RECURSO DE REVISTA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
QUESTÃO RELEVANTE
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
REJEIÇÃO DE RECURSO
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


Não ocorre motivo para acção de enriquecimento sem causa, se a quantia, cuja restituição é pedida pela autora, constitui parte do preço de um contrato de compra e venda.

Texto Integral


Proc. 2448/21.8T8PRD.P1.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


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AA instaurou acção declarativa, com processo comum, contra A..., Unipessoal, Lda. pedindo que seja declarado o incumprimento definitivo do contrato que invoca, por parte da Ré, e esta condenada a pagar-lhe a quantia de €32.500,00, acrescida dos juros contados desde a citação até integral e efectivo pagamento;

Subsidiariamente, ser a ré condenada a restituir à autora a quantia de € 32.500,00, a título de enriquecimento sem causa, acrescida de juros contados desde a citação até integral e efectivo pagamento.

Alega, em síntese, que, em Junho de 2014, encomendou à ré mobiliário para a sua casa em .... As partes acordaram que o pagamento da mercadoria fornecida seria efectuado em duas prestações, correspondendo cada uma delas a metade do preço, tendo a ré ficado obrigada à entrega da mercadoria à autora, em ..., no prazo de dois meses.

Em 21 de Julho de 2014, a autora, através de uma conta bancária titulada pelo filho da autora, pagou à ré a quantia de USD60.067,34 correspondentes a €42.500,00, através de transferência bancária.

No entanto, até à data apenas foram entregues à autora três sofás, seis colchões, quatro rolos de paredes e uns estrados, no valor de € 10.000,00. Atendendo ao incumprimento da ré, nos termos do previsto nos artigos 798º., 799º., 805º., nº.2, al. b), 808º., nº1, a autora teve que proceder à compra de outro mobiliário para a sua residência, estando por isso a ré obrigada a restituir à autora a quantia de € 32.500,00, por nada ter feito apesar das interpelações, apropriando-se da aludida quantia ao abrigo do enriquecimento sem causa.

A Ré contestou pugnando pela absolvição do pedido.

Após julgamento foi proferida sentença que condenou a ré a restituir o valor de € 32.870,55 (trinta e dois mil oitocentos e setenta euros e cinquenta e cinco cêntimos), com fundamento no enriquecimento sem causa, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos e vincendos, contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, e a absolveu do demais peticionado.

Inconformada, interpôs a ré competente apelação. O Tribunal da Relação do Porto julgou o recurso procedente e em consequência da revogação da decisão recorrida, absolveu a ré do pedido.

Inconformada, interpôs a autora recurso de revista, cuja minuta concluiu da seguinte forma.

«1.ª- Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto que concedeu provimento ao recurso interposto pela aqui Recorrida, da decisão da primeira instância, determinando que a aqui Recorrida fosse absolvida de todos os pedidos contra si formulados.

2.ª- A fundamentação do referido aresto reside, por um lado, no facto de se ter entendido existir uma causa justificativa do enriquecimento, e, por outro lado, que a sentença proferida pela Primeira Instância fundamenta a restituição através do instituto do enriquecimento sem causa, mas depois, para determinar o montante indemnizatório usa as regras da restituição referentes ao contrato de compra e venda, criando um novo instituto que não existe na previsão legal.

3.ª- Entende o Acórdão recorrido que, atenta a não resolução do contrato por qualquer uma das partes, existe uma causa justificativa para a deslocação patrimonial, ou, por outras palavras, que só inexiste causa justificativa para a deslocação patrimonial no caso de ter existido um incumprimento definitivo da aqui Recorrida.

4.ª- Com o devido respeito – que é muito – não podemos concordar com este raciocínio, desde logo, tendo em conta a natureza subsidiária do instituto do enriquecimento sem causa, conferida pelo disposto no artigo 474.º do Código Civil.

5.ª- São três os requisitos do enriquecimento sem causa: a existência de um enriquecimento; que esse enriquecimento careça de causa justificativa; que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.

6.ª- Entende o Acórdão recorrido que não se verifica um desses três requisitos, qual seja, que o enriquecimento careça de causa justificativa, porque, por um lado, considera que os móveis foram entregues e os restantes colocados à disposição da aqui Recorrente no transitário, e, por outro lado, que seria necessário, no mínimo, considerar que o contrato cessou e que essa resolução é imputável à aqui Recorrida.

7.ª- A sentença proferida pela primeira instância, que é quem fixa a matéria de facto nos presentes autos, atenta a inexistência de recurso quanto à matéria de facto, considerou como não provado que o pagamento dos restantes 50% do valor seria efectuado na entrega do transitário, ou seja, antes do embarque, conforme era alegado no artigo 6.º da contestação.

8.ª- Tendo dado como provado que as condições do negócio foram o pagamento de 50% do valor no momento da adjudicação e o pagamento dos restantes 50% do valor na entrega (sublinhado nosso) – cf. ponto 5) dos factos provados.

9.ª- Pelo que não se pode concluir que a mera colocação de parte da mercadoria – que não toda (cf. ponto 17) dos factos provados) – no transitário não equivale ao cumprimento da obrigação a que a aqui Recorrida se encontrava adstrita.

10.ª- A lei presume, no artigo 799.º n.º 1 do Código Civil, a falta de cumprimento da aqui Recorrida, não tendo a Recorrida logrado afastar tal presunção.

11.ª- A apreciação de inexistência de causa justificativa terá de ser efectuada casuisticamente.

12.ª- A principal ideia adjacente à inexistência de causa justificativa prende-se com a justiça da movimentação patrimonial, ou seja, torna-se necessário que o direito não a aprove ou não a consinta, de acordo com as regras e princípios vigentes no ordenamento jurídico.

13.ª- No caso em questão nos presentes autos, a aqui Recorrida manifesta de forma clara a sua intenção de não cumprir o contrato.

14,ª- E isto quer porque já vendeu parte do material – ponto 22) dos factos provados – quer porque desde Junho de 2016, ou seja, há oito anos, que retirou a mercadoria do transitário, revelando claramente a intenção de não a enviar, quer porque, neste tempo todo, contrariando a sua versão dos factos – que, aliás, não foi provada -, não fez uma única interpelação à ora Recorrente para pagamento de qualquer quantia, antes sempre referiu que a mercadoria seguiria para Angola, sem exigir qualquer pagamento, lançando mão de várias desculpas e expedientes para justificar o não envio, conforme resulta cabalmente da documentação junta aos autos.

15.ª- Na verdade, ao vender parte da mercadoria que estava obrigada a entregar à aqui Recorrente, ao retirar a mercadoria do transitário sem qualquer interpelação à Recorrente, a Recorrida manifesta, através de um comportamento concludente, com relevância declarativa, que se desligou em definitivo dos compromissos assumidos perante aquela.

16.ª- Caso assim não fosse, se a Recorrida pretendesse cumprir com a sua obrigação, mesmo na sua versão dos factos, que não logrou provar, sempre interpelaria a aqui Recorrente para o pagamento, o que nunca fez.

17.ª- Tudo isto, aliado ao facto de terem passado dez anos sem que a ora Recorrida tivesse efectuado qualquer outra acção que não fosse locupletar-se com o dinheiro que lhe foi pago pela Autora.

18.ª_ Estamos, pois, perante um comportamento da aqui Recorrida que manifesta, de forma clara e definitiva a sua intenção de não cumprir o contrato, violando a obrigação de entrega da mercadoria.

19.ª_ O efeito (resultado) pretendido com a deslocação patrimonial foi a entrega da mercadoria encomendada, que não se verificou, e que a aqui Recorrida, com o seu comportamento, manifestou, de forma clara e inequívoca, não pretender cumprir.

20.ª- Sendo que esta manifestação clara e inequívoca no sentido do não cumprimento da sua prestação por parte da Recorrida, não é aprovada nem consentida pelo direito, independentemente de não ter existido uma comunicação de resolução do contrato, não havendo, assim, uma causa justificativa para o enriquecimento da Recorrida.

21.ª- Estamos, pois, perante um enriquecimento da Recorrida em virtude de um efeito que não se verificou, nos termos do disposto no artigo 473.º do Código Civil.

22.ª- Dispõe o artigo 479.º do Código Civil que a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

23.ª- O acórdão recorrido considera – com o devido respeito, erradamente – que a indemnização nunca poderia atingir o valor decidido, uma vez que a aqui Recorrente entregou à Recorrida o valor total de € 52.500,00 (cinquenta e dois mil e quinhentos euros) e esta colocou ou pôs à disposição da Recorrente mercadoria no valor total de € 57.748,00 (cinquenta e sete mil setecentos e quarenta e oito euros), ao qual teria de acrescer o valor do serviço do contentor e o valor despendido na aquisição de material.

24.ª- O referido aresto dá como assente que a mera colocação da mercadoria por parte do transitário por parte da aqui Recorrida equivale ao cumprimento da sua obrigação, o que não se encontra provado face ao julgamento da matéria de facto efectuado pela Primeira Instância.

25.ª- Reiteramos que a Primeira Instância deu como não provado que, nas condições do negócio, tivesse sido convencionado que o pagamento do restante 50% do valor seria efectuado aquando da colocação da mercadoria no transitário.

26.ª- o que resulta da matéria de facto dado como provada é que a responsabilidade pelo transporte da mercadoria seria da aqui Recorrida, caso contrário não teria sido a mesma a assumir o pagamento do transporte do contentor em que seguiu a única mercadoria entregue.

27.ª- Bem como não lhe teria sido facturado pelo transitário o valor correspondente ao armazenamento da mercadoria.

28.ª- Isto posto, tendo a Recorrente entregue à Recorrida o valor de € 52.500,00 (cinquenta e dois mil e quinhentos euros) e a Recorrida entregue móveis no valor de € 21.623,78 (vinte e um mil seiscentos e vinte e três euros e setenta e oito cêntimos), o valor do enriquecimento da Recorrida é igual à diferença entre estes dois.

29.ª- Ao decidir como decidiu, o Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 473.º, 464.º, 479.º e 884.º do Código Civil.

Termos em que deverá ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser revogada decisão proferida, mantendo-se a decisão da primeira instância, em conformidade com as conclusões formuladas.

Com o que se fará, tão-só JUSTIÇA!».

Foram apresentadas contra-alegações em favor da confirmação do acórdão recorrido.


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A única questão decidenda consiste em saber se se mostra preenchido o requisito da carência de causa justificativa do enriquecimento.

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São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes nas instâncias:

1). A Autora é uma cidadã Angolana, residente em ..., que se desloca amiúde a Portugal.

2). A autora encomendou à Ré mobiliário variado fabricado por medida, para a sua casa em ..., tendo a Ré emitido a 16 de Junho de 2021, a factura proforma OM Nº C...06/22, no valor de € 95.000,00 (noventa e cinco mil euros), que, por conveniência da Autora, foi emitida em nome de seu filho, BB (Doc. n.º 2).

3). No dia 17 de Junho de 2014, foi emitido o documento designado por encomenda OM nº. C...04/10, nos termos e condições que melhor constam do documento nº. 2 junto com a contestação que se dá por integralmente por reproduzido (ponto 1 da contestação).

4). Em 21 de Julho de 2014, a Autora, através de uma conta bancária titulada pelo seu referido filho, BB, procedeu ao pagamento à Ré da quantia de USD 60.067,34, correspondente na época a € 42.500,00 (quarenta e dois mil e quinhentos euros), através de transferência bancária (Doc. n.º 3).

5). Quanto às condições do negócio acordadas entre as partes consta quer da factura proforma, quer da encomenda OM nº. C...04/10 que o pagamento da mercadoria encomendada seria feito em duas prestações, correspondentes cada uma delas a metade do preço acima mencionado: - Pagamento de 50% do valor no momento da adjudicação - Pagamento dos restantes 50% do valor na entrega (resposta restritiva ao ponto 6 da contestação).

6). A Ré apenas entregou à Autora parte da mercadoria descrita na encomenda OM nº. C...04/10 como resulta descrito nas facturas nºs. V.../62*OM; V.../63*OM e V.../64, nomeadamente, Três tapetes tapetes, uma mesa de cabeceira, uma mesa de apoio, 1 candeeiro de apoio, 1 candeeiro de latão, 2 cadeirões Da Vinci, 1 carpete, 5 sofás, 7 colchões, 4 estrados de ripas e duas bases rígidas, no valor total correspondente à soma das facturas de € 21.623,78, conforme resulta dos documentos facturas e respectivos packing list juntos aos autos a fls. 38 a 40 cujo teor se dá aqui por integralmente por reproduzidos.

7). A Ré emitiu as guias de transporte nº. ...15de 11 de Fevereiro de 2015, ...16 de 12 de Fevereiro de 2015 e ...16, em nome do transitário “A..., Lda.”, com a observação de ser material entregue na transportadora referente ao cliente BB.

8). A empresa “F..., Lda.” emitiu a factura T nº. ...12, em 18.11.2014 e com vencimento na mesma data em nome de BB, Avenida ..., Angola, no valor total de € 23.543,50 correspondente ao packing list, com a referência NP....55, conforme documentos de fls. 42 dos autos cujo teor se dá aqui por reproduzido.

9). Em Setembro de 2014, a autora solicitou a inclusão de mobiliário de exterior na encomenda, no valor total de € 9.370,00, mais concretamente: - Centro Rincon DynatY White UM – 2 unidades – 430€ = 860€ - Cristal Centro Rincon Dinasty – 1 unidade – 1020€ - Sillon dynasty white mushroom – 2 unidades – 1230 € = total 2460€ - Sofa 3 PL Dynasty whiye mush – 1 unidade = 2480 € - Banqueta Dynasty white – 2 Unidades – 460 € = total 920 € - Necedora Taurus – 1 Unidade = 1630€

10). Em 12 de Novembro de 2014, foi emitida pela ré uma nota encomenda OM nº. C...04/21*, no valor de € 16.794,22 (dezasseis mil setecentos e noventa e quatro euros e vinte e dois cêntimos), em nome de BB, conforme consta do documento nº. 2 junto a fls. 22 cujo teor se dá aqui por reproduzido.

11). A Ré entregou os móveis referidos em 7)., em Novembro de 2014, no transitário acompanhados das respectivas facturas nºs. 62, 63 e 64, no valor de € 21.623,78 (vinte e um mil seiscentos e vinte e três euros e setenta e oito cêntimos) que seguiram no contentor para o destino juntamente com a mercadoria da empresa referida em 8).

12). Os serviços do contentor referido em 11) foram pagos pela ré.

13). Em Dezembro de 2014, a autora faz uma nova encomenda de cortinas, estores e blackouts, que a ré adquiriu para satisfazer o pedido da cliente, atenta a especificidade do material e cor escolhidos.

14). Em Novembro de 2014, a ré aguardava ainda as medidas certas para a produção de estantes, cortinas e móveis à medida que só foram definitivamente confirmadas em Fevereiro de 2015.

15). Todo o tecido de blackout, calhas e estores adquirido pela ré, continuam até à data de hoje, no stock desta, conforme resulta do documento relação de existências de 04.12.2015 de fls. 171 a 172.

16). A ré colocou os restantes móveis nas instalações do transitário, em Fevereiro de 2015, acompanhadas das guias de transporte nºs. 15 e 16, packing list datado de 08.07.2015 que nunca seguiu para Angola, tendo permanecido naquelas instalações até Janeiro de 2016.

17). Durante o ano civil de 2015, o marido da autora CC veio duas vezes a Portugal, tendo a sócia gerente da ré acompanhado o mesmo às instalações do transitário para ver a mercadoria, mostrando-lhe ainda a que se encontrava ainda no armazém da ré, e que nunca chegou ao transitário.

18). A empresa “R..., S.A.” emitiu o documento (BL) designado por “Bill of Landing” em nome de BB correspondente a 72 volume, no peso total de 3.554,330 kg.

19). O transitário “A..., Lda.” remeteu à ré a factura FT...71, emitida em 2016.07.01, em nome da sociedade ré e referente ao armazenamento das mercadorias desde 01.10.2015 até 30.06.2016, da área de 5,90 m2, correspondente ao valor total de € 604,00, tendo em conta o estatuto de cliente habitual que a ré pagou para poder levantar a mercadoria para o seu armazém.

20). Os rolos de papel de parede em quantidade não concretamente determinada foram levados na bagagem pelo ex-marido da autora, CC.

21). Que o ex-companheiro da autora entregou à representante legal da Ré a quantia em numerário correspondente a € 10.000,00.

22). A ré conseguiu vender a baixo custo o mobiliário exterior referido em 9).


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Da causa justificativa do enriquecimento

O acórdão recorrido considerou inexistir um dos requisitos do enriquecimento sem causa, a saber, a ausência de causa justificativa.

A recorrente insurge-se contra este entendimento e contrapõe: «11.ª-A apreciação de inexistência de causa justificativa terá de ser efectuada casuisticamente.

12.ª- A principal ideia adjacente à inexistência de causa justificativa prende-se com a justiça da movimentação patrimonial, ou seja, torna-se necessário que o direito não a aprove ou não a consinta, de acordo com as regras e princípios vigentes no ordenamento jurídico.

13.ª- No caso em questão nos presentes autos, a aqui Recorrida manifesta de forma clara a sua intenção de não cumprir o contrato.

14,ª- E isto quer porque já vendeu parte do material – ponto 22) dos factos provados – quer porque desde Junho de 2016, ou seja, há oito anos, que retirou a mercadoria do transitário, revelando claramente a intenção de não a enviar, quer porque, neste tempo todo, contrariando a sua versão dos factos – que, aliás, não foi provada -, não fez uma única interpelação à ora Recorrente para pagamento de qualquer quantia, antes sempre referiu que a mercadoria seguiria para Angola, sem exigir qualquer pagamento, lançando mão de várias desculpas e expedientes para justificar o não envio, conforme resulta cabalmente da documentação junta aos autos.

15.ª- Na verdade, ao vender parte da mercadoria que estava obrigada a entregar à aqui Recorrente, ao retirar a mercadoria do transitário sem qualquer interpelação à Recorrente, a Recorrida manifesta, através de um comportamento concludente, com relevância declarativa, que se desligou em definitivo dos compromissos assumidos perante aquela.

16.ª- Caso assim não fosse, se a Recorrida pretendesse cumprir com a sua obrigação, mesmo na sua versão dos factos, que não logrou provar, sempre interpelaria a aqui Recorrente para o pagamento, o que nunca fez.

17.ª- Tudo isto, aliado ao facto de terem passado dez anos sem que a ora Recorrida tivesse efectuado qualquer outra acção que não fosse locupletar-se com o dinheiro que lhe foi pago pela Autora.

18.ª_ Estamos, pois, perante um comportamento da aqui Recorrida que manifesta, de Forma clara e definitiva a sua intenção de não cumprir o contrato, violando a obrigação de entrega da mercadoria.

19.ª_ O efeito (resultado) pretendido com a deslocação patrimonial foi a entrega da mercadoria encomendada, que não se verificou, e que a aqui Recorrida, com o seu comportamento, manifestou, de forma clara e inequívoca, não pretender cumprir.

20.ª- Sendo que esta manifestação clara e inequívoca no sentido do não cumprimento da sua prestação por parte da Recorrida, não é aprovada nem consentida pelo direito, independentemente de não ter existido uma comunicação de resolução do contrato, não havendo, assim, uma causa justificativa para o enriquecimento da Recorrida.

21.ª- Estamos, pois, perante um enriquecimento da Recorrida em virtude de um efeito que não se verificou, nos termos do disposto no artigo 473.º do Código Civil».

A recorrente não tem razão.

O enriquecimento sem causa, como é sabido, é uma das fontes das obrigações e está consagrado no artigo 473.º, 1 CC que dispõe que aquele que sem causa justificativa enriquece à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou».

Esta factispecie exige, pois, como pressuposto constitutivo da figura a ausência de causa justificativa para o enriquecimento.

Luís Menezes Leitão, a quem se deve a única tese de doutoramento feita entre nós sobre a figura em causa (O enriquecimento sem causa no direito civil, Estudo dogmático sobre a viabilidade da configuração unitária do instituto, face à contraposição entre as diferentes categorias de enriquecimento sem causa, Almedina, Coimbra, 2005), assinala que «a ausência de causa justificativa é seguramente o conceito mais indeterminado no âmbito do enriquecimento sem causa» (Direito das Obrigações, Vol. I, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2006:451).

Para este autor, a concretização deste conceito deve fazer-se na base dos critérios acolhidos pelo legislador no artigo 473.º, 2: a inexistência da obrigação, o posterior desaparecimento da causa ou a não verificação do efeito pretendido (Idem).

Esclarece ainda que esta concretização diz apenas respeito às hipóteses de enriquecimento por prestação: «no âmbito do enriquecimento por prestação está em causa um incremento consciente e finalisticamente orientado do património alheio, sendo a não realização do fim visado com esse incremento que determina a restituição. A não realização desse fim é tipificado no artigo 473.º, n.º 2, por referência a uma relação obrigacional, cuja execução se visou, mas que por qualquer razão não existe subjacente a essa prestação podendo essa inexistência respeitar ao próprio momento da realização da prestação (condictio indebiti), ou vir a obrigação a desaparecer posteriormente (condictio ob causam finitam) ou não se verificar futuramente (condictio ob rem) (Ibidem:451/452).

Pires de Lima /Antunes Varela esclarecem também o conceito de causa do enriquecimento: «A causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do acto que lhe serve de fonte.

Assim, sempre que o enriquecimento provenha de uma prestação, a sua causa é a relação jurídica que a prestação visa satisfazer. Se, por exemplo, A entrega a B certa quantia para cumprimento de uma obrigação e esta não existe –ou porque nunca foi constituída, ou porque já se extinguiu ou porque é inválido o negócio jurídico em que assenta-deve entender-se que a prestação carece de causa» (Código Civil, Anotado, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987:455; cfr. também A. Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 1986:430 ss).

Mário Júlio de Almeida Costa, por seu turno, defende que «o enriquecimento carece de causa, quando o direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial; sempre que aproveita, em suma, a pessoa diversa daquela a quem segundo a lei, deveria beneficiar. Mas ele é apenas ajurídico, no sentido de substancialmente ilegítimo ou injusto, e não formalmente antijurídico.

Por exemplo, um contrato celebrado entre o enriquecido e o empobrecido, ou porventura, entre aquele e um terceiro, constitui, sem dúvida, a causa jurídica mais frequentemente invocada. Ao invés, o enriquecimento será sem causa quando resulte de uma prestação de outrem que se destinava a liquidar uma relação jurídica que não se produziu ou que não é válido» (Direito das Obrigações, 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008:500).

António Menezes Cordeiro sublinha que foi intenção do legislador ao consagrar a exigência de que o enriquecimento seja carecido de causa, requisito particularmente vago, possibilitar a cobertura duma generalidade de situações de injustiça da situação de enriquecimento. Este civilista não avança, por isso, numa concretização desse conceito.

Limita-se a defender que «a ausência de causa emerge, para nós, da inexistência de normas jurídicas que, a título permissivo ou de obrigação, levem a considerar o enriquecimento como coisa estatuída, isto é, tolerada ou querida pelo Direito» (Direito das Obrigações, 2 vols., AAFDL, Lisboa, 1987: 56).

De qualquer modo, sob a advertência de que o enriquecimento pode traduzir-se em operações jurídicas da mais diversa natureza, o autor, a nível de menor abstracção, sempre adianta que «se o enriquecido tiver sido investido em direito subjectivo, faltará a causa quando não tenha ocorrido qualquer forma de constituição ou transmissão a seu favor, do direito em causa. Se se tratar da exoneração dum débito, haverá carência de causa carência de causa v.g. quando falte a actuação de qualquer forma de transmissão do aludido débito. Haverá, ainda, falta de causa quando o enriquecimento se integre em complexo normativo (normalmente contratual) cujo desenvolvimento tenha sido tolhido ou afectado por tal forma que a subsistência da fonte seja comprometida» (Idem).

Com idêntica cautela Pessoa Jorge responde à pergunta «quando é que um enriquecimento é injustificado?»:

«Só será possível responder com simples orientações tendenciais:

1.º O enriquecimento é justificado quando resulta de negócios jurídicos causais (v.g. a compra e venda ou a doação), pode deixar de o ser se resulta de actos abstractos. Isto significa, portanto, que o enriquecimento é, em regra, justificado, quando implica um acto de vontade do empobrecido.

2.º Se o enriquecimento foi causado por outrem, sem o concurso da vontade do empobrecido, em geral é injustificado.

3.º Há que ver se não ocorrem razões que levem a considerar que a lei tenha querido um enriquecimento definitivo, embora em si mesmo injusto, por razões de segurança ou outras, como acontece com a usucapião (art.474.º, in fine).

4.º Não há lugar ao enriquecimento injusto se o empobrecido sabia que o efeito previsto era impossível ou se, agindo contra a boa-fé, impediu a sua verificação (art. 475.º)» (Lições de Direito das Obrigações, AAFDL, Lisboa, 1975/1976:251).

Sendo assim as coisas, podemos concluir que a recorrente tem razão quanto às conclusões 11.ª, 12.ª, isto é, que a apreciação de inexistência de causa justificativa terá de ser efectuada casuisticamente e que a principal ideia adjacente à inexistência de causa justificativa prende-se com a justiça da movimentação patrimonial, ou seja, torna-se necessário que o direito não a aprove ou não a consinta, de acordo com as regras e princípios vigentes no ordenamento jurídico.

No entanto, as restantes conclusões não traduzem as melhores razões. O núcleo da argumentação do recurso está concentrado nas conclusões 19.ª a 21.ª: o comportamento da ré manifestou, de forma clara e inequívoca, não pretender cumprir, o que não é aprovado nem consentido pelo direito, independentemente de não ter existido uma comunicação de resolução do contrato, não havendo, assim, uma causa justificativa para o enriquecimento da Recorrida. Assim, estamos perante um enriquecimento da Recorrida em virtude de um efeito que não se verificou, nos termos do disposto no artigo 473.º do Código Civil.

Estas razões não colhem.

Tem razão o segundo grau quando diz: «Em regra, essa situação pressupõe três situações integrativas da inexistência de causa:

a) condictio in debiti (repetição do indevido),

b) condictio ob causam finitam (enriquecimento por virtude de causa que deixou de existir)

c) e condictio ob causam datorum (enriquecimento derivado da falta de resultado previsto).

Ora, in casu a deslocação patrimonial constituiu o pagamento parcial do preço acordado em virtude da celebração de um contrato de compra e venda.

Logo não estamos perante qualquer erro no pagamento, nem extinção posterior da causa, pois, esse contrato nunca foi até à data resolvido pelas partes.

E, também não podemos estar perante a terceira modalidade que pressupõe o desaparecimento superveniente da causa que legitima a deslocação patrimonial já efectuada.

Neste caso, basta dizer que os móveis foram entregues e os restantes postos à disposição do comprador no transitário, pelo que é evidente que o fundamento da deslocação patrimonial se manteve.

Mesmo que assim não fosse, seria necessário, no mínimo, considerar que o contrato cessou e que essa resolução é imputável ao vendedor, neste caso fornecedor da mercadoria.

Ora, não é isso que decorre dos factos provados e mesmo da sentença proferida. Bem pelo contrário o que decorre é que o contrato celebrado entre as partes é regular e válido; parte da mercadoria foi transportada para Angola; outra parte foi entregue ao transitário, sendo que nada resulta sobre quem teria o ónus contratual de suportar esse transporte; e a restante está depositada nas instalações da apelada.

Logo é inequívoco que existiu uma causa contratual que não é injusta face à ordem jurídica».

Na vida da relação das pessoas, todos os dias se assiste a incontáveis transferências de riqueza de um património para outro. Mas daí não resulta, bem entendido, que se encontre em todas elas uma causa injustificada. Quem conclui um contrato para si vantajoso, obtém, sem dúvida, um ganho à custa da contraparte, mas esta, salvo casos contados, não pode fazer nada para obter a restituição do que prestou em execução do contrato.

Os legisladores dos países pertencentes à nossa família jurídica têm deixado para a doutrina e jurisprudência a determinação dos casos de injustiça, em matéria de enriquecimento sem causa (cfr. quanto a esta última Acs. STJ de 22.3.2000, 00A3653, de 1.3.2018, 4290/09.5.TBCSC.L1.S1).

«A injustiça do enriquecimento, como bem diz o segundo grau, terá de ser encontrado na regulamentação própria, especial e autónoma do contrato celebrado entre as partes, a qual regula, por exemplo, os termos da restituição daquilo que tiver sido prestado em caso de resolução».

A acção de enriquecimento tem como pressuposto o locupletamento de um sujeito à custa de outrem sem causa justificativa, pelo que não procede invocar que a injustiça da deslocação patrimonial é consequência de um contrato ou outra relação completamente regulada, enquanto a relação conserve eficácia obrigatória.

Ou dito de outro modo: o pedido de restituição, como fundamento em enriquecimento sem causa, não procede se o desequilíbrio económico a favor de uma das partes e em prejuízo da outra, se justifica por ter havido válida celebração do contrato pela parte que alega ter sido prejudicada.

Ou ainda: para fim da procedência de uma acção de enriquecimento sem causa a falta de causa justificativa, não se deve entender como ausência de razão que determinou o locupletamento do enriquecido, mas como carência de uma razão que consinta a este último reter o que foi prestado.

Em suma: não está demonstrada a carência de causa justificativa do enriquecimento, sendo certo que, como é jurisprudência firme deste Supremo Tribunal de Justiça (cfr, por todos todos, Acs de 14.1.2010, 0938/04.3TCLRS.L1.S1, de 1.3.208, 4290/09.5BCSC.L1.S1 e de 11.10.2022, 2330/20.6T8PRT.P1.S1), cabe ao autor que pede a restituição com base no enriquecimento da ré à sua custa, sem causa justificativa, ex artigo 342.º, 1 CC, o ónus da prova dos referidos pressupostos, o que a autora não logrou fazer (além do facto 22 e dos aspectos temporais que se deduzem da restante factualidade provada).

De resto, a recorrente faz uma incorrecta aplicação do último segmento do artigo 473.º, 3 CC («ou em vista de um efeito que não se verificou»).

O direito romano clássico não conhecia as acções de enriquecimento, mas existiam remédios de natureza quase contratual, como a condictio, a qual constitui «o arquétipo de todos os modernos sistemas de repetição do indevido que evoluíram no âmbito da tradição romanista» (Paolo Gallo, L´arricchimento senza causa, seconda edizione, Guiuffré, Milano, 2024: 5 ss).

De entre as condictiones, que os romanistas identificaram, nos períodos pós-clássico e bizantino, destacou-se a condictio ob causam datorum, que é a remota origem do segmento citado. Traduzia-se num propósito que se põe, mas que não se concretiza, como quando se entrega dinheiro a título de dote, mas o casamento não se realiza.

No caso o contrato de compra e venda realizou-se e nada permite dizer que tenha sido liquidado.

Diante das conclusões a que chegámos, fica naturalmente prejudicado que nos debrucemos sobre a questão que ex abundante o segundo grau analisou relativa ao valor da indemnização.


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Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 527º, 1 e 2, do Código de Processo Civil).

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Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso.

Condena-se a recorrente no pagamento das custas.


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1.10.2024

Luís Correia de Mendonça (Relator)

Ricardo Costa

Luís Espírito Santo