I. A autoridade do caso julgado destina-se a evitar a prolação de decisões posteriores que sejam juridicamente incompatíveis com a primeira, ainda que não ocorra, entre as ações em confronto, identidade de causa de pedir e/ou de pedido.
II. Tendo transitado em julgado a sentença que considerara que, por força de um contrato de dação em cumprimento celebrado entre a Autora e a Ré, a Ré adquirira definitivamente o direito de propriedade sobre os blocos de calcário que a A. havia extraído de uma determinada pedreira e que nela se encontravam, assim improcedendo a ação de reconhecimento do direito de propriedade sobre os blocos, deduzida pela Autora, e assim procedendo a pretensão da Ré, de que fosse reconhecida a sua propriedade sobre os referidos blocos de calcário, improcede, por reflexo da dita sentença (autoridade de caso julgado), a pretensão, formulada pela mesma Autora em posterior ação instaurada contra a mesma Ré, de que a Ré, com base no mesmo contrato, fosse condenada a pagar à Autora um valor correspondente ao preço de comercialização das ditas pedras de calcário.
III. Improcede o pedido subsidiário, assente em alegado enriquecimento sem causa da Ré, decorrente do facto de esta ter adquirido a propriedade dos blocos de calcário sem ter tido de suportar as despesas levadas a cabo pela Autora para extrair os blocos de calcário da pedreira, se não forem alegados nem demonstrados factos dos quais decorra que não cabia à A., mas à Ré, suportar tais despesas.
Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1. Sopedreiras da ... - Exploração de Pedreiras, Lda intentou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ....
A A. alegou que, no exercício da sua atividade, celebrou com a Junta de Freguesia de ... três contratos de concessão de exploração de uma pedreira sita em ..., .... Por força do último desses contratos, outorgado em 11.6.2007, a A. ficou titular de uma área de concessão de exploração no total de 63 023 m2, pelo prazo de 4 anos, renovável. À A. foi atribuído, pela Direção Regional de Economia do Centro, em 28.5.2009, o alvará de licença de exploração da dita pedreira, com o número ...25. Sucede que, em virtude das dificuldades de escoamento dos blocos de pedra que a A. extraía da pedreira, resultantes das dificuldades da construção civil emergentes da crise do subprime, a A., que durante anos recorrera à R. para o financiamento da sua atividade, foi obrigada, como meio de solver a dívida acumulada perante aquela instituição de crédito, no valor de € 1 900 000,00, a fazer dação à R. da suprarreferida licença de exploração da pedreira. Nos termos do respetivo contrato, denominado de “contrato de dação em pagamento com cedência de exploração”, celebrado em 11.3.2010, a R. autorizou que a A. explorasse gratuitamente a aludida pedreira, durante dois anos, dela retirando a pedra e comercializando-a da melhor forma que entendesse. Findo aquele prazo, a A. seria notificada para efetuar a recompra da licença: se não procedesse à referida recompra, a R. poderia dar à licença o destino que bem entendesse. O aludido prazo de dois anos foi prorrogado por mais um ano, até 21.3.2013. Por carta datada de 13.3.2013 a R. notificou a A. para, no prazo de 180 dias, proceder à liquidação do montante em dívida e à recompra da licença. Nesta altura, a A. continuava, ainda que de forma intermitente, a extrair e a acumular blocos de calcário, que, quase na totalidade, não conseguia vender. Por isso, a A. acordou com a R. terminar a exploração em 2014, o que veio a acontecer no final do mês de junho. Foi acordado entre a A. e a R. que a A. poderia manter os blocos - que a A. entendia serem sua propriedade -, na pedreira, até que a R. a notificasse, por escrito, para a A. a desocupar – notificação essa que nunca ocorreu. Em 12.12.2017 a legal representante da A. teve conhecimento de que a R. havia cedido a exploração da pedreira à sociedade S...”. Após contactar o gerente da S...”, aquele comunicou à legal representante da A. que o acordo da S...” com a R. incluía todos os blocos já extraídos pela A. e ainda depositados na pedreira, e que a S...” iria comercializá-los, como se fossem seus. Essa intenção foi concretizada na prática, em termos que a A. explicitou. Por isso, em 22.12.2017 a A. intentou procedimento cautelar de restituição provisória de posse e arrolamento contra a ora R. e a S...”, tendo vindo a ser decretada, após recurso para a Relação, a restituição provisória da posse dos blocos, em que a ora R. foi condenada. Em 20.11.2018 a A. propôs ação declarativa de condenação contra a S...”, pedindo para “a) ser a autora declarada, com exclusão de outrem, proprietária de todos os blocos de calcário extraídos e depositados na pedreira do ... até à presente data; b) ser a ré condenada a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre os sobreditos blocos de calcário e, em consequência, a abster-se de, por qualquer meio, negociar, alienar, vender ou onerar os mesmos; c) ser a ré condenada a permitir que a autora carregue os referidos blocos e os retire para um local à sua escolha”. A ora R. deduziu incidente de oposição espontânea no referido processo, e por despacho de 03.10.2019 foi admitida a intervir na ação, assumindo a posição de ré, em substituição da S...”. A final, foi proferida sentença, na qual se julgou a “ação improcedente, absolvendo-se a opoente de todos os pedidos formulados pela autora” e “procedente a oposição espontânea apresentada por Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ..., CRL e, na medida dessa procedência, reconhece-se esta como legítima proprietária de todos os blocos de calcário extraídos e que fazem parte integrante da pedreira da qual é dona e titular da exploração, denominada “...”, devendo os mesmos ser recolocados dentro do espaço da pedreira pela autora”. Na sequência de recurso para a Relação, esta deu razão à A.. Porém, tendo a R. recorrido para o STJ, este (por acórdão datado de 24.5.2022, transitado em julgado em 12.9.2022) revogou o acórdão da Relação, repristinando a sentença. Na sentença foi dado como provado que “…a autora tinha depositados no local da pedreira um número não concretamente apurado, mas certamente superior a 2672, de blocos de calcário.” Ora, na extração desses blocos de calcário, a A. realizou e suportou despesas cujo valor a A., em termos que explicita, calcula em € 1 638 360,00. Na sequência do mencionado acórdão do STJ, foi reconhecida à R. a titularidade do direito de propriedade sobre os aludidos blocos de calcário, sem que a R. tivesse suportado o mencionado custo da sua extração, o qual foi despendido pela A.. Tal desfecho ocorreu por que a R., em violação do contrato que celebrara com a A., no qual autorizara a A. a explorar a pedreira e a dela retirar a pedra, comercializando-a como bem entendesse, reivindicou ilegitimamente e abusivamente a propriedade dos aludidos blocos, tendo obtido vencimento na ação. Dessa forma a R. causou enormes prejuízos à A. e enriqueceu injustamente à custa dela. No que concerne aos prejuízos, estes consistem no valor dos blocos de que a A. foi desapossada em violação do contrato, cuja venda permitiria à A., em termos que a A. explicita, encaixar, no mínimo, a quantia de € 2 571 800,00. Quando assim se não entenda, sempre terá de se considerar que a R. enriqueceu injustamente, por conta de todas as despesas incorridas pela A. e em que a R. teria forçosamente de ter incorrido se quisesse extrair aqueles blocos.
A A. concluiu formulando o seguinte petitório:
“Nestes termos e nos melhores de direito, deverá a presente ação ser julgada procedente, por provada e, em consequência:
i) ser a ação julgada procedente e a ré condenada a pagar à autora, a título de responsabilidade contratual, a quantia de € 2.571.800,00 (dois milhões, quinhentos e setenta e um mil e oitocentos euros), acrescida de juros vencidos à taxa supletiva legal para as operações comerciais, contados desde 26 de junho de 2018, no valor de € 927.024,23 (novecentos e vinte e sete mil, trezentos e noventa e oito euros e doze cêntimos) e vincendos até efetivo e integral pagamento;
ii) quando assim não se entenda, ser em todo o caso a ação julgada procedente e a ré condenada restituir à autora, a título de enriquecimento sem causa, a quantia de €1.683.360,00 (um milhão, seiscentos e oitenta e três mil, trezentos e sessenta euros), acrescida de juros vencidos à taxa supletiva legal para as operações comerciais, contados desde 26 de junho de 2018, no valor de € 607.024, (seiscentos e sete mil, vinte quatro euros e três cêntimos) e vincendos até efetivo e integral pagamento;
iii) ser a ré condenada nas custas do processo”.
2. A R. contestou. Alegou que, por força do contrato de dação em pagamento com cedência de exploração, que a A. e a R. celebraram entre si, a R. adquiriu a propriedade dos blocos de pedra extraídos pela A. na aludida pedreira. Assim, nos termos do contratado, após ter decorrido o período, acordado entre as partes, no decurso da qual a A. poderia ter comercializado os blocos extraídos pela A. na pedreira, a A. não poderia vender tais blocos, que eram propriedade da R.. Assim, ao opor-se à pretensão da A., a R. não violou o aludido contrato. Sobre a questão da propriedade dos blocos de calcário já recaiu o acórdão do STJ supra indicado, o qual tem força de autoridade de caso julgado, que vincula o tribunal ora acionado, assim determinando a improcedência da ação. No que concerne ao pedido subsidiário, atinente a pretensas despesas suportadas pela A. em virtude da extração da pedra, que deveriam ser, na tese da A., suportadas pela R., a R. negou que a A. tivesse extraído quaisquer blocos após a celebração do contrato e, por outro lado, alegou que, nos termos do contrato, sempre caberia à A. suportar tais encargos. Por outro lado, o pretenso direito a ressarcimento por alegada situação de enriquecimento sem causa, sempre estaria prescrito, nos termos do art.º 482.º do Código Civil.
A R. concluiu requerendo que a exceção de autoridade de caso julgado e a exceção de prescrição fossem julgadas totalmente procedentes, com as legais consequências, que a ação fosse julgada totalmente improcedente, por não provada e por ausência de fundamento, com as respetivas consequências, e que a A. fosse condenada como litigante de má-fé, em multa e indemnização a pagar à R.
3. A convite do tribunal, que para tal invocou o uso do dever de adequação formal, a A. respondeu às exceções arguidas pela R., tendo pugnado pela sua improcedência.
4. Em 23.12.2023 o tribunal proferiu saneador-sentença, no qual, após considerar o reflexo da sentença e do acórdão do STJ proferidos no supramencionado processo que correra os seus termos entre a ora A. e a ora R., julgou improcedente o pedido principal deduzido pela A.. Quanto ao pedido subsidiário, assente em enriquecimento sem causa por parte da R., o tribunal a quo considerou ser improcedente a exceção de prescrição deduzida pela R.. Porém, no que concerne à verificação do invocado enriquecimento sem causa da R., alegado pela A., o tribunal arredou a sua ocorrência, face ao teor do clausulado no contrato celebrado entre a A. e a R.. Mais ajuizou, o tribunal, que o comportamento processual da A. não integrava nenhuma das situações legalmente previstas para fundamentar uma condenação como litigante de má-fé.
Em consequência, o tribunal a quo julgou a ação improcedente e consequentemente absolveu a R. dos pedidos contra si formulados.
5. Invocando discordância com a sentença tão-só quanto a matéria de direito e afirmando a verificação dos restantes pressupostos de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, a A. recorreu da sentença per saltum, para este Alto Tribunal.
Para esse efeito apresentou alegação, em que formulou as seguintes conclusões:
“A. Não assiste razão ao tribunal a quo, quando afirma existir, entre a ação de processo comum n.º 3915/18.6... (que correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Central Cível - J...) e a presente, identidade de sujeitos e de causa de pedir.
B. Como estatui o n.º 1 do artigo 580.º do C.P.C., o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, decidida por sentença transitada em julgado.
C. Os limites do caso julgado são determinados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentença: os sujeitos, o objeto e a causa de pedir.
D. Os efeitos do caso julgado reportam-se à própria decisão e não aos respetivos fundamentos, muito menos aos fundamentos de facto, e, menos ainda aos factos declarados não provados em pretérita ação judicial.
E. A exceção dilatória do caso julgado, refletindo a função negativa do caso julgado, pressupõe a verificação cumulativa da tríplice identidade de sujeitos, pedidos e causas de pedir, nos termos do art.º 581.º do CPC.
F. Relativamente aos efeitos preclusivos decorrentes da primeira ação, ao contrário do que sucede com o réu (que deve concentrar toda a defesa na contestação – art.º 573.º, n.º 1 do CPC – ou excecionalmente em momento posterior nos termos do n.º 2 do mesmo artigo), quanto ao autor tal não ocorre, visto que não está sujeito a qualquer ónus de concentração de todas as possíveis causas de pedir na ação que seja proposta, o que está de acordo com o princípio do dispositivo.
G. No caso dos autos não se verifica identidade de causa de pedir, pois na referida ação 3915/18.6..., a causa de pedir reside no reconhecimento da propriedade, a favor da autora, dos 2672 blocos de calcário extraídos e depositados na pedreira do ..., enquanto a explorava, que esta dali pretendia retirar por estar completamente convencida da sua propriedade sobre os mesmos, enquanto na presente, a causa de pedir se funda na responsabilidade contratual da aqui ré, pelo incumprimento do “contrato de dação em pagamento com cedência de exploração”, celebrado com a autora, em 11 de março de 2010, dando origem à obrigação de indemnizar a autora pelos danos sofridos, nos termos do disposto no artigo 798.º do CC, traduzidos ou no valor comercial dos já referidos blocos de calcário (que a mesma extraiu da pedreira cuja exploração lhe foi cedida pela ré) ou na restituição do valor despendido para a respetiva extração.
H. Não se verifica identidade de sujeitos, pois, enquanto na primeira ação foram partes a aqui recorrente (como autora) e a sociedade S..., Lda. (como ré primitiva), passando a aqui recorrida a assumir mais tarde esse papel, na presente, é autora a Sopedreiras da ... – Exploração de Pedreiras, Lda. e ré apenas a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ....
I. Entre a primeira ação e a atual não se verifica, igualmente, identidade do objeto, entendido este na inter-relação necessária entre o pedido e a causa de pedir.
J. Também não se verifica ocorrer, no caso vertente, identidade dos pedidos formulados nas ações judiciais em referência, pois o que aqui se pede, ao contrário de naquela ação, que, como supra se referiu, correu termos inicialmente apenas contra a sociedade S..., Lda. (e mais tarde contra aqui recorrida, por ter sido determinado, em sede de incidente de oposição espontânea por si deduzido, que a mesma passasse a assumir a posição de ré, em substituição da primitiva ré S..., Lda.), na qual se peticionava que a autora fosse “declarada, com exclusão de outrem, proprietária de todos os blocos de calcário extraídos e depositados na pedreira do ... até à presente data” e que a ré fosse “condenada a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre os sobreditos blocos de calcário e, em consequência, a abster-se de, por qualquer meio, negociar, alienar, vender ou onerar os mesmos” e “a permitir que a autora carregue os referidos blocos e os retire para um local à sua escolha”, é a condenação da ré “a pagar à autora, a título de responsabilidade contratual, a quantia de €2.571.800,00 (dois milhões, quinhentos e setenta e um mil e oitocentos euros), acrescida de juros vencidos à taxa supletiva legal para as operações comerciais, contados desde 26 de junho de 2018, no valor de €927.024,23 (novecentos e vinte e sete mil, trezentos e noventa e oito euros e doze cêntimos) e vincendos até efetivo e integral pagamento ou, quando assim não se entenda, ser em todo o caso a ação julgada procedente e a ré condenada restituir à autora, a título de enriquecimento sem causa, a quantia de €1.683.360,00 (um milhão, seiscentos e oitenta e três mil, trezentos e sessenta euros), acrescida de juros vencidos à taxa supletiva legal para as operações comerciais, contados desde 26 de junho de 2018, no valor de €607.024, (seiscentos e sete mil, vinte quatro euros e três cêntimos) e vincendos até efetivo e integral pagamento”.
K. Ao contrário do entendimento professado pelo tribunal a quo, não se verifica, de igual modo, a autoridade do caso julgado.
L. Não se pode confundir a presente ação com a que correu termos sob o n.º 3915/18.6..., sendo a presente uma sequência do que ficou definitivamente decidido naquela.
M. Enquanto na primeira causa se tratou de uma questão de direito das coisas, concretamente, do direito de propriedade dos blocos de calcário existentes na pedreira, na presente causa discute-se uma questão de direito das obrigações, concretamente, o não cumprimento do contrato de dação em pagamento com cedência de exploração, celebrado entre as partes, em 11 de março de 2010, e a violação das regras da boa-fé.
N. Não tendo sido reconhecida à autora, na ação anterior, o direito de propriedade sobre os referidos blocos de calcário, mais não lhe resta do que, subsidiariamente, pedir, então, como o faz agora, ou uma indemnização pelos danos sofridos por ter investido na sua extração e visto goradas as expectativas da sua comercialização, ou, no mínimo, a restituição do valor de custo que importou tal extração,
O. Sob pena de haver um locupletamento ilícito e injustificável da ré, que se apropriou dos ditos blocos, à custa do trabalho e despesas integrais da autora, na vigência de um contrato validamente celebrado entre ambas.
P. Atento o princípio da nossa ordem jurídica civilista, Pacta sunt servanda, segundo o qual os contratos devem ser pontualmente cumpridos, só podendo modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei (artigo 406.º, n.º 1 do C. Civil) e o instituto do incumprimento definitivo do contrato, quer por impossibilidade culposa do devedor (artigo 801.º do C. Civil), quer pela perda de interesse na prestação e pela sua não realização após interpelação admonitória (artigo 808.º do C. Civil), o facto de o contrato dos autos não ter sido cumprido pela ré, reconduz, necessariamente, a uma indemnização pelos danos causados à autora.
Q. Tendo como referência o decidido no douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.04.2012, no âmbito do Processo n.º 2357/07.3TVLSB.L1-1, disponível em www.dgsi.pt, é inquestionável que, no contrato sub judice, a fixação da cláusula 9.ª relativa à cedência, por parte da ré, a título gratuito, da suprarreferida pedreira, à autora, autorizando-a a retirar a pedra e a comercializá-la da melhor forma que entendesse, em homenagem ao princípio pacta sunt servanda (ou seja, os pactos devem ser cumpridos, têm força obrigatória), consagrado no artigo 406.°, n.º 1 do Código Civil, deveria ter sido respeitada pelas contraentes, que teriam de cumprir adequadamente as suas obrigações durante todo o período de tempo convencionalmente acordado e que só findo este é que as mesmas recuperariam a sua liberdade em consequência da extinção automática por caducidade do vínculo contratual assumido, vinculo esse que só se poderia extinguir antes do decurso do prazo nele estipulado para a sua vigência, por mútuo consentimento de ambas as contraentes (autora e ré).
R. A boa-fé, como norma de conduta, significa que as pessoas devem comportar-se, no exercício dos seus direitos e deveres, com honestidade, correção e lealdade, de modo a não defraudar a legítima confiança ou expectativa dos outros.
S. O princípio da tutela da confiança é um dos valores fundamentais que subjazem à boa fé.
T. É, justamente, a tutela da confiança e da boa fé que está na base da proibição do incumprimento dos contratos.
U. Ocorre atitude abusiva quando o agente adota uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte em função do modo como antes atuara ou, na formulação da teoria da confiança, “o agente pode dar azo a uma confiança legítima que não deve, depois, desamparar, provocando danos” (Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, Almedina, 1999, pág. 201).
V. No caso dos autos, há, sem dúvida, um comportamento da ré suscetível de fundar uma situação objetiva de confiança na autora.
W. A ré quis celebrar com a autora, e efetivamente celebrou, o contrato de cedência de exploração da pedreira dos autos.
X. Com a sua postura, quer na celebração do contrato, quer já na sua vigência, a ré gerou na autora a razoável e legítima expectativa de que poderia comercializar como bem entendesse toda a pedra extraída da pedreira, sem que a ré viesse depois invocar ser proprietária da mesma,
Y. Expectativa que se foi consolidando ao longo da vigência do contrato, período durante o qual nunca a ré, sequer, tentou impedi-la de extrair a pedra ali existente.
Z. O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia (está presente, desde logo, na norma do artigo 334.º do Código Civil que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a proteção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte) e requer de cada um que seja coerente, não mudando arbitrariamente de condutas, com isso prejudicando o seu semelhante.
AA. Independentemente da propriedade dos blocos pertencer à ré (facto que já foi discutido e decidido em ação anterior) existe um contrato, assinado por ambas as partes, que deveria ter sido escrupulosamente cumprido e que o não foi, por culpa exclusiva da ré, que, com a sua conduta, se locupletou à custa da autora, causando-lhe enormes despesas e sérios prejuízos.
BB. Na expectativa de poder vender os blocos de calcário que conseguisse extrair da pedreira na vigência do contrato, como acordado com a ré, a autora despendeu horas a fio de mão de obra, teve gastos avultados com máquinas e pessoal, passou a exercer a sua atividade em exclusivo na pedreira dos autos, efetuou contactos com potenciais compradores... todos esses gastos terão, necessariamente, de ser tidos em conta pelo tribunal, que deverá condenar a ré no pagamento de uma indemnização à autora, sob pena de aquela enriquecer injusta e injustificadamente às custas desta, incumprindo dolosamente o que havia acordado (facto que deverá ser agora julgado).
CC. Não se verificando ocorrer, no caso vertente, identidade de sujeitos, de pedidos ou de causa de pedir formulados nas ações judiciais em referência, nem estando em causa qualquer vinculação da decisão proferida na primeira ação à presente, cujo objeto, como vimos, é deveras distinto, antes se tratando de meras ações conexas, não se estendem os efeitos de caso julgado decorrentes da decisão proferida na ação declarativa de condenação n.º 3915/18.6... ao presente litígio, sendo distintas as ações e os efeitos jurídicos que em cada uma se visa alcançar, bem como os efeitos jurídicos em que cada uma se fundamenta.
DD. Pelo que, declarando a autoridade do caso julgado da decisão proferida na supracitada ação, a douta sentença recorrida viola o direito e garantia de acesso à justiça, sendo contrária à própria Constituição – artigo 20.º, n.º 1 C.R.P..
EE. A douta sentença recorrida violou, assim, o disposto nos artigos 334.º; 406.º, n.º 1; 476.º e 798.º do Código Civil; 580.º e 581.º do Código de Processo Civil e 20.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos.
FF. No presente recurso, nas suas alegações, a recorrente discute apenas questões de direito.
GG. O valor da causa é superior à alçada da Relação.
HH. Pelo que, ao abrigo do disposto no artigo 678.º do Código de Processo Civil, requer-se que o mesmo (per saltum) suba diretamente ao Supremo Tribunal de Justiça.
Nestes termos, deverão V. Exas julgar procedente o presente recurso e, em consequência, revogar a douta sentença recorrida, com o que farão, como é timbre deste Colendo Tribunal, como sempre, inteira JUSTIÇA!”
6. A R. contra-alegou, rematando com as seguintes conclusões:
“I. A Autora (recorrente) intentou contra a ora recorrida a acção judicial n.º 3915/18.6... a qual correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Central Cível – J....
II- Na qual foi proferida sentença que determinou que a Ré CCAM de ... era a legitima proprietária dos blocos de pedra.
III- Sentença que foi confirmada por Acórdão proferido pelo STJ transitado em 22.05.2022.
IV- E confirmada pelo recurso para uniformização de jurisprudência.
V- O Acórdão proferido transitou em 12.09.2022
VI- Em 27 Junho de 2023 a Autora foi citada para contestar os presentes autos.
VII- Acontece, porém, que em ambas as acções judiciais os sujeitos processuais são os mesmos;
VIII- A causa de pedir – blocos de pedra – é a mesma embora com nuances diversas.
IX- O pedido sim é distinto.
X- Nos presentes autos vem a Autora, ora Recorrente, pedir que a ora Recorridafosse condenada ao pagamento de uma indeminzação fundada nas despesas que efectuou a retirar os blocos da exploração……
XI- Blocos esses que são propriedade da ora Recorrida….
XII- Bem como ser, também e em alternativa, indemnizada pelo prejuízo que sofreu por não lhe ter sido possível vender os blocos de pedra….?!?!
XIII- Os quais, repita-se por sentença anteriormente proferida, foi a ora Recorrida considerada como legitima proprietária dos blocos de pedra.
XIV- Acontece, porém, que a decisão que viesse a ser tomada nos presentes autos poderia prejudicar a sentença anteriormente proferida.
XV- Em sede de contestação veio a ora Recorrida contestar por excepção invocando o caso julgado na vertente da autoridade do caso julgado.
XVI- Ao contrário do que sucede com a excepção de caso julgado, nesta vertente do mesmo, não é exigivél a triplice identidade. .
XVII- A autoridade do caso julgado tem como finalidade evitar que a relação juridica material já apreciada anteriormente venha a ser apre4ciada de forma diversa noutra posterior.
XVIII- É, assim, necessária a vinculação de um Tribunal onde corre termos uma acção posterior ao decidido noutro Tribunal anteriormente.
XIX- A excepção do caso julgado na sua vertente positiva procurar a salvaguarda juridica.
XX- E ao contrário do alegado pela ora Recorrente não procurar limitar o acesso à justiça.
XXI- O respeito pela autoridade de caso julgado não tem como efeito impedir a apreciação do mérito na segunda acção, antes visa assegurar que nessa apreciação sejam ponderados os efeitos emergentes de uma anterior decisão transitada em julgado que seja vinculativa para ambos os sujeitos.
XXII- Assim, apesar de estarmos perante pedidos diferentes, nada impede que a decisão proferida no processo 3915/18.6... possa e deva ser reflectida na apreciação e decisão da pretensão da autora nos presentes autos.
XXIII- A doutrina e a jurisprudência, considera premente ponderar o que, com trânsito em julgado, já foi decidido noutra acção, a fim de evitar uma contradição intrínseca de julgados.
XXIV- Tendo-se decidido na acção supra identificada pelo reconhecimento do direito de propriedade da ora recorrida sobre os blocos de calcário, a autoridade do caso julgado da decisão aí proferida impõe-se às partes.
XXV- Precisamente para evitar decisões judiciais contraditórias e que poderiam gerar inaplicabilidades e verdadeiras incongruências.
XXVI- Vejamos neste caso em concreto: a ora Recorrida por sentença já transitada havia sido considerada como a legitima proprietária dos blocos e, com base no pedido formulado nestes autos, teria de indeminizar a Autora por esta ter deixado de poder vender os blocos de pedra…..que até são de sua propriedade…. !?!?!?!
XXVII- Nesse sentido, o Tribunal a quo proferiu, e bem, decisão de mérito julgando totalmente improcedente a acção interposta fundamentando essa decisão na autoridade do caso julgado, ou seja, na excepção do caso julgado na sua vertente positiva.
XXVIII- Entende a ora Recorrida que o Tribunal a quo, Tribunal de Comarca de ..., aplicou corretamente a legislação aos presentes autos sendo, em consequência da decisão proferida, salvaguardado o principio da segurança jurídica.
XXIX- Nesse sentido, veja-se o Acórdão do STJ “ Em linhas muito gerais, vem sendo assumido pela doutrina e pela jurisprudência, neste caso reflectida em numerosos arestos do Supremo Tribunal de Justiça que, pressuposta a aludida identidade de sujeitos, os efeitos de uma determinada decisão proferida numa acção podem projectar-se positiva ou negativamente noutra acção, embora não exista total coincidência entre os respectivos pedidos e/ou causas de pedir.” In www.dgsi.pt proferido em AC.STJ de 14.01.2021.
XXX - E ainda o Supremo Tribunal de Justiça: “ E a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em acção anterior cujo objecto, como pressuposto indicutivél, no objecto de uma acção posteior, ainda que não integralmente idêncitico, de modo a obstar a que a relação juridica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa. Nesta linha, a eficácia de autoridade de caso julgado pressupõe uma decisão anterior definidora de deireito ou efeitos juridicados que se apresente como pressuposto indiscutivél do efeito prático-juridico pretendido em acção anterior no quadro da relação material controvertida aqui invocada.! - in www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 12.04.2023 – Proc. n.º 979/21.9T8VFR.P1.S1 – 1.ª Secção.
XXX- Por tudo o exposto conclui-se que o Tribunal da Comarca de ... fez uma correta aplicação do direito ao ter proferido a sentença nos moldes em que a mesma foi proferida.”
A recorrida concluiu pedindo que a decisão impugnada fosse mantida.
7. O recurso foi admitido.
8. Foram colhidos os vistos legais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. O presente recurso, interposto per saltum para este Supremo Tribunal de Justiça (art.º 678.º do CPC), tem por objeto as seguintes questões de direito: se a sentença e o acórdão do STJ que a repristinou, proferidos no processo n.º 3915/18.6..., revestem autoridade de caso julgado, com reflexo na apreciação do presente litígio; se a A. tem direito ao pagamento de indemnização, pela R., correspondente ao valor da comercialização dos blocos de pedra extraídos pela A. e existentes na pedreira objeto dos autos; se, subsidiariamente, em caso de improcedência desta primeira pretensão, se a A. tem direito ao reembolso, pela R., a título de enriquecimento sem causa, das despesas suportadas pela A. na extração dos aludidos blocos de pedra.
2. Primeira questão (autoridade de caso julgado da sentença e do acórdão do STJ proferidos no processo n.º 3915/18.6...)
2.1. O tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto
1- Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 24.05.2022, transitado em 12.09.2022, no âmbito da acção 3915/18.6..., foi repristinada a decisão proferida em 1ª Instância do seguinte teor:
- Julga-se a presente acção improcedente, absolvendo a opoente de todos os pedidos formulados pela autora.
- Julga-se procedente a oposição espontânea apresentada por Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ..., CRL e, na medida dessa procedência, reconhece-se esta como legítima proprietária de todos os blocos de calcário extraídos e que fazem parte integrante da pedreira da qual é dona e titular da exploração, denominada “...”, devendo os mesmo ser recolocados dentro do espaço da pedreira pela autora.
- Julgam-se improcedentes ambos os incidentes de litigância de má fé deduzidos nos autos, absolvendo-se cada uma das partes dos inerentes pedidos apresentados pela contraparte.
2- A acção referida em 1 foi intentada pela aqui autora contra S..., Lda.
3- No âmbito do processo referido em 1, foi deduzido incidente de oposição espontânea, no âmbito do qual foi determinado que a aí opoente Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ..., CRL passasse a assumir a posição de ré, em substituição da primitiva S..., Lda., contra ela prosseguindo os termos da acção instaurada.
4- Na sequência da decisão proferida no incidente referido em 1, mais se consignou que a matéria de facto e de direito a discutir na causa seria aquela que foi definida nos articulados das partes entre as quais prosseguia a acção, ou seja na p.i dos autos principais, petição inicial e contestação deduzidas no incidente.
5- Na acção 3915/18.6..., a autora deduziu os seguintes pedidos:
a) Seja “a autora declarada, com exclusão de outrem, proprietária de todos os blocos de calcário extraídos e depositados na pedreira do ... até à presente data;”
b) Seja “a ré condenada a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre os sobreditos blocos de calcário e, em consequência, a abster-se de, por qualquer meio, negociar, alienar, vender ou onerar os mesmos;”
c) Seja “a ré condenada a permitir que a autora carregue os referidos blocos e os retire para um local à sua escolha.”
6- Para fundamentar os pedidos mencionados em 5, alegou, em síntese, que, por contrato celebrado em 11 de Março de 2010, para pagamento da dívida de €1.920.000,00 fez dação à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... da “licença de exploração nº...25, emitida pela Direção Regional de Economia do Centro”, tendo permanecido na exploração da pedreira, a título gratuito, até final do mês de Junho de 2014.
Nesta data, tinha depositados no local da pedreira cerca de 2.000 blocos de calcário e foi acordado entre ela e a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... que poderia manter os blocos de sua propriedade na área da pedreira, enquanto não fosse notificada por escrito para a desocupar, o que não aconteceu.
Em 12.12.2017, tomou, casualmente, conhecimento de que a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... havia cedido a exploração da pedreira à ré S..., em termos e condições que desconhece, tendo vindo a apurar que o acordo incluía todos os blocos já extraídos pela autora e ainda depositados na pedreira do ..., que aquela visava começar a comercializar, como se fossem seus.
Na sequência de tal facto, no dia 17.12.2017, os seus legais representantes deslocaram-se à pedreira do ..., onde procederam à marcação de 1720 blocos de calcário, tendo ficado por enumerar seguramente mais de três centenas de blocos.
7- No requerimento de dedução do incidente referido em 3, a aqui ré, além do mais peticionou que fosse declarada, com exclusão de outrem, legítima proprietária de todos os blocos de calcário extraídos e que fazem parte integrante da pedreira da qual é dona e titular da exploração, denominada “...”, devendo os mesmos ser recolocados dentro do espaço da pedreira pela autora.
8- Na decisão referida em 1 foram dados como provados os seguintes factos:
1. A autora é uma sociedade comercial que tem por objeto social, entre outras, a actividade de exploração de pedreiras.
2. Por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de ..., em 10 de Setembro de 1991, a Junta de Freguesia da ... concedeu à autora a exploração de uma pedreira, “sita em “... – ...”, situada na área de jurisdição daquela junta, abrangendo uma área de DOIS MIL E QUINHENTOS METROS QUADRADOS.
3. A concessão de exploração de pedreira foi outorgada pelo período de 3 anos, renovável.
4. Em 31 de Dezembro de 1991, a autora celebrou, com a Junta de Freguesia da ..., um segundo contrato de concessão de exploração de pedreira.
5. Este segundo contrato de cessão de exploração, foi celebrado por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de ... e teve por objeto uma área anexa à referida anteriormente, situada em “..., freguesia de ..., concelho de ..., com a área de 17.500 metros quadrados”.
6. Entre a autora e a Junta de Freguesia da ... veio a ser celebrado um terceiro contrato de concessão de exploração de pedreira, outorgado por escritura pública lavrada, em 11 de Junho de 2007, no Cartório Notarial de AA em ....
7. Por via desse contrato, a Junta de Freguesia da ..., por delegação da Assembleia de ... da mesma freguesia, cedeu à autora a exploração de uma pedreira situada no “prédio rústico, sito em ..., freguesia da ... (…) inscrito na matriz sob o artigo 1, secção ...16 (…) com a área de quarenta e três mil e vinte e três metros quadrados”.
8. O contrato foi celebrado pelo prazo de 4 anos, renováveis “por iguais períodos, enquanto não for denunciado validamente por qualquer das partes”.
9. Mais ficou a constar do referido contrato que “a concedente da exploração não goza do direito de renunciar do contrato nem no final do período inicial nem no das suas três primeiras renovações” (§ único da cláusula 1.ª).
10. Ficou ainda a constar do aludido contrato que “este contrato só produz efeitos com a atribuição da respectiva licença de utilização, sendo a partir daí que se contam os prazos acima referidos”.
11. E que “a sociedade exploradora não poderá ceder a sua posição contratual sem acordo da concedente”.
12. A Direção Regional de Economia do Centro, a pedido da autora, emitiu, em 28/05/2009, o alvará de licença de exploração de uma pedreira sita em ..., freguesia de ..., com a área de 63.023 m2, (ou seja, a totalidade da área concessionada pela Junta de Freguesia da ... à autora) ao qual atribuiu o número ...25.
13. No início do ano de 2010, a autora devia, globalmente, à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de... a quantia de €1.920.000,00.
14. Por via da dificuldade de vender e escoar os blocos extraídos, as suas dificuldades de tesouraria foram-se agravando, ao mesmo tempo que a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... ia insistindo no pagamento da dívida, por esta já estar em incumprimento.
15. Por contrato que as partes denominaram de “contrato de dação em pagamento com cedência de exploração”, celebrado em 11 de Março de 2010, para pagamento da dívida de €1.920.000,00, a autora fez dação à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... da “licença de exploração nº...25, emitida pela Direção Regional de Economia do Centro”.
16. Ficou, nomeadamente, estabelecido no contrato que a exploração da pedreira seria doravante cedida pela Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... “a título gratuito” à autora.
17. Pelo referido contrato, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... autorizou que, a partir daquele momento, a autora explorasse “a supra referida pedreira, dela retirando a pedra e comercializando-a da melhor forma que entenda”.
18. Ficou ainda estabelecido que a “cedência gratuita” seria por dois anos, prazo findo o qual a autora seria notificada para recomprar a licença, sob a cominação de, não o fazendo, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... poder dar à mesma o destino que bem entendesse.
19. O prazo de dois anos fixado na cláusula 12ª do contrato foi, entretanto, prorrogado por mais um ano, até 21 de Março de 2013, por aditamento celebrado em 21 de Março de 2012.
20. Por carta datada de 13 de Março de 2013, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... notificou a autora para, nos termos do nº2 da cláusula 12ª do contrato, no prazo de 180 dias, proceder à liquidação do montante em dívida e à recompra da licença.
21. Nesta altura, a autora continuava a ter depositados na pedreira blocos de calcário, que não conseguia vender.
22. Acordou com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... terminar a exploração em 2014, o que veio a acontecer no final do mês de Junho, tendo-se a autora, na pessoa da sua sócia gerente, dirigido à sede da opoente e, de forma livre e voluntária, entregou as chaves do portão da pedreira.
23. Por esta altura, a autora tinha depositados no local da pedreira um número não concretamente apurado, mas certamente superior a 2672, de blocos de calcário, sendo este o número aproximado de blocos de pedra que continuavam na pedreira após as vendas infra referidas sob o facto provado.
24. A cláusula 17ª do supra identificado contrato celebrado em 11 de Março de 2010, o qual a opoente figura como 1ª outorgante e a autora como 2ª outorgante, tem o seguinte teor:
«1 - A Segunda Outorgante, findo o prazo estipulado na Cláusula Décima Segunda e caso não proceda à recompra da Licença de Exploração, obriga-se a desocupar e entregar à Primeira Outorgante o prédio rústico que constitui a pedreira de calcário ornamental denominada “...”.
2 – A entrega deverá ser efetuada após prévia solicitação feita pela Primeira Outorgante por via postal, por carta registada com aviso de receção, com a antecedência mínima de 15 (quinze) dias.»
25. Desde que cessou a exploração da pedreira, em Junho de 2014, a autora comercializou blocos de pedra existentes na mesma pedreira ou nas suas imediações, mais precisamente:
a) em 10/08/2015 à L..., Lda., dois blocos “moca creme D 3ª”, de 5,425 m3 e 2,850 m3.
b) em 31/12/2015 à A..., Lda., dois lotes de 20 e 30 blocos cada, com diversas medidas.
c) em 05/07/2016 e em 03/12/2016 à M..., Lda., respetivamente, 14 contentores de bolcos com diversas medidas e 20 contentores de blocos com diversas medidas.
d) em 13/07/2017 e em 14/12/2017 à T..., Lda., duas carradas de pedra sem medidas comerciais e 10 carradas de pedras, sem medidas comerciais, respetivamente.
26. Em Dezembro de 2017, a legal representante da autora tomou conhecimento de que a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... havia acordado ceder a exploração da pedreira aqui em causa à supra identificada ré.
27. A legal representante da autora contactou o gerente da ré – a acima identificada S... -, BB, que a informou que o acordo com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ... incluía todos os blocos de pedra que se encontravam na pedreira do ....
28. A autora enviou à sociedade S..., com data de 15/12/2017, carta registada com aviso de receção, comunicando-lhe que considerava os blocos já extraídos que se encontravam na pedreira de sua exclusiva propriedade e intimando-a a abster-se de movimentar, deslocar ou dar qualquer destino aos mesmos, nos moldes melhor vertidos no documento 23 dos autos de procedimento cautelar.
29. A legal representante da autora contactou a Direção Regional de Economia do Centro, tendo por esta sido informada, em 20/12/2017, que a opoente havia obtido o averbamento a seu favor do alvará de licença de exploração da pedreira aqui em causa no dia 14 de Março de 2016, na sequência de pedido para o efeito efetuado em 11/09/2015.
30. Na decorrência do contrato de dação em pagamento acima referido, a opoente deu início à transmissão da licença de exploração da pedreira denominada “...” e ao processo de averbamento da pedreira a seu favor na qualidade de exploradora.
31. A opoente registou a pedreira em seu nome junto da entidade competente.
32. Em 16/07/2015, foi outorgada escritura pública de concessão de exploração entre a opoente e a União de Freguesias de ... e ....
33. Nessa mesma data, a opoente liquidou o valor das rendas da exploração que se encontravam em falta, num total de €47.767,50, referente aos anos anteriores.
34. Do período compreendido de Junho de 2014 a Dezembro de 2017, a autora não contactou a opoente no sentido de reivindicar quaisquer pedras ou blocos que estavam na pedreira.
2.2. O Direito
Existe caso julgado quando a apreciação jurisdicional de uma determinada questão ganha foros de definitividade, sendo insuscetível de recurso ordinário ou de reclamação (art.º 628.º do CPC), ficando a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º do CPC (caso julgado material – art.º 619.º n.º 1 do CPC), ou apenas dentro do processo (caso julgado formal – art.º 620.º do CPC).
Como já dizia o Prof. Alberto dos Reis em meados do século passado, ”a razão da força e autoridade do caso julgado é a necessidade da certeza do direito, da segurança nas relações jurídicas. Desde que uma sentença, transitada em julgado, reconhece a alguém certo benefício, certo direito, certos bens, é absolutamente indispensável, para que haja confiança e segurança nas relações sociais, que esse benefício, esse direito, esses bens constituam aquisições definitivas, isto é, que não lhe possam ser tirados por uma sentença posterior” (Código de Processo Civil anotado, volume III, reimpressão, 1985, Coimbra Editora, pág. 94). De igual modo, não pode sentença posterior compelir alguém ao cumprimento de uma obrigação de que sentença anterior, transitada em julgado, o havia absolvido, posto que não tenha ocorrido posteriormente à sentença facto cuja não verificação motivara o decaimento (art.º 621.º do CPC).
Visa-se, conforme decorre do art.º 580.º do CPC, evitar a repetição de uma causa, repetição essa que ocorre quando se propõe ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art.º 581.º do CPC).
Sendo que no n.º 2 do art.º 580.º do CPC expressamente se enuncia, como ponto de orientação essencial a levar em consideração para se ajuizar da verificação da exceção de litispendência e do caso julgado que “tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.”
Aceita-se que a força do caso julgado atinge determinadas questões que o tribunal teve necessariamente de apreciar e julgar a fim de compor o litígio: assim, por exemplo, tendo-se julgado improcedente uma ação de despejo por se ter considerado como inexistente uma relação locatícia – contrato de arrendamento – essa inexistência pode e deve ser oposta às mesmas partes em subsequente ação de reivindicação estruturada pelos autores a partir daquela inexistência, estando vedado ao réu defender-se com a existência de um contrato de arrendamento (cfr. ac. do STJ, de 03.5.1990, BMJ 397, pág. 407). Noutro exemplo, a condenação no pagamento de um crédito supõe necessariamente o julgamento da pertença desse crédito ao demandante, razão por que o caso julgado se estende à questão da existência do respetivo direito de crédito (Rel. do Porto, 17.12.1996, www.dgsi.pt. processo 961101).
Trata-se de situações a que se aplicam as preocupações subjacentes à força do caso julgado, quais sejam a segurança e paz jurídicas e o prestígio dos tribunais.
O instituto do caso julgado exerce duas funções: uma função positiva e uma função negativa.
A função positiva é exercida através da autoridade do caso julgado. A função negativa é exercida através da exceção dilatória do caso julgado, a qual tem por fim evitar a repetição de causas.
A autoridade de caso julgado de sentença que transitou e a exceção de caso julgado são, assim, efeitos distintos da mesma realidade jurídica.
Escrevem o Prof. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 4.ª ed., 2019, Almedina, p. 599), que “pela exceção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda ação, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.
Tem-se entendido que a autoridade de caso julgado, diversamente da exceção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art.º 581.º do C.P.C., pressupondo, porém, a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida e que envolve, em regra, total ou parcialmente, as mesmas partes - nesse sentido, entre outros, Acs. do STJ de 13.12.2007, processo n.º 07A3739; de 06.03.2008, processo n.º 08B402; de 23.11.2011, processo n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1; de 22.6.2017, processo n.º 2226/14.0TBSTB.E1.S1; de 13.9.2018, processo n.º 687/17.5T8PNF.S1; de 26.02.2019, processo n.º 4043/10.8TBVLG.P1.S1; de 14.01.2021, processo n.º 2104/12.8TBALM.L1.S1, todos em www.dgsi.pt. A autoridade do caso julgado abrange as questões que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado. Como diz Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, 1997, Lex, pp. 578 e 579), “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.” Ou, na síntese de Rui Pinto, “[a] autoridade do caso julgado destina-se a evitar a prolação de decisões posteriores que sejam juridicamente incompatíveis com a primeira” (Exceção e autoridade de caso julgado. Algumas notas provisórias”, ROA, ano 78, Vol. I/II, pág. 403).
Reportemo-nos às decisões em confronto nestes autos.
A primeira ação instaurada pela ora A. (processo n.º 3915/18.6...), foi-o contra a sociedade S..., S.A... Porém, por força do incidente de intervenção de terceiros previsto nos artigos 333.º e seguintes do CPC (oposição espontânea), a que a Ré não se opôs, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ..., CRL, assumiu a posição de parte principal, tomando o lugar da Ré, prosseguindo a causa apenas entre a A. e a interveniente (artigos 335.º n.º 1 e 337.º n.º 1 do CPC).
Assim, existe identidade de sujeitos nas duas ações ora em presença.
Na primeira ação instaurada, a A. pretendia que fosse reconhecida a sua titularidade do direito de propriedade sobre os blocos de calcário que havia extraído da supramencionada pedreira e que a Ré fosse condenada a reconhecer esse seu direito e a abster-se, em consequência, de negociar, alienar ou vender os referidos blocos de calcário.
Para fundar essa pretensão, isto é, como causa de pedir, a A. invocou a sua condição inicial de concessionária da exploração da pedreira e, depois, o contrato de dação em pagamento celebrado com a R. para satisfazer a sua dívida para com esta, nos termos do qual teria sido reconhecida à A. a propriedade dos blocos de pedra por ela extraídos da pedreira, na vigência da “cedência de exploração” acordada nesse contrato.
Nessa ação a R./opoente impugnou a propriedade invocada pela A. sobre os aludidos blocos de pedra, e peticionou que a R./opoente fosse declarada legítima proprietária de todos os blocos de calcário extraídos na aludida pedreira, devendo a A. recolocar no espaço da pedreira a totalidade dos blocos. Como fundamento para essa pretensão, a R. invocou os termos do aludido “contrato de dação em pagamento com cedência de exploração”.
A A. decaiu, nessa primeira ação, e a R. obteve ganho de causa. Com efeito, os pedidos da A. foram julgados improcedentes e a R. foi deles absolvida. Por seu turno, o pedido da R. foi julgado procedente, tendo a R. sido julgada legítima proprietária de todos os blocos de calcário extraídos e que faziam parte da pedreira, da qual a R. foi considerada dona e titular da exploração, tendo a A. sido condenada a recolocar os blocos dentro do espaço da pedreira.
A improcedência da pretensão da A. e a procedência da pretensão da R./opoente fundou-se, na perspetiva da sentença proferida naquela primeira ação (sentença datada de 19.3.2020, proferida no processo n.º 3915/18.6...), no teor do aludido “contrato de dação em pagamento com cedência de exploração”, conjugado com o regime jurídico regulador da atividade de exploração de pedreiras (aprovado pelo Dec.-Lei n.º 270/2001, de 06.10, alterado pelo Dec.-Lei n.º 340/2007, de 12.10), tendo sido entendido que, não tendo a A. logrado demonstrar um acordo em contrário, com a cedência à R./opoente da licença de exploração da pedreira e com a entrega efetiva da pedreira à R./opoente, a R./opoente passara a ser a legítima proprietária das massas minerais extraídas que aí se encontravam. Também o STJ, no acórdão proferido nesse processo (em 24.5.2022), assim ajuizou, considerando que, por força do aludido “contrato de dação em pagamento com cedência de exploração”, a R. concedeu à A. a possibilidade de continuar a exploração da pedreira, temporariamente e a título gratuito, mas garantindo a R. a titularidade da pedreira, aí se incluindo os blocos de pedra extraídos.
Leia-se o acórdão do STJ, nos trechos relevantes:
“O que substancialmente resulta dos termos em que tal acordo [o citado “contrato de dação em pagamento com cedência de exploração”] foi exarado é que a Ré garantiu o seu crédito através da cedência da licença de exploração (note-se que não recebeu qualquer quantia ou bem para liquidação imediata desse mesmo crédito), ficando essa cedência numa situação de latência durante um determinado período no decurso do qual se perspetivava que a Autora, pela continuidade da exploração e venda dos blocos de pedra resultantes dessa exploração que lhe era autorizada, lograsse angariar meios para liquidar a sua dívida, “recomprando” a licença de exploração; só no caso de tal não vir a acontecer se efetivando a transmissão da licença (Factos 16 e 18).
Nesse circunstancialismo seria destituído de racionalidade e, consequentemente, desconforme com a normalidade de comportamento esperado, constituindo um manifesto desequilíbrio contratual e gravame para a Ré, que esta não integrasse na sua garantia aquilo que mais directa e imediatamente poderia ser utilizado como meio para obter a satisfação do seu crédito – os blocos de pedra depositados na pedreira.
E um claro indício de que foi com esse sentido e alcance que o acordo foi entendido resulta da necessidade que a Autora sentiu de vir alegar que aquando da entrega em 2014, decorrido período de recompra da licença de exploração sem que o tivesse feito, da pedreira à Ré ficou acordado que poderia manter na pedreira como seus os blocos de pedra aí depositados (art.º 52.º da p.i); o que, no entanto, não logrou provar (Facto b).
Donde se conclui também que o acordo designado “dação em pagamento com cedência de exploração” determinou a manutenção da propriedade dos blocos de pedra depositados na pedreira na titularidade do detentor da licença de exploração.”
Analisemos agora a segunda ação instaurada pela A., que é a causa sub judice.
Como se viu, as partes são as mesmas, nas duas ações.
O pedido principal, formulado na ação sub judice, é distinto do formulado na primeira ação. Na primeira ação pretendia-se o reconhecimento do direito de propriedade sobre determinados blocos de pedra, alegadamente extraídos pela A.. Nesta segunda ação pretende-se que a R. seja condenada no pagamento, à A., de uma indemnização correspondente ao valor comercial dos aludidos blocos de pedra.
A causa de pedir é a mesma. Tanto a pretensão da primeira ação, como a da segunda, assentam no teor do “contrato de dação em pagamento com cedência de exploração” celebrado entre a A. e a R..
Entende a A. que, à luz do aludido contrato, a A. tinha direito à comercialização dos blocos de pedra que se encontravam na pedreira e que ela extraíra, direito esse que a R. violara, assim incumprindo o contrato. Daí deduz a A. a invocação de um direito de indemnização, correspondente ao preço a que, alegadamente, poderia ter transacionado os aludidos blocos de pedra.
Vejamos. Na primeira ação, em que foi apreciado o teor do mencionado contrato, concluiu-se que a A. não era proprietária dos aludidos blocos de pedra, e que tal direito, à luz desse contrato, cabia à R.. Tendo a A. entregado à R. a pedreira, não tendo exercido o direito à recompra da licença de exploração da pedreira, a A. deveria reconhecer o direito de propriedade da R. sobre os aludidos blocos de calcário e recolocá-los no espaço da pedreira.
Ora, sendo a R. a proprietária dos blocos de pedra, direito que, reconhecidamente, lhe advém do contrato apresentado como causa de pedir, é à R. que cabe o respetivo poder de disposição, nomeadamente através da alienação onerosa dos blocos, auferindo o respetivo valor (artigos 1305.º, 874.º e 939.º do Código Civil). Isto assente, tal como se ajuizou na sentença recorrida, “ficou afastada a possibilidade de a autora voltar a discutir quaisquer direitos para si decorrentes daquele contrato que contrariem o direito de propriedade sobre os blocos de calcário que ali foi reconhecido à ré e, muito menos um pretenso direito à comercialização dos mesmos que apenas existia, como também ali debatido, enquanto a cedência da exploração da pedreira não se tornasse definitiva”.
Isto é, como se entendeu na sentença recorrida, “dado o reflexo que a decisão proferida no processo 3915/18.6..., a qual se impõe às partes, é manifesta a improcedência do pedido formulado a título principal pela autora.”
Por conseguinte, a revista é improcedente, tanto quanto à primeira questão (autoridade de caso julgado da sentença e do acórdão do STJ proferidos no processo n.º 3915/18.6...), como quanto à segunda questão (direito da A. ao pagamento de indemnização, pela R., correspondente ao valor da comercialização dos blocos de pedra extraídos pela A. e existentes na pedreira objeto dos autos).
3. Terceira questão (enriquecimento sem causa)
Subsidiariamente, a A. peticionou o reembolso, pela R., a título de enriquecimento sem causa, das despesas suportadas pela A. na extração dos aludidos blocos de pedra.
A A. alegou que na extração dos blocos de pedra mencionados nos autos suportou despesas que orçam o valor de € 1 683 360,00. Segundo a A., nos termos do contrato celebrado entre a A. e a R., já citado, a A. teria direito a comercializar os aludidos blocos. Porém, a R. incumpriu o contrato, reclamando o direito de propriedade sobre os blocos e obstando à aludida comercialização, assim enriquecendo à custa da A., uma vez que não despendeu as quantias que a A. suportou na extração dos aludidos blocos de pedra.
Vejamos.
Quanto a este pedido subsidiário, não existe, face à primeira ação mencionada, identidade nem quanto ao pedido, nem quanto à causa de pedir.
De resto, também esse foi o entendimento do tribunal a quo.
Porém, tal como o entendeu o tribunal a quo, é manifesta a improcedência da pretensão de restituição do alegado valor das despesas invocadas.
Constitui um princípio ético-jurídico, já enunciado no Direito Romano, o de que ninguém deve enriquecer injustificadamente à custa de outrem.
Tal princípio encontrou consagração geral no Código Civil Português, em cujo art.º 473.º, n.º 1, se estipula o seguinte:
“Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
O enriquecimento sem causa, que o legislador sistematizou no Código Civil como uma das fontes de obrigações, constitui o enriquecido na obrigação de restituir ao empobrecido “tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente” (n.º 1 do art.º 479.º do Código Civil).
Requisitos do enriquecimento sem causa são, pois, o enriquecimento de alguém, à custa de outrem, sem causa justificativa.
O enriquecimento de alguém à custa de outrem pressupõe que ocorreu uma deslocação patrimonial, um aumento do património de alguém em detrimento do património de outrem. Considera-se que o enriquecimento carece de causa quando o direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial, nomeadamente quando aproveita a pessoa diversa daquela que, segundo a lei, deveria beneficiar (v.g., Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, 2013, Almedina, pág. 500). Além disso, o instituto opera de forma subsidiária, ou seja, tão só quando não existam outros meios jurídicos, quando a lei não faculta aos interessados meios específicos de reação (como o funcionamento dos mecanismos da nulidade ou da anulabilidade, ou da responsabilidade civil, por exemplo). É essa a ideia que se exprime no art.º 474.º do Código Civil, sob a epígrafe “natureza subsidiária da obrigação”:
“Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.”
Segundo a A., a transmissão, para a R., do direito de propriedade sobre os blocos de pedra extraídos pela A., configurou um empobrecimento da A., uma vez que a R. adquiriu os aludidos blocos sem ter tido de suportar os custos que a A. despendeu na extração desses blocos.
Ora, como está assente, a aquisição, pela R., do direito de propriedade sobre os aludidos blocos de pedra, resultou de uma dação em pagamento (art.º 837.º do Código Civil), nos termos da qual a A. se libertou de uma dívida, no valor de € 1 920 000,00, que tinha para com a R.. Assim, tratou-se de um negócio oneroso, em benefício de ambas as partes, por elas celebrado no exercício da autonomia da vontade e da liberdade contratual (art.º 405.º do Código Civil).
Do teor do contrato e dos restantes factos assentes não resulta que coubesse à R., além da aceitação da extinção do seu crédito, ainda a assunção da responsabilidade por qualquer custo na extração das pedras de calcário, eventualmente suportado pela A.. Pelo contrário, na cláusula 15.ª do contrato consta que:
“Durante o prazo estipulado para a duração do presente contrato são da responsabilidade da Segunda Outorgante [a ora A.] todas as despesas de:
a) – Água, luz;
b) – Salários dos trabalhadores aqui também se incluindo a remuneração auferida pelo responsável técnico;
c) - Seguros de responsabilidade civil por acidentes de trabalho;
d) – Renda a pagar ao senhorio do prédio rústico (Junta de Freguesia);
e) – Bem como todas as despesas necessárias ao normal funcionamento da exploração de pedreira.”
Conforme se expendeu na sentença recorrida, o que decorre das cláusulas do contrato outorgado pelas partes, “é que a autora, não obstante a licença de exploração da pedreira ter passado para a titularidade da ré, esta permitiu que aquela, durante dois anos, posteriormente prorrogados por mais um ano, explorasse a pedreira sem qualquer contrapartida, podendo dela retirar pedra e comercializá-la. Se não o fez, vindo posteriormente a entregar a pedreira, tal risco foi por si assumido aquando da celebração do contrato”.
A A. não aduziu qualquer facto ou razão que sustente a afirmação, efetuada na revista, de que a R., pelo seu comportamento, criou na A. “a razoável e legítima expectativa de que poderia comercializar como bem entendesse toda a pedra extraída da pedreira, sem que a ré viesse depois invocar ser proprietária da mesma” (n.º 38 da alegação da revista). A cláusula 9.ª do aludido contrato, mencionada pela recorrente, autorizava a A. a explorar a pedreira e a comercializar, como entendesse, a pedra retirada, apenas temporariamente, durante a vigência do contrato, não prevendo a atribuição à A. da titularidade da pedra que, findo o contrato, a A. não tivesse logrado comercializar.
Conforme já apreciado na primeira ação instaurada pela A., a R. concedeu à A., pelo prazo de dois anos, mais tarde prorrogado por um ano, a possibilidade de explorar a pedreira e comercializar as pedras de calcário daí extraídas. Mas, findo o aludido prazo, caso a A. não readquirisse à R. a licença de exploração da pedreira, a R. poderia fazer com ela o que bem quisesse, ficando assente, como se decidiu, com força de caso julgado, que a R. era a proprietária dos blocos de pedra existentes na pedreira. A “expectativa” invocada pela A./recorrente não tem, pois, qualquer base real, seja invocada, seja demonstrada, não se encontrando fundamento para aplicação do disposto no art.º 334.º do Código Civil (abuso de direito), só agora invocado pela A..
O pedido subsidiário é, pois, improcedente, nada havendo a censurar à decisão recorrida.
Resta acrescentar que, contrariamente ao alegado pela recorrente (vide conclusões DD) e EE), não se vê que, ao decidir-se como nela consta, a sentença recorrida afrontou o direito e a garantia de acesso à justiça, sendo contrária ao disposto no art.º 20.º n.º 1 da CRP.
A A. exerceu sucessivamente o seu direito de acesso à jurisdição, tendo obtido a pronúncia dos tribunais acerca das suas pretensões, nos termos e tempo adequados.
A revista é, pois, improcedente.
III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
As custas da revista, na modalidade de custas de parte, são a cargo da recorrente, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC).
Lx, 01.10.2024
Jorge Leal (Relator)
Maria Clara Sottomayor
Maria João Vaz Tomé