RESPONSABILIDADE DE GERENTES OU ADMINISTRADORES
RESPONSABILIDADE PARA COM A SOCIEDADE
RESPONSABILIDADE PARA COM OS CREDORES SOCIAIS
PRESUNÇÃO DE CULPA
CONFLITO DE INTERESSES
Sumário


1. A responsabilidade dos gerentes ou administradores no plano societário contempla:
- responsabilidade para com a sociedade (artigo 72º do Código das Sociedades Comerciais, doravante designado pelo acrónimo CSC);
- responsabilidade para com os credores sociais (artigo 78º do CSC);
- responsabilidade para com os sócios e terceiros (artigo 79º do CSC).”
2. Existe uma diferença entre a eventual responsabilização por prejuízos causados à insolvente (artº 72º do CSC) e aquilo que é a hipotética responsabilização à generalidade dos credores da insolvência (artº 78º do CSC), sendo certo que no primeiro caso existe uma presunção de culpa, inexistente no segundo.
3. À luz do artº 72º, nº1, do CSC, um dos requisitos para o administrador de uma sociedade (no caso a requerida) ilidir a presunção de culpa que sobre si recaía, era a de provar a ausência de conflito de interesses entre a sua atuação e o interesse da sociedade. Ao descapitalizar a conta bancária em proveito próprio, e não pagando os salários das trabalhadoras já vencidos, criou, ela sim, um problema para a empresa, num comportamento que terá de ser considerado desleal, culposo e ilícito.
4. O preenchimento do artigo 78º do CSC, pressupõe a inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção dos credores, nomeadamente dos artigos 31º-34º, 514º, 236º, 346º, 1; 513º, 220º, 2; 317º, 4, 218º, 295º, 296º, 316º, nº1, 317º, 2, e 323º, do Código das Sociedades Comerciais, entre outras disposições, sendo certo que não foi alegada qualquer hipotética violação de disposições do pacto social atinentes à salvaguarda do interesse dos credores sociais.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório:

Massa insolvente de EMP01..., Lda, NIPC ...94, aqui representada pela administradora judicial nomeada, AA, com domicílio profissional na Rua ..., ... ..., propôs ação sob a forma de processo comum contra BB, divorciada, contribuinte n.º ...59, residente na Rua ..., ..., ... – ..., mais bem identificada nos autos referenciados, peticionando que:

a) Fosse reconhecida e decretada a responsabilidade civil com base em culpa grave da ré, na dissipação do património da insolvente;
b) Fosse reconhecido e decretado que foi causado um prejuízo de 51.700,00€ à sociedade insolvente, que ficou sem qualquer atividade ou ativo, e aos seus credores, em função da atuação da gerente da insolvente;
c) Fosse a ré condenada a pagar à autora a quantia de 51.700,00€ correspondente ao prejuízo ocorrido, verba essa destinada a posterior rateio pelos credores com a efetiva satisfação dos seus créditos, acrescida de juros legais, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

A ré contestou, impugnando os fundamentos da ação e concluindo a final pela sua improcedência.
Foi elaborado despacho saneador e realizada audiência de julgamento.

Nessa sequência, foi prolatada sentença com o seguinte dispositivo:
Julga-se a presente ação improcedente, absolvendo-se a Ré do pedido.
Custas pela A., sem prejuízo do beneficio de apoio judiciário.
Registe e Notifique.
Inconformada com a decisão, a autora apelou, formulando as seguintes conclusões:
1) Vem o presente recurso do facto de a recorrente não se conformar com a sentença que absolveu a recorrida do pedido, assentando o mesmo em 3 fundamentos.
2) O primeiro desses fundamentos é a nulidade da sentença por falta de fundamentação da matéria de facto, por não terem sido especificados os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
3) A fundamentação de facto da sentença agora em crise consiste numa mera síntese dos depoimentos prestados e na remissão para o teor dos documentos juntos aos autos - não foi feita a análise crítica da prova e também não foi estabelecida a correspondência entre cada um dos factos que foram julgados provados e os meios de prova produzidos, pelo que nos achamos sem saber que elementos probatórios foram valorizados e porquê.
4) Tal omissão determina, assim, a nulidade da sentença, o que expressamente se invoca, para todos os devidos e legais efeitos.
5) O segundo fundamento do recurso, é a impugnação da matéria de facto, concretamente que os pontos 15, 25 e 27 deveriam ter sido dados como não provados.
6) O ponto 15, mais concretamente o segmento “para libertar a empresa de problemas de tesouraria” não tem qualquer correspondência com a prova produzida, nem nada foi alegado nesse sentido.
7) Da análise da documentação junta pela recorrida, resulta na verdade que a empresa não apresentava qualquer problema de tesouraria - o doc. 2A demonstra um saldo disponível, anterior à transferência de 25.000,00€ feita pela recorrida, de 32.722,38€; e o doc. 2D, que demonstra um saldo disponível de 33.108,11€, antes da transferência feita pela recorrida no valor de 22.600,00€.
8) No que se refere ao encargo mensal dos empréstimos, de acordo com a última página do doc. 2-A, era de cerca de 2 mil euros, o que era perfeitamente suportável para uma empresa que detinha um saldo médio de 30 mil euros por mês.
9) O facto 15 deverá assim passar a teor o seguinte teor: A aqui requerida liquidou os dois empréstimos que a insolvente EMP01..., Ldª detinha.
10) O ponto 25 está em manifesta contradição com os factos provados 4 a 13 – de facto, as trabalhadoras suspenderam os seus contratos de trabalho, tendo-o feito a 21 de novembro de 2022, sendo que, nessa data estava vencido o vencimento do mês de outubro, não o mês de novembro.
11) Dos elementos de prova dos quais o tribunal sustentou a sua convicção, também não se retira a prova deste facto, muito pelo contrário – o doc. 26, que é a comunicação das trabalhadoras da suspensão dos seus contratos de trabalho, do qual resulta claramente a expressão “V. Exas, até hoje, não pagaram a retribuição referente ao mês de outubro de 2022, retribuição já vencida e não paga”.
12) Conjugando o doc. 26 da contestação, com a matéria provada dos art.ºs 2 a 14, bem como dos docs. 1 a 6 juntos pela recorrente, é evidente que o facto 25 deveria ter sido dado como provado, pois a suspensão dos contratos respeitou à falta do pagamento do mês de outubro e quem criou um cenário irreversível com a sua atuação que culminou com a insolvência da empresa foi a própria recorrida, motivada, precisamente, pelo não pagamento às suas trabalhadoras.
13) O facto provado 27 está também em manifesta contradição com o facto provado 13.
14) Da prova produzida, bem como decorre dos autos principais, é também inegável que não poderia tal facto ter sido dado como provado: desde logo, a insolvência foi requerida pelas ex-trabalhadoras CC e DD, em janeiro de 2023, pelo que não foi apenas depois da insolvência que deixaram de receber os seus créditos.
15) Além disso, conforme resulta dos comprovativos das transferências concretizados no ano de 2022 àquelas ex-trabalhadoras, juntos pela recorrida como doc.s 28 a 56, é notório que os últimos pagamentos foram em outubro, dado que não foi junto (nem poderia ter sido, porquanto não se concretizou) qualquer pagamento no mês de novembro de 2022.
16) Resulta ainda este facto provado em contradição com a fundamentação da decisão, da qual consta que “A testemunha DD disse que foi despedida da insolvente há cerca de 5 anos, sendo que deveria ter sido transferida para outra confeção, mas não cumpriu tudo o que foi acordado. Todavia, como se encontravam por pagar créditos laborais, requereu a insolvência.”
17) Assim, alterando-se a matéria de facto nos termos expostos, passando o facto 15 a ter o teor “A aqui requerida liquidou os dois empréstimos que a insolvente EMP01..., Ldª detinha”, bem como considerando-se não provados os factos 25 e 27, necessário se torna concluir que a ação teria necessariamente de proceder, porquanto se demonstrou a responsabilidade da recorrida e da inevitabilidade da insolvência pela sua atuação.
18) O terceiro fundamento deste recurso consiste no erro de julgamento, no erro de interpretação dos factos e do direito, devendo ser alterada a decisão de mérito proferida e assim, julgando-se a ação totalmente procedente.
19) Não obstante os factos provados 4 a 14, termina a motivação da decisão ora impugnada que é à autora que cumpre provar que as ações (ou omissões) da ré violadoras de um dever (ilicitude) foram determinantes para o elevado nível de endividamento da sociedade insolvente, e tal matéria nem sequer foi alegada pela autora.
20) Ora, a recorrente elencou os pressupostos da responsabilidade civil da recorrida, enquanto gerente da insolvente, os quais se encontram expostos nos art.ºs 32.º a 42.º da sua petição inicial – alegou o ato ou omissão violador dos seus deveres (esvaziar a conta bancária e não pagamento às trabalhadoras, que incorre na violação dos deveres de diligência e de lealdade); alegou a culpa (a recorrida não pagou porque não quis, pois que havia saldo disponível mais do que suficiente para tais pagamentos às trabalhadoras, bem como por ter esvaziado a conta, deixando-a sem fundos para aqueles pagamentos); alegou o dano, no valor de 51.700,00€, que corresponde à quantia que foi por ela retirada da conta no ano de 2022; bem como alegou o nexo de causalidade (a retirada de dinheiro da conta da insolvente foi idónea a provocar o empobrecimento da empresa e a sua incapacidade de solver os créditos).
21) Nesta senda, provou-se que a recorrida retirou da conta bancária da sociedade insolvente a quantia de 51.700,00€ (facto provado 5), que só no mês de novembro retirou da conta a quantia de 36.200,00€ (facto provado 6), no início do mês de novembro o saldo bancário disponível era de 34.714,30€ (facto provado 8), que não pagou a quaisquer trabalhadoras durante aquele mês, nem mesmo aquelas com quem tinha acordos de pagamento de apenas 100,00€ mensais (facto provado 13) e que nos meses de dezembro de 2022 e janeiro e fevereiro de 2023, o saldo disponível no final de cada um desses meses era de apenas 382,80€, 185,26€ e 185,76€ (facto provado 14).
22) A recorrente efetivamente alegou que foi a ação da recorrida que levou ao endividamento da sociedade, bem como tal factualidade foi dada como provada. Assim sendo, o que mais faltará para decretar a procedência da ação?!
23) Acresce que, no entender da recorrente, resultou da prova que foi produzida que a recorrida previu e quis o decretamento da insolvência, pois tomou a decisão de não pagar qualquer acordo de pagamento e qualquer salário, fazendo-se pagar de supostos suprimentos que tinha feito à sociedade, bem sabendo que os créditos por suprimentos são graduados no lugar de subordinados na insolvência, tendo, pois, perfeita noção de nunca iria reaver tais valores.
24) A justificação de que a recorrida pagou empréstimos da sociedade por a mesma estar com problemas de tesouraria não tem qualquer lógica, sendo certo que, tal poderá apenas ser justificado pelo facto de a recorrida se querer eximir de responsabilidade pessoal em caso de incumprimento do pagamento de tais créditos e que estava a prever tal desfecho.
25) É irrazoável e absurdo que a recorrida tenha contraído tais créditos para “libertar” a empresa de “problemas de tesouraria”, para meses depois esvaziar completamente a conta da sociedade, consequentemente causando-lhe, isso sim, enormes problemas de tesouraria, e, salvo o devido respeito, muito nos espanta que o Tribunal a quo tenha visto bondade na sua conduta!
26) Conclui-se, pois, que numa boa aplicação do Direito, a decisão agora impugnada incorre num erro de julgamento, pelo que deveria a recorrida ter sido condenada na totalidade do pedido.
27) Pelo tudo quanto foi aqui alegado, impõe-se a revogação da sentença objeto do presente recurso, devendo a mesma ser substituída por outra que determine a condenação da recorrida no pedido.
Assim decidindo, senhores juízes desembargadores, revogando a sentença recorrida, farão vossas excelências, uma vez mais, inteira e sã justiça.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.

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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.

As questões a decidir são, assim:
- se a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação:
- se deve proceder a impugnação da matéria de facto.
- se houve erro de julgamento e, em consequência, se a ação deveria ter sido julgada procedente.
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III – Factos provados:

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:

1. No decurso dos autos principais de insolvência, ao abrigo do art.º 155.º do CIRE, a Sra. AI elaborou relatório em 3 de abril de 2023, requerendo a abertura do incidente de qualificação, pois que entendeu ter elementos que fundamentavam a qualificação de insolvência como culposa.
2. Em 14 de abril, no requerimento que apresentou para abertura do incidente e que deu origem ao apenso A, concretizou que a gerente da insolvente, aqui ré, efetuou levantamentos avultados da conta bancária da sociedade entre os meses de julho e dezembro de 2022, sendo que, só no mês de novembro, tais levantamentos se computaram em 35.000,00€.
3. Foram reclamados no processo de insolvência de «EMP02..., LDA.», nos termos do artigo 128.º do CIRE, créditos por 16 credores, no valor global de € 102.204,36€ (cento e dois mil e duzentos e quatro euros e trinta e seis cêntimos).
4. Os movimentos a débito da conta da Insolvente efetuados pela Ré foram os seguintes:
• No dia 6 de julho de 2022, foi efetuada uma transferência no valor de 15.000,00€.
• No dia 10 de outubro foi efetuada uma transferência no valor de 500,00€.
• No dia 3 de novembro de 2022, foi sacado o cheque n.º ...95 no valor de 5.000,00€
• No dia 11 de novembro de 2022, foi sacado o cheque n.º ...92, no valor de 5.000,00€
• No dia 14 de novembro foram efetuadas duas transferências para uma conta titulada pela Ré, uma no valor de 500,00€ e outra no valor de 700,00€
• No dia 15 de novembro de 2022, foram sacados os cheques n.º ...86 e ...89, no valor de 5.000,00€ cada
• No dia 17 de novembro de 2022, foi sacado o cheque n.º ...83, no valor de 5.000,00€
• No dia 21 de novembro de 2022, foi sacado o cheque n.º ...80, no valor de 5.000,00€
• No dia 25 de novembro, foi sacado o cheque n.º ...77, no valor de 5.000,00€.
5. Todos estes movimentos totalizam a quantia de 51.700,00€.
6. Daí que, só no mês de novembro, foi retirada da mencionada conta a quantia de 36.200,00€.
7. Ora, no mês de outubro, tudo ocorreu normalmente: os pagamentos às trabalhadoras foram concretizados no dia 6, os pagamentos dos acordos com as ex-trabalhadoras foram efetuados no dia 17, e ao longo do mês a insolvente recebeu pagamentos de clientes no valor total de 21.975,43€.
8. O saldo bancário disponível, transitado para o mês de novembro, era de 34.714,30€.
9. No entanto, chegados ao mês de novembro, com 34.714,30€, logo no dia 3 de novembro a ré fez-se pagar através de cheque no valor de 5.000,00€.
10. No dia 9 é recebida de um cliente quantia de 1.783,99€, fixando o saldo em 30.320,90€.
11. Apenas dois dias depois, e sem que os pagamentos às trabalhadoras fossem realizados, a ré novamente faz-se pagar por cheque bancário, no valor de 5.000,00€.
12. O mesmo se sucedendo nos dias 14, 15, 17, 21 e 25 de novembro.
13. Deixou de haver quaisquer pagamentos às trabalhadoras, nem sequer àquelas com quem tinha acordo de pagamento em prestações de apenas 100,00€ mensais.
14. Nos meses de dezembro de 2022 e janeiro e fevereiro de 2023 a conta bancária da insolvente ficou ainda mais depauperada, dado que serviu unicamente para pagar as despesas de valor diminuto, bem como os pagamentos de impostos ao Estado, sendo o saldo disponível no final de cada mês de apenas 382,80€, 185,26€ e 185,76€, respetivamente.
15. Com vista à “libertar” a empresa de problemas de Tesouraria, a aqui requerida liquidou os dois empréstimos que a insolvente EMP01..., Ldª detinha.
16. Ainda a aqui Ré, fez um empréstimo pessoal no Banco 1.... de 20.000,00 € para pagar um crédito da EMP01..., Ldª. no Banco 1.... no valor superior a 22.000,00€.
17. A sociedade insolvente sempre laborou na área têxtil, sendo certo que em consequência da pandemia Covid 19, a insolvente se viu confrontada com a dificuldade crescente de aquisição de matérias primas, conjugando com a diminuição das encomendas, levou a que a sociedade insolvente fizesse um empréstimo no Banco 1... no valor de 25.000,00€, de apoio à atividade económica que veio para a empresa, bem como para pagar os salários às trabalhadoras.
18. Quanto aos demais “levantamentos”, a mesma prende-se com o fato de repor os suprimentos que eram de curto prazo (de reposição até final do ano) que tinham sido entregues.
19. A ré entregou assim € 52.700 e levantou € 50.500.
20. Da mesma forma foi junto o extrato de janeiro e fevereiro de 2023, em que se verifica que a ré ainda transferiu para a empresa ora insolvente 5.100,00€.
21. E consequentemente efetuou os seguintes pagamentos a título de obrigações tributárias (IUC, IVA e IRC e a titulo de segurança social) da insolvente.
22. A ré efetuou o pagamento de encargos tributários e previdenciais devidos pelos trabalhadores, e, configuram disposição de meios monetários da insolvente no interesse e para benefício dos trabalhadores.
23. Os valores em causa foram entregues diretamente à Segurança Social e à Autoridade Tributária, numa clara demonstração da vontade de liquidar os valores em dívida ao Estado.
24. Da mesma forma (juntando o extrato de janeiro e fevereiro de 2023) verificou-se que a sócia ainda transferiu para a empresa 5.100,00€.
25. As trabalhadoras atuaram ao abrigo de suspensão dos contratos de trabalho, quando os seus direitos salariais de novembro de 2022 só se venciam em 08/12/2022 e assim sucessivamente, contudo ao invés criaram um cenário irreversível com a sua atuação que culminou com a insolvência.
26. Foram efetuadas transações judiciais quanto às trabalhadoras CC, EE e DD,
27. Apenas aquando da insolvência aqui em causa, não fora dado continuidade aos pagamentos das duas das trabalhadoras CC e DD.
28. Bem como foram liquidados a título de IVA, de valores devidos à segurança social, fundo de compensação, IRS, foram liquidados pela aqui requerida.
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O tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos:

Factos Não Provados.
- Não houve.
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IV – Do Mérito do Recurso:

A recorrente começou por arguir a nulidade da sentença, imputando-lhe o vício de falta de fundamentação da matéria de facto, alegando que não foram especificados os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Mais alegou que a fundamentação de facto da sentença consiste numa mera síntese dos depoimentos prestados e na remissão para o teor de documentos juntos aos autos, não tendo sido feita uma análise crítica da prova, nem estabelecida correspondência entre cada um dos factos
que foram julgados provados e os meios de prova produzidos, pelo que a recorrente ficou sem saber que elementos probatórios foram valorizados e porquê.
As causas de nulidade da sentença (e dos despachos, ex vi artº 613º, nº3, do CPC) estão previstas no artº 615º do CPC:

Causas de nulidade da sentença:

1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura.
3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior.
4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.

As nulidades da decisão são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença, o que não é confundível com o erro de julgamento, ou sequer com um alegado erro na forma de processo.

Conforme se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17/12/2018, disponível em www.dgsi.pt:
Os vícios determinativos de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciados no referido art. 615º, do CPC, e reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença, tratando-se de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, a vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal.
Respeitam a vícios da estrutura da sentença os fundamentos enunciados nas alíneas b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, e respeitam a vícios atinentes aos limites da sentença, os enunciados nas alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia - e e) - pronúncia ultra petitum.
Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)” (Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.).
Diferentemente desses vícios, são os erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com erros ocorridos ao nível do julgamento da matéria de facto ou ao nível da decisão de mérito proferida na sentença/decisão recorrida, decorrentes de uma distorção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error iuris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa.
Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, sendo que esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença (vícios formais), sequer do poder à sombra do qual a sentença é proferida, mas ao mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in iudicando, atacáveis em via de recurso (Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277).
Acresce precisar que conforme decorre do que se vem dizendo, os vícios da decisão da matéria de facto constituem erros de julgamento na vertente de “error facti” e como tal nunca constituem causa de nulidade da sentença com fundamento no art. 615º do CPC.
Na verdade, a matéria de facto encontra-se sujeita a um regime de valores negativos – a deficiência, a obscuridade ou a contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação -, a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação, não constituindo, por conseguinte, causa de nulidade da sentença, mas antes sendo suscetíveis de dar lugar à atuação pela Relação dos poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto operada pela 1ª Instância, nos termos do disposto nos n.º 1 e 2 do art. 662º do CPC (Ac. RC de 20/01/2015, Proc. 2996/12.0TBFIG.C1).”
Nos termos do artº 607º, nº3, do CPC, na elaboração da sentença o juiz deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. 4 – Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”.
De acordo com a atual lei adjetiva (artº 607º, nº3, e 4), no plano dos factos, a sentença tem de indicar tanto os factos provados como os factos não provados, o que releva, desde logo, para a eventual impugnação da decisão sobre a matéria de facto. II – A omissão de pronúncia (positiva ou negativa) sobre facto essencial controvertido consubstancia vício intrínseco da decisão da matéria de facto que a compromete em resultado da sua incompletude.” – AcRP de 9/03/2020, processo nº 14456/18.1T8PRT.P1, in www.dgsi.pt.
A fundamentação da sentença consubstancia um imperativo legal, com força constitucional, nos termos do artº 205º, nº1, da CRP, tendente a evitar, além do mais, a discricionariedade despótica e a facilitar o reexame pelos tribunais de recurso.
Importa começar por referir que não se defende uma interpretação literal do preceito. Não foi seguramente intenção do legislador impor a apreciação casuística sobre todos e cada um dos factos alegados pelas partes, nem sobre todo e cada um dos meios de prova, designadamente documentos, quando a apreciação dos factos sobre as diversas perspetivas em direito plausíveis não o impuser. Todavia, importa sempre ponderar cada caso concreto, apreciando os factos alegados à luz das diversas perspetivas de solução.
Significa o supra exposto que, e como referem Abrantes Geraldes, Luís Filipe Pires de Sousa e Paulo Pimenta[1], “Tanto na exposição dos factos que se julgue provados como daqueles que considere não provados, o juiz não deve orientar-se por uma preconcebida solução jurídica do caso, antes deve assegurar a recolha de todos os factos que se mostrem relevantes em função das diversas soluções plausíveis da questão de direito. Na verdade, não é de excluir que, apesar de o concreto juiz entender que basta um determinado enunciado de factos provados ou não provados para que a ação proceda ou improceda, o tribunal superior, em sede de recurso, divirja daquela perspetiva e considere outras soluções dependentes do apuramento de outros factos. Em tais circunstâncias, melhor será que o juiz, de forma previdente, use um critério mais amplo, inscrevendo na matéria de facto provada e não provada todos os elementos que possam ter relevo jurídico, evitando ou reduzindo as anulações de julgamento decretadas ao abrigo do artº 662º, nº2, alínea c), in fine.”
Também no AcSTJ de 11/04/2019, processo nº 539/17.9T8VRL.G.S1, in www.dgsi.pt, se defende que “Para além da fundamentação das respostas positivas, o juiz passa a ter de justificar as respostas negativas. A decisão, para além de especificar os fundamentos que foram decisivos para convicção do julgador, tem de proceder à analise crítica das provas. A fundamentação deve conter, como suporte mínimo, a concretização do meio probatório gerador da convicção do julgador e ainda a indicação, na medida do possível, das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto.”
Balizado o quadro legal e jurisprudencial, analisemos então a sentença.
Como decorre da motivação da sentença, o tribunal recorrido fez menção a depoimentos, que transcreveu, e a documentos.
Ainda que imperfeitamente expressa a motivação, percebe-se que o tribunal recorrido se fundou nos excertos que citou, e nos documentos que referiu.
Citando Alberto dos Reis, dir-se-á que só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do citado artigo 615º. A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afeta o valor doutrinal da sentença ou do despacho, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Poderemos chegar infra à conclusão de que a sentença possa padecer de erro de julgamento, mas não da nulidade que lhe foi imputada, improcedendo assim o recurso neste ponto.
A recorrente insurge-se, depois, contra a matéria de facto considerada provada pelo tribunal recorrido, concretamente quanto aos pontos 15, 25 e 27.

Nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

Resulta desta norma que ao apelante se impõem diversos ónus em sede de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida.
No que toca à especificação dos meios probatórios, estabelece o artigo 640º, nº2, alínea a), que: “Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Analisado o teor do recurso, tais exigências formais mostram-se genericamente cumpridas.
Aqui chegados, importa referir que foi ouvida integralmente a gravação da audiência de julgamento.
A recorrente começou por se insurgir contra a redação do facto provado nº 15.
O tribunal recorrido redigiu o facto da seguinte forma:
15. Com vista à “libertar” a empresa de problemas de Tesouraria, a aqui requerida liquidou os dois empréstimos que a insolvente EMP01..., Ldª detinha.
Defendeu a recorrente que deve ser suprimido o segmento “Com vista a libertar a empresa de problemas de tesouraria”.
A matéria em causa foi alegada no artigo 24º da contestação, no qual a ré remete para os documentos que aí juntou sob os nºs “2A a 2E”.
O tribunal recorrido fundou expressamente a sua convicção sobre tal facto nos referidos documentos “2A a 2E”.
Analisados os referidos extratos bancários, verificamos que em 4 de março de 2022 foi liquidado o empréstimo nº ...71, no valor de €24.731,19, liquidação após a qual a recorrente ficou com €21.540,56 de saldo positivo. Aliás, o referido extrato mensal revela que no último dia desse mês a recorrida ficou com um saldo positivo de €20.104,30.
Por outro lado, analisando o extrato de julho, vemos que com data valor de 30 de junho, mas com data de lançamento de 1 de julho, foi liquidado o empréstimo 3?[2]...91, no montante de €22.598,44, ficando a recorrida com um saldo positivo nessa data de €33.109,67.
Não se retira desses documentos, nem de nenhum dos juntos nos autos, que a referida liquidação dos empréstimos tenha tido a finalidade de libertar a empresa de problemas de tesouraria.
No documento nº 20, junto com a contestação, concretamente uma carta enviada em 26 de abril de 2023 pela aqui requerida à senhora administradora de insolvência, verifica-se que no artigo 3º dessa carta é feita menção a que a liquidação dos dois empréstimos foi efetuada para libertar a empresa de problemas de tesouraria. Todavia, em nenhuma parte da missiva, ou noutro documento, está explicado a razão pela qual a liquidação dos empréstimos libertava a empresa de problemas de tesouraria.
Da audição da prova testemunhal não resulta igualmente qualquer contributo válido, sendo certo que não convence ninguém que a recorrida tivesse contraído empréstimos pessoais para solver dívidas da sociedade, que depois houvesse de liquidar.
Procede, assim, a impugnação nesta parte, eliminando-se o segmento impugnado, passando o referido facto a ter a seguinte redação:
15 - A aqui requerida liquidou os dois empréstimos que a insolvente EMP01..., Ldª detinha.
A recorrente insurge-se, depois, contra o artigo 25º dos factos considerados provados, alegando que o mesmo está em contradição com os factos provados 4 a 13.
É a seguinte a redação do artigo 25º dada pelo tribunal recorrido:
25. As trabalhadoras atuaram ao abrigo de suspensão dos contratos de trabalho, quando os seus direitos salariais de novembro de 2022 só se venciam em 08/12/2022 e assim sucessivamente, contudo ao invés criaram um cenário irreversível com a sua atuação que culminou com a insolvência. 
O tribunal recorrido, na motivação da matéria de facto, fundamentou a sua convicção quanto a este ponto nos documentos 19º a 26º juntos com a contestação.
No documento nº 19, uma carta de 14 de março de 2023 endereçada pela aqui requerida à Autoridade para as Condições de Trabalho, é confessado no ponto 5º da mesma que “Relativamente aos recibos de retribuição de todas as trabalhadoras de outubro e novembro de 2022, os mesmos não serão enviados, uma vez que não foram pagas.” (sublinhado nosso).
Por seu turno, analisado o documento 26, uma carta datada de 21 de novembro de 2022 dirigida por um conjunto de trabalhadoras à gerência da empresa, as 11 trabalhadoras subscritoras referem que até à referida data não lhes foi paga a retribuição já vencida e referente a outubro de 2022 (esclarecendo-se aqui que, conforme resultou da audição da gravação, os salários de cada mês eram pagos, por regra, nos primeiros dias, 6 a 10, do mês seguinte a que respeitavam).
Assim, duas conclusões se retiram:
A primeira, é a de que, o segmento, “contudo ao invés criaram um cenário irreversível com a sua atuação que culminou com a insolvência” é manifestamente conclusivo e, portanto, nunca poderia ser vertido em sede de factos provados. Mais, parece ínsita à afirmação o juízo, assaz estranho, de que sobre as trabalhadoras impendia um dever de prosseguir com a laboração, mesmo sem receberem; a segunda conclusão, é a de que o fundamento invocado para a suspensão do contrato de trabalho pelas trabalhadoras foi a alegada falta de pagamento do salário relativo a outubro de 2022, razão pela qual a redação do referido facto não é correta.
Procede, assim, a impugnação deste ponto, eliminando-se este facto do acervo dos factos provados.
Por último, a recorrente impugnou o facto provado nº ...7, defendendo que o mesmo deveria ter sido dado como não provado, por estar em contradição com o facto provado nº 13, que tem a seguinte redação: “13. Deixou de haver quaisquer pagamentos às trabalhadoras, nem sequer àquelas com quem tinha acordo de pagamento em prestações de apenas 100,00€ mensais.
É a seguinte a redação do referido facto 27:
27. Apenas aquando da insolvência aqui em causa, não fora dado continuidade aos pagamentos das duas das trabalhadoras CC e DD.
Como bem alegou a recorrente, as trabalhadoras e ex-trabalhadoras deixaram de receber os seus créditos em data anterior à insolvência, decretada em 22 de fevereiro de 2023, razão pela qual efetivamente não só este facto número 27 não está correto, como também é contraditório com o provado em 13.
Tornam-se, assim, desnecessárias outras considerações, e decide-se eliminar tal facto do acervo dos factos provados.
Em conclusão, procede integralmente a impugnação deduzida da matéria de facto.
Importa agora analisar se houve erro de julgamento, sendo certo que há que não confundir questões com argumentos, razões ou motivos explanados pela recorrente em defesa da sua posição, razão pela qual não há que dar uma resposta individualizada a todas as alíneas das conclusões de recurso.
A primeira questão que oficiosa e legitimamente se poderia colocar era a de saber, face à decisão transitada em julgado que qualificou a insolvência como fortuita, se seria processualmente impossível a demanda da requerida enquanto gerente.
Nesta Relação deliberou-se já, a este propósito:
Face ao disposto no artº 185º do CIRE, a eficácia da qualificação - culposa ou fortuita - está restringida ao processo de insolvência, não relevando para as ações previstas no artigo 82, nº 3 do CIRE. Assim, a circunstância da insolvência ter sido declarada fortuita, não impede a responsabilização dos administradores/gerentes da sociedade, com fundamentos nos artigos 72º, 78º e 79º do CSC, desde que verificados os pressupostos exigidos por estes preceitos legais.
A qualificação da insolvência como fortuita impede que os administradores da sociedade insolvente sejam condenados a indemnizar os credores da mesma no âmbito do processo da insolvência, mas tal qualificação não obsta a que o administrador da insolvência, a quem o artigo 82º nº 3 do CIRE confere legitimidade exclusiva para propor e fazer seguir ações contra os administradores/gerentes, os demande fora desse processo, instaurando para o efeito a necessária ação.
. Os pressupostos da responsabilidade dos administradores/gerentes para com a sociedade, fora do quadro da insolvência, são, de acordo com o artigo 72º do CSC: ato ou omissão de violação de (quaisquer) deveres legais ou contratuais; caráter culposo do ato ou omissão; dano sofrido pela sociedade, não sendo exigido que a situação patrimonial se torne deficitária e nexo de causalidade entre o ato ou a omissão e o dano sofrido pela sociedade.
. O artº 72º, nº 1 do CSC estabelece uma presunção de culpa, incumbindo aos gerentes ou administradores ilidirem a presunção, provando ter agido como um gestor criterioso.
. Preenche os pressupostos do artº 72º o comportamento dos gerentes da insolvente que vendem um imóvel do património da insolvente e destinam parte da verba proveniente do pagamento do preço ao pagamento da dívida de uma outra sociedade, violando o disposto no artº 6º1 e 2 e 64º nº 1, alínea a) do CPC, verificados que estejam os demais pressupostos da responsabilidade civil.” – cfr. AcRG de 21/01/2021, processo nº 5824/17.7T8GMR-J.G1, disponível em www.dgsi.pt, tal como os demais infra citados sem indicação diversa.
Dir-se-á ainda que “o nº 1 artº 72º do CSC estabelece que os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa, consagrando este nº 1 uma presunção de culpa, incumbindo aos gerentes ou administradores provarem que não tiveram culpa e não ao lesado.
Os gerentes ou administradores respondem também para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos (nº 1 do artº 78º do CSC) e respondem ainda perante os credores e terceiros pelos danos que diretamente lhes causarem no exercício das suas funções (artº 79º, nº 1 do CSC).
Assim, a responsabilidade dos gerentes ou administradores no plano societário contempla:
- responsabilidade para com a sociedade (artigo 72º);
- responsabilidade para com os credores sociais (artigo 78º);
- responsabilidade para com os sócios e terceiros (artigo 79º).” – ibidem.
Com a instauração da ação cuja decisão está aqui sobre recurso, a ora recorrente pretendeu obter “a responsabilização da ré pelos prejuízos causados à insolvente e à generalidade dos credores da insolvência, ao abrigo do disposto no artigo 82º, nº 3, als. a) e b) do CIRE, com referência aos artigos 72º e 78º do Código das Sociedades Comerciais.” – cfr. artº 27º da petição inicial.
Importará, por isso, fracionar a análise daquilo que é a eventual responsabilização por prejuízos causados à insolvente (artº 72º) daquilo que é a hipotética responsabilização à generalidade dos credores da insolvência (artº 78º do CSC), sendo certo que no primeiro caso existe uma presunção de culpa, inexistente no segundo.
Dispõe o artº 72º do Código das Sociedades Comerciais (doravante CSC):
Artigo 72.º
Responsabilidade de membros da administração para com a sociedade
1 - Os gerentes ou administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por actos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa.
2 - A responsabilidade é excluída se alguma das pessoas referidas no número anterior provar que actuou em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial.
3 - Não são igualmente responsáveis pelos danos resultantes de uma deliberação colegial os gerentes ou administradores que nela não tenham participado ou hajam votado vencidos, podendo neste caso fazer lavrar no prazo de cinco dias a sua declaração de voto, quer no respectivo livro de actas, quer em escrito dirigido ao órgão de fiscalização, se o houver, quer perante notário ou conservador.
4 - O gerente ou administrador que não tenha exercido o direito de oposição conferido por lei, quando estava em condições de o exercer, responde solidariamente pelos actos a que poderia ter-se oposto.
5 - A responsabilidade dos gerentes ou administradores para com a sociedade não tem lugar quando o acto ou omissão assente em deliberação dos sócios, ainda que anulável.
6 - Nas sociedades que tenham órgão de fiscalização, o parecer favorável ou o consentimento deste não exoneram de responsabilidade os membros da administração.
Em anotação a este artigo, Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos, in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, 2017, páginas 899-914 referem o seguinte:
A violação dos deveres (legais ou contratuais) há de ser culposa. A conduta do administrador merece censura do direito quando, atendendo às circunstâncias, ele podia ter agido de outro modo. Por conseguinte, não se incluem no âmbito da responsabilidade dos administradores perante a sociedade as consequências imputáveis aos riscos de empresa. Estes são suportados pela sociedade e, mediatamente, pelos sócios.
Toma-se aqui a culpa como imputação do ato ao agente (está afastada a responsabilidade objetiva). O grau de culpa não releva para fundar a responsabilidade dos administradores perante a sociedade – por exemplo, o artº 72º não restringe a responsabilidade dos administradores às violações grosseiras – mas importa para a medida da obrigação de indemnizar (artº 73º, 2).
O padrão geral para ajuizar da culpa (aplicável a todos os administradores) é o da (abstrata) “diligência de um gestor criterioso e ordenado” [artº 64º, 1, a]).
A sociedade (e quem, em vez dela, efetive a responsabilidade interna) beneficia da presunção de culpa prevista no artº 72º, in fine. Manifestação do carácter obrigacional desta modalidade de responsabilidade civil pela administração, a presunção de culpa implica a inversão do ónus da prova, dispensando a sociedade-autora (ou quem tenha legitimidade para intentar a ação social de responsabilidade) de provar a culpa (artº 344º, 1, do Código Civil).
A presunção prevista no artº 72º, 1, não abrange a ilicitude[3]. Sufragar o entendimento de que o preceito consagra também uma presunção de ilicitude intensifica, por via interpretativa, o risco de responsabilidade civil dos administradores. Sob tal compreensão, bastaria à sociedade alegar e provar a ação/omissão dos administradores adequada a produzir um dano e daí extrair-se-iam as presunções de culpa e de ilicitude. Consequência jurídica que, em termos práticos, deslocaria o regime jurídico-societário da responsabilidade civil pela administração do universo da responsabilidade subjetiva para o aproximar da responsabilidade objetiva.
Para além da ilicitude e da culpa, o artº 72º, 1, faz referência ao dano (danos a esta” – à sociedade) e ao nexo de causalidade entre o facto (ilícito e culposo) e o dano (“danos a esta causados por atos e omissões”). Relativamente aos dois últimos pressupostos, a responsabilidade dos administradores não apresenta especificidades relevantes em face da comum responsabilidade por factos ilícitos.
(…)
A redação do nº 2 do artº 72º, introduzida pelo DL 76-A/2006, de 29 de março, foi influenciada pela “business judgement rule”, desenvolvida pela jurisprudência estado-unidense desde o segundo quartel do século XIX a propósito da responsabilidade dos administradores por decisões atentatórias do dever de cuidado, mais precisamente do dever de tomar decisões razoáveis.
Significa esta regra que o mérito de certas decisões dos administradores não é julgado pelos tribunais com base em critérios de “razoabilidade”, mas segundo critério de avaliação excecionalmente limitado: o administrador será civilmente responsável somente quando a decisão for considerada (nos termos da formulação dominante) “irracional”. (sublinhado nosso),
Decisões empresariais há muitas; muito mais raras serão as “irracionais: sem qualquer explicação coerente, incompreensíveis.
Porém, a “business judgment rule” só é aplicável se se verificarem determinados pressupostos ou condições: a) É necessário que uma decisão tenha sido tomada. Uma decisão de fazer algo ou de não fazer, uma escolha entre várias possibilidades. A simples omissão, por ignorância ou por outros motivos, não beneficia da aplicação da regra. b) Os administradores, bem como as pessoas próximas, não podem estar em conflito de interesses com a sociedade relativamente ao objeto da decisão. c) As normas procedimentais da decisão têm de ser cumpridas; a regra não se aplica se o administrador não se informa razoavelmente antes de decidir.
Por conseguinte, a “business judgment rule” não é aplicável quando as decisões contrariem o dever de lealdade ou deveres específicos legais, estatutários, ou contratuais dos administradores: aqui não há discricionariedade, as decisões são vinculadas, os administradores têm de atuar no interesse da sociedade e cumprir os deveres especificados.
Adiantam-se razões várias que justificam a regra. Em muitas circunstâncias é razoável mais do que uma decisão. Uma decisão que, por um ou outro fator, se revelou prejudicial para a sociedade não tem de ser qualificada como irrazoável. Todavia, o tribunal, dadas as dificuldades na reconstituição intelectual das circunstâncias em que a decisão foi tomada e o conhecimento de factos entretanto ocorridos, tenderia a confundir muitas vezes decisões de resultados indesejáveis e, consequentemente, a responsabilizar os administradores.
Depois, frequentemente também, os administradores não têm à disposição ensinamentos seguros ou práticas empresariais em geral aceites que possam invocar para provar a razoabilidade das suas decisões.
Diz-se ainda que o padrão de revisão judicial (standard of review) informado pela businesse judgment rule, apesar de mais permissivo do que o padrão de conduta (standard of conduct) que exige a tomada de decisões razoáveis, favorece o interesse social, na medida em que promove a inovação e escolhas arriscadas mas também, amiúde, mais lucrativas.
Embora não resulte do teor literal do artº 72º, nº2, esta norma pressupõe que os administradores tenham adotado uma decisão empresarial. Em virtude desta delimitação do âmbito de aplicação da norma, percebe-se que ela não cobre toda a atividade funcional dos administradores. Há manifestações da atividade de gestor, cobertas pelo dever de cuidado, que não envolvem a tomada de decisões empresariais. Aos perfis não decisórios é inaplicável o artº 72º, 2. Uma segunda delimitação do âmbito de aplicação do preceito cinge-o aos espaços de discricionariedade, em que é legítima a eleição entre várias alternativas.
Nos termos do art. 72º, 2, se o administrador provar que cumpriu as três condições aí mencionadas – informação adequada (“em termos informados”), ausência de conflito de interesses (dele e/ou de sujeitos próximos, tais como o cônjuge ou sociedade por ele dominada) e atuação “segundo critérios de racionalidade empresarial” – não só (e nem tanto) ilidirá a presunção de culpa (prevista no artº 72º, 1) como também (e mais decisivamente) demonstrará a licitude da sua conduta, a não violação (relevante) dos deveres de cuidado e a não violação dos deveres de lealdade. A sociedade demandante, ou quem a substitua (v. os artºs 75º, 77º, 78º, 2), tem o ónus de provar os factos constitutivos do direito à indemnização (artº 342º, 1, do Código Civil), tem de provar que atos ou omissões (em princípio) ilícitos do administrador causaram dano ao património social. O administrador, porém, que prove terem-se verificado as condições postas na norma do nº 2 do artº 72º não poderá ser responsabilizado (por ausência de ilicitude).
(…)
Tendo em conta as razões da business judgment rule e o propósito do legislador português na facilitação da prova para o afastamento da responsabilidade civil, a parte final do nº 2 do artº 72º deve ser interpretada restritivo-teleologicamente (interpretada à letra, ela dificulta muito ou impossibilita mesmo a prova e obriga o tribunal a um juízo de mérito de largo espectro). Assim, bastará ao administrador, para ficar isento de responsabilidade, que (contra) prove não ter atuado de modo “irracional” (incompreensivelmente, sem qualquer explicação coerente).” (sublinhado meu).
(…)
Vejamos, por fim, outro ponto. Dada a grande amplitude do enunciado no artº 72º, 2, e a sua inserção logo após o enunciado do nº 1 – que se refere à violação de qualquer dever (“deveres legais ou contratuais”) -, surge a dúvida: a exclusão de responsabilidade prevista no nº 2 verifica-se tão só em casos de violação de deveres de cuidado (do dever de tomar decisões razoáveis, mais precisamente), ou também nos casos de violação de outros deveres?
A norma é inaplicável a estes outros casos. Dela resulta claramente a inaplicabilidade a casos de violação do dever de lealdade (o administrador tem de atuar “livre de qualquer interesse pessoal”) e do dever de tomar decisões procedimentalmente razoáveis (o administrador tem de agir “em termos informados”). Mas a norma é ainda inaplicável a casos em que sejam preteridos deveres específicos – legais, estatutários ou contratuais. (sublinhado meu). Aqui não há espaço de liberdade ou discricionariedade, as decisões dos administradores são juridicamente vinculadas, hão de respeitar os deveres especificados. Por exemplo, é dever legal específico não ultrapassar o objeto social (artº 6º, 4º); um administrador investe património da sociedade em atividade que excede o objeto social; resulta daí dano para a sociedade; o administrador é responsável perante ela – ainda que prove ter atuado “em termos informados” (acerca do investimento), sem conflito de interesses e de modo não irracional (o investimento não parecia demasiadamente arriscado, prometia bom lucro).
Já Menezes Cordeiro, in Código das Sociedades Comerciais anotado, 4ª edição, páginas 354 a 356, tem sobre a aplicabilidade deste preceito uma opinião não totalmente coincidente, designadamente defendendo que a presunção de culpa envolve a de ilicitude.
Refere este autor: “Do artº 72º, nº 1 resulta uma situação de responsabilidade, nos termos seguintes: (a) prática de danos ilícitos; (b) por inobservância de deveres específicos; (c) com presunção de culpa. Trata-se de responsabilidade obrigacional, pela violação das obrigações funcionais do administrador. A inobservância de outros deveres, mesmo específicos (p. ex., o administrador é arrendatário da sociedade e não paga a renda) e os atentados a direitos absolutos (p. ex., o administrador danifica um automóvel da sociedade ou põe em causa o seu bom nome e reputação), seguem o regime aplicável.
A presunção de culpa envolve a de ilicitude: trata-se de uma implicação lógica irrefutável, a menos que se abdique do conceito ético-normativo de culpa, hoje dominante. A presunção de ilicitude não dispensa o interessado de provar o não-cumprimento do dever em causa, base do desenvolvimento subsequente; perante tal não-cumprimento, presumem-se a ilicitude e a culpa, nos termos próprios da responsabilidade obrigacional.
(…)
A medida da culpa não é, aqui, apenas a do bonus pater famílias (487º/2, do CC); mais exigente, ela reporta-se à diligência do gestor criterioso e ordenado – 64º/1, a); essa diligência comporta, todavia, também elementos de ilicitude (o esforço exigível), o que é natural, uma vez que culpa e ilicitude são, na responsabilidade obrigacional, incindíveis.
A causalidade abrange os danos correspondentes aos valores jurídicos atingidos e que estivessem protegidos pelo dever violado. Há, caso a caso, que proceder a uma cuidada interpretação deste, de modo a poder delimitar hipóteses de danos em bola de neve que escapem à intervenção normativa.
(…)
Não cabe ao juiz valorar o mérito substancial de qualquer gestão, com vista à responsabilização dos administradores. Três razões: (a) os tribunais não estão apetrechados, em termos de gestão e de concorrência, para encetar essa tarefa, que não lhes cabe; (b) não há regras objetivas de gestão, que possam ser impostas; (c) o julgamento ex post de decisões, na altura aceitáveis, iria coartar gravemente qualquer novidade empresarial.
Algumas regras de (boa) gestão estão positivadas: pense-se nas atinentes à prestação de contas. Aí, a sindicância é possível. Também os códigos deontológicos aplicáveis são fontes de ilicitude, através da cláusula dos bons costumes. Finalmente: é sindicável a lealdade. O artº 64º, na medida em que forneça normas de conduta, representa a área mais avançada a que o julgador pode atender.
Pelas vias indicadas, particularmente o cuidado e a lealdade (boa fé), pode o juiz sindicar o erro grosseiro de gestão. O sistema é compensado pelo artº 72º/2 (business judgment rule)”.   
Vejamos, então, se no caso concreto a factualidade provada permite considerar preenchido tal artigo.
Nas conclusões do seu recurso, a autora insurge-se contra a circunstância de, a despeito da sua alegação constante nos artigos 32º a 42º da petição inicial, e do provado nos factos 4 a 14, o tribunal recorrido ter concluído pela improcedência da ação.
A autora/recorrente fundamentou o preenchimento deste artigo no esvaziamento da conta bancária e no não pagamento às trabalhadoras, com as consequências que daí advieram.  
Como supra se referiu, tinha a autora de provar os factos constitutivos do direito à indemnização (artº 342º, nº1, do CC), tendo de provar que os atos da aqui requerida provocaram dano ao património social.
A autora provou a descapitalização da conta bancária da sociedade insolvente, através de múltiplos levantamentos, alguns dos quais em proveito próprio, bem como a falta de pagamento às trabalhadoras (quando ainda havia dinheiro para o fazer), o que motivou a suspensão do contrato de trabalho pelas mesmas.
Competia à ré, para ilidir a presunção de culpa que sobre si impendia, demonstrar a racionalidade da sua conduta, comportamento traduzido na explicação para cada um dos movimentos bancários por si efetuados (refletidos na factualidade provada sob os números 3 a 14) à luz do interesse da sociedade, principalmente os referidos nos números 9 e 12 da factualidade provada. Tal conduta (depauperamento da conta bancária em benefício próprio), se efetuada sem qualquer justificação convincente, consubstanciaria ato ilícito, por injustificado, traduzido no empobrecimento da sociedade. E, aqui chegados, importa fazer duas considerações justificativas do nosso entendimento sobre o preenchimento deste requisito da ilicitude.
A primeira é a de que seguimos o entendimento de Coutinho de Abreu e de Elisabete Ramos segundo o qual a presunção de culpa do artº 72º, nº1, do CSC, não abrange a ilicitude, pelas razões supra expostas, sob pena de ser quase consagrada uma responsabilidade objetiva dos administradores das empresas, que sempre responderiam provada que fosse uma ação ou omissão causal de um dano à sociedade.
A segunda, tem a ver com os alegados empréstimos feitos pela ré à sociedade ora insolvente, e com os quais se pretendeu justificar os levantamentos efetuados, estranhamente coincidentes com a altura da insolvência.
A explicação para a alegada não formalização dos “suprimentos” (estamos aqui a pensar, designadamente, no depoimento do senhor contabilista) por força de um alegado prazo inferior a um ano, não tem qualquer sustentação jurídica.

A definição legal de contrato de suprimento consta do artº 243º do Código das Sociedades Comerciais:
Contrato de suprimento)
1 - Considera-se contrato de suprimento o contrato pelo qual o sócio empresta à sociedade dinheiro ou outra coisa fungível, ficando aquela obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade, ou pelo qual o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do vencimento de créditos seus sobre ela, desde que, em qualquer dos casos, o crédito fique tendo carácter de permanência.
2 - Constitui índice do carácter de permanência a estipulação de um prazo de reembolso superior a um ano, quer tal estipulação seja contemporânea da constituição do crédito quer seja posterior a esta. No caso de diferimento do vencimento de um crédito, computa-se nesse prazo o tempo decorrido desde a constituição do crédito até ao negócio de diferimento.
3 - É igualmente índice do carácter de permanência a não utilização da faculdade de exigir o reembolso devido pela sociedade durante um ano, contado da constituição do crédito, quer não tenha sido estipulado prazo, quer tenha sido convencionado prazo inferior; tratando-se de lucros distribuídos e não levantados, o prazo de um ano conta-se da data da deliberação que aprovou a distribuição.
4 - Os credores sociais podem provar o carácter de permanência, embora o reembolso tenha sido efectuado antes de decorrido o prazo de um ano referido nos números anteriores. Os sócios interessados podem ilidir a presunção de permanência estabelecida nos números anteriores, demonstrando que o diferimento de créditos corresponde a circunstâncias relativas a negócios celebrados com a sociedade, independentemente da qualidade de sócio.
5 - Fica sujeito ao regime de crédito de suprimento o crédito de terceiro contra a sociedade que o sócio adquira por negócio entre vivos, desde que no momento da aquisição se verifique alguma das circunstâncias previstas nos n.os 2 e 3.
6 - Não depende de forma especial a validade do contrato de suprimento ou de negócio sobre adiantamento de fundos pelo sócio à sociedade ou de convenção de diferimento de créditos de sócios.

Alexandre Mota Pinto[4] refere que “O contrato de suprimento é uma das formas de financiamento empresarial mais utilizadas entre nós. Com a simples realização de empréstimos à sociedade, os sócios investem na empresa, muitas vezes obtendo um juro remunerador do investimento, sem aumentar a responsabilidade pelo projeto empresarial, uma vez que podem exigir a restituição das quantias mutuadas. Mantendo a responsabilidade pelas dívidas sociais limitadas às entradas que se obrigaram a efetuar para o capital social, os sócios, ao efetuar suprimentos, perseguem uma ambição milenar: procurar a fortuna, sem sofrer a incerteza da aventura empresarial. (…)
A nota distintiva de tal capital quase próprio reside no facto de, formalmente, constituir capital alheio, mas, ao mesmo tempo, possuir características do conceito material de capital próprio. Trata-se de contribuições financeiras que, embora realizadas sob a forma de capital alheio, desempenham na vida da sociedade uma função semelhante à de capital próprio, e que, como tal, são equiparadas a capital próprio, responsável pelas dívidas sociais. (…)
O regime dos suprimentos visa justamente proteger os credores perante situações de subcapitalização formal ou nominal.
(…)
Qualquer sócio, desde que, em termos formais, possua esta qualidade, poderá celebrar um contrato de suprimento, sendo irrelevantes as suas motivações, propósitos ou interesses (empresariais, ou, simplesmente, de investimento) prosseguidos. (…)
Os créditos do sócio não perdem a qualidade de suprimentos se o sócio credor, entretanto, deixar de ser sócio.
Menezes Cordeiro[5] qualifica como suprimento “o contrato entre o sócio e a sociedade, pelo qual: a) ou o primeiro empresta à segunda dinheiro ou outra coisa fungível, ficando esta obrigada à restituição de outro tanto do mesmo tipo; b) ou o sócio convenciona com a sociedade o diferimento do pagamento de créditos seus sobre ela (artº 243º/1).
Em qualquer dos casos, o crédito concedido fica a ter carácter de permanência (243º/1, in fine), só sendo reembolsado em certas condições; essa permanência permite distinguir o suprimento de um mútuo comum.
O mesmo autor[6] assinala que “O suprimento distingue-se, noutro plano, de um mútuo comum: representa um contributo permanente ou, pelo menos, prolongado, do sócio para a sociedade em que detenha uma posição. Quando muito representaria um mútuo de escopo, cujo regime é infletido pela realidade societária que visa servir.
Inexistindo factos que permitam concluir que os empréstimos foram expressamente qualificados pelas partes como suprimentos, Alexandre Mota Pinto[7] refere que “No silêncio das partes, a existência de um contrato de suprimento será indiciada, e logo presumida, em três hipóteses:
- se as partes estipularam um prazo de reembolso superior a um ano, sendo indiferente que esta estipulação seja contemporânea ou posterior ao contrato;
- se as partes não estipularam qualquer prazo e o reembolso não foi exigido durante um ano;
- se as partes estipularam um prazo inferior a um ano, mas o reembolso não foi exigido durante um ano.”   
O tribunal recorrido deu como provada a existência dos alegados empréstimos, designadamente no facto provado nº 18, factualidade que a autora não impugnou expressamente (artº 640º, nº1, do CPC) e que por isso temos de considerar como assente, estando-nos vedados processualmente quaisquer juízos sob o acerto de tal decisão.
A questão que então se coloca é a de saber se com a “auto-cobrança” da dívida referente aos alegados empréstimos à sociedade, não houve a violação de qualquer dos deveres referidos no artº 64º do CSC, designadamente o referido na alínea b), do nº1, do citado preceito.

Dispõe o referido artº 64º:
Deveres fundamentais
1 - Os gerentes ou administradores da sociedade devem observar:
a) Deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência técnica e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e
b) Deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores.
2 - Os titulares de órgãos sociais com funções de fiscalização devem observar deveres de cuidado, empregando para o efeito elevados padrões de diligência profissional e deveres de lealdade, no interesse da sociedade.

Ricardo Costa e Gabriela Figueiredo Dias[8] referem a propósito do dever de lealdade consagrado na alínea b), do nº 1 deste preceito:
Segundo o outro dever geral – o de lealdade -, os administradores, no exercício das suas funções, devem considerar e intentar em exclusivo o interesse da sociedade, com a correspetiva obrigação de omitirem comportamentos que visem a realização de outros interesses, próprios e/ou alheios. Conduta desleal é aquela que promove ou potencia, de forma direta ou indireta, situações de benefício, vantagem ou proveito próprio dos administradores (ou de terceiros, por si influenciados ou dominados (nomeadamente outra sociedade), ou de familiares), em prejuízo ou sem consideração pelo conjunto dos interesses diversos atinentes à sociedade, neles englobando-se desde logo os interesses comuns de sócios enquanto tais, e também os de trabalhadores e demais stakeolders relacionados com a sociedade.
Por outro lado, ainda segundo Ricardo Costa[9], este dever de lealdade “É um dever absoluto, que não admite ponderações, não está disponível para fragmentações derivadas de escolhas do agente vinculado, pois exige em exclusivo e sem mais a consecução em exclusivo do interesse da sociedade e a abstenção de decisões em benefício próprio ou de terceiros, proporcionadas pela posição e estatuto de administrador.
Balizado o quadro legal aplicável e explicada a sua aplicação concreta, afigura-se-nos evidente que a conduta a ré, ao fazer-se pagar em benefício próprio dos créditos que o tribunal recorrido considerou como provados, terá de considerar-se ilícita e culposa. Desde logo, o momento do “reembolso” não é inocente: se a sociedade avançasse para uma situação de insolvência, por força do artº 48º, alínea g), do CIRE, os créditos seriam subordinados, o que implicaria a graduação depois dos restantes créditos sobre a insolvência.
Depois, ao descapitalizar a conta bancária da sociedade, sem pagar às trabalhadoras e conferindo-lhes fundamento legal para suspenderem os seus contratos de trabalho, atribuiu a si própria uma situação de privilégio em detrimento dos interesses da sociedade e dos demais credores, mormente as trabalhadoras que, através da exígua massa insolvente (nem sequer ficou provado que a maquinaria lhe pertencia), dificilmente veriam os seus créditos ressarcidos.
Como supra referimos, ao caracterizar o âmbito de aplicação do artº 72º, nº1, do CSC, um dos requisitos para o administrador de uma sociedade (no caso a requerida) ilidir a presunção de culpa que sobre si recaía, era a de provar a ausência de conflito de interesses entre a sua atuação e o interesse da sociedade. Ao descapitalizar a conta bancária em proveito próprio, (aliás, até em contradição com o comportamento que o tribunal recorrido também deu como provado no facto provado nº 17, de acordo com o qual o tribunal recorrido ficou convencido que a requerida contraiu empréstimo junto do Banco 1... para pagar salários, convencimento que transformou em facto provado), e não pagando os salários das trabalhadoras já vencidos, criou, ela sim, um problema para a empresa, num comportamento que terá de ser considerado desleal. Aliás, nem tudo é traduzível em palavras, e ouvir a gravação da audiência facilitou exponencialmente a apreensão da situação em apreço. Com a subsequente impossibilidade de laboração por força do comportamento da requerida, que possibilitou a suspensão dos contratos de trabalho, há que considerar verificados os demais pressupostos constitutivos de responsabilidade, designadamente o nexo de causalidade (entre o comportamento da ré e a situação de descapitalização sociedade por via da conta bancária, note-se, não entre tal comportamento e a posterior declaração de insolvência). É certo que mesmo que tivessem sido pagos os salários, a continuação da laboração dependeria de muitos outros fatores, desde logo de haver encomendas, podendo a insolvência ser inevitável. Mas tal em nada afasta a ilicitude do comportamento da requerida, ao salvaguardar os seus próprios interesses em detrimento dos da sociedade. E, mais uma vez, importa não ser ingénuo relativamente à apreciação das motivações nos pagamentos que foram feitos à Segurança Social e à Autoridade Tributária. É que tais créditos sempre seriam indisponíveis, acrescendo à reversão dos créditos fiscais. Portanto, ao efetuá-los, a requerida também salvaguardou hipotéticos problemas pessoais futuros.
No que tange ao dano cometido contra a sociedade, ele traduziu-se no levantamento de €51.700,00 (factos provados nºs 4 e 5), quantia que a ré terá de ressarcir à autora, acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal, contados desde a citação até efetivo pagamento (artº 805º, nº 1, do Código Civil).

Consideramos demonstrada, assim, a responsabilização da requerida à luz deste artigo 72º, no cotejo com o artº 64º, ambos do CSC.
Mas importa ainda analisar os factos à luz do artº 78º do CSC.

Dispõe o artº 78º do CSC:
Responsabilidade para com os credores sociais
1 - Os gerentes ou administradores respondem para com os credores da sociedade quando, pela inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção destes, o património social se torne insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos.
2 - Sempre que a sociedade ou os sócios o não façam, os credores sociais podem exercer, nos termos dos artigos 606.º a 609.º do Código Civil, o direito de indemnização de que a sociedade seja titular.
3 - A obrigação de indemnização referida no n.º 1 não é, relativamente aos credores, excluída pela renúncia ou pela transação da sociedade nem pelo facto de o acto ou omissão assentar em deliberação da assembleia geral.
4 - No caso de falência da sociedade, os direitos dos credores podem ser exercidos, durante o processo de falência, pela administração da massa falida.
5 - Ao direito de indemnização previsto neste artigo é aplicável o disposto nos n.os 2 a 6 do artigo 72.º, no artigo 73.º e no n.º 1 do artigo 74.º

Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos, em anotação ao artº 78º, no CSC em comentário, op. cit., páginas 958 a 967, referem que “Pressuposto primeiro da responsabilidade em análise é a inobservância das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção dos credores sociais. A ilicitude, aqui, compreende a violação, não de todo e qualquer dever impendendo sobre os administradores, mas tão-só dos deveres prescritos em “disposições legais ou contratuais” de proteção dos credores sociais.
As disposições “contratuais” são, parece, disposições “estatutárias”. Muito raramente entrarão em jogo. Ainda assim, poderá pensar-se em normas estatutárias tuteladoras (também) dos credores sociais como a permitida pelo artº 317º, 1.
Bem mais relevantes são as disposições “legais” de proteção – as normas legais que, embora não confiram direitos subjetivos aos credores sociais, visam a defesa de interesses (só ou também) deles.
O CSC contém várias normas destas.
É o caso das que provêem a conservação do capital social (vg artºs 31º-34º, 514º, 236º, 346º, 1; 513º, 220º, 2; 317º, 4): proibição, em princípio, de distribuição de bens sociais aos sócios sem prévia deliberação destes, proibição de distribuição de bens sociais quando o património líquido da sociedade seja ou se tornasse (em consequência da distribuição) inferior à soma do capital e das reservas legais e estatutárias, interdição da distribuição de lucros do exercício em certas circunstâncias e de reservas ocultas; ilicitude da amortização de quotas sem ressalva do capital social; ilicitude da aquisição de quotas e de ações próprias sem ressalva do capital social. É também o caso das normas relativas à constituição e utilização da reserva legal (artºs 218º, 295º, 296º).
São igualmente normas de proteção dos credores as que proíbem a subscrição de ações próprias (artº 316º, 1), bem como certas aquisições e detenções de ações próprias (artºs 317º, 2, e 323º, entre outros).
Outra norma tuteladora dos interesses dos credores sociais é a que delimita a capacidade jurídica das sociedades (artº 6º).
Fora do CSC, cite-se o artº 18º do CIRE (v. também o artº 19º), que prescreve o dever de os administradores requererem a declaração de insolvência em certas circunstâncias.
Sofre um dano patrimonial puro o credor cujo crédito não é satisfeito, em razão da insuficiência do património social. O credor lesado terá direito de exigir o ressarcimento se, além dos outros pressupostos, o administrador tiver violado normas de proteção dos credores sociais.
A inobservância de normas de proteção leva à responsabilização dos administradores para com os credores sociais desde que tal inobservância cause (nexo de causalidade) uma diminuição do património social (dano direto da sociedade) que o torna insuficiente para a satisfação dos respetivos créditos (dano indireto dos credores sociais).
Tem de haver, portanto, dano para a sociedade. E decorrente da violação de normas de proteção dos credores sociais. Um dano causado à sociedade pela violação de outras normas é suscetível de conduzir à responsabilidade para com a sociedade, não para com os credores sociais – ainda que estes sejam afetados, mediatamente, por aquele dano.
Depois, não é qualquer dano para a sociedade que funda a responsabilidade perante os credores sociais. Há de consistir em uma diminuição do património social em montante tal que ele fica sem forças para cabal satisfação dos direitos dos credores. Só quando se verifica esta insuficiência do património social existe dano (mediato) relevante para os credores da sociedade.
A referida insuficiência patrimonial traduz-se, pois, em o passivo da sociedade ser superior ao ativo dela. O que não coincide inteiramente com a situação de insolvência. Uma sociedade insolvente por se encontrar impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas (artº 3º, 1, do CIRE) pode ter ativo superior ao passivo; porém, para boa parte das sociedades (designadamente as sociedades por quotas e anónimas) um passivo manifestamente superior ao ativo significa também situação de insolvência (artº 3º, 2, do CIRE). De todo o modo, será natural que a responsabilidade dos administradores para com os credores sociais seja feita valer muitas vezes em processo de insolvência.
Porque os danos dos credores sociais resultam do dano da sociedade, eles não podem exigir dos administradores indemnização de valor superior ao dano provocado por estes no património da sociedade.
(…).
Outro pressuposto da responsabilidade civil dos administradores para com os credores sociais explicitado no nº 1 do artº 78º é a culpa.
Também aqui relevam as duas modalidades tradicionais da culpa: dolo (direto, necessário ou eventual) e a negligência ou mera culpa. A bitola desta é a “diligência de um gestor criterioso e ordenado”.
Ao invés do que sucede na responsabilidade para com a sociedade (artº 72º, 1), a culpa agora não é presumida. Têm os credores o ónus da prova da culpa. Assim resulta, quer do facto de o artº 78º, 5, não remeter para o nº 1 do artº 72º, quer do artº 487º do Código Civil.
Este preceito do Código Civil é aplicável à responsabilidade civil extra-obrigacional ou delitual. E deste modo deve ser qualificada, pelo menos em regra, a responsabilidade dos administradores perante os credores sociais: não existe entre uns e outros, enquanto tais, relação obrigacional, as relações creditórias ligam os credores à sociedade, não aos administradores.
À luz da factualidade provada, não divisamos qualquer factualidade subsumível a este artigo 78º, designadamente traduzível em inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção dos credores, nomeadamente dos artigos 31º-34º, 514º, 236º, 346º, 1; 513º, 220º, 2; 317º, 4, 218º, 295º, 296º, 316º, nº1, 317º, 2, e 323º, do Código das Sociedades Comerciais, sendo certo que não foi alegada qualquer hipotética violação de disposições do pacto social atinentes à salvaguarda do interesse dos credores sociais.
Carneiro da Frada[10] refere, a este propósito: “a função do gerente ou administrador é “comandar a sociedade, geri-la, prosseguir o interesse social, fazendo frutificar os meios de que a sociedade dispõe em ordem à criação de lucro para os sócios”. Por isso, “ao administrador cabe, não um simples dever de cuidado (na sua actividade de administração), mas o dever de cuidar da sociedade, ou seja, o dever de tomar conta, de assumir, o interesse social. Esse é que é o seu dever específico. (…) Nenhum sócio, credor ou terceiro pode reclamar do administrador uma indemnização por prejuízos (próprios) derivados de uma má administração. O dever de administrar (com cuidado) não existe perante nenhum deles, e nenhum deles tem uma pretensão mediante a qual possa exigir, pessoalmente, o seu cumprimento. Deste modo, a exclusão de responsabilidade com base na actuação informada e no interesse social, assim como de acordo com a racionalidade empresarial não opera (qua tale) perante eles. Nenhum deles, repete-se, podia reclamar do administrador uma conduta conforme com o art. 72, n.°2 (ex vi artº 78º, nº5, do CSC, acrescento nosso), em ordem à satisfação do seu interesse. Certamente: o administrador tem também deveres perante credores, sócios e terceiros. Só que esses deveres são normalmente, ou deveres específicos sem autonomia no cumprimento (normalmente especificados na lei ou, em casos mais raros, no contrato), ou deveres (comuns) de boa fé e lealdade para com aqueles que estão, têm ou instauraram um relacionamento específico (uma Sonderverbindung) com os administradores. Na realidade, a responsabilidade perante credores e outros terceiros (sócios, trabalhadores, clientes) era, foi e será sempre uma responsabilidade condicionada, requerendo factores especiais. Segundo o art. 78.º, que tutela os credores, requer-se a violação de uma disposição legal ou contratual destinada a proteger interesses alheios, e que, por via dessa violação, o património social se tenha tornado insuficiente para a satisfação dos credores”.
Nenhuma responsabilização da ré pode ser feita com base neste artigo.
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No que tange à imputação das custas, considerando que a autora obteve vencimento na pretensão deduzida (sendo irrelevante que nem toda a argumentação jurídica haja sido procedente), elas ficarão a cargo da ré, nos termos do artº 527º, nº1, e 2, do CPC.
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V – Dispositivo:
           
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto, revogando a sentença recorrida, e condenando a ré a pagar à autora a quantia de cinquenta e um mil e setecentos euros (€51.700,00), acrescidos de juros de mora à taxa supletiva legal de 4% contados desde a citação até efetivo pagamento.
Custas pela recorrida – artº 527º, nº1, e 2, do CPC.
Notifique.
Guimarães, 19 de setembro de 2024.
           
Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte.
2ª Adjunta: Lígia Paula Venade.

                       

[1] Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 719, nota 15.
[2] Não conseguimos perceber o algarismo.
[3] Em sentido contrário, Menezes Cordeiro (2011), p. 279. No sentido defendido no texto, Coutinho de Abreu (2007), p. 30, Fernandes Oliveira (2008), p. 289, Pereira de Almeida (2013), p. 295.
[4] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, IDET, Almedina, volume III, 2ª edição, pág. 639-656.
[5] Código das Sociedades Comerciais Anotado, 4ª edição, páginas 866-867.
[6] Direito das Sociedades, volume II, Das Sociedades em Especial, Almedina, 2017 (3ª reimpressão da 2ª edição de 2007), pág. 295.
[7] Op. cit. página 650.
[8] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, páginas 787-788.
[9]A Business Judgment Rule na Responsabilidade Societária” in Estudos Dispersos, Almedina, 2020, página 19.
[10]A business judgement rule no quadro dos deveres gerais dos administradores”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67, vol. 1, consultado em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados/ano-2007/ano-67-vol-i-jan-2007/doutrina/manuel-a-carneiro-da-frada-a-business-judgement-rule-no-quadro-dos-deveres-gerais-dos-administradores/