I. O Tribunal da Relação não está limitado pelo princípio da imediação, podendo revogar a decisão de facto do tribunal de 1.ª instância e substituí-la por outra que esteja de acordo com a sua convicção, desde que se baseie na análise crítica da prova.
II. Tem-se entendido, na jurisprudência e na doutrina, que as respostas do julgador de facto sobre matéria qualificada como de direito consideram-se não escritas.
III. Em matéria de responsabilidade médica, apesar da sobreposição dos requisitos da responsabilidade contratual e extracontratual, aplica-se, em regra, o regime da responsabilidade contratual por ser mais favorável ao lesado e mais conforme ao princípio geral da autonomia privada.
IV. O consentimento, enquanto causa de exclusão da ilicitude da intervenção médica, constitui um facto impeditivo do direito da pessoa lesada, cuja prova compete aos médicos, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil.
V. O consentimento dos pacientes tem de ser livre e esclarecido para gozar de eficácia: se o consentimento não existe ou é ineficaz, a atuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada.
VI. A opção entre um tratamento conservador e uma cirurgia com riscos graves é uma decisão pessoalíssima da pessoa doente que não pode ser substituída por juízo do seu médico.
VII. Estando em causa uma operação à coluna vertebral, o médico deve informar os pacientes que a ela se sujeitam do risco de lesão medular, ainda que este risco seja raro (ocorre em 0,3% a 3% dos casos).
VIII. O conhecimento de um risco tão gravoso e impactante na vida de uma pessoa é um elemento essencial para que a autora e, em geral, os pacientes colocados na situação desta, disponham de toda a informação necessária para tomar uma decisão pessoal e consciente em relação à sua vida e ao seu corpo.
IX. Não tendo resultado provado que o médico se tivesse obrigado a um resultado específico, v.g. de proceder a uma cura absoluta e definitiva da doença a tratar, tem de se considerar que está em causa apenas uma obrigação de meios.
X. Na responsabilidade civil médica compete aos lesados o ónus da prova de erro médico.
XI. O Supremo Tribunal de Justiça não pode fixar factos com base em presunções judiciais, nem modificar as presunções de facto que a Relação tenha utilizado.
AUTORA:
AA, com domicílio na Av. ..., ....
RÉUS:
BB, médico ..., com domicílio profissional no Hospital da ..., sito na Estada ..., ...
Axa – Portugal – Companhia de Seguros, SA (atualmente Ageas Seguros), com sede na Av. ..., ....
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I - Relatório
1. Por via da presente ação declarativa pretende a Autora obter a condenação dos RR. a pagarem-lhe o valor global de € 255.519, 45, a título de indemnização por danos não patrimoniais e patrimoniais que alega ter sofrido mercê de lesão causada pelo primeiro Réu aquando da intervenção cirúrgica que realizou à Autora.
Alega que da atuação do Réu resultou para Autora lesão traumática medular, o que sucedeu quando este médico procedia à discetomia e extirpação de duas hérnias discais cervicais de que padecia a demandante.
Invoca subsidiariamente a falta de consentimento informado.
A Ré será responsável porque para si foi transferida a responsabilidade pelos danos decorrentes da atuação profissional do facultativo.
2. Contestando, o Réu considera não ter sido alegada na petição qual o erro por si cometido, sendo que a Autora sabia não ser a cirurgia isenta de riscos, que lhe foram comunicados. Ademais, em momento algum do procedimento, o Réu perdeu o domínio do gesto, não tendo exercido qualquer pressão traumática sobre a medula.
Por sua vez, a Ré seguradora, em contestação, impugna os factos constantes da petição inicial e invoca a franquia e o artigo 5.º al. j) das Condições Gerais da Apólice para se eximir ao pagamento da indemnização quanto a lucros cessantes e paralisações.
Foi apresentado segundo articulado pela Autora, após o que foi realizada audiência prévia que, de imediato, designou data(s) para julgamento.
3. Foi proferida sentença, datada de 1-06-2018, a qual julgou a ação improcedente e absolveu os RR. do pedido.
4. Na sequência do recurso apresentado pela A., foi proferido acórdão que terminou com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este coletivo em julgar parcialmente procedente o recurso e, mantendo os factos provados da sentença recorrida, considerar também provados os que acima (na fundamentação de facto) ficaram alinhados sob a numeração de 1 a 7.
No mais, é anulada a sentença recorrida, nos termos do art. 662.º, n.º 2 c) CPC, determinando-se a produção da prova pericial acima indicada (pelo INML e pelo respectivo Conselho Médico-Legal e pelo Colégio da ...) e por declarações de A. e R. para apuramento da matéria indicada supra sob as als. a) a f).
Mais se determina seja ordenada a junção aos autos das certidões de assento de nascimento de A. e filhos para determinação da idade de todos aquando da cirurgia (al. f) e g) supra).»
5. Os pontos das als. a) a f) sobre os quais a Relação ordenou que recaísse nova decisão tinham o seguinte conteúdo:
a) «No caso dos autos, o que pretende saber-se é se do procedimento levado a efeito [discectomia C6-C7, extirpação de hérnia discal C6-C7, colocação de cage cervical C6-C7, discectomia C5-C6, extirpação de hérnia discal C5-C6 e colocação de cage cervical C5-C6] poderia resultar paresia dos membros direitos e foco de sofrimento medular direito em C5-C6, quadro motor neurológico e sensorial que determine incapacidade de 19%.
b) E, porque também é referido nos autos, há que apurar se a lesão descrita pela A. (que o faz por referência ao relatório médico que junta e para o qual remete) – lesão traumática sequelar da medula, causadora do quadro neurológico – é também um risco possível, mesmo que remoto, da cirurgia e se esse risco foi transmitido à doente e se esta, perante tais informações, aceitou de igual modo submeter-se ao procedimento.
(…)
c) De modo que se impõe apurar se:
- do procedimento que consiste discectomia C6-C7, extirpação de hérnia Odiscal C6-C7, colocação de cage cervical C6-C7, discectomia C5-C6, extirpação de hérnia discal C5-C6 e colocação de cage cervical C5-C6 pode resultar paresia dos membros direitos e foco de sofrimento medular direito em C5-C6, quadro motor neurológico e sensorial determinante de incapacidade;
- a lesão traumática sequelar da medula, causadora daquele quadro neurológico, é um risco possível, mesmo que remoto, da cirurgia;
- tal lesão pode resultar de episódio hipotensivo com distress respiratório decorrido depois da cirurgia;
- esse tipo de episódio é uma consequência possível, mesmo que remota, deste tipo de cirurgia;
- qual a percentagem de risco de ocorrência de lesões medulares;
- estes riscos foram transmitidos pelo R. à doente antes da prestação de consentimento por esta à submissão ao procedimento;
- perante tais informações, a A. aceitou submeter-se ao procedimento; (…)
d) Só assim se poderá afirmar, com algum grau de rigor, se durante a cirurgia foi causada lesão medular traumática à A.; se esta lesão é traumática ou isquémica; se no pós-operatório, mormente imediato, face ao episódio hipotensivo, deveria a A. ter sido submetida a uma ressonância magnética cervical como se sugere no relatório do TAC cervical; se tal exame estava contra-indicado; se tal ressonância permitira ver com clareza a origem e natureza da lesão; se da cirurgia decorre o quadro motor neurológico e sensorial incapacitante observado na A.
e) Ao Conselho Médico-Legal deverá, ainda, pedir-se que explique se tal quadro impede a A. de escrever ao computador ou à mão por períodos prolongados - como afirmou o seu marido, CC, em audiência e a ..., DD - e em que medida se reflete o mesmo na sua atividade de ....
(…)
f) De modo, que deverá pedir-se ao INML que esclareça o seguinte:
- a A. ficou impossibilitada de saltar e correr, tem dificuldades em subir e descer escadas, caminhar em pisos irregulares ou durante mais de 15 minutos seguidos, começando a mancar após os mesmos;
- está impossibilitada de realizar esforços com o membro superior direito, causando-lhe dor o facto de pegar em pesos superiores a 2 Kg;
- realiza movimentos de pinça fina, digito-pulpar, como vestir o soutien, apertar os botões das calças, calçar-se e outras tarefa, mas com dificuldade.
- está impossibilitada de pegar nos sacos das compras.
- tem dificuldade em dormir por sentir dor na região cervical com as almofadas.
- tem dificuldade em realizar as tarefas domésticas, como lavar louça, pela postura e por não conseguir pegar com firmeza na mesma, estender a roupa e tirar a roupa da máquina, passar o aspirador.
- tem ou teve dificuldade em mudar as fraldas e dar banho ao filho mais novo.
- apenas pode conduzir veículos com mudanças automáticas (neste segmento foi mencionado em audiência o medo da A. em conduzir por força das limitações que sente, pelo que deverá o INML avaliar a extensão das sequelas psíquicas/psicológicas produzidas ocasionadas à A. pelas lesões físicas de que é portadora, até porque se pretende no recurso se dê como provado achar-se a A. acompanhada em consultas de psiquiatria sendo relevante verificar se tal acompanhamento sucede, mas sobretudo, se se justifica face a um eventual quadro de depressão ou alteração comportamental não relatado pelo INML);
- sente formigueiro constante desde a metade medial do 3.º dedo à totalidade do 4.º e 5.º dedos da mão direita, irradiando para o cotovelo pelo bordo medial do antebraço;
- tem dificuldade em sentir a temperatura com a mão direita, nomeadamente, à água quente;
- sente contraturas da musculatura cervical, costas e tórax;
- tem espasmos musculares na perna e no 4.º e 5.º dedos da mão direita os quais se identificam com híper-reflexia;
- toma diariamente medicação (Lyrica 200, três vezes por dia) e Clonix quando sente dores mais intensas.
- o Lyrica é prescrito para o tratamento da dor neuropática (dor devido à lesão e/ou mau funcionamento dos nervos e/ou do sistema nervoso);
- o Clonix está indicado no tratamento da dor de diversas etiologias, tais como reumatismos crónicos degenerativos, algias neurológicas e neuromusculares, periartrites, tendinites, tenossinovites e bursites, posologias coerentes com o quadro de dor que sente diariamente.
(…)
f) Deverá ser junta aos autos certidão de assento de nascimento da A.»
6. Tendo sido realizada a prova, mormente pericial, ordenada em segunda instância, veio a ser proferida nova sentença, datada de 17-11-2022, a qual julgou a ação improcedente, absolvendo os réus do pedido.
7. Desta sentença recorre a Autora para o Tribunal da Relação, visando a condenação dos Réus, tendo o tribunal recorrido, por acórdão, decidido o seguinte:
«Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente e, em consequência:
- condenam-se os RR. a pagar à A. o valor pago por esta a empregada doméstica (e segurança social), desde 4.12.2012 a 28.4.2014, e desde 29.4.2014 e enquanto a mesma sofrer de incapacidade, o correspondente a 19% do que pagou e vier a pagar de salário a empregada doméstica e segurança social, valores estes a apurar em incidente de liquidação posterior.
Quanto à Ré, haverá que descontar a franquia de 10%.
- condenam-se os RR. a pagar à A. a quantia de € 6.888, 00, com juros moratórios legais, desde a citação e até integral pagamento.
Quanto à Ré, haverá que descontar a franquia de 10%.
- condenam-se os RR. a pagar à A. a quantia de € 6.087, 73, com juros moratórios legais, desde a citação e até integral pagamento.
Quanto à Ré, haverá que descontar a franquia de 10%.
- condenam-se os RR. a pagar à A. a despesas que efetuou e venha a efetuar, relativamente ao supra provado em 49, 37.º, 54.º e 63.º, a apurar em incidente posterior de liquidação.
Quanto à Ré, haverá que descontar a franquia de 10%.
- condena-se o R. a pagar à A. a quantia de € 9.775, 00, com juros moratórios legais, desde a citação e até integral pagamento.
- condena-se o R. a pagar à A. a quantia de € 164.136, 56, com juros de mora legais desde o presente momento e até integral pagamento.
- condenam-se os RR. a pagar à A. a quantia de € 35.000, 00, com juros de mora legais, desde o presente momento até integral pagamento.
Absolvem-se os RR. do demais peticionado.
Custas por A. e RR., fixando-se a participação de cada um em 10% para a A., 60% para o primeiro R. e 30% para Ré, sem prejuízo do que se apurar posteriormente quanto aos valores a liquidar».
8. Inconformados o réu médico, Dr. BB, e a Ré Seguradora, Ageas Portugal – Companhia de Seguros, SA, interpuseram recurso de revista, tendo também a autora apresentado contra-alegações, em que pediu a ampliação do objeto do recurso,
9. O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão datado de 19 de dezembro de 2023, anulou o acórdão da Relação, por vício na fundamentação quanto à modificação do facto provado n.º 55, decidindo o seguinte:
«1. Conceder a revista, anulando-se o Acórdão recorrido e determinando-se que o processo baixe ao Tribunal da Relação do Porto, para que aí se proceda à reapreciação fundamentada do ponto 55.º da matéria de facto provada na sentença do tribunal de 1.ª instância, e sejam decididas as questões de direito em conformidade com o que vier a ser fixado.
2. Considera-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas na revista.
3. Condena-se nas custas a parte vencida a final».
10. Tendo baixado o processo, por ordem deste Supremo Tribunal, o Tribunal da Relação decidiu o seguinte:
« - condenam-se os RR. a pagar à A. o valor pago por esta a empregada doméstica (e segurança social), desde 4.12.2012 a 28.4.2014, e desde 29.4.2014 e enquanto a mesma sofrer de incapacidade, o correspondente a 19% do que pagou e vier a pagar de salário a empregada doméstica e segurança social, valores estes a apurar em incidente de liquidação posterior. Quanto à Ré, haverá que descontar a franquia de 10%.
- condenam-se os RR. a pagar à A. a quantia de € 6.888, 00, com juros moratórios legais, desde a citação e até integral pagamento. Quanto à Ré, haverá que descontar a franquia de 10%.
- condenam-se os RR. a pagar à A. a quantia de € 6.087, 73, com juros moratórios legais, desde a citação e até integral pagamento. Quanto à Ré, haverá que descontar a franquia de 10%.
- condenam-se os RR. a pagar à A. a despesas que efetuou e venha a efetuar, relativamente ao supra provado em 49, 37.º, 54.º e 63.º, a apurar em incidente posterior de liquidação. Quanto à Ré, haverá que descontar a franquia de 10%.
- condena-se o R. a pagar à A. a quantia de € 9.775, 00, com juros moratórios legais, desde a citação e até integral pagamento.
- condena-se o R. a pagar à A. a quantia de € 164.136, 56, com juros de mora legais desde o presente momento e até integral pagamento.
- condenam-se os RR. a pagar à A. a quantia de € 35.000, 00, com juros de mora legais, desde o presente momento até integral pagamento.
Absolvem-se os RR. do demais peticionado.
Custas por A. e RR., fixando-se a participação de cada um em 10% para a A., 60% para o primeiro R. e 30% para Ré, sem prejuízo do que se apurar posteriormente quanto aos valores a liquidar».
11. Inconformado, interpôs novo recurso de revista o réu médico, Dr. BB, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
«I) Pelo acórdão recorrido de 19 de fevereiro de 2024 o Tribunal da Relação do Porto (i) não cumpre o que lhe foi determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça pelo acórdão de 19 de dezembro de 2023, (ii) deixou por efectuar a reapreciação fundamentada do ponto 55 da matéria de facto provada na sentença do tribunal de 1ª instância, e (iii) manteve condenação ilegal do recorrente nos precisos termos do seu anterior acórdão de 5 de junho de 2023.
II) Para manter a condenação a Relação teve de proferir um terceiro juízo de valor quanto ao ponto 55 da matéria de facto, sendo que (i) pelo primeiro acórdão, de 8 de março de 2019, manteve expressamente o teor do facto 55 na redação da primeira instância, (ii) pelo segundo acórdão, de 5 de junho de 2023, alterou oficiosamente o teor do facto 55, modificando o julgamento da matéria de facto sem a devida fundamentação, e (iii) pelo terceiro acórdão, de 19 de fevereiro de 2024, agora recorrido, desqualificou a matéria do facto provado 55, dizendo-a “conclusiva”, deixando assim de proceder à devida fundamentação da alteração da matéria de facto como lhe fora determinado por este STJ.
III) O acórdão recorrido é ilegal por violação de lei substantiva e processual, em matérias de (i) modificabilidade da matéria de facto, (ii) consentimento informado para o acto cirúrgico, e (iii) pressupostos da responsabilidade civil.
IV) No segmento da reapreciação fundamentada do ponto 55 da matéria provada, a Relação do Porto incorre de novo no vício de mau uso dos poderes de modificação da matéria de facto, decidindo em erro de qualificação jurídica, e por argumento de última hora, que o motivo da conversão oficiosa do facto provado nº 55 (por supressão da dimensão factual que constava das sentenças de 1ª instância relativamente à informação clínica pré-cirúrgica prestada pelo Recorrente médico à Recorrida paciente - “depois de prestada a informação” –) decorre da natureza conclusiva dessa matéria.
V) Contraditoriamente, a Relação do Porto (i) por acórdão de 2019 confirmara e mantivera expressamente como facto provado a matéria do ponto 55, (ii) por acórdão de 2023 alterara a matéria de facto quanto a tal ponto, sem a necessária fundamentação, para (iii) pelo acórdão agora recorrido de 2024 desqualificar a matéria do ponto considerando-a (afinal) conclusiva.
VI) No segmento da reapreciação ordenada pelo STJ, a Relação do Porto não conheceu, nem explicou, como determinado pelo STJ, a correspondência entre o facto modificado e os meios de prova que tiveram esse facto como objecto.
VII) Sendo que o STJ, no acórdão anulatório de 19 de dezembro de 2023, referira expressamente a fundamentação da 1ª instância quanto (i) às informações verbalmente transmitidas pelo Recorrente à Recorrida, em que aquele “prestou todos os esclarecimentos e as informações relativas à intervenção cirúrgica (…) sobretudo quanto ao risco de vida e de não voltar a andar”, (ii) às declarações da Recorrida em audiência de julgamento, em que a esta referiu “que conhecia, por várias fontes, os riscos da cirurgia (Dr. EE e amiga ...), questionou directamente o 1º Réu, fazendo-lhe as perguntas que entendeu (…) e confirmou que teve com o 1º Réu uma longa consulta, com a duração de cerca de hora e meia onde recebeu esclarecimentos e na qual teve a oportunidade de colocar todas as questões que entendeu” e que suportavam a conclusão da 1ª instância segundo a qual “Pode, pois, concluir-se que autora só assinou a declaração onde expressava o seu consentimento para a realização cirurgia depois de ter sido informada sobre os riscos da mesma, e de se sentir confortável e segura com a informação que recebeu.»
VIII) A fundamentação de facto introduzida a fls 49 a 52 do acórdão recorrido é apenas genérica, não abordando, nem conhecendo, estes temas concretos dos depoimentos produzidos em audiência, sobre os quais não extrai valor probatório relevante.
IX) O acórdão recorrido não revela sequer o conteúdo de sentido das declarações que estava obrigado a analisar, e que poderiam fundamentar a divergência do juízo decisório quanto ao exposto fundamentadamente pela 1ª instância, pelo que não procedeu, de novo, à fundamentação legalmente exigível para a alteração dos factos fixados, como lhe tinha sido determinado.
X) A matéria da informação clínica transmitida pelo Recorrente à Recorrida, e a da prestação de consentimento pela Recorrida, é factual e não conclusiva, pelo que não podia ser eliminada pela Relação sem a devida fundamentação.
XI) Ainda que a qualificação do facto 55 como conclusivo fosse correcta, o que não se concede, a solução não poderia ser a acolhida nos acórdãos da Relação do Porto (alterando pura e simplesmente o facto e eliminando o sentido que resulta expressamente da fundamentação de primeira instância) por ser incontroverso que o Recorrente médico prestou, e a Autora recebeu, informação verbal quanto aos riscos da cirurgia e, para mais, em longa consulta.
XII) Não tendo a Relação acatado a determinação do STJ de fundamentar devidamente a modificação da matéria de facto deve censurar-se o uso dos poderes de facto efetuado pela 2ª instância e, em conformidade, repristinar-se a redacção dada ao facto 55 pela 1ª instância, por ser a única que está efectivamente fundamentada.
XIII) Acresce que, o acórdão recorrido, a exemplo das duas sentenças de primeira instância, aceita não ter sido demonstrada qualquer violação das leges artis na execução do acto cirúrgico.
XIV) A condenação do Recorrente emerge exclusivamente da errada conclusão segundo a qual o Réu não fez prova cabal da transmissão de informação quanto a todos os riscos da cirurgia como condição para exclusão da ilicitude da intervenção.
XV) A conclusão da Relação desvaloriza ainda em absoluto o teor da declaração de consentimento informado, escrito, livre e esclarecido, vício que decorre também da violação pela Relação do regime legal de modificação da matéria de facto que estava obrigada a observar.
XVI) Não apreciando de forma integral o valor das declarações das partes que mandara anteriormente produzir, e reduzindo a fundamentação ao meio de prova documental que identifica como “único”, o Tribunal da Relação fez um “mau uso” (até um “não uso”) dos poderes que eram os seus e que estava obrigado a utilizar, em violação do regime do artigo 662º, nº 1 e 2 do CPC.
XVII) O mau uso dos poderes deveres pelo Tribunal da Relação integra questão de direito, a ser conhecida pelo Supremo Tribunal de Justiça, e que deve ser declarada, impondo-se a revogação da decisão recorrida no segmento em que procedeu à modificação do facto provado 55.
XVIII) Deve, em conformidade, ser repristinado integralmente o facto provado 55 na redacção da sentença de 1ª instância.
XIX) A desconsideração da declaração de consentimento informado prestado pela Autora, dita vaga e imprecisa, traduz errada qualificação da Relação, em violação do regime legal aplicável, das normas regulamentares em vigor, das práticas e usos da profissão e do sentimento da comunidade.
XX) Os factos provados 2º a 12º, 26º, 55º (na redação da 1ª instância), 69º a 71º e 73º impõem a revogação da decisão condenatória e a absolvição do Recorrente.
XXI) Para concluir pela violação do dever de transmissão de informação, e pela exigência de forma escrita para esta transmissão, a Relação fundamenta-se ilegalmente no regime da Lei nº 24/96 – Lei de Defesa do Consumidor – o qual é inaplicável à prestação dos cuidados de saúde em que não está em causa a venda de bens ou de serviços “para consumo”.
XXII) Como resulta (i) da generalidade dos diplomas legais nacionais e internacionais aplicáveis (incluindo (i) artigos70º,nº1e81º,nº1do Código Civil, (ii) artigos 38º, nºs 1 e 2 e 157º do Código Penal, (iii) artigo 135º, nº 11 do Estatuto da Ordem dos Médicos, (iv) do artigo 5º da Convenção dos Direitos do Homem e da Biomedicina, e (v) dos artigos 44º e 45º do Regulamento 14/2009 que aprova o Código Deontológico da Ordem dos Médicos), (ii) da Norma 15/2013 da Direcção Geral de Saúde, que introduziu, já após a cirurgia, a necessidade do consentimento escrito, prévio, livre e esclarecido para as intervenções cirúrgicas, (iii) da doutrina e (iv) da jurisprudência, a declaração de consentimento culmina o processo de prestação de informação clínica adequada, não se confundindo com própria transmissão.
XXIII) Por tal o acórdão da relação violou por errada interpretação, mas também por desaplicação, as normas indicadas.
XXIV) A Autora dispôs ainda de 9 dias para reflexão, até à realização da cirurgia, sem que, apesar de informada, suscitasse reserva ou esclarecimento adicional, o que não pode ser ignorado como significando a vontade de se submeter à cirurgia.
XXV) Da matéria de facto fixada pelas instâncias resulta que a Autora apresentava (i) doença degenerativa da coluna vertebral, (ii) com défice motor e funcional, (iii) resistente a tratamentos conservadores e à medicação, (iv) com indicação para realização da cirurgia proposta tratamento sem qualquer alternativa para a cura.
XXVI) Neste quadro clínico (i) a necessidade terapêutica da intervenção está justificada, (ii) a transmissão da informação sobre os riscos deve ser a adequada ao paciente e às circunstâncias do caso, (iii) inferindo-se do teor da declaração e da fundamentação da sentença de 1ª instância que a Autora estava cabalmente ciente quer da necessidade da cirurgia, quer dos riscos comuns e prováveis da intervenção.
XXVII) No caso, o risco de lesão medular está descrito como raro ou remoto, de muito baixa probabilidade, referida a 1%, pelo que a declaração de consentimento subscrita pela Autora, pessoa letrada e interessada, com capacidade intelectual para compreender a informação transmitida, e de se relacionar com ela do ponto de vista da tomada de decisão, só pode ser tida como válida e suficiente para exclusão da ilicitude.
XXVIII) Tanto mais que (conforme fundamentação da sentença) a Autora (i) chegou à consulta do Réu já ciente dos riscos, (ii) que discutiu com o Réu, (iii) colocando todas as dúvidas que entendeu, (iv) incluindo as que não colocaria se não estivesse tão informada, (v) pelo que prestou consentimento habilitada com o conhecimento não apenas dos riscos normais, mas também dos riscos incomuns que pudessem ser previsíveis.
XXIX) Também a referência aos 19% de incapacidade da Autora surge descrita na Consulta Técnico Científica como “risco possível, ainda que remoto ou raro” da cirurgia inserindo-se no leque dos riscos imprevisíveis que não têm de ser, nem podem ser, adequadamente transmitidos.
XXX) Tanto mais que não resulta indiciado em que medida, e porque causalidade, a incapacidade da Autora, no quadro clínico que apresentava antes da cirurgia, como pessoa que sofria de doença degenerativa da coluna vertebral, resulta do quadro clínico anterior ou é consequência da cirurgia.
XXXI) Na transmissão da informação, como na obtenção de declaração de consentimento informado o Réu observou, por excesso, as disposições legais e regulamentares aplicáveis no ano de 2012, devendo reconhecer-se que a Declaração de Consentimento subscrita pela Autora é válida e eficaz para efeitos de exclusão da ilicitude da intervenção, não resultando demonstrado qualquer vício que limite ou condicione a liberdade de autodeterminação da Autora.
XXXII) Desvalorizando o valor declarativo do consentimento informado prestado pela Autora o acórdão recorrido violou o regime dos artigos 217º, 219º, e 236º, nº 1 do Código Civil.
XXXIII) Tendo resultado não provado que “o Réu durante a cirurgia provocou uma lesão medular na Autora” (facto não provado 1) e tendo resultado provadas quer a ocorrência de episódio hipotensivo severo no pós-operatório precoce (facto provado 12), como ainda que a lesão medular sequelar pode resultar de episódio hipotensivo com distress respiratório decorrido depois da cirurgia e que este tipo de episódio é uma consequência possível, mesmo que remota deste tipo de cirurgia (facto provado 73) fica por demonstrar a existência de um concreto nexo naturalístico entre os factos praticados pelo Recorrente e o dano sofrido pela Autora.
XXXIV) O acórdão da Relação afirma a existência de responsabilidade sem, e ou contra, factos, ilicitude e nexo de imputação objectiva, em violação do regime legal da responsabilidade por factos ilícitos.
XXXV) Ao impor ao Réu Recorrente a obrigação de indemnizar os danos patrimoniais e não patrimoniais (ditos) sofridos pela Autora, a descoberto de tipicidade, ilicitude e imputação objectiva, num quadro em que a causa da lesão não foi apurada como sendo a do concreto ato médico praticado, a Relação viola o regime dos artigos 483º, 496º, 562º, 563º e 564º do Código Civil.
XXXVI) Fazendo-o a Relação afasta ainda o apuramento da responsabilidade emergente da prática médica do regime geral da responsabilidade civil por factos ilícitos e aproxima-a da responsabilidade objectiva própria das actividades perigosas, o que não pode ser ignorado e consentido.
XXXVII)Termos em que, na procedência do recurso de revista deve ser revogado o acórdão recorrido da Relação, mantendo-se a absolvição decretada em primeira instância.
Como é de Direito e de Justiça !»
12. Também inconformada, a ré seguradora, Ageas Seguros, interpôs recurso de revista, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
«1.O Acórdão de que se recorre, foi proferido na sequência da decisão de anulação, pelo Supremo Tribunal da Justiça, do acórdão de 05 de junho de 2023;
2.Decisão essa que ordenou que o mesmo Tribunal da Relação procedesse à reapreciação fundamentada do ponto 55 da matéria de facto provada, por não explicar, a mesma, o motivo da eliminação da referência à informação transmitida à Recorrida antes da declaração de consentimento e decididas as questões de direito subjacentes em conformidade e tendo considerado prejudicado, também essa mesma decisão do STJ, o conhecimento das demais questões suscitadas na revista;
3.Ponto 55 que o Tribunal da Relação eliminou (sem explicar o motivo dessa eliminação), no seu anterior acórdão, que fazia referência a informação transmitida pelo médico à autora e que o tribunal de 1ª instância baseou em declarações da autora prestadas em sede de audiência e julgamento;
4.O Tribunal da Relação não explicou a razão da modificação de tal facto e, agora, em sede do acórdão recorrido, continua sem o fazer, ou seja, não dá cumprimento ao que o Supremo Tribunal da Justiça lhe determinou;
5. Analisando o mesmo, e as alterações efetuadas, relativamente ao anulado, verifica-se que o acórdão recorrido repete o erro, usando mal os poderes de modificação da matéria de facto, ao decidir em notório erro de qualificação jurídica quanto à factualidade apurada e quanto à apreciação e ponderação dos meios de prova, nomeadamente as declarações das partes, em sede de audiência e julgamento;
6. Assim, o Tribunal da Relação do Porto, que proferiu o acórdão de que agora se recorre, não cumpriu integralmente o ordenado pelo Supremo Tribunal da Justiça e reiterou a condenação da Recorrente por alegada violação do dever do consentimento informado;
7. O Tribunal da Relação do Porto alterou a redação do facto provado 55 e sobre essa alteração construiu a condenação da aqui recorrente;
8. Condenação violadora, no entender da Recorrente, da lei relativa ao consentimento informado, aos pressupostos da responsabilidade civil e à modificabilidade da matéria de facto;
9.Nomeadamente, como já atrás se referiu, no que tange à modificabilidade ou alteração da redação do facto provado 55, o disposto no art. 662º do C.P.C., por errada aplicação, resultando, assim, um total arbítrio inadmissível, no que respeita à alteração do referido facto;
10.Andou, pois, mal o Tribunal da Relação do Porto, ao condenar os RR., nos presentes autos;
11.E andou mal, ao decidir contrariamente à sentença absolutória proferida pelo Tribunal de 1ª instância, substituindo esta pela é objeto do presente recurso e que ditou a condenação, agora com base em alegada inexistência do consentimento informado (sendo certo que os Senhores Juízes Desembargadores não lograram alcançar mácula, ou seja, qualquer erro médico na cirurgia, não obstante o esforço feito no sentido do apuramento da existência do mesmo, através da ordenada bateria de consultas e perícias);
12. Em 1ª instância, o facto provado 55 tinha este teor:
“A Autora, uma vez recebida a informação assinou a declaração de consentimento informado.”;
13.E essa mesma instância concluiu corretamente ao fazê-lo nos seguintes termos:
“Pode, pois, concluir-se que a autora só assinou a declaração onde expressava o seu consentimento para a realização da cirurgia depois de ter sido informada sobre os riscos da mesma, e de se sentir confortável e segura, com a informação que recebeu.”;
14.E andou mal o mesmo Tribunal da Relação ao ditar a condenação, com base em alegada ilicitude fundada em, também alegada, violação do consentimento informado;
15.Sustentando, para isso, que o consentimento prestado pela recorrida no documento de consentimento informado junto aos autos, por preenchido de “forma genérica”, não preenche, por si só, as condições do consentimento, não concretizando o que terá informado à paciente relativamente a riscos e consequências mais frequentes e previsíveis e a alternativas existentes;
16. Não obstante ter sido dado como provado em 55, que a A., uma vez recebida a informação, assinou a declaração de consentimento informado;
17.Sendo certo que a A. não efetuou quaisquer restrições ou falta de correspondência quanto à explicação do diagnóstico clínico e os procedimentos diagnósticos e terapêuticos, bem como à explicação das implicações, dos riscos e as consequências dos procedimentos, para além das terapêuticas alternativas;
18. Quanto a estas (alternativas), as quais nos remetem para o elemento capital da decisão da qual se recorre, diz o Tribunal da Relação que assim decidiu por ter sido por alegada falta da sua informação, que a A. não teve oportunidade de decidir;
19. Assim não é porquanto a terapêutica alternativa à cirurgia é o tratamento conservador, ao qual a A. já se havia submetido e ao qual foi resistente. Não surtiu efeito;
20. É na falta de outra terapêutica que a cirurgia aparece como necessária;
21. E o estado da A. Era grave e extremamente limitador, com défice motor, como resultou provado em 2 até 6;
22. A A. efetuou todo o percurso terapêutico existente para a sua situação, antes da cirurgia;
23. Carece de sustentação o Tribunal da Relação trazer à colação a alegada falta de informação da terapêutica alternativa, enquanto “parcela” do consentimento informado (e de cuja alegada falta nunca se queixou, pois efetuou todo o percurso alternativo – o tratamento conservador – sem resultado);
24. “Na distribuição das regras do ónus da prova, entre o doente e o médico, no que ao dever de informar diz respeito, o médico veria naturalmente acrescido esse seu ónus se acaso a doente provasse, por si própria, que outros caminhos havia, possíveis ou mais adequados de tratamento/intervenção….
Não tendo a A. feito prova de um concreto acréscimo de possibilidades perante a sua lesão que pudesse formar-lhe diferentemente o consentimento, que exprimiu, para o tratamento intervenção, não nasceu para o réu o dever acrescido de informação sobre todas essas diferentes possibilidades.” (Acórdão do STJ de 18 de março de 2010,processo n.º 301/06.4TVPRT.P1S1);
25. A verificação da existência desse mesmo consentimento informado resulta, também, dos depoimentos prestados pela Autora e pelo 1º Réu, em sede de audiência de julgamento, dos quais se impõe concluir que a Autora foi detalhadamente informada pelo 1º Réu acerca da sua situação clínica, dos procedimentos cirúrgicos que lhe foram sugeridos e acerca dos riscos associados à intervenção em causa a que aceitou submeter-se;
26. A própria A., no seu depoimento, afirmou que já estava conhecedora dos riscos que comportava a cirurgia, quer através do Dr. EE (... a que recorreu antes de procurar 1º Réu) quer através da sua amiga ..., mais afirmando ter questionado diretamente o 1º Réu sobre o mesmo assunto, tendo-lhe colocado as questões que entendeu;
27. Afirmou que teve, com o 1º Réu, uma consulta que durou cerca de uma hora e meia, onde foram colocadas as questões que entendeu e prestados os respetivos esclarecimentos, com os quais se sentiu, como também disse, confiante;
28. 1º Réu afirmou, no seu depoimento (quer em 2017, quer na audiência de 2022), que prestou à Autora informação detalhada sobre, quer a natureza da cirurgia a que a mesma aceitou submeter-se, quer os procedimentos e riscos;
25. A Autora, com as informações que lhe foram prestadas pelo 1º Réu, não manifestou dúvidas nem solicitou esclarecimentos complementares para dar o seu consentimento à realização da intervenção cirúrgica a que decidiu submeter-se;
29. A Autora é uma pessoa letrada, com capacidade para entender o teor do documento que assinou ou, então, para saber que não se assina sem se saber o que se está a assinar;
30. Quando procurou o 1º Réu, já era conhecedora dos riscos que a cirurgia comportava, quer através do médico ... que havia já consultado anteriormente, Dr. EE, quer através da sua amiga ... que a alertou para a circunstância de, às vezes, estas cirurgias “correrem mal”;
31. Como a própria referiu no seu depoimento, questionou, diretamente, o 1º. Réu, colocando-lhe as questões que entendeu e que o mesmo lhe prestou os esclarecimentos, entre o mais, numa consulta que durou cerca de uma hora e meia;
32. A A., enquanto pessoa de formação elevada assinou a declaração do consentimento informado para a realização da cirurgia, fê-lo de forma livre e informada dos procedimentos e riscos da cirurgia;
33. Tanto mais que, como é do conhecimento geral - e sempre tendo por referência o homem médio -, não existindo cirurgias isentas de riscos, é forçoso concluir-se, no caso concreto, que a Recorrente estava, quando assinou a declaração do consentimento, devidamente informada, seja relativamente à cirurgia, seja relativamente aos riscos que a mesma comporta e ciente de que as alternativas existentes (tratamento conservador) não foram eficazes;
34. Pelo exposto, terá de se concluir que, face à documentação junta aos autos e dos depoimentos e declaração prestadas, que resulta prova suficiente no sentido da verificação da existência de consentimento livre e esclarecido, ou seja, fornecidos à A. todos os elementos que determinaram a consentir na intervenção médica que contratou.
ISTO POSTO
35. Ainda que assim se não entendesse, o que só por mera hipótese de raciocínio se admite, “…tem a doutrina e a jurisprudência europeia, consagrado um princípio que tem como prévia do consentimento informado a transmissão de uma informação simples e aproximativa e sobretudo leal, a qual compreenda os riscos normalmente previsíveis, salientando-se, porém, que se tem verificado uma maior exigência e rigor de informação nos casos de intervenções não necessárias.” (Acórdão do STJ de 16 de Junho de 2015, processo n.º 308/09.0TBCBR.C1.S1);
36. Casos há em que até se dispensa, em maior ou menor medida, o esclarecimento prévio ao consentimento, nomeadamente as enquadráveis no âmbito do chamado “privilégio terapêutico”, como seja o caso em que o doente demonstre possuir conhecimentos adequados para compreender o alcance e consequências possíveis do tratamento e a necessidade do mesmo;
37. De acordo com o critério da necessidade terapêutica, da intervenção, quanto mais necessária esta for, menos intensa será a exigência de disponibilizar a informação, e ao invés, quanto menos necessária seja a intervenção, mais intenso se apresenta o dever de informação;
38. No caso em apreço, a A., como atrás se disse, afirmou, nas suas declarações, que já estava conhecedora dos riscos que comportava a cirurgia, quer através do Dr. EE (... a que recorreu antes de procurar o 1º Réu) quer através da sua amiga ...;
39. Portanto, a doente demonstrou possuir conhecimentos adequados para compreender o alcance e consequências possíveis do tratamento e a necessidade do mesmo, pelo que perfeitamente entendível no critério referido;
40. É na falta de outra terapêutica que a cirurgia aparece como necessária, sendo certo que o estado da A. era grave e extremamente limitador, com défice motor, como resultou provado em 2 até 6, já que tendo efetuado todo o percurso terapêutico conservador existente para a sua situação, o mesmo não se mostrou eficaz;
41. Com esta gravidade de limitação e dor, a terapêutica da intervenção impunha-se fortemente;
42. Ainda que se concluísse não ter o R. informado a A. do risco de lesão medular, o que não se concede, a mesma não se impunha porquanto o mesmo não faz parte dos riscos altamente prováveis a que se refere o princípio consagrado a doutrina e jurisprudência europeia e que tem como prévia do consentimento informado a transmissão de uma informação simples e aproximativa e sobretudo leal, a qual compreenda os riscos normalmente previsíveis, salientando-se, porém, que se tem verificado uma maior exigência e rigor de informação nos casos de intervenções não necessárias.”;
43. Efetivamente, tal lesão traduz um risco que representa, de acordo com a literatura médica, uma taxa de incidência entre os 0,2% e 3%, cerca de 1%, como referiu também o ... FF, no seu depoimento e resulta da Consulta Técnico-científica junta aos autos;
44. A doutrina e jurisprudência perfilham a tese da obrigação de comunicar os riscos que forem significativos – vide GG (responsabilidade médica e consentimento informado) e também o Acórdão do STJ, de 08.09.2020;
45. Ou seja, os riscos que se entendam importantes para uma pessoa normal, para o homem médio, que se posicione nas mesmas circunstâncias do paciente, no momento de prestar o consentimento e conhecedor do tratamento que lhe foi proposto;
46. No caso em apreço, o risco de ocorrência de eventual lesão medular não poderá ser considerado significativo;
47. A taxa de incidência referida traduz-nos riscos pouco frequentes e que, face à prova produzida nos autos, incluindo a documental, também não serão de considerar de gravidade significativa;
48. Também por isso, sempre se encontraria afastada a violação - que não existiu -, por parte do 1º Réu, do dever de informação necessária à prestação do consentimento livre e informado.
SEM PRESCINDIR:
DO NEXO DA CAUSALIDADE
49. Tendo o Acórdão do Tribunal da Relação, decidido, e bem, pela inexistência de erro médico impunha-se, para que pudesse decidir pela condenação com base em alegada ilicitude fundada em, também alegada, inexistência do consentimento informado, apurar se face à matéria dada como provada, nomeadamente em 73.º dos factos provados, a alegada lesão medular se verificou por força da cirurgia ou por qualquer outro fator.
50. Ou seja, estabelecer o nexo causal entre a cirurgia realizada e os danos em apreço, já que, caso viesse a entender-se - o que só mera hipótese se admite pela obrigação, no caso concreto, de o Réu esclarecer a A. sobre a possibilidade de lesão medular, tal esclarecimento visaria, tão somente a lesão que pudesse ser causada por essa mesma cirurgia;
51. Impõe-se, por isso, a apreciação desta questão, face à factualidade dada como provada, nomeadamente no facto 73º dos factos provados, do qual consta o seguinte;
52. No modesto entender da Recorrente, dessa prova extrai-se que poderia resultar paresia dos membros direitos e foco de sofrimento medular direito que determina incapacidade de 19%, sendo também risco possível a lesão traumática sequelar da medula. E resulta ainda, que, relativamente a este caso, tal não pode afirmar-se;
53. Obtêm-se, também, da informação prestada pelo Colégio da ..., que não se pode afirmar serem decorrência da intervenção do R. as lesões físicas de que padece a A.;
54. Ora, atento ao afirmado, não se pode garantir que tais lesões, verificadas no pós-operatório, tiveram como causa a cirurgia e não outro qualquer dos possíveis motivos, de entre os vários existentes;
55. É que, se a ela não se devem, também não impendia sobre o Réu a obrigação de esclarecer das demais possíveis causas das lesões aqui em apreço;
56. E, por isso, não podia o Tribunal da Relação do Porto, condenar os RR. Por inexistência de consentimento informado, face à não verificação do nexo causal, enquanto pressuposto da responsabilidade civil.
AINDA SEM CONCEDER
DA COMPENSAÇÃO DO DANO NÃO PATRIMONIAL
57. Caso venha a entender-se não dever proceder integralmente o recurso da Recorrente, o que apenas se admite por mera hipótese de raciocínio, impõe-se, sempre, a alteração do decidido quanto ao montante da indemnização fixada para ressarcir o dano não patrimonial;
58. Ao liquidar o dano não patrimonial o Tribunal deve levar em conta os sofrimentos efetivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “fattispecie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto;
59. Os danos não patrimoniais são indemnizáveis, quando pela sua gravidade, merecerem a tutela do direito (art. 496º, nº 1, do C. Civil), consequência do princípio da tutela geral da personalidade (art. 70º, do C. Civil);
49. A sua gravidade mede-se por um padrão objetivo, conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias concretas; por outro lado, aprecia-se em função da tutela do direito e a sua compensação fixada para ressarcir os danos não patrimoniais visa proporcionar ao lesado “uma compensação ou benefício de ordem material (a única possível) que lhe permita obter prazeres ou distrações - porventura de ordem espiritual - que, de algum modo, atenuem a sua dor” (Pessoa Jorge, “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 1972, pág. 375);
50. O respetivo montante, nos termos dos artigos 496º, nº 3 e 494º do Código Civil, será fixado equitativamente pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do lesante às demais circunstâncias que contribuam para uma solução equitativa, bem como aos critérios geralmente adotados pela jurisprudência e às flutuações do valor da moeda (cf. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra, 1991, págs. 484 e 485);
51. A equidade demanda a prudência e o bom senso, a adequação às condições específicas de cada caso, sob pena de se subverterem as razões que presidem a este critério;
52. Nesta conjuntura, as circunstâncias específicas do caso concreto demandam uma ponderação do montante equivalente a uma compensação digna de todo o sofrimento, sem olvidar que a mesma se dirige, primordialmente, para a satisfação do próprio lesado, na perspetiva de minimizar a sua dor e as suas perdas, por isso se impõe que seja séria e que corresponda à dignidade dos valores lesados mas, por outro lado, levando em consideração a relatividade de cada caso e as circunstâncias da vida que evidenciam, quotidianamente, que valores mais elevados são infringidos;
53. Para alcançarmos esta harmonia, importa considerar os critérios jurisprudenciais como forma de evitar desigualdade, apelando à dimensão e abrangência dos valores imateriais efetivamente tutelados;
54. Para que se salvaguarde o valor da segurança jurídica é necessário que os tribunais fixem uma compensação para os danos não patrimoniais passível de ser alcançada por qualquer decisão judicial;
55. Ponderando o princípio da igualdade e analisando comparativamente os valores arbitrados em outras situações equivalentes conclui-se que o valor fixado – 35.000,00 € – é exagerado para compensar o dano sofrido;
56. Entende, pois, a Recorrente que não deve exceder o montante de € 20.000,00, considerando-se excessiva e violadora do preceituado nos artigos 483º, 496º, 562º, 563º e 564º do Código Civil, a indemnização fixada pelo Acórdão recorrido.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando a decisão condenatória ditada pelo Tribunal da Relação do Porto, julgando-se improcedente a ação, em conformidade com o já decidido em primeira instância.
Caso assim se não entenda, deve o montante indemnizatório fixado pelo Acórdão recorrido, relativo ao dano não patrimonial, ser reduzido para € 20.000,00.
ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA».
13. A autora, AA, por seu lado, apresentou contra-alegações e ampliação do objeto de recurso, concluindo do seguinte modo:
«I. No que concerne ao consentimento informado, resultou, à saciedade, demonstrado supra que o 1.º Réu Recorrente não deu a conhecer devidamente à Recorrente os riscos da cirurgia a que esta se iria submeter, limitando-se a dizer-lhe que era uma cirurgia “corriqueira”.
II. Se a doutrina tradicional defendia que existia uma obrigação de comunicar ao paciente apenas os riscos normais e previsíveis, excluindo do dever de informar os riscos graves ou hipotéticos, a verdade é que recentemente tem vindo a defender-se – a nosso ver, bem – que o médico está também obrigado a comunicar os riscos significativos, sendo que o risco será considerado significativo, entre outos, em razão da sua gravidade.
III. A não informação de riscos graves, ainda que hipotéticos ou de frequência excepcionais, merece a sanção do direito.
IV. Refira-se que, no caso concreto, conforme ficou demonstrado supra, apesar da reduzida probabilidade do risco que efectivamente se veio a verificar, o certo é que provado ficou ser um risco inerente à própria cirurgia em causa e consequências gravíssimas das quais podia, inclusive, ter resultado a morte da Autora Recorrida.
V. Riscos esses, aliás, descritos na literatura da especialidade.
VI. Motivo pelo qual não se dúvida que se encontrava o 1.º Réu Recorrente obrigado comunicá-los à Autora Recorrida, o que não fez, cometendo, assim, um acto ilícito.
VII. Não obstante se ter de considerar que a referida falta de consentimento informado resultou amplamente demonstrada de toda a prova produzida, não pode deixar de sublinhar-se também que, como já se disse supra, a prova sobre o consentimento informado recai sobre o médico.
VIII. Sendo certo que não logrou o 1.º Réu Recorrente demonstrar que informou de forma completa e sem erros a Autora Recorrida acerca do procedimento cirúrgico, isto é, que desta obteve o consentimento informado para a cirurgia em causa.
IX. Já no que diz respeito ao gesto/erro médico que provocou a lesão medular da Autora Recorrida, em virtude da alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto em conformidade com o que supra se pugnou, dúvidas não podem subsistir de que ficou provado o facto ilícito consubstanciado no facto de a lesão medular sofrida pela Autora Recorrida ter origem traumática, isto é, ter advindo de um erro/gesto médico em violação das leges artis.
X.No entanto, ainda que assim não se entendesse, os Réus sempre estariam condenados nos termos em que o foram, considerando a verificação do facto ilícito, por força da inversão do ónus da prova sobre o facto ilícito, que, no caso concreto, deverá entender-se que recaia sobre o 1.º Réu Recorrente, e não sobre a Autora Recorrida, por força do disposto no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.
XI. O que significa que competia ao 1.º Réu Recorrente ter demonstrado que a lesão medular não proveio de erro médico seu, e não à Autora Recorrida provar que a lesão medular que sofreu é traumática.
XII. No caso concreto, ficou demonstrado que a ressonância magnética que o 1.º Réu Recorrente optou por não mandar a Autora Recorrida realizar imediatamente após o episódio hipotensivo severo teria permitido confirmar a origem da lesão: isquémica ou traumática.
XIII. Seguro é, assim, dizer que o 1.º Réu Recorrente impediu ou, pelo menos, prejudicou gravemente a prova do ilícito pela Autora Recorrida, já de si difícil.
XIV. O que fez com dolo ou culpa grave.
XV. As circunstâncias concretas de cada caso podem justificar facilitações de prova ou uma inversão do ónus da prova, designadamente quando o evento ocorrido era manifestamente improvável de acontecer e, ainda, quando o lesado é colocado numa situação de total impossibilidade de prova em virtude das reservas quanto ao sucedido no que concerne aos comportamentos médicos e da não deteção do erro médico nos exames médicos posteriores.
XVI. Acresce que, se é verdade que, em regra, a obrigação do médico é uma obrigação de meios, e não de resultado, outros casos há em que se deve entender que o médico se obrigou à produção de determinado resultado.
XVII. Para saber se estamos perante uma obrigação de meios ou de resultado importa analisar, casuisticamente, a natureza e o objecto do acto médico em causa.
XVIII. Nos casos de actividades médicas especializadas que envolvem riscos muito reduzidos, como é o caso, deverá entender-se que sobre o médico recai uma verdadeira obrigação de resultado.
XIX. Nesta sequência, basta que o lesado prove a não verificação do resultado pretendido, dispensando-o de demonstrar ainda que o médico incumpriu o dever objetivo de diligência ou de cuidado, nomeadamente requerido pelas leges artis.
XX. No caso concreto, evidente é que não foi alcançado o resultado pretendido pela cirurgia a que a Autora Recorrida se submeteu.
XXI. Por outro lado, estando em causa uma obrigação de resultado, justifica-se com maior acuidade a inversão do ónus da prova, devendo o médico ser responsabilizado sempre que fique demonstrado que não foi alcançado o resultado proposto, como aconteceu no presente caso.
XXII. No que concerne ainda ao facto ilícito, conforme referido em sede de impugnação da matéria de facto, demonstrado ficou que o 1.º Réu Recorrente não pediu a realização de ressonância magnética cervical imediatamente após o episódio hipotensivo severo da Autora Recorrida, o que teria sido determinante para o apuramento da causa da lesão medular e respectivo tratamento.
XXIII. A não realização do referido exame configura, por si só, uma violação da leges artis pelo 1.º Réu Recorrente que estava obrigado a adoptar todos os procedimentos adequados ao diagnóstico e tratamento da Autora Recorrida e não o fez.
XXIV. Verificados estão também os demais pressupostos da responsabilidade civil contratual.
XXV. Desde logo, pacífico é que a culpa do 1.º Réu Recorrente se presume atendendo ao vínculo contratual estabelecido com a Autora Recorrida.
XXVI. Por outro lado, encontram-se devidamente demonstrados os danos sofridos pela Autora Recorrida.
XXVII. Por fim, quanto ao nexo de causalidade, no caso concreto da responsabilidade civil médica e face às dificuldades de prova que lhe são inerentes, a melhor solução é aquela que tem vindo a ser defendida por parte da doutrina e da jurisprudência, designadamente, entre nós, pela Prof. Dra. Mafalda Miranda Barbosa, de acordo com a qual não se deverá falar, em rigor, de causalidade, mas sim de um nexo de imputação objectiva.
XXVIII. De acordo com este entendimento, existem duas causalidades, a primeira fundamentadora da responsabilidade e a segunda preenchedora da responsabilidade.
XXIX. Assim, entre o comportamento do médico e o dano temos a lesão (causalidade fundamentadora da responsabilidade), sendo necessário, depois, ligar a lesão aos danos subsequentes (causalidade preenchedora da responsabilidade).
XXX. No caso, conforme ficou demonstrado, a lesão sofrida pela Autora Recorrida é imputável ao comportamento do 1.º Réu Recorrente, motivo pelo qual este é responsável por todos os danos sofridos pela Autora Recorrida.
XXXI. Sem prescindir, de acordo com a teoria da causalidade adequada existe nexo de causalidade quando desde que em abstrato tal facto seja causa adequada do dano.
XXXII. É lícito aos nossos tribunais, no âmbito da responsabilidade civil, socorrer-se de presunções judiciais na aferição do nexo de causalidade.
XXXIII. A subsistência do nexo de causalidade entre o evento lesivo e a conduta, activa ou omissiva, do médico pode ser afirmada não só quando este seja uma consequência absolutamente certa daquela, mas também quando a causa permanece incerta e, na ausência de provas plenamente favoráveis ao próprio médico sobre a execução adequada e diligente da intervenção, seja altamente provável que um comportamento distinto do médico tivesse orientado positivamente o resultado da intervenção.
XXXIV. A causalidade não pressupõe a exclusividade da causa.
XXXV. É, normalmente, um juízo de probabilidade, mas de probabilidade elevada a grau tão elevado, que é quanto basta para as exigências razoáveis da segurança social.
XXXVI. A existência de uma causa alternativa que, por si mesma, tenha potencial para causar o dano será considerada causa do dano até ao limite da probabilidade de o ter causado.
XXXVII. Ora, no caso concreto, resultou demonstrado ser normal e adequado que os danos sofridos pela Autora Recorrida tivessem sido provocados pelo gesto/erro médico.
XXXVIII. Sendo certo que demonstrado ficou também que em causa está uma cirurgia de risco muito reduzido.
XXXIX. E ainda que a probabilidade de se verificar um agravamento do défice neurológico se situa abaixo de 1%.
XL. O que significa que é de concluir pela elevadíssima probabilidade de os danos terem decorrido efectivamente do gesto/erro médico.
XLI. E, consequentemente, pela verificação do nexo causal.
XLII. Sendo certo também que ainda que se considere ser possível estar em causa uma lesão isquémica, dada a sua muito reduzida probabilidade, esta nunca seria susceptível de determinar a exclusão completa de responsabilidade do 1.º Réu Recorrente pelos danos.
XLIII. No que diz respeito ao nexo de causalidade no âmbito do consentimento informado, dir-se-á que o médico responde, em princípio, por todas as consequências da intervenção, devendo compensar os danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes da intervenção arbitrária.
XLIV. Assim, bem esteve o Tribunal recorrido ao proferir uma decisão condenatória dos aqui Recorrentes, por se encontrarem preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil contratual.
XLV. Em virtude de tudo quanto ficou exposto, entende a Autora Recorrida que deverá ser julgado totalmente improcedente o presente recurso de revista, assim se fazendo, como sempre, inteira
Justiça!
Termos em que, e nos mais de Direito, virtude de tudo quanto ficou
exposto, entende a Autora Recorrida que o recurso a que ora se
responde deverá ser julgado totalmente improcedente, mantendo-
se a douta decisão recorrida, fazendo-se assim, como sempre,
inteira e sã Justiça!»
14. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
Recurso do 1.º réu, médico:
1. Saber se o Tribunal da Relação fundamentou o facto provado n.º 55 e se usou regularmente os seus poderes de modificação da matéria de facto, conforme determinou o Supremo Tribunal de Justiça;
2. Repristinação do facto provado n.º 55 com a configuração que tinha na sentença do tribunal de 1.ª instância;
3. Pressupostos da responsabilidade civil médica por violação de deveres de informação.
Recurso da Seguradora, Ageas, Portugal:
1. Mau uso pelo tribunal recorrido dos seus poderes modificativos da matéria de facto
2. Pressupostos da responsabilidade civil médica por violação do dever de informação
3. Montantes indemnizatórios
Ampliação do objeto do recurso (Autora):
1. Erro médico na realização da cirurgia
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
A – Os factos
Os factos provados e não provados, após o exercício pela Relação do seu poder modificativo, são os seguintes:
1.º
Na primeira quinzena de novembro de 2012, após ter sentido dor na omoplata direita, a Autora consultou o 1.º R., médico ... da cidade ..., no Consultório sito na Avenida ....
2.º
A Autora apresentava um quadro de dor irradiada ao longo do membro superior direito com cerca de sete semanas de evolução.
3.º
O quadro de dor tinha-se demonstrado resistente aos diversos tratamentos conservadores efetuados, nomeadamente, fisioterapia e prescrição medicamentosa, e interferia com a qualidade de vida da Autora.
4.º
Realizado exame neurológico, era evidente um défice motor do trícipede sem défice sensitivo.
5.º
A RMN demonstrou uma hérnia discal C6-C7 responsável pela dor e outra hérnia C5-C6.
6.º
Neste contexto de dor com boa correlação clínico-imagiológica, o 1.º R. indicou à Autora o tratamento cirúrgico para a cura.
7.º
Na consulta médica que antecedeu a cirurgia, que teve lugar no dia ... de novembro de 2012, a Autora perguntou ao 1.º R. que tempo levaria a recuperação da cirurgia.
8.º
Ao que o 1.º R. respondeu que seriam 15 dias e que após esses 15 dias poderia retomar o trabalho de escritório, uma hora de manhã e outra de tarde, e que ao fim de um mês, teria praticamente liberdade para trabalhar a tempo inteiro.
9.º
No dia 19 de novembro de 2012, a Autora foi internada no Hospital CUF ... e sujeita à intervenção cirúrgica proposta pelo 1.º Réu.
10.º
Os procedimentos cirúrgicos consistiram em: discectomia C6-C7, extirpação de hérnia discal C6-C7, colocação de cage cervical C6-C7, discectomia C5-C6, extirpação de hérnia discal C5-C6 e colocação de cage cervical C5-C6.
11.º
A cirurgia propriamente dita decorreu sem qualquer intercorrência aparente.
12.º
No período pós-operatório precoce, segundo lhe transmitiu o 1º R., a Autora fez episódio hipotensivo severo (60-20 mm Hg) com algum distress respiratório.
13.º
Quando acordou da anestesia, a Autora apenas disse ao 1º R. “salve-me”…
14.º
A A. apresentava uma paresia dos membros direitos.
19.º
O 1.º R. havia explicado à Autora da possibilidade de ter sofrido um AVC no período pós-operatório precoce, ou um edema pulmonar.
20.º
Em 25 de janeiro de 2013, a Autora foi submetida a RMN cerebral e cervical.
21.º
O exame cerebral apresentava-se normal, sem alterações de relevo.
22.º
Já o exame cervical permitiu concluir pela existência de um foco de sofrimento medular direito em C5-C6, com evidente nexo de causalidade com os sintomas de paresia dos membros direitos apresentada.
23.º
O 1.º R. admitiu a existência de uma “complicação cirúrgica”.
24.º
Em 17 de abril de 2013 e em 19 de novembro de 2013, a Autora repetiu RX cervical e o RMN cervical de controlo.
25.º
A Autora consultou o Professor Doutor HH, médico especialista em ..., professor catedrático, de competência reconhecida nacional e internacionalmente.
26.º
O Professor Doutor HH elaborou relatório médico em que refere que procedimento cirúrgico realizado era o que estava indicado na situação clínica que a A. apresentava.
27.º
No caso da Autora, verificou-se um quadro motor neurológico e sensorial incapacitante que afetou os membros direitos.
28.º
A responsabilidade civil por atos médicos praticados pelo 1.º R. encontrava-se à data transferida para a 2.ª R. por contrato de seguro com apólice nº ...40, sendo o capital seguro de € 300.000,00 (com franquia de 10% do valor dos danos resultantes de lesões materiais), constando das condições gerais o art. 5.º j) (exclusões relativas) excluindo da garantia do contrato de seguro a responsabilidade civil emergente de perdas indiretas de qualquer natureza, lucros cessantes e paralisações. – Facto modificado pelo Tribunal da Relação
29.º
O sinistro foi participado à 2.ª R. pelo 1.º R.
30.º
A autora apresenta:
Pescoço: cicatriz rosada, linear, de características cirúrgicas, não aderente aos planos profundos, não hipertrófica, sensivelmente horizontal, na transição da região cervical lateral direita com a anterior, com 5 cm de comprimento
31.º
A data da consolidação das lesões situa-se em 28 de abril de 2014. O INML fixou em 526 dias (de 19.11.2012 e 28.4.2014) o período de défice funcional total (correspondente aos períodos de internamento e/ou repouso absoluto, entre outros). – Facto modificado pelo Tribunal da Relação
32.º
Foi fixado à A. um quantum doloris de grau 4 numa escala crescente de 7 graus.
33.º
E um dano estético de grau 1 numa escala crescente de 7 graus.
34.º
Em termos de danos permanentes foram atribuídos à A. 19 pontos de Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, tendo a avaliação sido efetuada com base na Tabela Nacional de Incapacidades, devido às queixas álgicas constantes da coluna cervical, com limitação funcional, e à hemiparesia de grau IV nos membros direitos.
35.º
O estado da Autora é compatível com o exercício da atividade habitual de ..., mas implica esforços suplementares, nomeadamente ao escrever ao computador ou à mão por períodos prolongados.
36.º
Em termos de repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer, foi fixado o grau 1 numa escala crescente de 7 graus.
37.º
A Autora deslocou-se ... quatro vezes ao consultório do 1º R.
38.º
A A. ficou internada no Hospital da CUF durante quatro dias, tendo regressado ao domicílio com indicação para usar cadeira de rodas.
39.º
Em casa necessitou desde logo da ajuda do marido.
40.º
A A. realizou sessões de fisioterapia na “Clínica Ex- Vitam” e na CUF.
41.º
Desde essa data e até ao presente, a Autora realiza sessões de fisioterapia e hidroterapia.
42.º
Desde a cirurgia, a Autora não retomou a atividade laboral.
43.º
A Autora foi acompanhada na especialidade de psiquiatria e diagnosticada com “Quadro Depressivo Grave com sintomatologia Major e dificuldades intelectuais, ambas decorrentes de um pós-operatório neurocirúrgico”. – Facto modificado pelo Tribunal da Relação
44.º
A Autora sente-se irritável, com menos paciência, mais triste.
45.º
Sente dores desde a metade medial do 3.º dedo e na totalidade do 4.º e 5.º dedos da mão direita, irradiando para o cotovelo pelo bordo medial do antebraço e face posterior do braço até à omoplata e coluna, cervical, sentindo agravamento com a humidade e o frio.
46.º
A Autora apresenta:
Tórax: contractura muscular do terço superior da face posterior do tórax, sendo mais acentuada à direita.
47.º
Membro superior direito: ausência de atrofia muscular ao nível bicipital e braquio-radial, força muscular ligeiramente diminuída conseguindo vencer a resistência (grau IV); hiperreflexia dos reflexos bicipital, tricipital e braquiorradial; hipersensibilidade da face posterior do braço e antebraço; parestesias do bordo cubital da mão, do 4.º e 5.º dedos e bordo medial do 3.º dedo.
48.º
Membro inferior direito apresente: ausência de atrofia muscular; força muscular ligeiramente diminuída conseguindo vencer a resistência (grau IV); sinais de Lasegue e Braggard negativos; hiperreflexia ao nível rotuliano em comparação ao contralateral; reflexo aquiliano presente e simétrico; hipersensibilidade táctil da coxa em comparação com a contralateral, quer na face anterior, quer na face posterior; parestesias ao nível da face anterior e posterior da perna.
49.º
A Autora necessitará ainda de tratamentos médicos regulares até ao fim da sua vida, designadamente, tratamento fisiátrico continuado e prescrição de medicação analgésica, assim como de tratamento psiquiátrico até melhoria da sintomatologia.
50.º
A Autora teve necessidade de contratar uma empregada doméstica para limpar a casa, tratar das roupas e cozinhar, necessitando da mesma enquanto padecer da incapacidade descrita. – Facto modificado pelo Tribunal da Relação
51.º
A A. teve que suportar diversas despesas médicas e medicamentosas.
52.º
A Autora recebeu, a título de subsídio de doença, a quantia total de € 11.903,44.
53.º
Antes da cirurgia, a Autora auferia um vencimento mensal de € 575,00 por mês.
54.º
Para realização de consultas médicas, exames e tratamentos, a A. teve que efetuar inúmeras deslocações.
55.º
A A. assinou a declaração de consentimento informado que constitui o doc. 2 junto com a contestação, onde consta:
(Facto modificado pelo Tribunal da Relação)
56.º
Ainda nessa data foi pedida a emissão de termo de responsabilidade geral à Advance Care, a qual veio a ser emitida com data de 19.11.2015.
57.º
Facto eliminado pelo Tribunal da Relação
58.º
A Autora suportou gastos com remuneração da empregada, em valor não concretamente apurado, mas não inferior aos valores constantes dos documentos de fls. 74 a 91, que aqui se dão por reproduzidos.
59.º
Entre 26.3.2013 (data da primeira fatura) e 25.7.2015 (data da última), a Autora pagou à F..., Lda., pela realização de serviços de contabilidade que cabia à Autora realizar no âmbito da sua atividade profissional, os valores constantes das faturas de fls. 92 a 143 que aqui se dão por reproduzidos.
60.º
A Autora suportou despesas com consultas, tratamentos e fisioterapia os valores documentados nos docs. de fls. 144 a 272 e de fls. 339 a 346, que aqui se dão por reproduzidos
61.º
A Autora esteve de baixa médica, desde 19.11.2012 a 22.7.2015.
62.º
Na declaração de IRS relativa a 2013, a Autora declarou rendimento de trabalho dependente de € 3.635, 77 (anexo A), um resultado líquido tributável corresponde a rendimentos de categoria B (profissionais, comerciais e industriais) de € 22.223, 70; na declaração de IRS de 2012, a Autora declarou rendimento de trabalho dependente de € 6.059, 62 (anexo A) e um resultado líquido tributável corresponde a rendimentos de categoria B (profissionais, comerciais e industriais) de € 16.074, 50; no ano de 2013 , a Autora não declarou rendimento de trabalho dependente e declarou um resultado líquido tributável corresponde a rendimentos de categoria B (profissionais, comerciais e industriais) de € 13.591,98.
63.º
A Autora efetuou gastos com deslocações para tratamentos e consultas em valor não concretamente apurado.
64.º
A Autora sente um formigueiro constante desde a metade medial do 3.º dedo à totalidade do 4º e 5º dedos da mão direita irradiando para o cotovelo pelo bordo medial do antebraço.
65.º
A Autora sente contraturas da musculatura cervical e das costas.
66.º
A Autora sente “espasmos” musculares na perna e no 4.º e 5.º dedo da mão direita, aliviando ao esticar.
67.º
A Autora tem dificuldade em sentir a temperatura com a mão direita, nomeadamente, a água quente.
68.º
A Autora toma diariamente medicação (Lyrica 200 três vezes por dia) e Clonix, quando sente dores mais intensas.
69.º
A lesão traumática sequelar da medula, causadora daquele quadro neurológico, é um risco possível, mesmo que remoto, da cirurgia.
70.º
Tal lesão pode resultar de episódio hipotensivo com distress respiratório decorrido depois da cirurgia.
71.º
O risco de ocorrência de lesões medulares é de 0,2-3,3%.
72.º
A Autora é mãe de dois filhos, nascidos a 15.8.2006 e 1.9.2011 – Facto aditado pelo Tribunal da Relação
73.º
Do procedimento levado a efeito [discectomia C6-C7, extirpação de hérnia discal C6-C7, colocação de cage cervical C6-C7, discectomia C5-C6, extirpação de hérnia discal C5-C6 e colocação de cage cervical C5-C6] poderia resultar paresia dos membros direitos e foco de sofrimento medular direito em C5-C6, quadro motor neurológico e sensorial que determina incapacidade de 19%. A lesão traumática sequelar da medula, causadora do quadro neurológico, é também um risco possível, mesmo que remoto, da cirurgia sofrida pela A., embora isso não possa afirmar-se neste caso. Tal lesão pode resultar de episódio hipotensivo com distress respiratório decorrido depois da cirurgia. Esse tipo de episódio é uma consequência possível, mesmo que remota, deste tipo de cirurgia. – Facto aditado pelo Tribunal da Relação
74.º
O quadro apresentado pela Autora é compatível com as atividades de saltar e correr, subir e descer escadas, caminhar em pisos irregulares ou durante mais de 15 minutos seguidos, conduzir, realizar esforços com o membro superior direito, nomeadamente pegar em pesos superiores a 2 Kg, movimentos de pinça-fina, como vestir-se e calçar-se, lavar loiça (ou outras atividades domésticas), mudar fraldas ou dar banho ao filho, mas as mesmas implicam esforços suplementares. - – Facto aditado pelo Tribunal da Relação
75.º
O quadro de saúde em apreço é suscetível de impedir a Autora de dormir sem dor. – Facto aditado pelo Tribunal da Relação
76.º
A A. manteve os tratamentos de psiquiatria, apresentando ao nível da aptidão cognitiva “dificuldades de concentração e memória recente” (cfr. fls. 1243.º v.). – Facto aditado pelo Tribunal da Relação
77.º
A passou a ser uma pessoa mais ansiosa. – Facto aditado pelo Tribunal da Relação
78.º
A A. nasceu a 10.2.1974 (docs. de fls. 1237). – Facto aditado pelo Tribunal da Relação
Os factos não provados:
1. O Réu durante a cirurgia provocou uma lesão medular na Autora.
2. O risco de lesão medular foi transmitido pelo R. à doente antes da prestação de consentimento por esta à submissão ao procedimento.
3. A A. exercia a sua profissão de técnica de contas com todo o brio, empenho, dedicação, sendo muito bem-sucedida.
- Eliminação dos factos não provados n.ºs 4 a 7 da sentença;
- Facto n.º 57 provado na sentença e dado como não provado pelo Tribunal da Relação (A Autora era uma pessoa saudável antes da cirurgia)
B) – O Direito
1. Entende o recorrente, médico que realizou a cirurgia em causa nos autos, bem como a seguradora Ageas, que o acórdão recorrido não cumpriu a incumbência de fundamentar o facto provado n.º 55 como estabeleceu o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19-12-2023, que ordenou o reenvio do processo ao Tribunal da Relação para o efeito, aqui incluindo o dever de proceder a uma apreciação crítica da prova testemunhal e do depoimento de parte da autora e do réu acerca do consentimento informado.
Afirmam, ainda, os réus que, em consequência, o Tribunal da Relação fez mau uso dos seus poderes de modificação da matéria de facto, incumprindo os deveres previstos no artigo 662.º, n.º 1, do CPC.
2. Na sentença o facto n.º 55 era do seguinte teor:
«A Autora, uma vez recebida a informação, assinou declaração de consentimento informado».
O Tribunal da Relação no acórdão recorrido modifica este facto, que passa a ter o seguinte conteúdo:
55 – A Autora assinou a declaração de consentimento informado que constitui doc. 2 junto com a contestação, onde consta:
«(...) Foram-me explicadas as implicações, os riscos e as consequências (mais frequentes e previsíveis) destes procedimentos, bem como as alternativas a eles existentes.
Estando perfeitamente esclarecido declaro que aceito, de plena e livre vontade, que o referido médico e a equipa da Unidade Hospital CUF procedam à realização do referido procedimento, bem como qualquer outra alternativa que, no meu interesse e segurança, possa vir a ser necessário adoptar, no decurso ou como consequência dos procedimentos referidos»
Relativamente à referência que a sentença fazia no facto n.º 55 ao recebimento prévio da informação pela autora e que a Relação eliminou, esclareceu agora o tribunal recorrido que esta expressão tem natureza conclusiva, e, consistindo no cerne da questão de direito objeto do processo, não pode constar da matéria de facto:
«Explicita-se ter-se retirado do ponto 55 o que nele constava sobre “depois de prestada a informação” por nos parecer tratar-se de mera conclusão e não de facto.
O que importava ver provado era o teor da informação, qual a informação concreta que foi prestada. Afirmar-se, sem concretizar, que foi prestada a informação é redundante e conclusivo e não pode servir para integrar o elenco dos factos provados, sobretudo quando no ponto 2 não provado se consignou não estar demonstrado ter o R. transmitido à doente o risco de lesão medular antes da prestação do consentimento por parte desta».
Quanto à apreciação dos meios de prova – os depoimentos de parte da autora e do réu, bem como outros testemunhos prestados em julgamento – o acórdão recorrido esclarece a relevância ou irrelevância que lhes atribuiu e os motivos que contribuíram para a sua convicção acerca do sentido da modificação do facto provado n.º 55, descrevendo o raciocínio probatório conducente à decisão de facto de forma que não merece censura, conforme decorre do excerto que se transcreve a propósito do depoimento do réu-médico:
«Já quanto ao respetivo depoimento, parece-nos óbvio não ter o mesmo (nem sequer o da A., sendo certo serem estas duas partes as únicas presentes na consulta) ido além teor do que consta do doc. 2 junto com a contestação.
Na verdade, o R. disse que o défice motor-sensitivo dos membros (nomeadamente a paresia dos membros) é caraterístico de uma lesão medular a qual pode resultar das complicações ocorridas (complicação hipotensiva), complicações essas de ocorrência superior in casu porquanto a A. tinha um peso de 105 kgs, com um índice de massa corporal de 41.
Questionado, disse que a lesão traumática em causa está descrita medicamente como um risco teórico (refere mesmo que o Spine Tango, registo europeu, tem esse risco descrito em todo o lado).
Perguntado sobre o que foi transmitido à A. em termos de risco, respondeu não se lembrar do que disse exatamente nesta situação, há dez anos, mas sabe o que diz genericamente nestas situações: “quando eu comparo com a viagem P...-L..., quer dizer que há complicações, mas são raras”, acrescentou ter-lhe dito que “fazia estas cirurgias todas as semanas”. Disse também que a A. estava ciente de todos os riscos “como todos os doentes estão quando vão ao médico e é-lhes proposta uma cirurgia”, isso é “conhecimento comum” e a A. sabia-o “porque a A. já tinha falado com outro colega” (embora não referisse que informação foi prestada por tal colega ..., disse que “nenhum médico propõe uma cirurgia a um doente que não lhe comunique os riscos”). Mais referiu que, tanto a A. sabia que “assinou o consentimento informado na minha frente e lá estava tudo escrito” e que “uma pessoa evoluída como esta senhora, não assina uma coisa de ânimo leve”.
A A. disse apenas que o R. lhe disse tratar-se de um procedimento simples, que fazia vários por semana, não tendo aludido a riscos específicos, mesmo que reduzidos. Questionando o médico quanto aos riscos, a resposta que obteve foi sobre o número elevado de cirurgias que fazia e que ao fim de um mês estaria apta para o trabalho.
Do exposto resulta não ter o R. explicitado, nem em contestação, nem em depoimento prestado em audiência, qual a informação prestada à A., apenas se quedando pelas expressões genéricas que a A. também referiu (riscos de uma viagem e vasta experiência nestes procedimentos cirúrgicos).
O que resulta inequívoco é – como resulta não provado em 2 – não estar demonstrado especificamente ter-lhe transmitido o risco de lesão medular e as sequelas associadas a esta, sendo este o risco que está em causa nos autos.
Sendo assim, no ponto 55, não pode dar-se como provado “uma vez recebida a informação”, não só porque a referência genérica a informação - quando está em causa o dever de prestar uma informação específica - é, em si, um juízo conclusivo que não pode constar da matéria de facto provada qua tale, como não resulta ainda dos depoimentos de A. e R. – única prova sobre estas circunstâncias - ter-lhe este explicitado mais do que consta do doc. assinado por aquela e transcrito integralmente no mesmo ponto 55.»
Ficam, pois, esclarecidas as razões pelas quais o Tribunal da Relação modificou o ponto 55 da matéria de facto, divergindo da sentença do tribunal de 1.ª instância.
3. Impugna o recorrente o facto provado n.º 55 do acórdão recorrido e peticiona a repristinação desse facto com a configuração que tinha no tribunal de 1.ª instância, negando a natureza conclusiva da expressão da sentença - eliminada pelo acórdão recorrido – «uma vez recebida a informação».
Argumenta que nesse sentido se orientam, quer o depoimento da autora, quer o do réu, e que a natureza alegadamente conclusiva da expressão não permite a sua eliminação.
Tem-se entendido na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça e na doutrina processualista que este mais alto tribunal tem competência para eliminar expressões conclusivas da matéria de facto, bem como para averiguar se a Relação não cometeu erro de direito ou de facto ao proceder a essa eliminação (cfr. por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 09-09-2024, proc. n.º 5146/10.4TBCSC.L1.S1), onde se exarou o seguinte:
«(…) a tradição do nosso pensamento jurídico, no seguimento de Alberto dos Reis, considera que a actividade do juiz se circunscreve ao apuramento dos factos materiais, devendo evitar que no questionário entrem noções, fórmulas, categorias ou conceitos jurídicos, inserindo, apenas, nos quesitos e na matéria de facto assente, factos materiais e concretos[7]. Continua o autor, afirmando que «tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória»[8].
Se na resposta a determinado quesito houver matéria de facto e matéria de direito, deve aproveitar-se a decisão na parte relativa à primeira e considerar-se não escrita na parte relativa à segunda.
Tem-se entendido, na jurisprudência e na doutrina, que as respostas do julgador de facto sobre matéria qualificada como de direito consideram-se não escritas e que se equiparam às conclusões de direito, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados[9].
Para Teixeira de Sousa, «A selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica (cfr. STJ – 13/12/1983, BMJ 332, 437)[10].
Abrantes Geraldes defende que “devem ser erradicadas da condensação as alegações com conteúdo técnico-jurídico de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que, porventura, tenham simultaneamente uma significação corrente e da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutem”[11]».
De acordo com esta tese que tem sido adotada pela jurisprudência deste Supremo, devem ser eliminadas da matéria de facto, quer a matéria de direito, quer conclusões de facto ou expressões conclusivas que traduzam juízos de valor e que excedam a resposta de facto, considerando-se não escritas as respostas do julgador de facto sobre matéria de direito.
Ora, no presente caso, estamos perante uma ação de responsabilidade civil médica em que um dos segmentos, aquele que está aqui em causa, diz respeito ao consentimento informado da paciente e ao cumprimento pelo médico dos seus deveres de informação. Neste contexto a expressão “recebeu informação” anterior à subscrição da declaração de consentimento, sem qualquer especificação reportada à situação da vida em causa – por exemplo, o médico referiu que a operação tinha riscos graves para a saúde ou para a vida, por exemplo, paralisia dos membros, ou referiu que não há riscos graves e que se trata de uma operação de rotina – é, com efeito, uma expressão conclusiva e encerra matéria de direito, que constitui o objeto central do processo. Bem andou, portanto, o Tribunal da Relação em eliminar a expressão do ponto 55 dos factos provados.
Relativamente aos depoimentos da autora e do réu, o recorrente pretende que lhes seja atribuída a interpretação que lhes foi dada na sentença, concluindo-se que a autora recebeu toda a informação relevante para prestar um consentimento válido para a cirurgia.
Todavia, estão em causa meios de prova de livre apreciação, cujo conhecimento não está incluído nos poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça, não podendo, pois, este Supremo controlar o acerto ou desacerto da convicção formada pelo Tribunal da Relação, que dispõe de poderes quanto à matéria de facto semelhantes àqueles de que dispõe um tribunal de 1.ª instância. Carece, pois, de sentido, a invocação, pelo autor, das conclusões de facto a que procedeu o tribunal de 1.ª instância, devendo prevalecer as ilações e conclusões tiradas pelo Tribunal da Relação, uma vez que não padecem de qualquer ilogicidade, nem violam regras de experiência.
A evolução da lei processual tem reforçado progressivamente os poderes da Relação com o objetivo de permitir uma efetiva reponderação do julgamento da matéria de facto, no sentido de assegurar o 2.º grau de jurisdição nessa área. Pretendeu-se, com as sucessivas alterações ao Código de Processo Civil, que a Relação, uma vez confrontada com a impugnação de determinados pontos de facto cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova de livre apreciação do tribunal, proceda à reapreciação desses meios de prova, introduzindo na decisão da matéria de facto as alterações que resultarem da convicção formada em conjugação com outros elementos que estejam acessíveis.
A jurisprudência do Supremo (cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-02-2024, proc. n.º 7997/20.2T8SNT.L1.S2) tem destacado o papel do Tribunal da Relação como tribunal de substituição, que está perante a prova na mesma posição do tribunal de 1.ª instância, devendo formar a sua convicção própria e autónoma e justificá-la com a análise crítica das provas, dentro do âmbito definido pelo recurso interposto sobre a matéria de facto.
De acordo com esta conceção, o Tribunal da Relação não está limitado pelo princípio da imediação, podendo revogar a decisão de facto do tribunal de 1.ª instância e substituí-la por outra que esteja de acordo com a sua convicção, desde que se baseie na análise crítica da prova, o que efetivamente fez no 2.º acórdão agora recorrido.
4. Tendo o Tribunal da Relação fundamentado a formação da sua convicção quanto ao facto n.º 55 e tendo essa convicção assentado em regras de experiência que não padecem de ilogicidade, está vedado ao Supremo, nos termos do n.º 4 do artigo 662.º do CPC, proceder a um reexame da forma como a Relação apreciou os meios de prova de livre apreciação, pelo que nada há a censurar ao acórdão recorrido, não sendo possível proceder a qualquer alteração do facto provado n.º 55.
Em conclusão, o acórdão recorrido não fez mau uso dos seus poderes de modificação da matéria de facto e não violou o artigo 662.º, nem o artigo 607.º, ambos do CPC, tendo procedido a uma análise crítica da prova e a uma fundamentação adequada, lógica e completa da modificação da matéria de facto, cumprindo assim o que foi determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Improcedem, pois, as conclusões I) a XII) e XVI) a XVIII) do recurso de revista do réu, Dr. BB, bem como as conclusões n.ºs 1 a 9 do recurso de revista da seguradora Ageas.
5. Relativamente ao objeto da revista dos réus, o acórdão recorrido, revogando a sentença do tribunal de 1.ª instância, entendeu que, cabendo a prova da transmissão das informações adequadas ao prestador dos cuidados de saúde, caso não fique demonstrado nenhum facto no tocante à prestação da informação relevante, nem à existência de consentimento informado não pode considerar-se ter este existido. Considerou, ainda, que o documento escrito assinado pela autora, segundo o qual “foram-me explicadas as implicações, os riscos e as consequências (mais frequentes e previsíveis) destes procedimentos, bem como as alternativas a eles existentes”, apenas demonstra a informação relativamente aos riscos previsíveis e frequentes, mas não demonstra, in casu, que o médico tenha informado a paciente dos riscos graves e sérios, ainda que raros, tal como as lesões medulares e suas consequências.
6. O recorrente médico, tal como a seguradora Ageas, entendem que não estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil, centrando a sua argumentação na ilicitude e no nexo de causalidade entre o facto e o dano, concluindo que padece de ilegalidade a decisão de condenação do 1.º Réu ao pagamento de uma indemnização à autora.
Vejamos.
Argumenta o réu, BB, em síntese, que a Declaração de Consentimento subscrita pela Autora é válida e eficaz para efeitos de exclusão da ilicitude da intervenção cirúrgica e que transmitiu todas as informações sobre os riscos da intervenção, de acordo com a legislação vigente em 2012 e de acordo com a prática e os usos da profissão.
Acresce que, na sua perspetiva, mesmo no quadro fáctico fixado pela Relação, os factos provados demonstram que a autora, sendo uma pessoa letrada e plenamente capaz, e que teve 9 dias de reflexão após ter assinado a declaração de consentimento, estava consciente dos riscos comuns e prováveis da intervenção e que o risco de lesão medular, que gerou a incapacidade de 19% da autora, sendo um risco imprevisível e remoto não tinha de ser comunicado pelo médico.
Invoca ainda que não se verifica qualquer nexo de causalidade entre a cirurgia e o dano da incapacidade da autora, e que a posição do acórdão recorrido aproxima a responsabilidade civil médica de um caso de responsabilidade civil objetiva por atividade perigosa, o que é inaceitável.
No mesmo sentido, a seguradora entende não ter havido da parte do médico qualquer violação do consentimento informado, sustentando que foram explicados à autora pelo médico o diagnóstico clínico, as implicações e todos os riscos da intervenção, bem como as terapêuticas alternativas. Invoca ainda que quanto maior for a necessidade terapêutica da cirurgia, menos intenso é o dever de informação, e que o risco de lesão medular, mesmo que não tivesse sido comunicado, não seria, de acordo com a doutrina, um risco significativo, sendo suficiente a transmissão de uma informação simples, aproximativa e leal.
Sustenta ainda a seguradora, suportada em argumentos semelhantes aos do 1.º réu que não se verifica nexo de causalidade entre a cirurgia e o dano, aditando que a falta desse nexo decorre do facto provado n.º 73, cuja reapreciação pede no recurso de revista.
Por último, peticiona a seguradora, para a hipótese de proceder o pedido da autora de responsabilização do médico, por violação do dever de informação, que o montante da compensação por danos não patrimoniais seja reduzido para, pelo menos, 20.000,00 euros.
7. Ilicitude e culpa
No presente caso, estamos perante a questão da responsabilidade médica por violação do dever de informação a cargo do médico. Trata-se, pois, de saber se o médico informou ou não a paciente dos riscos associados à intervenção cirúrgica, in casu, uma intervenção na coluna vertebral da qual decorreu uma lesão medular geradora de uma taxa de incapacidade de 19%, e se o seu dever de informação abrange riscos graves, ainda que raros, ou se se basta com a comunicação dos riscos frequentes e previsíveis.
O acórdão recorrido, no essencial, fundamenta a sua decisão quanto ao consentimento informado numa combinação de duas orientações doutrinais e jurisprudenciais, que se traduzem: i) nas regras do ónus da prova quanto ao consentimento informado na responsabilidade médica, que exigem ao médico a demonstração de ter cumprido o dever de informação sobre os riscos da intervenção; ii) na delimitação do círculo ou âmbito dos riscos abrangidos pelo dever de informação, alargando a extensão do dever de informar, numa terapia curativa, aos riscos graves, ainda que remotos ou de verificação rara, in casu, o risco de lesão medular que provocou a incapacidade da autora.
Vejamos, então, se o acórdão recorrido aplicou a boa doutrina, em termos legais e jurisprudenciais, e se o grau de exigência relativamente ao âmbito do dever de informação está ajustado aos factos do caso concreto.
8. Em matéria de responsabilidade médica, apesar da sobreposição dos requisitos da responsabilidade contratual e extracontratual, aplica-se, em regra, o regime da responsabilidade contratual por ser mais favorável ao lesado e mais conforme ao princípio geral da autonomia privada (cfr. Almeida Costa, Direitos das Obrigações, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 551-552).
A jurisprudência tem-se orientado no mesmo sentido (cfr., por todos o Acórdão Supremo Tribunal, de 22-09-2011, proferido no processo n.º 674/2001.PL.S1, onde se afirma que “(...) estando em causa direitos absolutos, como de integridade básica, põe-se a questão de saber se não concorrem na negligência médica a responsabilidade contratual e a extracontratual. (…) [e]xiste, por isso, um concurso aparente de normas, que deve ser resolvido pela prevalência da responsabilidade contratual, por ser a mais adequada para a defesa dos interesses do lesado”.)
9. Na relação contratual entre médico e paciente, a par de deveres de prestação com vista a atingir um determinado resultado, coexistem outros deveres de conduta articulados entre si de forma orgânica e igualmente orientados para o mesmo objetivo. As obrigações decorrentes da prestação de serviços médicos caraterizam-se pela designada “relação obrigacional complexa” ou “relação obrigacional em sentido amplo”, em que coabitam deveres laterais, alguns dos quais persistem mesmo após a extinção da relação contratual e que, mesmo que não incluídos no clausulado do contrato ou em norma legal expressa, encontram no princípio geral da boa fé a sua razão de ser. Este princípio impõe, no caso do contrato de prestação de serviços médicos, que o médico, de forma simples e facilmente percetível, informe o paciente da situação clínica deste, dos tratamentos e terapêuticas alternativas adequados à referida situação e dos riscos que os mesmos comportam.
Nos termos do n.º 1 do artigo 44.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, na versão vigente à data da prática dos factos (Regulamento n.º 14/2009, de 13 de janeiro), o doente tem o direito a receber e o médico o dever de prestar o esclarecimento sobre o diagnóstico, a terapêutica e o prognóstico da sua doença. O n.º 2 do citado preceito impõe que o esclarecimento seja prestado previamente e incida sobre os aspetos relevantes de atos e práticas, dos seus objetivos e consequências funcionais, permitindo que o doente possa consentir em consciência. O n.º 3 afirma que «O esclarecimento deve ser prestado pelo médico com palavras adequadas, em termos compreensíveis, adaptados a cada doente, realçando o que tem importância ou o que, sendo menos importante, preocupa o doente», devendo o médico ter em conta o estado emocional do doente, a sua capacidade de compreensão e o seu nível cultural (n.º 4 do artigo 44.º). Por último o n.º 5 do citado preceito dispõe que «O esclarecimento deve ser feito, sempre que possível, em função dos dados probabilísticos e dando ao doente as informações necessárias para que possa ter uma visão clara da situação clínica e optar com decisão consciente».
O consentimento dos pacientes para intervenções cirúrgicas é um dos requisitos da licitude da atividade médica e tem de ser livre e esclarecido para gozar de eficácia: se o consentimento não existe ou é ineficaz, a atuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada.
Nos termos do artigo 5.º da Convenção do Conselho da Europa sobre os Direitos Humanos e a Biomedicina, ratificada pela Resolução da Assembleia da República n.º 1/2001, «Qualquer intervenção no domínio da saúde só pode ser efectuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento livre e esclarecido. Esta pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao objectivo e à natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos».
Esta mesma solução resultaria já das regras gerais de direito, por aplicação conjunta do artigo 70.º do Código Civil, que consagra um princípio de tutela geral da personalidade, abrangendo direitos constitucionalmente protegidos como o direito à autodeterminação, à integridade pessoal e à liberdade individual (artigos 25.º e 26.º da CRP), e dos artigos 340.º e 81.º, também do Código Civil, que regulam a prestação de consentimento do lesado e a possibilidade de limitação voluntária aos direitos de personalidade, bem como do artigo 157.º do Código Penal, que, sob a epígrafe, Dever de esclarecimento, reafirma que «(…)o consentimento só é eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou do tratamento, salvo se isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam suscetíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica».
Tem-se entendido na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e na doutrina que a responsabilidade médica tem uma dupla sede: o erro médico ou a violação do dever de informação, e que este último fundamento de responsabilidade pode verificar-se mesmo que não tenha existido má prática médica (cfr. Acórdãos de 02-06-2015, proc. n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1; 24-10-2019, proc. n.º 3192/14.8TBBRG.G1.S2; 02-12-2020, proc. n.º359/10.1TVLSB.L1.S1; na doutrina, por todos, Helena Pereira de Melo, O consentimento esclarecido na prestação de cuidados de saúde no direito português, Almedina, Coimbra, 2020, em especial, pp. 50 a 55).
O médico está, pois, obrigado, ainda que não tenha cometido qualquer erro médico ou violação das leges artis, a proceder à reparação dos danos causados pelo incumprimento ou cumprimento defeituoso, nos termos dos artigos 798.º e 562.º e seguintes do Código Civil, quando não cumpre, ou cumpre de forma deficiente, o dever de informação à pessoa doente, bem como o dever de obter o consentimento prévio para procedimentos médicos que envolvam riscos.
A obrigação de indemnizar existe mesmo que a operação não autorizada não cause danos à saúde. Nas palavras de Orlando Carvalho (in Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição (coord. Liberal Fernandes/M. Raquel Guimarães/ Maria Regina Redinha), Gestlegal, Coimbra, 2021, p. 216, «o dano não é aqui a alteração para pior da situação físico-psíquica: é a intervenção não consentida na zona de reserva que o corpo é para a pessoa, é a lesão da incolumidade (noli me tangere) do corpo alheio. Juiz do bem ou do mal para o seu corpo é a própria pessoa – não é outra mesmo que qualificada e bem intencionada».
A lei não exige a ocorrência de danos para a atribuição de uma indemnização em sede de direito civil, pois que o objetivo do consentimento informado não é evitar lesões à saúde ou ao corpo do paciente, mas salvaguardar a sua autodeterminação e o direito à disposição do seu corpo (cfr. Vera Lúcia Raposo, Do Ato Médico ao Problema Jurídico, Almedina, Coimbra, 2013, p. 214). A violação destes direitos traduz, em si mesma, um dano não patrimonial, independentemente da verificação de outros danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes da intervenção médica não consentida ou consentida formalmente, mas sem informação prévia de todos os riscos.
A doutrina portuguesa dominante entende que o consentimento, enquanto causa de exclusão da ilicitude, constitui um facto impeditivo do direito do paciente cuja prova compete ao médico, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil (Cfr. Figueiredo Dias/Sinde Monteiro, Responsabilidade médica em Portugal, BMJ, n.º 332, 1984, p. 39; Capelo de Sousa, Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 221, nota 446.). Baseia-se esta doutrina no princípio do equilíbrio processual, na impossibilidade de prova do facto negativo para o lesado, e na facilidade relativa da prova para o médico, como perito, em comparação com o paciente, um leigo. Com efeito, para o médico, dado ter um consultório ou trabalhar numa instituição de saúde, é mais fácil organizar os serviços de forma a reunir os documentos necessários para demonstrar que obteve o consentimento informado, por exemplo, dispensar a informação por escrito ao paciente e dispor de um registo das informações clínica e de um bom preenchimento do dossier clínico (cfr. André Gonçalo Dias Pereira, «Responsabilidade médica e consentimento informado, Ónus da prova e nexo de causalidade», pp. 21-22, disponível para consulta, in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/10577/1/Responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf). No mesmo sentido, se tem orientado a jurisprudência, por entender esta solução mais equitativa, dada a maior facilidade da posição do médico quanto à prova (cf. Acórdãos deste Supremo Tribunal, de 17-12-2002, processo n.º 02A4057, de 02-06-2015, proc. n.º 1263/06.3TVPRT.P1.S1, de 16-06-2015, processo n.º 308/09.0TBCBR.C1.S1; de 22-03-2018, processo n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1). e de 02-12-2020, proc. n.º 359/10.1TVLSB.L1.S1).
Sendo assim, se o médico não conseguir provar que cumpriu os deveres de esclarecimento e que agiu ao abrigo de um consentimento justificante, recai sobre ele todo o risco da responsabilidade da intervenção médica, os fracassos da intervenção e os efeitos secundários não controláveis e outros danos resultantes da intervenção (cfr. André Gonçalo Dias Pereira, «Responsabilidade médica e consentimento informado. Ónus da prova», ob. cit., p. 21).
10. No caso vertente, a paciente, na sequência de o médico ter recomendado o tratamento cirúrgico para a cura das dores, no membro superior direito, que não conseguiu debelar com medicação e fisioterapia (factos provado n.º 2 a 6), sujeitou-se a uma intervenção com o objetivo de extirpação de duas hérnias discais e colocação de cage cervical (facto provado n.º 10), após ter assinado um documento escrito em que declarou que o médico lhe explicou o atual diagnóstico clínico e os procedimentos ou diagnósticos terapêuticos indicados, tendo nele ficado exarado «Foram-me explicadas as implicações, os riscos e as consequências (mais frequentes e previsíveis) destes procedimentos, bem como as alternativas a eles existentes».
Resultou provado, nos termos deste documento, que o médico informou a autora, sua paciente, dos riscos frequentes e previsíveis da intervenção cirúrgica (facto provado n.º 55).
Todavia, a declaração é genérica, não especifica nem identifica quais são esses riscos e em que consistem, e não se provou quais os riscos comunicados verbalmente em conversas mantidas entre a autora e o médico.
Neste Supremo Tribunal já se entendeu que a subscrição de um documento escrito não é suficiente para se concluir que houve consentimento informado. É o caso do Acórdão datado 22 de março de 2018 (Processo nº 7053/12.7TBVNG.P1.S1), «A circunstância de se ter provado que a autora, paciente, antes da realização do exame feito pelo réu médico assinou um impresso do Hospital com o título «Consentimento Informado», contendo uma declaração em que afirma estar “perfeitamente informada e consciente dos riscos, complicações ou sequelas que possam surgir”, e ainda que conhecia os riscos inerentes à realização de um exame de colonoscopia, incluindo a possibilidade de perfuração, não é suficiente para preencher as exigências do consentimento devidamente informado uma vez que, no caso, sendo os riscos de perfuração superiores ao normal devido à idade e aos antecedentes clínicos da autora, era imperativo que o réu fizesse prova de que a autora fora informada de tais riscos acrescidos».
No caso sub judice, por maioria de razão, a declaração transcrita no facto provado n.º 55 não é suficiente para se considerar ter sido prestado um consentimento informado, que abrangesse o risco de lesão medular (não mencionado no documento, nem incluído nos riscos frequentes e previsíveis), que veio a verificar-se e que provocou à autora uma taxa de incapacidade de 19% (facto provado n.º 34).
A lesão traumática medular, nos termos do facto provado n.º 69, é um risco possível, mesmo que remoto, da cirurgia. Este risco é avaliado pela investigação científica numa probabilidade de 0,2 a 3,3% (facto provado n.º 71).
Especifica o facto provado n.º 73 que «A lesão traumática sequelar da medula, causadora do quadro neurológico, é também um risco possível, mesmo que remoto, da cirurgia sofrida pela A., embora isso não possa afirmar-se neste caso. Tal lesão pode resultar de episódio hipotensivo com distress respiratório decorrido depois da cirurgia. Esse tipo de episódio é uma consequência possível, mesmo que remota, deste tipo de cirurgia».
Nestes termos, o risco de lesão medular pode ocorrer, durante a execução da cirurgia, ou pode resultar de episódio hipotensivo posterior à cirurgia, sendo, ainda assim, uma consequência possível, ainda que remota, deste tipo de cirurgia. A matéria de facto provada indica que estamos perante a segunda hipótese, uma vez que a cirurgia ocorreu aparentemente sem intercorrências (facto provado n.º 11) e que a lesão medular sofrida pela autora não ocorreu durante a cirurgia, mas fruto de um episódio desencadeado no pós-operatório (facto provado n.º 73).
Todavia, para o efeito de avaliar os riscos da cirurgia, é indiferente que o risco decorra da cirurgia em si ou que decorra de um episódio de distress respiratório posterior à cirurgia, configurado ainda como uma consequência possível dessa cirurgia. Estamos, em qualquer dos casos, no círculo de riscos da intervenção praticada pelo médico.
Na verdade, estamos perante um risco que, embora raro, se deve considerar grave e significativo, desde logo pela potencialidade, verificada no caso concreto, de gerar uma incapacidade permanente na pessoa intervencionada, in casu, uma taxa de 19%, de acordo com avaliação efetuada com base na Tabela Nacional de Incapacidades (facto provado n.º 34).
A proteção da autodeterminação dos pacientes e da sua liberdade de escolha exige que aqueles sejam informados de todos os riscos lesivos da integridade física, corporal e motora, potencialmente geradores de incapacidades, provocados por uma intervenção cirúrgica à coluna ou por episódios posteriores na sequência dessa intervenção, mesmo daqueles riscos que sejam raros ou remotos.
Os pacientes têm o direito de optar por tratamentos conservadores que atenuem as dores, ainda que não curem a doença, ou por intervenções curativas, mas com riscos graves ainda que raros. Esse direito envolve, quer a escolha da possibilidade de risco grave na esperança de ficarem curados, quer a escolha de tratamentos conservadores, que embora não curem e mantenham a pessoa numa qualidade de vida diminuída, não geram riscos incapacitantes para a pessoa.
Esta decisão é pessoalíssima e o juízo do médico não se pode substituir ao da pessoa doente.
A desvalorização, pelo médico, da probabilidade rara de um risco grave, em nome da prevalência da cura e da crença na improbabilidade da sua verificação, não se pode sobrepor ao juízo de cada um dos pacientes, sendo apenas às pessoas portadoras de doença, em função das suas circunstâncias de vida e necessidades, que cabe essa delicada decisão.
11. O sentido da declaração de consentimento, enquanto declaração negocial a interpretar de acordo com os critérios fixados no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, em que o elemento literal tem um peso decisivo para o destinatário, abrange apenas, conforme a sua letra, os riscos frequentes e previsíveis, e mesmo esses não estão especificados.
Como se afirma no acórdão recorrido, este documento é a única prova efetuada quanto à transmissão da informação, e o seu teor é demasiado vago e impreciso, não cumprindo requisitos mínimos de densidade e extensão da informação para que possa considerar-se válido.
Nada se tendo provado acerca do conteúdo das informações verbalmente transmitidas pelo réu à autora, designadamente, segundo o facto não provado n.º 2, não se demonstrou que o risco de lesão medular foi transmitido pelo Réu à doente antes da prestação de consentimento por esta à submissão ao procedimento, e cabendo o ónus da prova do cumprimento desse dever ao médico, as consequências da inobservância desse ónus produzem-se em desfavor do médico.
A obrigatoriedade de informação de riscos graves, mas raros, como é o caso do risco de lesão medular, tem sido controversa e dividido a doutrina e a jurisprudência.
Tem-se entendido que o conteúdo concreto do dever de informação de atos médicos a realizar não é sempre o mesmo, assumindo uma natureza elástica, que depende das circunstâncias de cada caso (cfr. os Acórdão de 09-10-2014, proc.nº 3925/07.9TVPRT.P1.S1 e de 02-11-2017, proc. n.º 23592/11.4T2SNT.L1.S1).
A tutela crescente da dignidade humana e da liberdade tem conduzido a uma evolução jurisprudencial que entende que a não comunicação de riscos graves, ainda que hipotéticos ou de frequência excecionais, merece a tutela do direito (cfr. André Gonçalo Dias Pereira, «Responsabilidade médica e consentimento informado, Ónus da prova e nexo de causalidade», ob. cit., p. 14).
Como acentua o acórdão recorrido:
«No campo dos procedimentos cirúrgicos, o conteúdo da informação deverá ser, naturalmente, mais extenso do que noutro tipo de tratamentos menos invasivos. Sobretudo, como se observa no já citado ac. do STJ, de 2018, relatado por Maria Graça Trigo, quando não se está perante uma cirurgia urgente, mas marcada previamente e, neste caso, existe risco acentuado por força da obesidade da A. (como admitiu o R., em audiência) e não foi sequer alegado e, menos ainda, demonstrado que a A. faria a cirurgia ainda que lhe tivesse sido informado o risco de sofrer das lesões de que padece e que lhe determinam 19% de incapacidade.
Melissa Hanson et al. referem que, neste âmbito, se impõe ao cirurgião informar o paciente acerca da natureza da cirurgia, dos benefícios esperados, dos riscos materiais e efeitos adversos, tratamentos alternativos e consequências da não realização da cirurgia.
Se o procedimento se operar na espinal medula, essa informação deverá ser, ainda, mais detalhada.
No Reino Unido, depois da chamada decisão Montegomery, de 2015, mediante a qual o Supremo britânico colocou fim ao paternalismo médico, impondo que a prestação de informação sobre o risco, em procedimentos cirúrgicos, passasse a ser vista da perspetiva do doente e não do médico, tornou-se claro que para as cirurgias que tivessem por objeto a medula, sendo acompanhadas por riscos neurológicos, a questão do consentimento e da informação adequada era essencial» - destaque nosso
Reconheceu-se, por isso, que a informação a fornecer pelo cirurgião deveria incluir, desde logo, a menção aos tratamentos alternativos, mas também a indicação dos benefícios e dos riscos, não apenas em termos de percentagem, mas “num formato que respeitasse os valores do paciente quanto ao que para o mesmo importava”, subordinando-se a extensão da informação – para o caso específico das cirurgias à espinal medula – aos seguintes aspetos:
1) Os riscos que devem ser transmitidos ao paciente são aqueles que, uma vez por este conhecidos, influenciem a sua decisão de se submeter à cirurgia, o que incluiria os riscos comuns e pouco importantes, como hematoma, mas também os riscos raros e sérios, tal como as lesões medulares.
2) O cirurgião deverá ter em conta o paciente individual: uma mãe solteira pode ter uma visão inteiramente diferente de um polícia reformado.»
No contexto da evolução da jurisprudência francesa surge um conceito de riscos graves, referido no acórdão recorrido, que considera como graves «aqueles riscos de natureza adequada a ter consequências mortais, invalidantes ou mesmo estéticas graves tendo em conta as suas repercussões psicológicas e sociais», independentemente da sua frequência estatística.
A factualidade do caso concreto indica que o risco em causa, apesar de raro, está ligado ao pós-operatório da cirurgia e que não se tratou de uma consequência desencadeada por um problema de saúde anterior. O risco é grave pois teve por consequência lesões corporais, que se repercutem na vida quotidiana da autora, profissional liberal e mãe de dois filhos pequenos, em termos de limitações várias na vida profissional, social e familiar, designadamente paresia dos membros direitos (factos provados n.º 14 e 27), dores frequentes no braço direito e na mão direita enquanto escreve no computador (factos provados n.ºs 22, 45 a 48), uma degradação da saúde global e da sua autonomia, dependência da ajuda de terceira pessoa na realização das tarefas domésticas e pessoais (factos provados n.º 38 e 39) e necessidade de realizar esforços suplementares no exercício da atividade profissional (factos provados n.º 35 e 36), que acabou por não retomar (facto provado n.º 42), conforme decorre da matéria de facto.
Assim, apesar de verificação rara (ocorre de 0,3% a 3% dos casos), o risco de lesão medular devia ter sido comunicado à autora pelo médico, pois o conhecimento de um risco tão gravoso e impactante na vida de uma pessoa é um elemento essencial para que a autora e, em geral, os pacientes colocados na situação desta, disponham de toda a informação necessária para tomar uma decisão pessoal e consciente em relação à sua vida e ao seu corpo.
A circunstância, alegada pelo 1.º réu, de a autora ser uma pessoa culta e que beneficiou de um período de 9 dias de reflexão, em nada altera esta conclusão. O que foi transmitido à autora, de acordo com a matéria de facto provada, para além dos riscos previsíveis e frequentes, foi que a operação em causa era simples e que estaria recuperada ao fim de 15 dias (facto provado n.º 8). A autora, ... de profissão, nada sabia nem tinha obrigação de saber sobre os riscos da intervenção. Dada a confiança depositada pelos pacientes nos seus médicos, a autora, enquanto paciente, também não tinha obrigação de recolher mais informações na literatura da especialidade ou junto de outros médicos.
12. Está, pois, provada a violação do dever de informação, e, em consequência, a ilicitude da conduta do médico, bem como a culpa presumida pela lei (artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil), sendo que não se provou qualquer facto que fosse suscetível de afastar a culpa do réu.
A técnica das presunções de culpa não provoca a transformação da responsabilidade subjetiva num caso de responsabilidade objetiva, por atividade perigosa, como sustenta o réu.
As presunções de culpa na responsabilidade civil são técnicas legislativas destinadas a auxiliar o lesado, onerado com uma tarefa que o legislador considera demasiado difícil, optando, para facilitar a prova, por transferir o ónus da prova para o lesante ou para o devedor, que terão à partida mais conhecimentos para poder provar que não procederam com culpa ou que o dano se teria de qualquer modo produzido por situação de força maior, ónus que, in casu, o réu não logrou cumprir.
13. Em consequência, estão preenchidos, no caso vertente, os requisitos da responsabilidade civil da ilicitude e da violação culposa do dever de informação, improcedendo as conclusões XIX) a XXXVII) da alegação de recurso do 1.º Réu e as conclusões 11 a 34 e 55 da alegação de recurso da 2.ª Ré.
14. Nexo de causalidade
Importa agora averiguar, ainda, se se verifica um nexo de causalidade entre a cirurgia e os danos sofridos pela autora.
Para este efeito, é pertinente verificar se a matéria de facto provada demonstra a existência do nexo de causalidade naturalístico, ou seja, se, na sequência do processamento naturalístico dos factos, estes funcionaram ou não como fator desencadeador ou como condição detonadora do dano (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 22-04-2004, Revista n.º 1040/04 - 2.ª Secção).
Ora, os factos provados n.º 69 e 73 indicam que os danos sofridos pela autora na sua integridade corporal e na sua capacidade laboral são uma consequência da cirurgia, tendo o próprio médico admitido a existência de uma “complicação cirúrgica” (facto provado n.º 23), não sendo relevante se o dano ocorreu durante a cirurgia ou se foi o resultado de um episódio pós-operatório, como parece ter sido o caso.
Está, pois, demonstrado, na matéria de facto, o nexo causal naturalístico entre o facto e o dano.
Estando estes factos desencadeadores do dano fora dos poderes cognitivos do Supremo, cabe agora ao Supremo, enquanto tribunal de revista, avaliar se estes factos se enquadram ou não no conceito normativo de causalidade adequada, nos termos plasmados no artigo 563.º do Código Civil.
Esta norma consagrou a doutrina da causalidade adequada, de acordo com a qual o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada quando, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo (cfr. Acórdão de 26-11-2009, Revista n.º 3178/03.8JVNF.P1.S1).
Por nexo de causalidade, entende-se, de acordo com esta tese, que determinada ação ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que uma pessoa média poderia conhecer, essa ação ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar.
A doutrina tem procedido a construções dogmáticas ou jurídico-práticas destinadas a facilitar a prova do nexo de causalidade, para que este pressuposto da responsabilidade civil não se converta numa prova diabólica ou quase impossível para o lesado:
a) a tese do escopo da norma violada, que tem em conta a finalidade das normas (no presente caso, a tutela informativa do paciente e da sua autodeterminação) - cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, Almedina, Coimbra, 2010, p. 542.
b) a tese das esferas de risco, que propõe a flexibilização, em geral, do nexo de causalidade, por referência a esferas de risco, partindo da pergunta "é possível aquele dano integrar-se no risco gerado por aquele comportamento?", remetendo para um critério de possibilidade – cfr. Ana Mafalda Miranda Barbosa, Responsabilidade Civil Extracontratual. Novas Perspectivas em Matéria de Nexo de Causalidade, Principia, Lisboa, 2014, pp. 111-145.
c) todas as variantes da teoria da causalidade adequada, que baseiam o nexo de causalidade num juízo de probabilidade ou numa formulação negativa.
Ora, da descrição factual feita na matéria de facto provada, decorre claramente que os danos sofridos pela autora se situam no círculo de riscos provocados pela cirurgia, nada mais sendo necessário para que se considere provado o nexo causal no sentido normativo.
A jurisprudência (cfr. por todos, o citado Acórdão do Supremo Tribunal, de 26-11-2009, Revista n.º 3178/03.8JVNF.P1.S1) entende ainda que tal doutrina da causalidade adequada não pressupõe exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o resultado, admitindo ainda a causalidade indireta, de tal sorte que basta que o facto condicionante desencadeie outro que diretamente suscite o dano. A esta luz é irrelevante o argumento da seguradora, segundo o qual a circunstância de se tratar de um evento posterior à cirurgia quebraria o nexo causal entre o facto e o dano, pois o episódio pós-operatório, que provocou a lesão medular, foi ele próprio uma consequência possível da cirurgia.
Assim, a cirurgia atuou como condição do dano e modificou o “círculo de riscos” da sua verificação. Neste sentido, e com aplicação no caso concreto «A causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano no âmbito da aptidão geral ou abstracta desse facto para produzir o dano.» (13-01-2009, Revista n.º 3747/08).
15. Em conclusão, em face desta análise fáctico-jurídica, à luz da doutrina e da jurisprudência, torna-se clara a verificação do nexo causal entre a cirurgia e os danos sofridos pela autora, assim improcedendo as conclusões XXX), XXXIII) a XXXV) da alegação de recurso do 1.º Réu e as conclusões n.º 52 a 56 da alegação de recurso da 2.ª ré.
16. Medida da indemnização
Entende a seguradora que o valor da indemnização por danos não patrimoniais arbitrada pelo tribunal recorrido, 35.000,00 euros, é excessivo, devendo ser reduzido para pelo menos 20.000,00 euros, em homenagem ao princípio da igualdade para casos semelhantes e à segurança jurídica.
Vejamos.
Tendo havido violação do dever de esclarecimento da paciente, com consequências laterais desvantajosas, isto é, com lesão traumática medular geradora de uma taxa de incapacidade de 19% para a autora, acompanhada de dores nos membros direitos e necessidade de medicação para o resto da vida, «(...) os bens jurídicos protegidos são a liberdade e a integridade física e moral, e os danos ressarcíveis tanto são os danos patrimoniais como os danos não patrimoniais» (cfr. Acórdão deste Supremo supra citado, datado de 22-03-2018, proferido na Revista n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1).
Os danos não patrimoniais correspondem àqueles que não são suscetíveis de avaliação pecuniária.
A fixação do montante da compensação decorre das circunstâncias do caso concreto e da ligação à personalidade de cada lesado e à sua mundividência.
A jurisprudência adota, para a determinação do montante da compensação dos danos não patrimoniais, critérios de equidade e de justa medida, que têm em conta a gravidade dos prejuízos, o grau de culpabilidade do agente, e demais circunstâncias do caso, todos decorrentes da lei, nos termos do artigo 496.º, n.ºs 1 e 4, do Código Civil.
A este propósito, entendeu-se no Acórdão deste Supremo, datado de 11-05-2022 (Proc. n.º 33/14.0T8MCN.P1.S1) que «(…) o conceito de dano não patrimonial, porque se reporta ao sofrimento humano – único em cada indivíduo – e não existe um “preço da dor” ou um “preço do sangue”, é um conceito altamente variável e permeável às circunstâncias do caso, em relação ao qual não é possível o estabelecimento de critérios absolutamente uniformes, sem detrimento de um esforço, que os tribunais devem fazer, de não criar disparidades grandes entre os sujeitos sinistrados para casos semelhantes, devendo tratar diferentemente o que é diferente e na medida dessa diferença, como exige o princípio da igualdade».
O conceito geral de danos não patrimoniais subdivide-se em vários parâmetros que auxiliam o juiz na tarefa de determinação do valor da compensação a arbitrar: o dano psíquico e existencial, traduzido nas dores e nas repercussões das limitações físicas na vida familiar e social, o dano laboral, o dano da perda da alegria de viver, o dano da perda de autonomia, o dano da perda dos anos de juventude, o dano estético, o dano sexual.
Os danos não patrimoniais são aqueles que decorrem não só das dores sofridas e das incapacidades verificadas, com repercussão no trabalho, na vida familiar, no lazer e no desporto, como também o dano que resulta da circunstância de ter sido desrespeitada a autodeterminação da paciente e a sua integridade pessoal como sujeito capaz de decidir e de ponderar as alternativas existentes, tomando uma decisão consciente e livre, em função do conhecimento de todos os riscos em causa.
Invocando a seguradora considerações de igualdade e de segurança jurídica para justificar a redução da indemnização, respondemos, pelo contrário, que, em face da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, não se pode afirmar que a quantia de 35.000,00 euros seja excessiva ou viole critérios de bom senso e de prudência.
A autora tinha 38 anos à data dos factos, era mãe de dois filhos pequenos, ficou impossibilitada durante largo período de tempo (526 dias de incapacidade total) de deles cuidar adequadamente por força das complicações cirúrgicas e da perda de força muscular no braço e na perna direitos, teve um quantum doloris de 4/7 e dano estético de 1/7, 19% de défice funcional, com repercussão de 1/7 nas atividades desportivas e de lazer, padeceu de um quadro depressivo major e manifestou dificuldades intelectuais e na realização de tarefas quotidianas, sentindo-se triste e irritável, continuou a sentir dores, tal como sucedia antes da cirurgia (nomeadamente nos dedos, irradiando para o cotovelo, braço, omoplata e coluna). Sofreu também, como vimos, o dano da perda de autodeterminação, na medida em que, não sendo informada da possibilidade de ocorrência de uma lesão medular, viu coartada a sua possibilidade de escolha por um tratamento alternativo, menos invasivo e sem danos.
Neste quadro factual, tendo em conta outros casos anteriores de responsabilidade civil médica ou por acidentes de viação, o que se deteta é que os montantes indemnizatórios, por danos não patrimoniais, normalmente arbitrados pelo Supremo Tribunal de Justiça, tendem a ser semelhantes aos do presente caso. Isso mesmo demonstrou o acórdão recorrido na sua fundamentação, elencando um conjunto de casos em que referia as indemnizações e os graus de incapacidade provocados pela lesão.
Apesar de os factos de cada caso serem únicos e serem de algum modo fictícios os juízos de comparação porque reportados a taxas de incapacidade distintas, a diferentes circunstâncias de vida, idades e épocas, não se pode afirmar que a Relação tenha saído fora dos quadros habituais da jurisprudência na avaliação dos danos não patrimoniais.
Por outro lado, quando se trata de indemnizações decididas de acordo com critérios de equidade, os poderes de controlo deste Supremo são restritos, circunscrevendo-se às decisões que revelem manifesta disparidade de indemnizações para casos semelhantes, que não foram sequer citados pela recorrente nas conclusões de recurso.
Como se afirmou no Acórdão deste Supremo de 14-03-2023 (proc. n.º 09/20.7T8PDL.L1.S1), com pertinência para o presente caso: «A indemnização fixada de acordo com a equidade, nos termos do artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, só é passível de censura se não se contiver dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que o legitima, tendo por referência a evolução da jurisprudência e a observância do princípio da igualdade no tratamento prudencial de situações similares (cfr. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 31-01-2023, proc. n.º 795/20.5T8LRA.C1.S1)».
17. Assim sendo, mantém-se o valor de 35.000 euros, arbitrado pela Relação a título de compensação por danos não patrimoniais, improcedendo as conclusões n.º 49 a 56 da alegação de recurso da ré seguradora.
18. Ampliação do recurso pedida pela autora: a questão do erro médico
Entende a autora que a lesão medular e os danos que sofreu decorreram de um erro médico, fundamentando a sua posição na natureza da obrigação do médico, que entende ser uma obrigação de resultado e como tal geradora de uma inversão do ónus da prova, cabendo ao médico a prova do cumprimento das leges artis.
Alega também que houve dolo ou negligência grave no pós-operatório, na recusa do médico em fazer uma ressonância magnética à coluna cervical da autora, sendo possível que esse exame tivesse determinado a causa das complicações, facto que também deve provocar a inversão do ónus da prova.
18.1. Mas não tem razão.
Conforme a matéria de facto do caso, não se provou que o Réu durante a cirurgia tenha provocado uma lesão medular na Autora (facto não provado n.º 1).
A Relação fundamentou a matéria de facto quanto ao ponto 1. dos factos não provados de forma exaustiva, fazendo uma análise crítica da globalidade da prova documental apresentada pela autora e dos testemunhos proferidos em audiência de julgamento, tendo concluído o seguinte:
«Ora, a dificuldade por parte dos pacientes da prova da ilicitude da atuação médica não pode reconduzir a responsabilidade médica a responsabilidade objetiva, mas é verdade é que os indícios recolhidos, sendo profusos e significativos, poderão concitar aquela demonstração (presunções judiciais).
Neste caso, obteve-se informação pericial prestada pelo Colégio da ..., que considera não se poder afirmar serem decorrência da intervenção do R. as lesões físicas de que padece a A.
À questão colocada no acórdão de maio - tal lesão pode resultar de episódio hipotensivo com distress respiratório decorrido – e às perguntas 1. e 4.4 postas pelo R. (fls. 1184) aquele órgão respondeu afirmativamente (fls. 1193).
Da mesma opinião foi o Instituto Nacional de Medicina Legal que, a fls. 1200, afirmou: “não é possível afirmar, em rigor, que durante a cirurgia foi causada lesão medular traumática à A. ou se esta lesão foi traumática ou isquémica, pois não há registo de intercorrências intraoperatórias, embora seja mais provável tratar-se de uma lesão traumática perante as imagens de IRM-VM e a ausência de lesões isquémicas na IRM-CE”.
Face a estes contributos periciais, poderia o tribunal dar como provado ter o R. procedido de forma negligente?
A resposta parece-nos dever ser negativa.
Em primeiro lugar, as informações escritas prestada pelo Prof. Dr. HH, ainda que pudessem ser consideradas – e não poderão sê-lo, uma vez que este não foi inquirido em audiência e, por via disso, não puderam os RR. efetuar o cross examination – não apontam inequivocamente para a verificação de lesão traumática da medula. Tal como o INML, entende que na ressonância magnética a alteração do sinal medular é sugestiva de lesão traumática sequelar (doc. 10 junto com a pi), acrescentando depois (doc. 11) que “o enquadramento do episódio neste contexto [de erro médico] é certamente delicado”, acrescentando que não pode é a lesão ser considerada uma intercorrência normal da cirurgia (expressão empregue pela companhia de seguros), mas como “algo que não deveria ter acontecido com uma execução tecnicamente perfeita da intervenção em causa. De facto, uma complicação não deve ser considerada “intercorrência normal”.
Esta informação parece-nos insuficiente para dar como provado o erro – a lesão traumática medular causada pelo R. -, porquanto a explicação é exígua e cautelosa, não assumindo de imediato a asserção de erro, preferindo a referência a sugestiva e certamente delicado».
Na responsabilidade civil médica, ressalvadas situações excecionais, aqui não presentes, compete aos lesados o ónus da prova de erro médico, o que a Autora não conseguiu demonstrar. Reconhece-se que é um ónus muito difícil de realizar, mas os factos que a autora invoca para fundamentar a inversão do ónus da prova – a natureza da obrigação do médico como obrigação de resultado e a não realização de uma ressonância magnética após a operação – não permitem fundamentá-la.
Em relação à natureza da obrigação dos médicos no contrato de prestação de serviço médico tem-se entendido que, em regra, nas operações curativas, em que está em causa uma necessidade terapêutica, a obrigação não é de resultado, mas de meios. A obrigação de resultado costuma estar associada às cirurgias estéticas, que não correspondem a uma necessidade terapêutica, e às intervenções simples e de rotina.
No caso vertente, não tendo resultado provado que o médico se tivesse obrigado a um resultado específico, v.g. de proceder a uma cura absoluta e definitiva da doença a tratar, tem de se considerar que está em causa apenas uma obrigação de meios.
18.2. Em relação à não realização da ressonância magnética não é possível ao Supremo tirar a ilação pretendida pela autora quanto à alegada culpa grosseira ou dolo do médico, por insuficiência de factualidade provada para o efeito e por falta de poderes cognitivos do Supremo para tal.
A este propósito, o acórdão recorrido, admitindo que em certos casos excecionais pode haver uma inversão do ónus da prova do erro médico, afastou essa possibilidade no caso vertente, afirmando o seguinte:
«Alega a A. que a realização da RM seria necessária e permitiria distinguir a natureza da lesão medular, isquémica ou traumática. Logo, não a tendo realizado, o R. atuou de forma culposa.
A este respeito, porém, o Colégio da Especialidade da OM refere, a fls. 1193, resposta 5 e ss. às questões colocadas pelo R., a fls. 1184: “a RM em fase aguda não permite distinguir com segurança a natureza traumática ou isquémica das lesões medulares”, acrescentando “excluídas razões pós-operatórias imediatas que impliquem revisão cirúrgica urgente, num doente com as condições clínicas descritas, a indicação para RM urgente não é mandatória”.
Por sua vez, o INML explicitou, a fls. 1201, que “os artefactos operatórios numa IRM-VM precoce limitam a visualização da lesão medular”, dizendo, a fls. 1204, que a RM teria sido desejável, para logo adiantar que esse meio de diagnóstico, “a menos que fosse uma lesão hemorrágica, não permitiria provavelmente esclarecer o tipo e a natureza da lesão”.
Esta exposição é suficiente, por si, para não dar como justificada a inversão do ónus da prova, uma vez não resultar que, realizada a RM, seria possível verificar se a lesão medular é isquémica ou traumática e, por via disso, considerar errada a opção pela sua não realização».
A fixação de presunções judiciais ou de facto compete às instâncias, podendo apenas o Supremo intervir se o tribunal de 2.º grau deduzir as presunções de matéria de facto não provada ou se estas presunções padecem de uma ilogicidade manifesta ou violam a lei, o que não se verificou no caso sub judice.
19. No caso vertente a Relação, ao fundamentar a matéria de facto, concluiu que não havia elementos probatórios suficientes para admitir a prova do erro médico por presunções judiciais, não podendo este Supremo, por falta de poderes para tal, substituir-se a este raciocínio que se situa no domínio da matéria de facto.
A modificação da matéria de facto ou a fixação de factos por presunções judiciais não se enquadra nos poderes deste Supremo, que, como tribunal de revista, só conhece de questões de direito.
20. Assim sendo, improcedem as conclusões IX a LXII da ampliação do recurso requerida pela Autora.
21. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:
1. O Tribunal da Relação não está limitado pelo princípio da imediação, podendo revogar a decisão de facto do tribunal de 1.ª instância e substituí-la por outra que esteja de acordo com a sua convicção, desde que se baseie na análise crítica da prova.
2. Tem-se entendido, na jurisprudência e na doutrina, que as respostas do julgador de facto sobre matéria qualificada como de direito consideram-se não escritas.
3. Em matéria de responsabilidade médica, apesar da sobreposição dos requisitos da responsabilidade contratual e extracontratual, aplica-se, em regra, o regime da responsabilidade contratual por ser mais favorável ao lesado e mais conforme ao princípio geral da autonomia privada.
4. O consentimento, enquanto causa de exclusão da ilicitude da intervenção médica, constitui um facto impeditivo do direito da pessoa lesada, cuja prova compete aos médicos, nos termos do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil.
5. O consentimento dos pacientes tem de ser livre e esclarecido para gozar de eficácia: se o consentimento não existe ou é ineficaz, a atuação do médico será ilícita por violação do direito à autodeterminação e correm por sua conta todos os danos derivados da intervenção não autorizada.
6. A opção entre um tratamento conservador e uma cirurgia com riscos graves é uma decisão pessoalíssima da pessoa doente que não pode ser substituída por juízo do seu médico.
7. Estando em causa uma operação à coluna vertebral, o médico deve informar os pacientes que a ela se sujeitam do risco de lesão medular, ainda que este risco seja raro (ocorre em 0,3% a 3% dos casos).
8. O conhecimento de um risco tão gravoso e impactante na vida de uma pessoa é um elemento essencial para que a autora e, em geral, os pacientes colocados na situação desta, disponham de toda a informação necessária para tomar uma decisão pessoal e consciente em relação à sua vida e ao seu corpo.
9. Não tendo resultado provado que o médico se tivesse obrigado a um resultado específico, v.g. de proceder a uma cura absoluta e definitiva da doença a tratar, tem de se considerar que está em causa apenas uma obrigação de meios.
10. Na responsabilidade civil médica compete aos lesados o ónus da prova de erro médico.
11. O Supremo Tribunal de Justiça não pode fixar factos com base em presunções judiciais, nem modificar as presunções de facto que a Relação tenha utilizado.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
a) negar as revistas do réu e da seguradora;
b) negar a ampliação do recurso da autora.
Custas das revistas pelos recorrentes.
Custas da ampliação do recurso pela autora.
Lisboa, 1 de outubro de 2024
Maria Clara Sottomayor (Relatora)
António Magalhães (1.º Adjunto)
Manuel Aguiar Pereira (2.º Adjunto)