) dias de multa, à taxa diária de 5€ (cinco euros), cada um;

d)  Condenam o arguido, em autoria material, na forma consumada, pela prática de um crime de ofensa á integridade física previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 5€ (cinco euros);

e) Operando o cúmulo jurídico, condenam o arguido na pena única de 110 (cento e dez dias de multa) à taxa diária de 5€ (cinco euros), o que perfaz o montante de 550€ (quinhentos e cinquenta euros).

Coimbra, 25 de setembro de 2024

Relatora: Alcina da Costa Ribeiro

1.ª Adjunta: Ana Carolina Cardoso

 2.ª Adjunta:  Cristina Branco