EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTOS OBJETO DE CESSÃO
USO PROFISSIONAL DE VEÍCULO
Sumário


I - Tendo em consideração que nos termos da alínea c) do n.º 4 do art.º 239º do CIRE no período de cessão, o devedor fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão, há-de entender-se que terão a qualidade de rendimentos todos os acréscimos patrimoniais à esfera jurídico-patrimonial do insolvente que se traduzam em quantias pecuniárias ou bens ou direitos que possam ser convertidos, através da sua transmissão forçada no mercado, em quantias pecuniárias que possam ser colocadas à disposição do fiduciário.
II. A atribuição ao trabalhador de um veículo automóvel para o usar, quer na sua actividade profissional, quer na sua vida particular, não constitui um “rendimento”, no âmbito e para efeitos da exoneração do passivo restante, pois aquele uso é uma realidade que se esgota em si mesma, não tendo tradução numa quantia pecuniária concreta, nem sendo convertível, através da sua transmissão forçada, numa quantia pecuniária.
III. O art.º 9º n.º 1 do CC manda ter em consideração, na interpretação das normas, a unidade do sistema jurídico, o que implica considerar as normas que regulam problemas normativos paralelos.
IV. O direito do trabalho define o que integra “a retribuição” tendo em vista a definição da prestação da entidade empregadora.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

1. Relatório

AA requereu fosse declarado insolvente e a exoneração do passivo restante.
Por sentença de 18/02/2020, transitada em julgado, foi declarada a insolvência do requerente.
A 09/04/2020 a Sra. AI apresentou Relatório nos termos do art.º 155º, onde, além do mais se pronunciou favoravelmente quanto ao despacho inicial de exoneração do passivo restante.

A 14/05/2020 foi proferida a seguinte decisão:
“Concomitantemente com o requerimento por via do qual se apresentou à insolvência, pediu o devedor AA a exoneração do passivo restante, dando cumprimento à exigência imposta pelo n.º 3 do art.º 236.º do CIRE.--
Foi dado cumprimento ao disposto no n.º 4 da citada disposição normativa.---
Não subsistindo motivo que fundamente, nos termos previstos pelo art.º 238.º do CIRE, o indeferimento liminar da pretensão formulada, cumpre proferir despacho nos termos do disposto no art.º 239.º do mencionado diploma legal.---
Terá de atender-se à situação económica e financeira do respectivo agregado familiar e às despesas com habitação, alimentação, electricidade, gás, água, transportes, vestuário e saúde.---
Nessa conformidade, determina-se que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível do insolvente – que corresponderá àquele que ultrapasse o valor de 1 SMN – fique cedido ao Sr. Administrador, que vai investido na condição de fiduciário.---
Durante aquele período de cessão, o insolvente fica obrigado a observar as imposições previstas pelo n.º 4 do citado art.º 239.º do CIRE.---
De acordo com a previsão do art.º 240.º do CIRE, a remuneração do fiduciário e reembolso das suas despesas são da responsabilidade do insolvente.---
Notifique, publique e registe (art.º 247.º do CIRE).---“

A 27/05/2020 a Sra. AI apresentou lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, nos termos do n.º 1 do art.º 129º do CIRE, a qual deu origem ao apenso B – Reclamação de créditos.

Entre os credores reconhecidos consta BB, com um crédito comum, reconhecido pelo valor de € 13.000,00.

A 24/06/2020, no referido apenso B, foi proferida sentença com o seguinte decisório:
“Face à ausência de impugnações e visto o disposto no art.º 130.º, n.º 3 do CIRE, homologa-se a lista de credores reconhecidos elaborada pelo Administrador da Insolvência e junta aos autos, para todos os efeitos legais, devendo, depois de pagas as dívidas da massa insolvente, os créditos comuns ser pagos rateadamente, em face dos valores/quantias a ceder no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante.---
Custas sem tributação autónoma [art.º 304.º do CIRE}.---
Registe e notifique.---“

A 14/05/2022 a Sra. Fiduciária endereçou ao insolvente o e-mail junto com o requerimento de 17/06/2022 solicitando o envio no prazo de 5 dias:
- Recibos de vencimento e\ou outros rendimentos deste último ano (Maio 21 a Abril 22);
- IRS e respectiva Nota Liquidação referente ao último ano (ou documento\informação que comprove a dispensa de entrega);

A 23/05/2022 a Sr. Fiduciária enviou e-mail a insistir.

A 17/06/2022 a Sr. Fiduciária enviou e-mail a insistir.

Na mesma data a sra. Fiduciária informou o tribunal da situação.

A 25/08/2022 foi proferido despacho com o seguinte teor:
Notifique o devedor, na sua pessoa e na pessoa do Ilustre Advogado, para, no prazo de 10 dias, se pronunciar sobre a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no art.º 243.º, n.º 1, al. a) e 239.º, n.º 4, al. a) do CIRE, uma vez que, com grave negligência, não prestou informações necessárias para apurar a sua situação económico-financeiro, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.---

A 09/09/2022 o insolvente veio declarar que começou a trabalhar em Junho de 2022 e juntou os recibos de vencimento
A 14/09/2022 a Sr. Fiduciária apresentou relatório onde consta:
- O Devedor AA continua desempregado aquando do processo de insolvência, vivendo com a ajuda de familiares e amigos.
- O rendimento mensal mínimo disponível atribuído, foi de um salário mínimo nacional, que corresponde no ano de 2021 a um rendimento mínimo mensal de €665,00 e em 2022 de €705,00.
- Não se procede à entrega de valores às entidades indicadas no nº1 do artº 241 do C.I.R.E., considerando que não foram entregues montantes à massa

A 06/10/2022 foi proferido despacho com o seguinte teor:
RELATÓRIO ANUAL DE CESSÃO [2º ANO]
Visto
Uma vez que a soma das quantias auferidas não ultrapassa o valor fixado como indisponível, não há lugar a qualquer entrega à Fidúcia.---

A 13/07/2023 a Sra. Fiduciária apresentou Relatório Anual relativamente ao 3º ano onde afirma:
- O Devedor AA esteve desempregado até Maio de 2022.
Em Junho de 2022 começou a trabalhar na Firma EMP01..., Lda, como vendedor de centros de contacto.
Em Setembro de 2022 mudou para a Firma EMP02... Unipessoal, Lda como Consultor financeiro e de investimentos, tendo auferido o seu vencimento mensal, o qual integra o pagamento em duodécimos do subsídio de férias e de natal.
- O rendimento mensal mínimo disponível atribuído, foi de um salário mínimo nacional, que corresponde no ano de 2022 a um rendimento mínimo mensal de €705,00 e em 2023 de €760,00.
- Foi entregue pelo Devedor os respectivos recibos de vencimento. Mais informou que não declarou rendimentos em sede de IRS, não juntou comprovativo por ter pedido reenvio de senha de acesso ao portal das finanças.
- No mapa “Resumo de Valores” em anexo, verifica-se que não foi excedido o rendimento mensal mínimo disponível atribuído.
- Não se procede à entrega de valores às entidades indicadas no nº1 do artº 241 do C.I.R.E., considerando que não foram entregues montantes à massa insolvente.
(…)
FINAL do 3º ANO:
- Quanto à decisão final da exoneração, e face ao exposto e cumprimento por parte do Devedor quanto ao previsto no art.º 239.º do CIRE, pronuncio-me a favor da concessão da exoneração do passivo restante nos termos do disposto no artº 244º do Cire”.

Notificados os credores, a 26/07/2023 pronunciou-se o credor BB invocando:
“Do relatório de exoneração do passivo restante apresentado pela Administradora da Insolvência, a qual se pronuncia a favor da concessão da exoneração do passivo restante, refere-se que o devedor esteve desempregado até Maio de 2022, tendo começado a trabalhar para a firma EMP01.... Lda.
O que não corresponde à verdade.
Ora já antes dessa data, pelo menos desde fevereiro desse ano, o devedor AA prestava serviços de angariação de clientes, elaboração de orçamentos, apresentação de projetos a investidores, etc.. conf. doc. 1 que se junta – os quais foram remunerados.
Mais refere o mesmo relatório que desde setembro de 2022 o devedor AA passou a trabalhar para a firma EMP02... Unipessoal Lda.
A firma “EMP02... Unipessoal Lda” tem como única sócia CC, mãe do devedor AA – conf. doc. 2
Por sua vez o devedor AA é o socio gerente dessa sociedade unipessoal – vide doc. 2
No ano de 2022 os pais de AA, depois de terem feito doações de prédios urbanos às suas duas únicas irmãs – conf. doc. 3 e 4 - venderam um prédio urbano, sito na União de Freguesias ... e ..., Rua ..., ....
Para tanto no decorrer do ano de 2022 foi celebrado contrato promessa de compra e venda desse prédio e a escritura definitiva de compra e venda foi celebrada no corrente ano de 2023.
O referido contrato promessa foi negociado pelo devedor AA, comportando-se como dono do prédio, nele acordando com os compradores o preço total do negócio, recebendo a quantia paga a título de sinal e acordando as demais condições do negócio.
Com o produto da venda foi constituída a referida sociedade “EMP02... Unipessoal, Lda”, sendo o devedor AA, seu gerente.
Nessa qualidade o devedor pavoneia-se pela cidade ..., conduzindo uma viatura ligeira de passageiros, marca ..., Modelo ..., matricula ..-..-NR, cujo valor comercial ascendo a € 70.000,00 (setenta mil euros) – conf. doc. 5 que protesta juntar no prazo de 3 dias.
Frequenta os melhores restaurantes da cidade e comportando-se como alguém que tem fundos financeiros para levar uma vida financeiramente desafogada.
No seu dia a dia o devedor AA revela evidentes sinais de riqueza.
Na verdade, apesar de juridicamente a sociedade “EMP02...” pertencer a sua mãe, a verdade é que de facto o insolvente AA é o seu verdadeiro dono.
Dessa forma, obtusamente, esquiva-se ao pagamento das suas obrigações pecuniárias para com os seus credores, nomeadamente, do aqui reclamante.
Pois camufla o seu património recorrendo a familiares, os quais lhe “emprestam” o nome para assegurar a titularidade do seu património, sendo certo que o seu verdadeiro dono é o insolvente AA, donde retira os rendimentos suficientes para levar uma vida manifestamente faustosa.
O insolvente furta-se também às suas obrigações enquanto contribuinte não declarando os seus rendimentos em sede de IRS referentes ao ano de 2022 e assim não publicitando os seus ganhos.
Para tanto recorre á desculpa de ter perdido a senha de acesso ao portal das finanças!!!
Com expedientes destes pretende o devedor AA furtar-se ao cumprimento das suas obrigações.
Esses factos revelam que o insolvente AA não foi transparente com o Tribunal nem com os credores, pelo que tal deve ser ponderado para efeitos de exoneração do passivo restante e outros que o Tribunal considere pertinentes.
O comportamento socio económico do insolvente, configura uma situação que não se coaduna com a figura de quem pretende exonerar-se das suas dividas, pois mantem uma atitude que afronta os credores a quem não pagou e ludibriou.
No nosso ordenamento jurídico a exoneração do passivo restante exige para além de requisitos procedimentais, outros substanciais e até mesmo de conduta como se infere do ponto 45 do CIRE:”… A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício de exoneração.”.
O devedor não tem direito á exoneração do passivo de per se… Terá de patentear uma retidão de comportamento que lhe permita ser encarado como alguém merecedor de reentrar no “convívio” económico e financeiro – cfr José Gonçalves Ferreira em “A exoneração do passivo restante”, Coimbra Editora O que não se verificou de todo com o insolvente AA.
Nestes termos deve o presente requerimento ser atendido para efeitos de apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, devendo este ser indeferido por violação do art. 238º, nº 1, al) e g) do CIRE.
(…)”

Juntou prova documental e arrolou testemunhas.

A 14/08/2023 pronunciou-se a Sra. Fiduciária dizendo que:
- As informações prestadas relativamente ao 3º ano do período de cessão, são as que constam nos documentos em anexo :
- Comunicação do Ilustre Mandatário do devedor aos autos;
- Recibos de vencimento de Junho de 2022 a Março de 2023;
- Email do Devedor a 30.06.2023 em como não tinha senha de acesso ao portal das finanças;
- Email enviado ao Devedor a 13.07.2023, a reforçar o envio referente às declarações do IRS referente ao ano de 2021 e 2022.
- Desconheço os factos elencados pelo credor BB.
- Perante a informação da viatura, de matrícula ..-..-NR, solicitei a informação perante a Conservatória do Registo Automóvel, na qual consta (cfr documento em anexo):

E da informação anexa resulta que a viatura está registada na CRA a favor de EMP03..., Ldª
Pronunciou-se o insolvente impugnando a factualidade alegada e dizendo que o veículo automóvel foi adquirido pela sociedade EMP02... – Unipessoal, Ldª.
Posteriormente foi proferido despacho a ordenar a notificação do insolvente e dos credores nos termos e para os efeitos do art.º 244º do CIRE.

A 25/09/2023 pronunciou-se o credor BB nos seguintes termos:
“1 – O credor reitera o teor do seu requerimento de 26.07.2023, com a referência Citius 4104577.
Acresce dizer o que segue,
2 – No período da cessão o devedor nunca fez qualquer esforço para pagar qualquer rendimento à massa insolvente, resultando que nesse período não entregou qualquer valor à massa insolvente.
3 - Por outro lado o devedor não cumpriu as obrigações a que estava obrigado, nomeadamente, a apresentação das declarações de IRS e nota de liquidação referentes aos anos de 2021 e 2022.
4 - Com esse comportamento o devedor pretende esconder os seus ganhos, o que leva a presumir, necessariamente, uma clara intenção de ocultação de rendimentos, violando grosseiramente uma das obrigações a que está adstrito.
5 – Para além do mais, ostenta sinais exteriores de riqueza, conduzindo viatura de luxo, que o próprio devedor confessa que conduz, apesar de referir ter sido adquirida pela sociedade “EMP02... Unipessoal, Lda”, cuja sócia única é sua mãe e ele, devedor, gerente.
6 – A mãe do devedor, sócia única da “EMP02...…”, reformada com mais de setenta anos, não tem quaisquer conhecimentos nem nunca desenvolveu qualquer actividade na área de consultadoria para apoio aos negócios em geral e à gestão de investimentos, assim como nada entende de organização e gestão das empresas, implementação de conceitos de gestão e elaboração de projectos.
7 – Conforme acima se referiu o devedor confessou que conduz viatura topo de gama, movido a energia eléctrica, adquirida pela “EMP02...…” da qual é gerente.
8 – Mais confessa, o devedor, que conduz a referida viatura nas suas deslocações profissionais, pessoais e particulares.
9 – Apesar da confissão do devedor, a verdade é que a viatura em questão – Jaguar, matricula ..-..-NR – que é conduzida pelo devedor ao serviço da sociedade “EMP02...…” e que a usa, também, para fins pessoais, não está registada a favor desta sociedade.
10 – É assim manifesta uma evidente confusão de patrimónios.  Aliás muito se estranha que a sociedade “EMP02...…”, que  iniciou o seu giro comercial em Setembro de 2022 (vide certidão de matricula junta como doc. 2 do requerimento apresentado em 26.07.2023 pelo aqui credor), com um capital social de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), retribua o gerente com salário inferior ao salário mínimo nacional e em contrapartida lhe atribua viatura topo de gama, com valor de mercado superior a € 70.000,00, para se fazer conduzir nas suas deslocações.
11 – Com esta confusão de patrimónios o devedor visa, tão só, manter um nível de vida opulento e, simultaneamente, furtando-se ao cumprimento das suas obrigações para com os seus credores.
12 – Sem prejuízo do acabado de expor, mais se dirá que nos termos do art. 276º do Código do Trabalho a retribuição do trabalho “é satisfeita em dinheiro ou … em prestações não pecuniárias”, estabelecendo o art. 259º do mesmo diploma que estas se “destinam à satisfação de necessidades pessoais do trabalhador ou da sua família…”. Pelo que,
13 – O uso da viatura ..-..-NR, para fins pessoais do devedor e da sua família integram o conceito de retribuição pela prestação de trabalho.
14 – Ora tal rendimento não pecuniário não se encontra refletido no recibo de vencimento do devedor, como devia,
15 – Consubstanciando tal omissão um comportamento que visa ocultar rendimentos.
16 – Tanto assim que o Código do IRS no seu art. 2º considera rendimentos do trabalho “os resultantes da utilização pessoal pelo trabalhador ou membro de órgão social de viatura automóvel…” e por via disso sujeita a tributação,
17 – Segundo a fórmula de cálculo inserta do art. 24º do Código de IRS, ou seja: Valor a tributar = Valor de mercado (reportado a 1 de janeiro do ano em causa) x 0,75% x meses de utilização.
18 – Ora, considerando o valor de mercado da viatura topo de gama Jaguar que se cifra em € 70.000,00, aplicando aquela fórmula de cálculo, o uso mensal da viatura para fins pessoais, representa um rendimento mensal para o devedor que ascende a € 525,00.
19 – Que não declara e, por isso, representa uma evidente ocultação de rendimentos.
20 – Tudo com o propósito de não pagar a quem deve.
21 – Nos últimos três anos a conduta do devedor não foi pautado pelas regras da transparência e da boa fé, da seriedade e da honestidade; pelo contrário assumiu um padrão de vida que não se coaduna com a sua qualidade de devedor, nem com os rendimentos que declara ter auferido nesse período.
22 – O devedor incumpriu assim as obrigações que lhe estavam consignadas e fê-lo com o propósito de evitar o pagamento de qualquer quantia aos seus credores, prejudicando assim a satisfação dos créditos destes.
23 – Atento o exposto, exonerar o devedor do passivo restante seria uma via para, de forma fácil, o devedor se libertar das suas dívidas, colocando-se, assim, em crise o instituto da insolvência, o qual visa permitir ao insolvente o restabelecimento de uma vida financeiramente equilibrada, desde que cumpra as obrigações a que está adstrito no período de cessão.
Nestes termos deve o presente requerimento ser atendido para efeitos de apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, devendo este ser indeferido por incumprimento e violação das regras a que estava obrigado, entre outros, do art. 238º, nº 1, al. g) e art. 239º, nº 4, al) a) e c) do CIRE.”

Também o insolvente se pronunciou.

A 18/10/2023 foi proferida a seguinte decisão:
“Nos presentes autos de insolvência foi liminarmente concedida a exoneração do passivo restante, tendo já transcorrido o período de cessão.---
O Fiduciário veio, entretanto, juntar aos autos parecer, nos termos do qual deixou expressa a sua não oposição à concessão definitiva da exoneração do passivo restante, sendo que tal posição mereceu apenas a oposição por parte do credor BB.--

*
De acordo com o disposto no art.º 244.º, n.º 1 do CIRE, não tendo havido lugar a cessação antecipada, o Tribunal decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência.---
Por sua vez, prevê o n.º 2 do art.º 244.º do CIRE que a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do art.º 243.º do mesmo código, sendo que, nos termos da al. a) do n.º 1 deste último normativo, ainda antes de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.---
Ora, tendo em conta que, face aos elementos constantes dos autos, durante o período de cessão o devedor não violou as obrigações que lhe são impostas pelo art.º 239.º do CIRE, verifica-se que não há fundamento para recusar a exoneração, nos termos do disposto no art.º 244.º do CIRE.---
*
Pelo exposto, concede-se a exoneração do passivo restante ao devedor AA, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 244.º e 245.º do CIRE.--
Registe, notifique e publicite [art.º 247.º do CIRE].---

O credor BB interpôs recurso.

Nesta RG foi proferida decisão singular com o seguinte teor:
- declara-se nula, por omissão de pronúncia, a decisão de 18/10/2023;
- determina-se a devolução dos autos à 1ª instância a fim de proferir decisão nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 244º do CIRE – ou seja, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor -, em que aprecie (tendo em consideração o que acima ficou referido), a questão suscitada pelo recorrente nos seus requerimentos de 26/07/2023 e 25/09/2023, isto é, a não concessão da exoneração do passivo restante do devedor.

Devolvido os autos à 1ª instância foi designada data para produção de prova, a qual se realizou com inquirição de uma testemunha.

Seguidamente foi proferida decisão com o seguinte teor:
“ (…)
Ora, tendo em conta que, face aos elementos constantes dos autos, designadamente ante a falta de prova quanto à factualidade alegada pelo credor BB, conclui-se que, durante o período de cessão o devedor não violou as obrigações que lhe são impostas pelo art.º 239.º do CIRE, pelo que se verifica que não há fundamento para recusar a exoneração, nos termos do disposto no art.º 244.º do CIRE.---
*
Pelo exposto, concede-se a exoneração do passivo restante ao devedor AA, nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 244.º e 245.º do CIRE.---
Registe, notifique e publicite [art.º 247.º do CIRE].---

Inconformado, o credor BB interpôs recurso, pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por acórdão que não conceda a exoneração do passivo restante ao devedor AA, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1.Da decisão final da exoneração do passivo restante o Tribunal deve considerar todos os factos constantes nos autos, imprescindíveis à prolação de uma boa decisão.
2.No período de cessão o devedor furtou-se ás suas obrigações não apresentando as suas declarações de rendimentos anuais, nem as respectivas notas de liquidação do IRS referentes aos anos de 2021 e 2022.
3.O devedor confessa que a viatura por si conduzida durante o período de cessão (marca ..., Modelo ..., matrícula ..-..-NR, com o valor comercial de € 70.000,00) foi adquirida pela sociedade EMP02... Unipessoal, Lda.
4.A referida viatura era conduzida pelo devedor para fazer face às suas deslocações profissionais na qualidade de gerente da EMP02... Unipessoal, Lda e algumas particulares – pontos 3 e 4 dos factos provados.
5.Durante o período de cessão o devedor nunca pagou qualquer rendimento à massa insolvente.
6.O devedor auferia remuneração pelo exercício das funções de gerente da EMP02... Unipessoal, Lda.
7.Os factos enunciados não foram considerados no rol dos “factos provados” no despacho final que decidiu o incidente de exoneração do passivo restante.
8.Ao não apresentar as declarações de rendimentos e respectivas notas de liquidação referentes aos anos de 2021 e 2022, o devedor pretendeu esconder os seus ganhos, o que leva a presumir, necessariamente, uma clara intenção de ocultação de rendimentos, violando grosseiramente uma das obrigações a que estava adstrito.
9.Nos termos do art. 276º do Código do Trabalho a retribuição do trabalho pode ser parcialmente satisfeita em prestações não pecuniárias, estabelecendo o art. 259º do mesmo diploma que estas se “destinam à satisfação de necessidades pessoais do trabalhador ou da sua família…”.
10.O uso da viatura ..-..-NR, para fins pessoais do devedor e da sua família integram o conceito de retribuição pela prestação de trabalho.
11.Esse rendimento não pecuniário não se encontra refletido no recibo de vencimento do devedor AA.
12.É assim que o Código do IRS no seu art. 2º considera rendimentos do trabalho “os resultantes da utilização pessoal pelo trabalhador ou membro de órgão social de viatura automóvel…” e por via disso sujeita a tributação.
13.Atento valor comercial da viatura topo de gama marca ..., nos termos formulados no mesmo CIRS, o uso da viatura para fins pessoais, representa um rendimento mensal para o devedor que ascende a € 525,00.
14.O devedor AA, não declarou esse rendimento em sede de IRS e não os deu a conhecer à massa insolvente.
15. Tal omissão visa ocultar rendimentos.
16.Durante o período da cessão a conduta do devedor não foi pautado pelas regras da transparência e da boa fé, da seriedade e da honestidade.
17.Esses factos revelam que o insolvente AA não foi transparente com o Tribunal nem com os credores, pelo que tais factos devem ser ponderados para efeitos de exoneração do passivo restante, o que o Tribunal a quo não fez.
18.O comportamento socio económico do insolvente, configura uma situação que não se coaduna com a figura de quem pretende exonerar-se das suas dividas.
19.O devedor incumpriu assim as obrigações que lhe estavam consignadas e fê-lo com o propósito de evitar o pagamento de qualquer quantia aos seus credores, prejudicando assim a satisfação dos créditos destes.
20.Razões pelas quais não deve ser concedido ao devedor a exoneração do passivo restante por incumprimento e violação das regras a que estava obrigado, entre outros, do artºs 238º, nº 1, al. g) e art. 239º, nº 4, al. a) e c) do CIRE.
21.Os autos contem elementos documentais dos quais depende a aplicação, à situação vertente do preceituado no art. 662º, nº 1 do CPC, ou seja, que está ao alcance desta 2ª instância a alteração da decisão proferida em 1ª instância.
22.Na verdade, atenta a prova constante nos autos, crê o recorrente que existem no processo elementos que impunham ao Tribunal recorrido decisão diversa da proferida.
23.Com a devida vénia ao decidir como consta nos autos a Mma Juiz a quo fez errada interpretação do direito, violando nomeadamente o disposto nos artigos 238º, nº 1, al. g) e art. 239º, nº 4, al. a) e c) do CIRE 3º e art. 607º nº 4 e 615º, nº 1, al. b) do CPC.

O insolvente contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

2. Questões a apreciar

(......)

São duas as questões que cumpre apreciar:
- a decisão de facto não contempla todos os factos relevantes alegados pelo recorrente e o autos contêm todos os elementos para esta Relação ampliar a decisão de facto, fazendo uso do disposto no art.º 662º, n.º 2, alínea c) do CPC (pese embora o recorrente se refira ao n.º 1 do mesmo normativo), questão que, além de invocada no recurso, como decorre do corpo do n.º 2 do art.º 662º, é de conhecimento oficioso;
- a factualidade provada impõe que seja proferida decisão de não concessão da exoneração do passivo restante ao insolvente.

3. Fundamentação de facto

3.1. O tribunal recorrido considerou:
Os factos provados, com interesse para a decisão a proferir, são os seguintes:---
1. O Devedor esteve desempregado até Maio de 2022.---
2. Em Junho de 2022, o Devedor começou a trabalhar na sociedade EMP01..., Ld.ª, como vendedor de centros de contacto.---
3. Em Setembro de 2022, o Devedor passou exercer funções para a sociedade EMP02... Unipessoal, Ld.ª, que tem como única sócia CC, mãe daquele, inicialmente como Consultor financeiro e de investimentos, e posteriormente como gerente.---
4. Naquela qualidade, para fazer face às suas deslocações profissionais e algumas particulares, designadamente para satisfazer as necessidades de seus pais, o devedor habitualmente circula pela cidade ... ao volante de uma viatura ligeira de passageiros, marca ..., Modelo ..., matrícula ..-..-NR, cujo valor comercial ascende a € 70.000,00.---
5. No ano de 2022, os pais do devedor venderam um prédio urbano, sito na União de Freguesias ... e ..., Rua ..., tendo para tanto, no decorrer do ano de 2022, sido celebrado contrato promessa de compra e venda desse prédio e a respectiva escritura definitiva sido celebrada no corrente ano de 2023.---
*
Os factos não provados, com interesse para a decisão a proferir, são os seguintes:---
a) Pelo menos desde ../../2022 que o Devedor prestava por conta da EMP01..., Ld.ª, serviços de angariação de clientes, elaboração de orçamentos, apresentação de projetos a investidores, etc..---
b) O contrato promessa referido em 4. dos factos provados foi negociado pelo devedor, comportando-se como dono do prédio, nele acordando com os compradores o preço total do negócio, recebendo a quantia paga a título de sinal e acordando as demais condições do negócio.---
c) Com o produto da venda foi pelo Devedor constituída a sociedade “EMP02... Unipessoal, Lda”, sendo aquele o seu verdadeiro dono.---
d) O Devedor frequenta habitualmente os melhores restaurantes da cidade, assim se comportando como alguém que tem fundos financeiros para levar uma vida financeiramente desafogada.---
e) No seu dia a dia, o Devedor revela evidentes sinais de riqueza, camuflando porém o seu património recorrendo a familiares, os quais lhe “emprestam” o nome para assegurar a titularidade do seu património, esquivando-se assim ao pagamento das obrigações pecuniárias para com os seus credores.---
f) O Devedor tem-se ainda furtado às suas obrigações enquanto contribuinte, não declarando os seus rendimentos em sede de IRS, nomeadamente os referentes ao ano de 2022, assim não publicitando os seus ganhos.---

3.2. A decisão de facto carece de ser ampliada ?
A decisão de facto pode apresentar diversas patologias:
i) - conter asserções conclusivas, genéricas ou matéria de direito;
ii) - revelar-se excessiva;
iii) - ser deficiente, obscura ou contraditória;
iv) - carecer de ampliação;
v) - não estar devidamente fundamentada;
vi) - haver erro de apreciação da prova, isto é, pode o tribunal a quo ter dado como provados factos que face à prova produzida deviam ter sido considerados não provados ou vice-versa.

As patologias referidas nos pontos i) a v) são de conhecimento oficioso, na medida em que constituem aplicação do direito processual; a patologia referida no ponto vi) carece de ser invocada, mediante impugnação da decisão de facto, referida no art.º 640º do CPC.

Dispõe a alínea c) do n.º 2 do art.º 662º do CPC que a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
(…)
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.

À luz deste normativo, desde que os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente (n.º 1 do art.º 662º) o permitam, a Relação deverá ampliar a decisão de facto.

A decisão carece de ser ampliada se houver falta de pronúncia do tribunal a quo sobre factos alegados, essenciais à procedência da pretensão deduzida, ou seja, sobre factos que têm a virtualidade de preencher a previsão normativa (facti species) favorável a tal pretensão, na perspetiva do efeito pretendido, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso.

Sendo assim, o que está em causa é saber se o recorrente alegou factualidade essencial à sua pretensão de não concessão definitiva da exoneração do passivo restante ao insolvente, que não foi considerada na decisão recorrida.

Vejamos

No seu requerimento de 25/09/2023 alegou:
3 - Por outro lado o devedor não cumpriu as obrigações a que estava obrigado, nomeadamente, a apresentação das declarações de IRS e nota de liquidação referentes aos anos de 2021 e 2022.
4 - Com esse comportamento o devedor pretende esconder os seus ganhos, o que leva a presumir, necessariamente, uma clara intenção de ocultação de rendimentos, violando grosseiramente uma das obrigações a que está adstrito.

Neste ponto importa considerar que no seu requerimento de 26/07/2023 o recorrente alegou:
O insolvente furta-se também às suas obrigações enquanto contribuinte não declarando os seus rendimentos em sede de IRS referentes ao ano de 2022 e assim não publicitando os seus ganhos.
Para tanto recorre á desculpa de ter perdido a senha de acesso ao portal das finanças!!!

Não ficou provado (alínea f) dos factos não provados) e não foi impugnado no recurso:
f) O Devedor tem-se ainda furtado às suas obrigações enquanto contribuinte, não declarando os seus rendimentos em sede de IRS, nomeadamente os referentes ao ano de 2022, assim não publicitando os seus ganhos.---

Destarte, vislumbra-se, ainda que de forma imperfeita, o que o recorrente pretendia alegar é que no período de cessão o insolvente não apresentou à Sra. Fiduciária as declarações de rendimentos anuais, nem as respectivas notas de liquidação do IRS referentes aos anos de 2021 e 2022.

E isto é um facto, pois é o que resulta do requerimento da Sra. Fiduciária de 17/06/2022 e que levou o tribunal a proferir o despacho de 25/08/2022, no qual determina seja notificado o insolvente para, no prazo de 10 dias, se pronunciar sobre a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante, nos termos do disposto no art.º 243.º, n.º 1, al. a) e 239.º, n.º 4, al. a) do CIRE, uma vez que, com grave negligência, não prestou informações necessárias para apurar a sua situação económico-financeiro, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.---

Sucede que a 09/09/2022 o insolvente veio declarar que começou a trabalhar em Junho de 2022 e juntou os recibos de vencimento.

E a 14/09/2022 a sra. Fiduciária juntou Relatório em que refere que
- O Devedor AA continua desempregado aquando do processo de insolvência, vivendo com a ajuda de familiares e amigos.
- O rendimento mensal mínimo disponível atribuído, foi de um salário mínimo nacional, que corresponde no ano de 2021 a um rendimento mínimo mensal de €665,00 e em 2022 de €705,00.
- Não se procede à entrega de valores às entidades indicadas no nº1 do artº 241 do C.I.R.E., considerando que não foram entregues montantes à massa

E finalmente a 06/10/2022 foi proferido despacho com o seguinte teor:
RELATÓRIO ANUAL DE CESSÃO [2º ANO]
Visto
Uma vez que a soma das quantias auferidas não ultrapassa o valor fixado como indisponível, não há lugar a qualquer entrega à Fidúcia.---

Prosseguindo, a 13/07/2023 a Sra. Fiduciária apresentou Relatório Anual relativamente ao 3º ano onde afirma:
- O Devedor AA esteve desempregado até Maio de 2022.
Em Junho de 2022 começou a trabalhar na Firma EMP01..., Lda, como vendedor de centros de contacto.
Em Setembro de 2022 mudou para a Firma EMP02... Unipessoal, Lda como Consultor financeiro e de investimentos, tendo auferido o seu vencimento mensal, o qual integra o pagamento em duodécimos do subsídio de férias e de natal.
- O rendimento mensal mínimo disponível atribuído, foi de um salário mínimo nacional, que corresponde no ano de 2022 a um rendimento mínimo mensal de €705,00 e em 2023 de €760,00.
- Foi entregue pelo Devedor os respectivos recibos de vencimento. Mais informou que não declarou rendimentos em sede de IRS, não juntou comprovativo por ter pedido reenvio de senha de acesso ao portal das finanças.
- No mapa “Resumo de Valores” em anexo, verifica-se que não foi excedido o rendimento mensal mínimo disponível atribuído.
- Não se procede à entrega de valores às entidades indicadas no nº1 do artº 241 do C.I.R.E., considerando que não foram entregues montantes à massa insolvente.
(…)
FINAL do 3º ANO:
- Quanto à decisão final da exoneração, e face ao exposto e cumprimento por parte do Devedor quanto ao previsto no art.º 239.º do CIRE, pronuncio-me a favor da concessão da exoneração do passivo restante nos termos do disposto no artº 244º do Cire”.

Nos termos da alínea a) do n.º 4 do art.º 239º do CIRE, durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;

Muito embora seja um facto que o recorrido não entregou à Sra. Fiduciária as declarações de IRS de 2021 e 2022 e nota de liquidação, desde logo isso não revela, por si só e como é por demais evidente, qualquer ocultação ou dissimulação de rendimentos.

A afirmação do recorrente de que a não entrega das declarações de IRS de 2021 e 2022 e nota de liquidação respetiva tinha como objectivo ocultar rendimentos padece de um vício lógico.

É que só seria possível afirmá-lo se e na medida em que se apurasse que aqueles elementos continham rendimentos superiores aos que o insolvente declarou à Sra. Fiduciária.

Sucede que nem a Sra. Fiduciária requereu ao tribunal que oficiasse ao Serviço de Finanças pela junção daqueles elementos, nem o recorrente o fez, nem o tribunal o ordenou oficiosamente e, portanto, não é possível fazer aquela afirmação.

Por outro lado, é certo que nos termos da 2ª parte da alínea a) do n.º 4 do art.º 239º do CIRE, o insolvente está obrigado a “informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos”.
A obrigação do insolvente não é a de entregar a declaração de IRS e nota de liquidação. Esta será uma obrigação fiscal, questão que não tem aqui cabimento.

É certo que aquela obrigação pode ser cumprida por essa via, mas não só, bem podendo ser mediante entrega dos recibos de salário.

E foi o que sucedeu no caso.

Destarte a factualidade em referência não é, por si só, essencial à pretensão do recorrente de não concessão definitiva da exoneração do passivo restante ao insolvente.

O recorrente alega ainda que o recorrido confessou que o veículo foi adquirido pela sociedade EMP02..., Ldª, facto que não foi considerado.

Efectivamente tal factualidade não consta da factualidade provada ou não provada.

Mas o mesmo não é um facto essencial.

No limite seria um facto instrumental para considerar, por presunção, que o recorrido usa a viatura por atribuição da referida sociedade.

Mas então cabe perguntar se está provado que o veículo foi efectivamente adquirido pela referida sociedade, nomeadamente por confissão do recorrido.

Vejamos

Num primeiro momento o ora recorrente alegou:
“(…)
A firma “EMP02... Unipessoal Lda” tem como única sócia CC, mãe do devedor AA – conf. doc. 2
Por sua vez o devedor AA é o socio gerente dessa sociedade unipessoal – vide doc. 2
No ano de 2022 os pais de AA, depois de terem feito doações de prédios urbanos às suas duas únicas irmãs – conf. doc. 3 e 4 - venderam um prédio urbano, sito na União de Freguesias ... e ..., Rua ..., ....
Para tanto no decorrer do ano de 2022 foi celebrado contrato promessa de compra e venda desse prédio e a escritura definitiva de compra e venda foi celebrada no corrente ano de 2023.
O referido contrato promessa foi negociado pelo devedor AA, comportando-se como dono do prédio, nele acordando com os compradores o preço total do negócio, recebendo a quantia paga a título de sinal e acordando as demais condições do negócio.
Com o produto da venda foi constituída a referida sociedade “EMP02... Unipessoal, Lda”, sendo o devedor AA, seu gerente.
Nessa qualidade o devedor pavoneia-se pela cidade ..., conduzindo uma viatura ligeira de passageiros, marca ..., Modelo ..., matricula ..-..-NR, cujo valor comercial ascendo a € 70.000,00 (setenta mil euros) – (…)”.

E o recorrido veio dizer que o veíclo automóvel foi adquirido pela sociedade EMP02... – Unipessoal, Ldª.

Porém, não estamos perante uma confissão.

Desde logo verifica-se que o recorrente não alegou que a viatura em causa tinha sido adquirida pela EMP02... – Unipessoal, Ldª.

Por outro lado, a resposta do recorrido há-de ser interpretada no contexto da alegação do recorrente – o recorrido camufla o seu património recorrendo a familiares, os quais lhe “emprestam” o nome para assegurar a titularidade do seu património - a alegação do recorrido visa desconsiderar a possibilidade de a viatura ser considerada sua propriedade.

Além disso, a 25/09/2023 e depois de notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 244º do CIRE, o ora recorrente veio colocar em causa a alegação do recorrido, dizendo que a viatura não está registada a favor da sociedade e que “muito se estranha que a sociedade “EMP02...…”, que  iniciou o seu giro comercial em Setembro de 2022 (…), com um capital social de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), retribua o gerente com salário inferior ao salário mínimo nacional e em contrapartida lhe atribua viatura topo de gama, com valor de mercado superior a € 70.000,00, para se fazer conduzir nas suas deslocações.
11 – Com esta confusão de patrimónios o devedor visa, tão só, manter um nível de vida opulento e, simultaneamente, furtando-se ao cumprimento das suas obrigações para com os seus credores.”

Neste contexto, não é possível considerar a declaração do recorrido como confessória.

Cabe, no entanto, perguntar se foi produzida outra prova adequada do facto.

E a resposta é negativa, não tendo sido junta qualquer documentação comprovativa de que foi a referida sociedade que pagou o preço, sendo certo que, inclusive, do ponto de vista registral, o único elemento junto aos autos foi a informação junta pela Sra. Fiduciária, donde resulta que a viatura está registada na CRA a favor de EMP03..., Ldª

Alega ainda o recorrente que dos autos resulta também que durante o período da cessão o devedor nunca pagou qualquer rendimento à massa insolvente, assim como deles também resulta que o devedor auferia remuneração enquanto gerente da EMP02... Unipessoal, Lda (vide documentos juntos no requerimento da fiduciária de 14.08.2023, com a refª ...54).

Consta do Relatório da Sra. Fiduciária de 13/07/2023 que:
- O rendimento mensal mínimo disponível atribuído, foi de um salário mínimo nacional, que corresponde no ano de 2022 a um rendimento mínimo mensal de €705,00 e em 2023 de €760,00.
(…)
- No mapa “Resumo de Valores” em anexo, verifica-se que não foi excedido o rendimento mensal mínimo disponível atribuído.

Neste quadro só relevaria a alegação e prova de que o insolvente auferia uma remuneração superior à declarada à Sra. Fiduciária, situação que integraria a alínea a) do n.º 4 do art.º 239º - Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título….

Destarte, a alegação do recorrente é inócua.

O recorrente alegou que o uso da viatura integra o conceito de retribuição pela prestação de trabalho; tal rendimento não pecuniário não se encontra refletido no recibo de vencimento do devedor, como devia, consubstanciando tal omissão um comportamento que visa ocultar rendimentos, referindo-se depois ao consta do CIRS.

Mas esta é uma questão de direito.

Em face de tudo o exposto, improcede in totum a pretensão do recorrente de ampliação da matéria de facto.

4. Fundamentação de direito
O recorrente requereu a não concessão (definitiva) da exoneração do passivo restante invocando o disposto na alínea g) do n.º 1 do art.º 238º do CIRE e o disposto no art.º 239º, nº 4, alíneas a) e c) do CIRE.

A decisão recorrida, entendeu, singelamente, que face aos elementos constantes dos autos, designadamente ante a falta de prova quanto à factualidade alegada pelo credor BB, conclui-se que, durante o período de cessão o devedor não violou as obrigações que lhe são impostas pelo art.º 239.º do CIRE, pelo que se verifica que não há fundamento para recusar a exoneração, nos termos do disposto no art.º 244.º do CIRE.---

No recurso a única questão que o recorrente suscita é a de que o uso da viatura pelo recorrido (cfr. factos provados 3 e 4) integra a sua retribuição pela prestação de trabalho, tal rendimento não pecuniário não se encontra refletido no recibo de vencimento do devedor, tal omissão um comportamento que visa ocultar rendimentos.

Vejamos

Dispõe o art.º 244.º, n.º 1 do CIRE que, não tendo havido lugar a cessação antecipada, o tribunal decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência.

E nos termos do n.º 2, a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.

O n.º 1 do art.º 243º do CIRE dispõe:
1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.

A primeira observação que se impõe é que, como resulta da alínea b) do n.º 1 do art.º 243º, relativamente ao disposto no art.º 238º, que dispõe sobre as circunstâncias que dão lugar ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, apenas determinam a sua não concessão (definitiva) as circunstâncias previstas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do art.º 238º, não estando contemplada a circunstância prevista na alínea g) do mesmo.

 A segunda observação é que não tem aplicação a alínea c) do art.º 243º, porquanto face ao que consta dos autos, não foi deduzido incidente de qualificação da insolvência.

Quanto à alínea a) do art.º 243º, o recorrente invocou as alíneas a) e c) do n.º 4 do art.º 239º do CIRE, as quais dispõem:
Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
(…)
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
(…)

Em primeiro lugar, importa não olvidar que, como decorre da parte final da alínea a) do n.º 1 do art.º 243º, a violação de alguma das obrigações impostas ao credor pelo art.º 239º só releva para efeitos de não concessão (definitiva) da exoneração do passivo restante se e na medida em que a mesma tiver causado prejuízo à satisfação dos créditos sobre a insolvência.

Em segundo lugar, as citadas alíneas a) e c) do n.º 4 do art.º 239º estão relacionadas com o disposto nos n.ºs 2 e 3 do mesmo normativo: o primeiro dispõe que o despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário; o segundo dispõe que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão das realidades referidas nas alíneas a) e b) e aqui não releva considerar.

Este conjunto normativo apela, em vários momentos, a um conceito indeterminado, que é o de “rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor”.

Destarte, a questão central é a de saber o que deve ser considerado rendimento no âmbito da exoneração do passivo restante.

Só resolvida esta questão estaremos em condições de saber se o uso de veículo automóvel por um insolvente enquanto trabalhador deve ser considerado rendimento e, em caso afirmativo, se houve ocultação desse rendimento.

Tendo em consideração que nos termos da alínea c) do n.º 4 do art.º 239º do CIRE no período de cessão, o devedor fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão, há-de entender-se que terão a qualidade de rendimentos todos os acréscimos patrimoniais à esfera jurídico-patrimonial do insolvente que se traduzam em quantias pecuniárias ou bens ou direitos que possam ser convertidos, através da sua transmissão forçada no mercado, em quantias pecuniárias que possam ser colocadas à disposição do fiduciário.

Neste quadro não é rendimento a prestação a que é atribuído nominalmente um valor, mas que não se traduz nem é convertível numa quantia concreta que possa ser entregue ao fiduciário e dar pagamento aos credores, sendo, portanto, insusceptível de causar prejuízo à satisfação dos créditos sobre a insolvência.

Ficou provado que:
 3. Em Setembro de 2022, o Devedor passou exercer funções para a sociedade EMP02... Unipessoal, Ld.ª, que tem como única sócia CC, mãe daquele, inicialmente como Consultor financeiro e de investimentos, e posteriormente como gerente;
4. Naquela qualidade, para fazer face às suas deslocações profissionais e algumas particulares, designadamente para satisfazer as necessidades de seus pais, o devedor habitualmente circula pela cidade ... ao volante de uma viatura ligeira de passageiros, marca ..., Modelo ..., matrícula ..-..-NR, cujo valor comercial ascende a € 70.000,00.

A factualidade provada não permite afirmar que se esteja perante um “rendimento”, no âmbito e para efeitos da exoneração do passivo restante, pois aquele uso de uma viatura é uma realidade que se esgota em si mesma, não tendo tradução numa quantia pecuniária concreta, nem sendo convertível, através da sua transmissão forçada, numa quantia pecuniária.

E não sendo um rendimento, carece de fundamento a alegação de que se verificou uma ocultação de rendimentos ao fiduciário.

Mas importa aprofundar a questão porque o recorrente apela a outras normas do sistema jurídico, quer para que se considere retribuição, quer para determinação do valor.
O art.º 9º n.º 1 do CC manda ter em consideração, na interpretação das normas, a unidade do sistema jurídico.

A “unidade do sistema jurídico” implica a “consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins”, ou, dito de outra forma, se “um problema de regulamentação jurídica fundamentalmente idêntico é tratado pelo legislador em diferentes lugares do sistema”, “porque o legislador deve ser uma pessoa coerente e porque o sistema jurídico deve por igual formar um todo coerente, é legítimo recorrer á norma mais clara e explicita para fixar a interpretação de outra norma (paralela) mais obscura ou ambígua.” (cfr. João Baptista Machado, in Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, pág. 183)

O “problema normativo” fulcral é saber se a atribuição ao trabalhador de um veículo automóvel para o usar, quer na sua actividade profissional, quer na sua vida particular, deve ser considerado rendimento no âmbito e para efeitos da exoneração do passivo restante, ou seja, se é uma prestação que possa ser entregue ao fiduciário para o mesmo dar pagamento aos credores.

Vejamos

A questão de saber se o uso de veículo automóvel atribuído pelo empregador ao trabalhador tem ou não natureza retributiva é uma questão debatida no direito laboral.

Nos termos do n.º 1 do art.º 258º do Código de Trabalho considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho.

E nos termos do n.º 2 a retribuição compreende a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, directa ou indirectamente, em dinheiro ou em espécie.

Nos termos do n.º 3 presume-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador.

Mas como se afirma no Ac. do STJ de 03/03/2021, proc. 28857/17.9T8LSB.L1.S1, da secção social, consultável in www.dgsi.pt/jstj, “existe uma jurisprudência consolidada no sentido de que sendo a atribuição do direito, ao trabalhador, de utilização do veículo na sua vida particular, incluindo fins de semana, feriados e férias e ao suportar todos os encargos, designadamente com a sua manutenção, seguro, portagens e combustível, torna essa prestação com carácter de obrigatoriedade. Sendo uma prestação em espécie, com carácter regular e periódico e com valor patrimonial, assume, pois, natureza de retribuição. “

E neste sentido cita dois Ac.s do STJ:
- de 13/02/2019, processo 7847/17.7T8LSB.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, tendo o seguinte sumário:
“I. Provando-se que o empregador atribuiu ao trabalhador um veículo automóvel para seu uso exclusivo, uso profissional e uso particular, incluindo fins de semana, férias e feriados, e que aquele ficou a suportar todos os encargos com a sua manutenção, seguro, portagens e combustível, assume tal prestação natureza retributiva e fica o empregador vinculado a efetuar, com caracter de obrigatoriedade, essa prestação.
II. Tratando-se de uma prestação em espécie, com caracter regular, periódico e com valor patrimonial, que assume feição retributiva, beneficia da garantia da irredutibilidade, nos termos dos artigos 21.º, n.º 1, alínea c), da LCT, 122.º, alínea d), do Código do Trabalho de 2003, e 129.º, n.º 1, alínea d), do Código do Trabalho de 2009.
III. Presumindo-se constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador, nos termos dos artigos 82.º, n.º 3, da LCT, 249.º, n.º 3, do Código do Trabalho de 2003, e 258.º, n.º 3, do Código do Trapalho de 2009, compete ao empregador alegar e provar que a atribuição do veículo automóvel e que o seu uso particular pelo trabalhador não passa de uma mera liberalidade ou de uma mera tolerância por parte daquele.” -

- de 30.04.2014, processo 714/11.00TTPRT.P1. S1, consultável no mesmo sítio, com o seguinte sumário:
“I. Tendo-se provado que o empregador distribuiu ao trabalhador um veículo ligeiro de passageiros para seu uso exclusivo, ficando todos os encargos, manutenção, seguros, portagens e combustível a cargo daquela e que o trabalhador utilizava a viatura para uso exclusivo, nas deslocações da residência para o local de trabalho, nos fins-de-semana e férias, para efeitos pessoais, a mencionada atribuição de veículo automóvel assume natureza retributiva, estando o empregador vinculado a efectuar, com carácter de obrigatoriedade, essa prestação.
II. Tratando-se de uma prestação em espécie com carácter regular e periódico e um evidente valor patrimonial, que assume natureza de retribuição, beneficia, por isso, da garantia de irredutibilidade, prevista nos artigos 21.º, n.º 1, alínea c), da LCT, 122.º, alínea d), do Código do Trabalho de 2003 e 129.º, alínea d), do Código do Trabalho de 2009.
III. Presumindo-se constituir retribuição toda e qualquer prestação do empregador ao trabalhador, competia ao empregador provar que o uso de veículo automóvel atribuído ao trabalhador se tratava de mera liberalidade ou de um acto de mera tolerância, ónus que não se mostra cumprido.”

Por outro lado, quanto ao direito fiscal, o art.º 2.º, n.º 1 dispõe que consideram-se rendimentos do trabalho dependente todas as remunerações pagas ou postas à disposição do seu titular provenientes de: a) Trabalho por conta de outrem prestado ao abrigo de contrato individual de trabalho ou de outro a ele legalmente equiparado;
           
E nos termos do n.º 2 do mesmo normativo, as remunerações referidas no número anterior compreendem, designadamente, ordenados, salários, vencimentos, gratificações, percentagens, comissões, participações, subsídios ou prémios, senhas de presença, emolumentos, participações em multas e outras remunerações acessórias, ainda que periódicas, fixas ou variáveis, de natureza contratual ou não.

Finalmente, nos termos do n.º 3, alínea b), ponto 9) do mesmo normativo consideram-se ainda rendimentos do trabalho dependente os resultantes da utilização pessoal pelo trabalhador ou membro de órgão social de viatura automóvel que gere encargos para a entidade patronal, quando exista acordo escrito entre o trabalhador ou membro do órgão social e a entidade patronal sobre a imputação àquele da referida viatura automóvel.

Se é um facto que o direito do trabalho define o que integra “a retribuição” e se o direito fiscal define o que deve ser considerado “rendimentos”, nenhum deles o faz  tendo em vista resolver o “problema normativo” de saber se a atribuição ao trabalhador de um veículo automóvel para o usar, quer na sua actividade profissional, quer na sua vida particular, deve ser considerado rendimento no âmbito e para efeitos da exoneração do passivo restante, ou seja, se é uma prestação que possa ser entregue ao fiduciário para o mesmo dar pagamento aos credores.

Aquelas definições radicam no facto de cada um dos referidos ramos do direito ter um objecto, finalidade e princípios orientadores próprios.

Assim, o direito do trabalho tem em vista as relações de trabalho subordinado, ou seja, os direitos e deveres das partes no contrato de trabalho – empregador e trabalhador – nomeadamente, o direito do trabalhador à “retribuição” como contrapartida do dever de prestar a sua actividade de acordo com as ordens e instruções que lhe são dadas pelo empregador. Destarte, o objectivo da definição de retribuição é a definição da prestação da entidade empregadora, nomeadamente em caso de litigio.

Na verdade, uma leitura atenta da jurisprudência revela que o que está em causa são situações em que a entidade patronal fez cessar a relação laboral sem justa causa ou fez cessar possibilidade de uso do veículo e o trabalhador pretende que tal possibilidade integrava a sua retribuição e, em função disso, pretende obter o quantitativo correspondente a essa utilização, de que foi privado.

O que tais situações revelam é que o uso do veículo se esgotava em si mesmo, não tendo tradução numa quantia. Só quando tal utilização se deixa de verificar e para efeitos indemnizatórios é que há lugar a uma conversão em quantia, em algumas situações a liquidar em incidente de liquidação.

Por outro lado, o direito fiscal tem em vista as obrigações tributárias, em que são partes o ente público e os contribuintes, que, enquanto sujeitos passivos de tal relação, estão sujeitos à obrigação de efectuar o pagamento da dívida tributária.

Um dos impostos é o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e cuja base de incidência são os “rendimentos”.

Neste contexto, a definição do que sejam “rendimentos” tem em vista a definição da realidade sobre que incide o imposto e a sua cobrança.

Destarte, a resposta à questão colocada tem de ser encontrada única e exclusivamente à luz das normas do CIRE e concretamente à luz da função atribuída aos rendimentos no âmbito da exoneração do passivo restante: dar pagamento aos credores.

Em face do exposto, impõe-se concluir pela inverificação da violação das alíneas a) e c) do n.º 4 do art.º 239º e assim, pela inverificação de invocado fundamento para a não concessão (definitiva) da exoneração do passivo restante, pelo que a decisão recorrida, ainda que com fundamentos acima expressos, deve ser mantida e o recurso julgado improcedente.

As custas da apelação devem ficar a cargo do recorrente por vencido – art.º 527º, n.º 1 e 2 do CPC.

5. Decisão

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 1ª secção da Relação de Guimarães em manter a decisão recorrida, com os fundamentos acima expressos e, em consequência, julgar improcedente o recurso.

Custas pelo recorrente

Notifique-se
Guimarães, 19/09/2024
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator: José Carlos Pereira Duarte
1º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício
2º Adjunto: Gonçalo Oliveira Magalhães