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ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE
DISSIPAÇÃO OU OCULTAÇÃO DE PATRIMÓNIO
PROVA DO FACTO BASE
Sumário
I- Tendo o recurso por objeto a reapreciação da matéria de facto, deve o recorrente, nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, obrigatoriamente especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados. II- Essa especificação deve ser feita nas conclusões e não no corpo das alegações, já que são aquelas que balizam o objeto do recurso. III- O incumprimento desse ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento. IV- O incidente de qualificação constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência, e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor. IV- As situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas configuram verdadeiras presunções juris et de jure de insolvência culposa, pelo que demonstrado o facto nelas enunciado (base da presunção), fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de prova do nexo causal entre a inobservância dos comportamentos aí tipicamente descritos e a criação ou agravamento da insolvência. V- A prova dos elementos de facto tendentes ao preenchimento da previsão normativa da alínea a) do nº 2 do citado artigo 186º, mormente do facto base da presunção nela contemplada, impende sobre os credores, o Ministério Público e/ou o Administrador da Insolvência.
Texto Integral
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. RELATÓRIO
Nos autos principais de insolvência de que os presentes constituem apenso foi proferida sentença que declarou o estado de insolvência de EMP01... Unipessoal, Ldª, vindo, posteriormente, por despacho proferido em assembleia de credores, a ser declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.
A Sra. AI veio juntar o seu parecer concluindo pelo caráter culposo da presente insolvência.
Igualmente o MP elaborou parecer no mesmo sentido, indicando como afetado pela qualificação o gerente AA.
Proferiu-se despacho saneador tabelar tendo-se definido o objeto do litígio e fixado os temas da prova.
Realizou-se audiência final, vindo a ser proferida sentença, na qual se decidiu qualificar a insolvência como fortuita.
O Ministério Público, inconformado com essa decisão, dela interpôs recurso, admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES 1. AA é o sócio único e gerente da sociedade insolvente EMP01... Unipessoal. Lda. 2. O veículo de matrícula ..-CX-.. constituía o único património da sociedade insolvente. 3. A sentença proferida no incidente de qualificação de insolvência considerou não estarem verificados os pressupostos para a qualificação da insolvência como culposa, previstos no artigo 186º, nº 2, alínea a) e i) do CIRE. 4. O M. Juiz fundamentou a sua convicção, essencialmente, no facto de não terem ficado devidamente esclarecidos os termos do sinistro/incêndio alegado pelo gerente da sociedade insolvente e no desconhecimento do que terá acontecido ao camião, enquanto ativo da insolvente (artigo 186º, nº 2, alínea a), do CIRE) e nos esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pela Administradora de Insolvência (artigo 186º, nº 2, alínea i), do CIRE). 5. Discordamos desta decisão, no que se refere ao preenchimento do pressuposto previsto no artigo 186°, nº 2, alínea a), do CIRE, uma vez que o tribunal a quo não fez uma análise crítica da prova e não interpretou e aplicou corretamente a aludida norma legal. 6. Estabelece a alínea a), do nº 2, do artigo 186º, do CIRE que a insolvência é culposa no caso de o devedor ter “Destruído, danificado, inutilizado, ocultado ou feito desparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor”. 7. O Tribunal a quo deu como provado que: “4. A A.I. notificou a Ilustre Mandatária da Insolvente, para apresentação de documentação que demonstre a destruição do património da insolvente - veículo de matricula ..-CX-.., Marca: ..., Modelo: 18.48..., a gasóleo, até à presente, A.I. não rececionou qualquer documento. 8. Por outro lado, deu como não provado que “o veiculo ardeu, em área de serviço de ... Km 362, ..., tendo a sua carcaça sido roubada”. 9. É inegável, perante a factualidade dada como provada, que há ocultação do património da devedora, ou seja, o veículo de matrícula ..-CX-... 10. Sendo esta ocultação causa adequada do agravamento da situação de insolvência da devedora. 11. Acresce que, o desconhecimento do que terá acontecido ao património da devedora integra igualmente a definição de ocultação. 12. Por outro lado, o tribunal a quo, não valorizando o depoimento de parte do gerente da insolvente, também não poderia entender que o desaparecimento/ocultação do veículo não teria ocorrido nos três anos anteriores à data da prolação da sentença de insolvência, ou seja, validar a indicação dada pelo mesmo que tal episódio ocorreu em Dezembro de 2019. 13. Pelo exposto, estando preenchido o pressuposto do artigo 186º, nº 1, e nº 2, alínea a) do CIRE, o Tribunal a quo deveria, necessariamente, ter qualificado a insolvência como culposa, com afectação do gerente de facto e de direito AA, e com as consequências previstas no artigo 189º, nº 2 a nº 4, do CIRE. 14. Ao não decidir nestes termos, na douta sentença recorrida foi violado o disposto no artigo 186º, nº 1, e nº 2, alínea a) do CIRE. Nestes termos, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando a sentença ora recorrida e substituindo-a por outra que qualifique a insolvência da sociedade EMP01... Unipessoal. Lda. como culposa, nos termos do disposto no artigo 186º, nº 1 e nº 2, alínea a), do CIRE, e declarando-se afetado por essa qualificação o sócio gerente da insolvente AA, com as consequências previstas no artigo 189º, nº 2 a nº 4, do CIRE, assim se fazendo
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Foram apresentadas contra-alegações, pugnando a recorrida pela improcedência do recurso.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, são as seguintes as questões solvendas:
. averiguar se houve erro no julgamento da matéria de facto;
. aferir se a qualificação da sociedade “EMP01... Unipessoal, Ld.ª”, deve ser qualificada como culposa, á luz do disposto no artigo 186º, nº 1, e nº 2, alínea a) do CIRE, declarando-se afetado por essa qualificação o sócio gerente da insolvente AA.
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III. FUNDAMENTOS DE FACTO
III.1. Factualidade considerada provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte factualidade:
1. A sociedade EMP01... Unipessoal, Lda., NIPC: ...12, com sede no Largo ..., ..., Sala ..., ... Guimarães, foi declarada insolvente nos autos de insolvência com o n.1428/23...., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Comércio de Guimarães, Juiz ....
2. O seu capital social é de 125.000,00 € (cento e vinte e cinco mil euros):
TITULAR: AA
NIF/NIPC: ...94
Estado civil: Solteiro(a) maior
Residência/Sede: Largo ..., ... Sala ...
... Guimarães
3. A gerência é exercida pelo sócio único.
4. A A.I. notificou a Ilustre Mandatária da Insolvente, para apresentação de documentação que demonstre a destruição do património da insolvente – veículo de matrícula ..-CX-.., Marca: ..., Modelo: 18.48..., a gasóleo, até à presente, a A.I. não rececionou qualquer documento.
5. Sobre o veículo incide o ónus de hipoteca, com data de registo de 09-09-2019, a favor de Banco 1..., S.A., NIPC ...93.
6. Foi prestada assistência em viagem ao veículo ..-CX-.. em ... conforme solicitado em data anterior a dezembro de 2019.
7. O insolvente tentou cancelar a matrícula junto do IMTT para não pagar imposto de circulação.
8. O veículo CX era de 2007, sendo que em 2019 o valor de mercado andaria à volta de € 7.500,00.
9. O ordenado pessoal do gerente da insolvente encontra-se penhorado sendo um dos credores Banco 1... SA (referido em 5).
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III.2. Factualidade considerada não provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou não provada a seguinte factualidade:
- o veículo ardeu, em área de serviço de ... Km 362, ..., tendo a sua carcaça sido roubada.
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III.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto
Nas alegações recursivas veio o apelante requerer a reapreciação da decisão de facto com fundamento em erro na apreciação da prova.
Como é consabido, a possibilidade de reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, está subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjetiva impõe ao recorrente.
Desde logo, como deflui do nº 1 do art. 639º, quando o apelante interpõe recurso de uma decisão jurisdicional fica automaticamente vinculado à observância de dois ónus, se quiser prosseguir com a impugnação de forma regular[2].
Assim, para além do cumprimento do ónus de alegação, o recorrente fica igualmente sujeito ao ónus de finalizar as alegações recursórias com a formulação sintética de conclusões, em que resuma os fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão prolatada pelo tribunal a quo.
Além destes, vem-se igualmente autonomizando um ónus de especificação de cada uma das concretas razões de discórdia em relação à decisão sob censura, seja quanto às normas jurídicas (e sua interpretação) aí convocadas, seja a respeito dos concretos pontos de facto que o apelante considera que foram julgados de forma incorreta e dos concretos meios de prova que impunham uma diversa decisão relativamente a essa facticidade.
Isso mesmo determina a al. a) do nº 1 do art. 640º, na qual se preceitua que “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados”.
Por imposição do segmento normativo transcrito, deve, assim, o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende ver reapreciados pelo tribunal ad quem.
Isto posto, procedendo à exegese das alegações apresentadas, primo conspectu, afigura-se-nos que não foi observado esse ónus de especificação dos concretos pontos de facto que o apelante considera terem sido incorretamente julgados pelo tribunal de 1ª instância, já que nas respetivas conclusões nenhuma referência lhes é feita de forma individualizada, isto é, não se especificam quais os concretos pontos de facto provados que pretende impugnar.
Questão que se tem colocado é a de saber se tal especificação deve constar, formalmente, das conclusões recursivas ou se se bastará com a sua inclusão no corpo alegatório[3].
É certo que, aparentemente, a lei adjetiva não consagra norma expressa sobre tal inclusão no quadro conclusivo, como o faz relativamente à impugnação de direito, nos termos do artigo 639º, nº 1 e 2.
No entanto, conforme vem sendo entendido[4], constituindo a especificação dos concretos pontos de facto um fator de delimitação do objeto de recurso, nessa parte, pelo menos a sua especificação deverá constar das conclusões, por força do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugadamente com o art. 640º, nº 1, alínea a), aplicando-se, subsidiariamente o preceituado no nº 1 do art. 639º.
Este posicionamento é, quanto a nós, aquele que se mostra em consonância com a ratio essendi das conclusões recursórias, qual seja a de delimitação do âmbito objetivo e subjetivo do recurso e, correspondentemente, da competência decisória da Relação.
De facto, como emerge do regime plasmado nos arts. 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nº 1, da sua natureza lógica de finalização resumida de um discurso, as conclusões têm um papel decisivo, não só no levantamento das questões controversas apresentadas ao tribunal superior como, sobretudo, na fixação do objeto do recurso, logo se compreendendo quão importantes elas são para o tribunal ad quem na definição dos seus poderes de cognição.
Em suma: as conclusões têm a importante função de definir e delimitar o objeto do recurso e, desta forma, circunscrever o campo de intervenção do tribunal superior encarregado do julgamento.
Por isso, sendo a impugnação de matéria de facto uma autêntica questão fundamental, suscetível de conduzir a decisão diferente, deve ela ser incluída nas conclusões das alegações, de forma sintética, mas obviamente com indicação precisa dos pontos de facto impugnados, como resumo do que a tal respeito tenha sido referido no corpo das alegações. Só assim se pode entender que é suscitada tal questão: para se impugnar matéria de facto há, forçosamente, que especificar nas conclusões, de forma concreta, quais os pontos de facto impugnados, pois de contrário o recurso não tem objeto fático.
Entende-se, por conseguinte, que para uma correta impugnação da matéria de facto, se exige a inclusão da concretização dos pontos de facto ou matéria impugnada, nas conclusões, sob pena de rejeição do recurso, inclusão essa que, in casu, não se verificou. É que, para o aludido feito, não basta – como fez o apelante – aludir genericamente que a decisão da matéria de facto deve de ser alterada, exigindo-se antes uma indicação concreta e precisa dos pontos de facto, provados ou não provados, que se considera terem sido incorretamente julgados.
Resulta, assim, manifesto o incumprimento por banda do apelante do mencionado ónus.
Daí que, em consonância com o disposto na 1ª parte da al. a) do nº 2 do citado art. 640º, impõe-se a rejeição, nessa parte, do recurso, sendo que, dada a expressão perentória da lei (através do emprego do adjetivo imediata), não cabe convite ao aperfeiçoamento no sentido de lograr suprir a inobservância desse ónus[5].
Deste modo, perante o evidenciado inadimplemento, nenhuma alteração se poderá introduzir na matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada.
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IV. FUNDAMENTOS DE DIREITO
Considerando que, pelas razões anteriormente alinhadas, não foi introduzida qualquer alteração no acervo de factos considerados provados e não provados, importa agora, tendo por base o substrato factual ora estabilizado, apreciar se se mostram, ou não, verificados os requisitos para a operância da invocada qualificação culposa da insolvência nos termos do art. 186º, nº2 al a) do CIRE.
Como é consabido, o incidente de qualificação da insolvência é um instituto jurídico que foi introduzido no nosso ordenamento pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, presidindo a esta criação a declarada intenção de obter uma maior e mais eficaz responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas coletivas.
Com esse desiderato, o seu art. 185º começa por indicar a finalidade do incidente: averiguar as razões que conduziram à situação de insolvência para qualificá-la numa das categorias tipificadas na lei. Desta forma, a insolvência pode ser culposa ou fortuita.
No caso vertente o tribunal a quo decidiu proceder à qualificação da insolvência como fortuita, por ter considerado não se encontrarem provadas as circunstâncias previstas no art. 186º, nºs 2, alínea a) e i) do CIRE invocadas pela AI e pelo Ministério Público.
O Juiz a quo fundamentou a sua convicção, essencialmente, no facto de não terem ficado devidamente esclarecidos os termos do sinistro/incêndio alegado pelo gerente da sociedade insolvente e no desconhecimento do que terá acontecido ao camião, enquanto ativo da insolvente (artigo 186º, nº 2, alínea a), do CIRE) e nos esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pela Administradora de Insolvência (artigo 186º, nº 2, alínea i), do CIRE).
O apelante discorda do referido julgamento, no que se refere ao preenchimento do pressuposto previsto no artigo 186°, nº 2, alínea a), do CIRE, advogando que o tribunal de 1ªinstância não fez uma análise crítica da prova e não interpretou e aplicou corretamente a aludida norma legal, propugnando que a insolvência deve ser qualificada como culposa ao abrigo de tal normativo (cfr. cls. nº 5).
Conclui também que, perante a factualidade dada como provada no ponto 4, há ocultação do património da devedora, ou seja, o veículo de matrícula ..-CX-.., sendo esta ocultação causa adequada do agravamento da situação de insolvência da devedora (cls. 9 e 10).
Acrescenta ainda que o desconhecimento do que terá acontecido ao património da devedora integra igualmente a definição de ocultação e que por outro lado, o tribunal a quo, não valorizando o depoimento de parte do gerente da insolvente, também não poderia entender que o desaparecimento/ocultação do veículo não teria ocorrido nos três anos anteriores à data da prolação da sentença de insolvência, ou seja, validar a indicação dada pelo mesmo que tal episódio ocorreu em dezembro de 2019 (Cls. 11 a 12).
Defende, assim, que estando preenchido o pressuposto do artigo 186º, nº 1, e nº 2, alínea a) do CIRE, o Tribunal a quo deveria, necessariamente, ter qualificado a insolvência como culposa, com afetação do gerente de facto e de direito AA, e com as consequências previstas no artigo 189º, nº 2 a nº 4, do CIRE.
Que dizer?
Como é sabido, o citado art. 186º, depois de no seu nº 1 fixar uma noção geral de insolvência culposa[6], estabelece nos seus nºs 2 e 3 um conjunto de presunções que assumem caráter taxativo.
Para auxiliar a tarefa probatória, o CIRE veio consagrar o denominado duplo sistema de presunções legais[7], sendo que o nº 2 da referida norma contém um elenco de presunções juris et de jure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente; por seu turno, no nº 3 consagra-se um conjunto de presunções juris tantum de culpa grave desses administradores.
No concernente às presunções do primeiro tipo, a doutrina e jurisprudência claramente dominantes[8] vêm considerando que uma vez demonstrado o facto nelas enunciado (base da presunção), fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador (isto é, a insolvência será sempre considerada como culposa), sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a inobservância dos comportamentos tipicamente descritos nas diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento[9].
Já no que tange ao âmbito objetivo das presunções estabelecidas no nº 3, até à entrada em vigor da Lei nº 9/22, de 11 janeiro (o que ocorreu em abril do corrente ano), vinha-se registando marcada divergência quer a nível doutrinário quer na casuística. Para uns[10] o que resultava do nº 3 do art. 186º era apenas uma presunção de culpa grave, em resultado da atuação dos seus administradores, mas não uma presunção de causalidade da sua conduta em relação à situação de insolvência, exigindo-se a demonstração nos termos do nº 1 desse normativo, que a insolvência foi causada ou agravada em consequência dessa mesma conduta. Outros[11], porém, advogavam que se tratava de presunções de insolvência culposa, isto é, a simples verificação de qualquer uma das situações descritas nas suas alíneas constituía uma presunção ilidível não apenas da culpa grave do administrador, mas também de suspeita de insolvência culposa, pressupondo-se à partida o nexo de causalidade exigido pelo nº 1. Registe-se, todavia, que com a entrada em vigor do aludido diploma legal (que, de acordo com a norma de direito transitório nele plasmada no art. 10º, nº 1, é aplicável ao presente processo insolvencial) a referida divergência interpretativa perdeu razão de ser, na justa medida em que o legislador, com a nova redação que foi aportada ao nº 3 do citado art. 186º, entendeu por bem clarificar que nesse preceito se consagra unicamente uma presunção de culpa grave, que não também de presunção do respetivo nexo causal.
No caso em apreço, tendo em conta a vinculação temática definida pela sentença recorrida e pelas conclusões recursórias, releva, desde logo, a presunção estabelecida na alínea a) do nº 2 do citado art. 186º, no qual se dispõe que a insolvência é culposa no caso de o devedor ter “Destruído, danificado, inutilizado, ocultado ou feito desparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor”.
Para que seja despoletada a presunção juris et de jure estabelecida no inciso transcrito, exige-se que o administrador (sendo que por estatuição expressa da lei, e num patente esforço de moralização, estão abrangidos quer o administrador de direito quer o administrador de facto) do devedor tenha praticado, nos três anos anteriores ao início do processo[12], algum dos factos base aí descritos.
Revertendo ao caso sub judicio, o decisor de 1ª instância qualificou a insolvência como fortuita, fundamentando esse juízo decisório nos seguintes moldes: “No caso em apreço não tendo ficado esclarecido os termos do referido sinistro, a verdade é que se desconhece em concreto o que terá sucedido ao dito camião enquanto ativo da insolvente. Diga-se a lei não presume a dissipação, apenas presume a culpa e o nexo de causalidade na insolvência ou seu agravamento caso aquela materialidade esteja demonstrada, sendo este o verdadeiro sentido e alcance da presunção legal. Acresce que, no nº 2 do art.º 186º do CIRE é efetuada uma enumeração taxativa de factos que, uma vez provados, conduzem a uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa, desde que, os mesmos tenham ocorrido antes dos três anos que antecederam o início do processo de insolvência, vide o referido no n.º 1 do mesmo preceito legal. Deste modo, a qualificação da insolvência como culposa exige que as situações previstas para a sua verificação sucedam no hiato temporal de 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência, que, in casu, ocorreu em 09/03/2023. Com efeito, compulsados os autos, verifica-se que inexiste alegação e prova, quer da A.I., quer do M.º P.º, quer do credor hipotecário, de que foi ocultado património do devedor nos 3 anos que antecederam o início do processo de insolvência, o que assume manifesta relevância em matéria de não qualificação de insolvência como culposa, vide n.º 1 do art.º 186º do CIRE. Por outra via, em face dos esclarecimentos da Sra. A.I. não se pode concluir pela falta de colaboração conforme impõe o CIRE. Deste modo, a insolvência da sociedade “EMP01... Unipessoal Lda..” é fortuita.”
Como se deu nota, o substrato factual que foi considerado provado e não provado no ato decisório sob censura não sofreu alteração nesta sede recursiva.
Como assim, na presença dessa materialidade também se nos afigura não estar demonstrada uma efetiva situação de dissipação reconduzível à fattispecie da citada al. a) do nº 2 do art. 186º do CIRE (que pressupõe, para a sua afirmação, uma atuação dolosa ou com culpa grave do devedor), sendo certo que, conforme se vem entendendo, a prova dos elementos de facto tendentes ao preenchimento dessa previsão normativa, mormente do facto base da presunção nela contemplada, impenderia sobre os credores, o Ministério Público e/ou o Administrador da Insolvência.
Deste modo, não se encontrando demonstrados, nos termos assinalados, os pressupostos estabelecidos na referida normatividade, mostra-se ajustado o sentido decisório trilhado pelo juiz de 1ª instância quanto à qualificação como fortuita da insolvência.
Impõe-se, nessa medida, a improcedência do presente recurso.
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III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, em consequência do que se decide confirmar a sentença recorrida.
Sem custas por delas estar isento o Ministério Público (art. 4º, nº 1, al. a) do RCP).
Guimarães, 19.09.2024
Relatora: Maria Gorete Morais 1ª Adjunta: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade 2º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte
[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem. [2]Sendo que, a este respeito, a casuística do Tribunal Constitucional (v.g. acórdãos nº 132/2002 e 403/2002, publicados, respetivamente, no DR, II série, de 29.05.2002 e de 16.12.2002) vem reiteradamente afirmando não ser incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de ónus processuais às partes, desde que não sejam nem arbitrários nem desproporcionados, quando confrontada a conduta imposta com a consequência desfavorável atribuída à correspondente omissão. [3] O que, ainda assim, nem sequer ocorreu no caso em apreço. [4] Cfr., inter alia, na jurisprudência, acórdãos do STJ de 16.11.2023 (processo nº 31206/15.7T8LSB.E1.S1), de 19.02.2015 (processo 299/05.6TBMGD.P2.S1), de 18.05.2004 (processo nº 05A1334), de 1.03.2007 (processo nº 06S3405), de 13.07.2006 (processo nº 06S1079) e de 8.03.2006 (processo nº 05S3823), acórdãos da Relação do Porto de 13.10.2015 (processo nº 127/12.3TVPRT.P1), de 22.09.2014 (processo nº 258/14.8TJPRT-B.P1) e de 3.06.2014 (processo nº 2438/11.9TBOAZ), acórdãos da Relação de Lisboa de 23.04.2015 (processo nº 3311/3.TBBRR.L2-6), de 13.03.2014 (processo nº 569/12.7TVLSB.L1) e de 12.02.2014 (processo nº 26/10.6TTBRR.L1) e acórdãos da Relação de Coimbra de 19.12.2012 (processo nº 2312/11.9TBLRA.C1), de 17.03.2010 (processo nº 2493/08.9PCCBR.C1) e de 3.06.2008 (processo nº 245-B/2002.C1), todos disponíveis em www.dgsi.pt; na doutrina, LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 584, AVEIRO PEREIRA, O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil, págs. 11 e seguintes, in www.trl.mj.pt/PDF/Joao%20Aveiro.pdf e ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 133, onde afirma que “o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”. [5]A este propósito, a doutrina, praticamente una voce, tem considerado que o incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento – cfr., por todos, ABRANTES GERALDES, ob. citada, pág. 134 e AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 170; LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 585 e LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 62. Idêntico entendimento tem sido trilhado na jurisprudência, de que constituem exemplo, inter alia, os acórdãos do STJ de 9.02.2012 (processo nº 1858/06.5TBMFR. L1.S1), de 22.09.2011 (processo nº 1368/04.5TBBNV.S1), de 15.09.2011 (processo nº 455/07.2TBCCH.E1.S1), de 21.06.2011 (processo nº 7352/05.4TCLRS.L1.S1), acórdãos da Relação de Lisboa de 13.03.2014 (processo nº 569/12.7TVLSB.L1) e de 12.02.2014 (processo nº 26/10.6TTBRR.L1) e acórdãos da Relação de Coimbra de 19.12.2012 (processo nº 2312/11.9TBLRA.C1), de 17.03.2010 (processo nº 2493/08.9PCCBR.C1) e de 3.06.2008 (processo nº 245-B/2002.C1), todos disponíveis em www.dgsi.pt; na doutrina, LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 584, AVEIRO PEREIRA, O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil, págs. 11 e seguintes, in www.trl.mj.pt/PDF/Joao%20Aveiro.pdf e ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 133, onde afirma que “o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”. [6] Nos termos do qual “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo”. Resulta, assim, da exegese do normativo transcrito constituírem requisitos da insolvência culposa: i) o facto inerente à atuação, por ação ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; ii) a ilicitude desse comportamento; iii) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); iv) o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. [7] Como sublinha CARNEIRO DA FRADA (in A responsabilidade dos administradores na insolvência, Revista da Ordem dos Advogados, ano 66, vol. II [setembro], pág. 701), a opção por esta técnica legislativa justifica-se pela necessidade de garantir uma maior “eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências”, favorecendo, para além disso, a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamentos [8]Cfr., por todos, na doutrina, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, pág. 680, CARNEIRO DA FRADA, op. citada, pág. 689 e MENEZES LEITÃO, Direito da Insolvência, 2012, pág. 274; na jurisprudência, acórdãos da Relação de Coimbra de 21.01.2014 (processo nº 174/12.8TJCBR.C1) e de 14.01.2014 (processo nº 785/11.9TBLRA-A.C1) e acórdãos da Relação do Porto de 27.02.2014 (processo nº 1595/10.6TBAMT-A.P2) e de 18.12.2013 (processo nº 41/10.0TYVNG-D.P1), acessíveis em www.dgsi.pt. [9] Isso mesmo é enfatizado por MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, 2015, pág. 132, onde afirma que se tratando de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados no nº 2 do art. 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato. [10] Cfr., inter alia, na doutrina, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, ob. citada, pág. 681, SOVERAL MARTINS, Um Curso de Direito da Insolvência, 2015, pág. 380 e MENEZES LEITÃO, ob. citada, pág. 275; na jurisprudência, acórdão da Relação de Coimbra de 8.02.2011, CJ, ano XXXVI, tomo 1º, pág. 31, acórdão da Relação do Porto de 25.11.2010 (processo nº 814/08.TBVFR) e acórdão da Relação de Guimarães de 12.07.2011 (processo nº 503/10.9TBPTL), ambos disponíveis em www.dgsi.pt. [11] Assim, na doutrina, CATARINA SERRA, O novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução, pág. 122 e, da mesma autora, Decoctor ergo fraudator? A insolvência culposa (esclarecimentos sobre um conceito a propósito de umas presunções), Cadernos de Direito Privado, nº 21, pág. 69, CARNEIRO DA FRADA, ob. citada, pág. 692, CASSIANO SANTOS, Direito Comercial, vol. I, pág. 214 e seguinte e PINTO DE OLIVEIRA, A responsabilidade civil dos administradores pela insolvência culposa, I Colóquio de Direito da Insolvência de Santo Tirso, 2015, pág. 207; na jurisprudência, acórdão do Tribunal Constitucional nº 564/2007, de 13.11, acórdão da Relação de Coimbra de 22.05.2012 (processo nº 1053/10.9TJCBR-K) e acórdãos da Relação do Porto de 22.05.2007 (processo 0722442), de 24.09.2007 (processo 0753853) e de 5.02.2009 (processo 0837835), todos disponíveis em www.dgsi.pt. [12] Como anteriormente se notou, o nº 1 do art. 186º expressamente estabelece que os factos (ilícitos) do administrador só são relevantes para efeitos da qualificação da insolvência como culposa desde que tenham sido cometidos ou omitidos nos “três anos anteriores ao início do processo de insolvência”, sendo que, a este propósito, CARNEIRO DA FRADA (ob. citada, pág. 690 e seguinte) fala de uma “modelação temporal da situação de responsabilidade”.