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INSOLVÊNCIA
FACTOS-ÍNDICE
SUSPENSÃO GENERALIZADA DO PAGAMENTO DAS OBRIGAÇÕES VENCIDAS
FALTA DE CUMPRIMENTO DE UMA OU MAIS OBRIGAÇÕES
ALEGAÇÃO
PROVA
Sumário
I - Ao requerente da insolvência cabe fazer prova de um qualquer dos factos-índices enumerados no nº 1 do art. 20º do CIRE, podendo o devedor fundar a sua oposição, alternativa ou conjugadamente, na não verificação do facto-índice em que o pedido se baseia ou na inexistência da situação de insolvência. II - O preenchimento do facto-índice previsto na alínea a) do nº 1 do art. 20º do CIRE [suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas] não significa o incumprimento da totalidade das obrigações que se encontrem vencidas, mas sim o incumprimento (eventualmente num período de tempo relativamente próximo) de um conjunto de obrigações com fontes distintas e pluralidade de credores. III – Impõe-se, para isso, a alegação e prova desse conjunto de obrigações. IV – O preenchimento do facto-índice previsto na alínea b) do nº 1 do art. 20º do CIRE [falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações] exige a alegação e prova: da falta de cumprimento de uma ou mais obrigações; do respectivo montante ou das circunstâncias do incumprimento. V - O montante da dívida deve ser analisado na perspectiva do devedor e é um critério relativo, ou seja, o mesmo será, ou não, revelador da impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, em função da natureza da obrigação, do conjunto das obrigações a que o devedor está vinculado (montante, natureza e data de vencimento), do peso relativo ou expressão das obrigações incumpridas nesse conjunto, tudo isto conjugado com a natureza da actividade desenvolvida pelo devedor, do volume de negócios se for uma sociedade e se a mesma é geradora de rendimentos e excedente susceptível de proceder ao pagamento das suas dívidas. VI - Quanto às circunstâncias do incumprimento, releva, por ex., o lapso temporal significativo do vencimento das obrigações e se o devedor desenvolve uma actividade geradora de liquidez capaz de solver as suas obrigações.
Texto Integral
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de ...:
1. Relatório
EMP01..., SA requereu a declaração de insolvência de EMP02... – Unipessoal, Ldª, alegando, em síntese, para tanto que se dedica, com carácter habitual e fim lucrativo, à indústria de malhas; a requerida dedica-se à confeção de vestuário exterior em série e comércio a retalho de vestuário; no exercício da sua actividade, a requerente forneceu à requerida, a pedido desta, os bens discriminados nas facturas que indica, que aquela recebeu, no montante total de 29.918,32€, com vencimento na data indicada nas facturas; a requerida entregou a quantia de 857,37€, para pagamento de uma factura, permanecendo em dívida o montante remanescente daquele total - 29.060,95€ - , ao qual acresce juros de mora, contados desde a data de vencimento de cada uma das faturas e até efetivo e integral pagamento.
Mais alegou que o valor em dívida à Requerente é revelador da impossibilidade da Requerida em satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações; para além desta dívida, a Requerida tem outras dívidas a outros credores, à Segurança Social e à Autoridade Tributária e Aduaneira; indica um processo judicial intentado contra a requerida; não foi possível localizar quaisquer bens imóveis ou participações sociais da requerida, suficientes para o pagamento do valor em dívida; a Requerida não goza de qualquer crédito, quer junto dos fornecedores, quer junto da banca.
Concluiu que a requerida se encontra em situação de insolvência nos termos previstos nos arts. 3º, nº 1, 20º, nº1, als. a) e b), ambos do CIRE.
A requerida, citada, deduziu oposição, impugnando a factualidade alegada e dizendo, em síntese, que a existir, existe o atraso de pagamento de uma obrigação (a da requerente), não da generalidade das suas obrigações; o seu activo é superior ao passivo; a requerida não cumpriu a sua obrigação porque a espessura da malha que a requerente entregou, com o objetivo de revenda a terceiro, era mais fina do que o habitual; o terceiro reclamou; requerente e requerida acordaram que os pagamentos do suposto crédito se efetuariam de forma prestacional e aquando dos pagamentos por parte da dita terceira à requerida; esse pagamento veio a ocorrer de forma faseada e prestacional; a Ré tem créditos vencidos sobre clientes na ordem dos vários milhares de euros; tem as portas do seu estabelecimento/armazém aberto ao público e clientes como sempre esteve; tem o estabelecimento/ armazém com mercadorias para venda que suplantam várias vezes o quantitativo reclamado pela requerente; tem vários veículos de valor muito superior ao quantitativo do suposto crédito da requerente; tem os bens móveis que indica; a requerente tem cumprido as suas obrigações com a segurança social e com a administração fiscal; tem pago o salário ao seu gerente; tem cumprido com os seus fornecedores; o processo judicial indicado foi objecto de oposição.
Invocou ainda que a requerente actua de má fé, pedindo a sua condenação em multa e indemnização.
Foi designada data para julgamento.
No início da primeira sessão a requerente respondeu à oposição dizendo que em dezembro de 2022 requerente e requerida acordaram na devolução de malha que havia sido fornecida à requerida, tendo a requerente creditado na conta corrente contabilística, entre ambas existente, o valor da malha devolvida; conferidas as contas, resultou um crédito a favor da requerente no montante de 10.615,50 €, que a requerida se obrigou a pagar àquela em 12 prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira do montante de 880,50 € e as restantes 11 no montante de 885,00 €, conforme acordo de pagamento que junta; entretanto, a requerente forneceu à requerida, sob encomenda desta, e esta recebeu daquela, a malha identificada nas facturas juntas com a petição inicial e que refere, nos montantes de 11.013,42 € e de 9.312,08 €; relativamente ao acordo de pagamento, a requerida apenas pagou à requerente as quantias de 880,05 €, 500,00 € e 500,00 €, nas datas que indica.
Foi proferida sentença cujo decisório tem o seguinte teor: Julga-se a presente acção improcedente absolvendo-se a Ré do pedido. Custas pela A.
A requerente interpôs recurso pedindo a revogação da decisão recorrida, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
A. A Recorrente não se conforma com a sentença recorrida, designadamente, quanto à decisão proferida acerca da matéria de facto, que expressamente se impugna. B. Desde logo, a factualidade constante do ponto j. – dos documentos contabilísticos de 2023 da requerida não resulta uma situação líquida negativa – deveria ter sido, ao invés, dada como não provada. C. Com efeito, relativamente à aludida factualidade o Tribunal a quo alicerçou a sua convicção nos documentos juntos aos autos pela Recorrida, a saber, o mapa de depreciações e amortizações e o balancete. D. Sucede que o mapa de apreciações e amortizações junto a estes autos diz respeito a outra pessoa coletiva, com o número de identificação ...14, e não à Recorrida, o que não podia o douto Tribunal a quo ter ignorado aquando da apreciação da prova. E. Por outro lado, o balancete diz respeito apenas ao período compreendido entre janeiro e ../../2023, sendo que tal documento foi junto a estes autos em fevereiro de 2024, quando já a Recorrida certamente estaria em condições de apresentar de apresentar o balanço ou a demonstração de resultados do período, documentos esses que permitiriam apurar se a recorrida teve lucro ou prejuízo. F. Ainda e sem prescindir, analisando o referido balancete verifica-se que já em ../../2023, a Recorrida apresentava capitais próprios negativos, pelo que se impunha que a factualidade impugnada fosse dada como não provada, o que se requer. G. Ademais, existem factos relativamente aos quais não se pronunciou o Tribunal a quo e que, no entender da Recorrente, deveriam ter sido dados como provados, nomeadamente, o alegado em 15.º da petição inicial. H. Face à documentação junta aos autos com as referências Citius 15762659, 15802595, 15806853 e 15888566, relativa às certidões emitidas pelos tribunais onde pendem diversas ações contra a Recorrida, deve ser dado como provado que: i-A: Contra a Requerida pendem em juízo os seguintes processos judiciais: a. Processo n.º 764/24...., que corre termos sob o Juiz ..., do Juízo do Comércio de ..., em que é Requerente EMP03..., Lda.; b. Processo n.º 56610/23...., que corre termos sob o Juiz ..., do Juízo Local Cível de ..., em que é Autor EMP04... - Unipessoal, Lda.; c. Processo n.º 6490/22...., que corre termos sob o Juiz ..., do Juízo de Execução de ... em que é Exequente EMP05..., Lda; d. Processo n.º 72641/23...., que corre termos sob o Juízo Local Cível de ..., em que é Autor EMP06..., Lda.; I. Ainda e sem conceder, sem prejuízo da impugnação da decisão proferida acerca da matéria de facto, a Recorrente entende que a decisão proferida quanto à matéria de direito viola o disposto no artigo 3.º, n.º 1 e artigo 20.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do CIRE. J. Com efeito, concluiu o Meritíssimo Juiz a quo que havendo bens passíveis de serem vendidos e sendo o passivo inferior ao ativo, não se pode dizer que a Requerida está impossibilitada de cumprir com as suas obrigações. K. Contudo, tal como se sumariou no Acórdão da douta Relação de ..., de 24/05/2018, não é porque uma pessoa coletiva ou um património autónomo tem um ativo superior ao passivo que não está em situação de insolvência. L. In casu, conforme se disse supra, a Requerida, até ../../2023, já apresentava um resultado líquido negativo, sendo manifesto que a sua situação financeira cada vez mais se tem degradado, a ponto de ter já 5 processos judiciais contra si instaurados. M. Com efeito, tendo presente tudo o que foi dito, é possível concluir que a Recorrida não tem cumprido a generalidade das suas obrigações, nem se prevê que as venha a cumprir a curto prazo, o que permite confirmar a sua situação de insolvência, nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, als. a) e b), do CIRE, pelo que ao decidir como decidiu, violou o Tribunal a quo o disposto na referida disposição legal, bem como o disposto no art. 3.º, n.º 1 do CIRE.
A requerida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida (...)
2. Questões a apreciar
(...)
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, são três as questões que cumpre apreciar:
- a matéria constante da alínea j) dos factos provados deve ser considerada não provada;
- deve ser dado como provado que estão pendentes as acções que a requerente identifica;
- é possível concluir que a Recorrida não tem cumprido a generalidade das suas obrigações, nem se prevê que as venha a cumprir a curto prazo, o que permite confirmar a sua situação de insolvência, nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, als. a) e b), do CIRE.
3. Fundamentação de facto
3.1. O tribunal a quo considerou: Factos Provados.
a) A Requerente é uma sociedade anónima que se dedica, com caráter habitual e fim lucrativo, à atividade de indústria de malhas.
b) Por seu turno, a Requerida é uma sociedade comercial por quotas sob a forma unipessoal que se dedica à atividade de confeção de vestuário exterior em série e comércio e retalho de vestuário. (cfr. DOC. 1).
c) No exercício da atividade a que se dedica, a Requerente forneceu à Requerida, a pedido desta e esta recebeu daquele, os serviços discriminados nas faturas, juntas como DOC. 2 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido:
Fatura: Vencimento: Valor:
...1 - 1 943,45 €
...1 - 1 153,94 €
...1 - 2 537,24 €
...1 - 3 958,19 €
...2 - 11 013,42 €
...3 - 9 312,08 €.
d) Pelos bens fornecidos, a Requerente procedeu à emissão das respetivas faturas, supra identificadas, cujo valor ascendeu ao montante global de 29.918,32€, vencendo-se as mesmas nas datas de vencimento acima referenciadas, conforme acordado pelas partes.
e) Por conta da fatura ...39, de 29/06/2021, no montante global de 1.943,45€, a Requerida efetuou um pagamento parcial de 857,37€, permanecendo em dívida o montante remanescente, correspondente a 1.086,08€.
f) Apesar de instada por várias vezes não fez qualquer outro pagamento à requerente.
g) A requerida em 05/12/2023 fez um pagamento adicional de € 500,00 por conta do referido crédito.
h) A requerida tem a sua situação regularizada junto da A.T. e da Segurança Social.
i) Tem como principais credores:
1 - EMP07... Unipessoal Lda, NIPC ...59, com sede na Rua ..., ..., C.P.: ..., ... - ...;
2 - EMP08... Lda, NIPC ...57, com sede na Rua ..., C.P.: ..., ...;
3 - EMP09..., Lda, NIPC ...94, com sede no Lugar ..., C.P.: ..., ....;
4 - EMP10... Lda, NIPC ...60, com sede na Rua ..., C.P.: ..., ... e,
5 - EMP03..., LDA, NIPC ...83, com sede na Rua ..., Parque Industrial ..., Pavilhão ..., C.P.: ..., ... (...), ....
j) Dos documentos contabilísticos de 2023 da requerida não resulta uma situação líquida negativa.
Factos Não Provados
- Que o sócio gerente da requerida tenha ficado especialmente abalado com a propositura desta ação.
3.2. Patologias da decisão de facto
A decisão de facto pode apresentar diversas patologias: i) - conter asserções conclusivas, genéricas ou matéria de direito;
ii) - revelar-se excessiva;
iii) - ser deficiente, obscura ou contraditória; iv) - carecer de ampliação;
v) - não estar devidamente fundamentada;
vi) - haver erro de apreciação da prova, isto é, pode o tribunal a quo ter dado como provados factos que face à prova produzida deviam ter sido considerados não provados ou vice-versa.
As patologias referidas nos pontos i) a v) são de conhecimento oficioso, na medida em que constituem aplicação do direito processual; a patologia referida no ponto vi) carece de ser invocada, mediante impugnação da decisão de facto, referida no art.º 640º do CPC.
3.2.1. Matéria conclusiva
Como já referido, uma das possíveis patologias da decisão de facto, é conter asserções conclusivas, genéricas ou matéria de direito.
Tal patologia é de conhecimento oficioso, na medida em que constitui aplicação do direito processual, pois o n.º 4 do art.º 607º do CPC dispõe: “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados….”
Assim, na parte citada, este normativo dirige um comando ao juiz cujo sentido é este: na fundamentação (de facto) da sentença, só devem constar factos e não matéria de direito e/ou conclusões ou matéria genérica.
Resulta claro do citado normativo que na fundamentação de facto apenas cabem asserções de facto e não asserções conclusivas, genéricas, matéria de direito.
Já ensinava Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 12 que a atividade do juiz se deve circunscrever ao apuramento dos factos materiais, devendo evitar que no questionário entrem noções, fórmulas, categorias ou conceitos jurídicos, inserindo apenas, nos quesitos e na matéria de facto assente, factos materiais e concretos.
E Manuel Tomé Soares Gomes, in Da Sentença Cível, CEJ, 2014, in https://elearning.cej.mj.pt/mod/folder/view.php?id=6202, pág. 19-22, no que diz respeito à “linguagem dos enunciados de facto”, 19-22, refere (sublinhados nossos) que deve “ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas e de excessos de adjetivação. Os enunciados de facto devem ser expressos numa linguagem natural e exata, de modo a retratar com objetividade a realidade a que respeitam, e devem ser estruturados com correção sintática e propriedade terminológica e semântica. A adequação dos enunciados de facto deve pautar-se pela exigência de evitar que esses enunciados se apresentem obscuros (de sentido vago ou equívoco), contraditórios (integrados por termos ou proposições reciprocamente excludentes) e incompletos (de alcance truncado), vícios estes que figuram como fundamento de anulação da decisão de facto, em sede de recurso de apelação, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC. (…) (…) as partes tendem a adestrar a factualidade pertinente no sentido estrategicamente favorável à posição que sustentam no seu confronto conflitual, daí resultando enunciados, por vezes, deformados, contorcidos ou de pendor mais subjetivo ou até emotivo. Cumprirá, por sua vez, ao juiz, na formulação dos juízos de prova, expurgar tais deformações, sendo que, como é entendimento jurisprudencial corrente, não se encontra adstrito à forma vocabular e sintática da narrativa das partes, mas sim ao seu alcance semântico. Deve, pois, adotar enunciados que, refletindo os resultados probatórios, sejam portadores de um sentido semântico, o mais consensual possível, de forma a garantir que a controvérsia se desenvolva em sede da sua substância factual e não no plano meramente epidérmico dos seus modos de expressão linguística.”
Também Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 354-355, refere: “A decisão de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento. Umas poderão e deverão ser solucionadas de imediato pela Relação; outras poderão determinar a anulação parcial do julgamento. (…) Outro vício que pode detetar-se (...), pode traduzir-se na integração na sentença, na parte em que se enuncia a matéria de facto provada (e não provada), de pura matéria de direito (…). (…) Por isso, a patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como “matéria de facto provada” pura e inequívoca matéria de direito.”
A decisão recorrida considerou provado sob a alínea j):
j) Dos documentos contabilísticos de 2023 da requerida não resulta uma situação líquida negativa.
Não pode haver dúvidas que a expressão “…não resulta uma situação líquida negativa” (sendo que a situação líquida equivale a capital próprio) utilizada na alínea J) dos factos provados é patente e manifestamente conclusiva, já que só perante o montante do activo e do passivo e apurado que o primeiro é inferior ao segundo é que se poderá chegar a tal conclusão.
Contendo a sentença asserções conclusivas, genéricas ou de cariz jurídico, coloca-se a questão de saber como o resolver.
Muito embora hoje não exista nenhum normativo idêntico ao antigo artigo 646º, n.º 4 do CPC revogado, que determinava terem-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e que se aplicava, por analogia, à matéria conclusiva, o princípio que estava subjacente ao preceito não desapareceu, como resulta do disposto no n.º 4 do art.º 607º, já supra referido e, em consequência, devem ser eliminadas da fundamentação de facto as asserções conclusivas ou que contenham matéria de direito, como, aliás, é jurisprudência constante (cfr. Ac. do STJ de 28/09/2017, proc. 809/10.7TBLMG.C1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj; Ac. desta RG de 20.09.2018, proc. 778/16.0T8BCL.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg; Ac. desta RG de 11.10.2018, proc. 616/16.3T8VNF-D.G1, consultável no mesmo sitio do anterior; Ac. do STJ de 19/01/2023, processo 15229/18.7T8PRT.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj).
Tal entendimento tem aplicação no processo de insolvência, dado o disposto no art.º 17º do CIRE - os processos regulados no presente diploma regem-se pelo Código de Processo Civil…
Mas este normativo acrescenta, na sua parte final: “…em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código.”
Vejamos
No processo declarativo em geral e face ao disposto no art.º 5º, n.º 2 do CPC, o juiz apenas pode considerar os factos articulados pelas partes, os factos complementares, instrumentais ou notórios (alíneas a), b) e c) do n.º 2 do art.º 5º do CPC).
Por isso, o art.º 411º do CPC, que consagra o principio do inquisitório, dispõe que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 118 a “ressalva da parte final [do] art.º 411º é determinante, porquanto limita drasticamente o poder de intervenção por iniciativa própria do juiz, o qual, para além dos factos alegados pelas partes, só pode considerar os enunciados nas alíneas do n.º 2 do art.º 5.º (…).”
Ora, quando a decisão recorrida contempla matéria conclusiva, isso resultará, as mais das vezes, da circunstância de não terem sido alegados os factos concretos consubstanciadores e, sendo matéria essencial, o tribunal não a pode indagar oficiosamente.
Mas no caso estamos perante um processo especial e, como se diz expressamente na parte final do art.º 17º do CIRE, o CPC só se aplica se não contrariar as disposições do presente Código.
Uma dessas disposições é o art.º 11º do CIRE, a qual dispõe: No processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes.
A este respeito referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 118-119 (sublinhado nosso):
“Do que se trata no preceito em anotação é de permitir ao juiz encarregado do processo que, na apreciação do pedido, nos embargos à decisão declaratória prolatada e nos incidentes de qualificação, se sirva de outros factos para além dos alegados pelas partes para fundamentar a decisão que profira.
(…)
O poder de fundar a decisão em factos não alegados contém implícita a faculdade de o juiz, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem como recolher as provas e informações que entender convenientes (…)”.
E isto vale para a 1ª instância e, também, para a Relação, enquanto tribunal de instância, ainda que em termos limitados: apenas o pode fazer se os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente o permitirem.
Assim nos termos da alínea c) do n.º 2 do art.º 662º do CPC, a Relação deve, mesmo oficiosamente: c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.
Em face de tudo o exposto, entende-se que, desde que os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente o permitam, a Relação deverá alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, eliminando a matéria conclusiva e substituindo-a pelos factos concretos.
Os factos concretos que no caso haveria de considerar seriam o montante do activo, do passivo e do capital próprio.
Tais valores são indicados do balanço (e não no mapa de depreciações e amortizações, sendo certo que o documento junto aos autos pela requerida a este título, e ao contrário do que esta alegou e insiste nas suas contra-alegações, diz respeito a uma entidade com o NIF ...14..., como consta do próprio documento e de que é titular a sociedade comercial denominada EMP11..., Lda., com sede em ...…)
Sucede que não foi junto o último balanço da requerida (realidade diferente do balancete, que não integra a contabilidade organizada e que é um documento interno das empresas, não obrigatório, que pode ser mensal, trimestral, semestral ou anual com valores do período escolhido e/ou valores acumulados, permite visualizar a lista do total dos débitos e dos créditos das contas, juntamente com o saldo de cada uma delas (seja devedor ou credor) e aquilatar do estado financeiro da sociedade), pelo que é inviável dar como provados aqueles valores.
Em face elimina-se a alínea J) dos factos, não a substituindo por factos concretos por ausência do elemento probatório fundamental para tal.
3.2.3. Ampliação da decisão de facto
A decisão carece de ser ampliada se houver falta de pronúncia do tribunal a quo sobre factos alegados, essenciais à procedência da pretensão deduzida, ou seja, sobre factos que têm a virtualidade de preencher a previsão normativa (facti species) favorável a tal pretensão, na perspetiva do efeito pretendido, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso.
Na petição inicial a requerente alegou que estava pendente contra a requerida no Juízo Local Cível de ... – Tribunal Judicial da Comarca de Braga, o processo 72641/23.....
Entretanto a 19/02/2024 a requerente veio dizer que estavam pendentes contra a requerida os seguintes processos:
- AECOP – Processo 72641/23.... - Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de ..., Valor: 1.832,21 €;
- AECOP – Processo 55610/23.... - Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de ... – Juiz ... - Valor: 1.449,22 €;
- Execução Sumária nº 6490/22.... - Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Execução de ... – Juiz ... - Valor: 3.021,04 €;
Referiu ainda que, entretanto, foi intentado um outro processo de insolvência contra a requerida com o n.º 764/24...., do Juiz ..., do Juízo do Comércio de ..., em que é Requerente EMP03..., Lda., juntando a pauta de distribuição.
A requerida veio dizer:
- Execução Sumária nº 6490/22.... - todos os montantes estão pagos, juntando diversos documentos;
- Processo 72641/23.... – deduziu oposição no processo;
- Processo 56610/23.... – deduziu oposição no processo;
- Processo 764/24.... – não foi citada e tem realizado os pagamentos acordados, estando em dívida € 5.000,61.
Foram pedidas informações aos diversos processos, com excepção do processo de insolvência.
Relativamente ao primeiro - Processo 72641/23.... – foi remetida certidão que confirma o alegado pela requerente, acrescentando-se que a acção foi intentada pela EMP06..., Lda.
Relativamente ao segundo - Processo 56610/23.... – foi remetida certidão que confirma o alegado pela requerente e da qual resulta que a autora é a EMP04... - Unipessoal, Lda e ainda que foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial e designou julgamento para o dia 08 de Abril de 2024.
Relativamente ao processo nº 6490/22.... foi remetida certidão que confirma o alegado pela requerente, com envio do requerimento executivo e da sentença que serve de título executivo, donde resulta que exequente é a EMP05..., Lda.
Tendo em consideração os elementos documentais juntos aos autos, impõe-se aditar à factualidade provada o seguinte:
L) Foram intentadas contra a requerida e estão pendentes as seguintes acções:
- AECOP – intentada por EMP06..., Lda.– Processo 72641/23.... - Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de ... - Valor: 1.832,21 €;
- AECOP – intentada por EMP04... - Unipessoal, Lda - Processo 55610/23.... - Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de ... – Juiz ... - Valor: 1.449,22 €;
- Execução Sumária – intentada por EMP05..., Lda. – processo 6490/22.... - Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Execução de ... – Juiz ... - Valor: 3.021,04 €;
- EMP12..., Lda. - Processo n.º 764/24.... - Juiz ..., do Juízo do Comércio de ... -
M) A requerida deduziu oposição nas duas primeiras acções.
N) Na primeira acção foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial e designou julgamento para o dia 08 de Abril de 2024.
Não é possível dar como provado que a quantia exequenda se encontra paga, dada a insuficiência dos elementos documentais juntos face ao quadro em que se desenvolve os presentes autos, ou seja, sem que a exequente seja parte nos autos e, assim, sem que lhe seja dada a possibilidade de se pronunciar quanto a tais elementos.
Assim, a prova do pagamento só seria possível mediante uma declaração de quitação da mesma.
4. Fundamentação de direito
4.1. Dos pressupostos de declaração de insolvência –
Depois de estabelecer no art.º 1º a finalidade do processo de insolvência e no art.º 2º os sujeitos passivos da situação de insolvência, o CIRE define no art.º 3º, n.º 1 a situação de insolvência, dizendo que “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
Luís Menezes Leitão, in Direito da insolvência, 10ª edição, pág. 81 refere que a incapacidade de cumprimento pode ser realizada através de dois critérios principais: a) o critério do fluxo de caixa – o devedor é insolvente logo que se torna incapaz, por ausência de liquidez suficiente, de pagar as suas dividas no momento em que se vencem; b) o critério do balanço ou do activo patrimonial – a insolvência resulta do facto de os bens do devedor serem insuficientes para o cumprimento integral das suas obrigações.
Relativamente ao disposto no art.º 3º n.º 1 defende (ob cit. pág. 82) que a lei portuguesa adoptou o critério do fluxo de caixa, mas que parece preferível a definição da situação de insolvência contida no n.º 1 do art.º 3º do CPEREF, ou seja, a impossibilidade de cumprir pontualmente as respectivas obrigações por carência de meios próprios e por falta de crédito.
E refere (pág. 83) que “…a insolvência corresponde à impossibilidade de cumprimento pontual das obrigações e não à mera insuficiência patrimonial, correspondente a uma situação liquida negativa. (…) a situação liquida negativa não implica a insolvência do devedor se o recurso ao crédito lhe permitir cumprir pontualmente as suas obrigações, assim como uma situação liquida positiva não afastará a insolvência, se se verificar que a falta de crédito não permite ao devedor superar a carência de liquidez para cumprir as suas obrigações.”
De acordo com o supra citado art. 3º, o que essencialmente releva na caracterização da insolvência é a impossibilidade de cumprimento pontual das dívidas que surgem regularmente na atividade do devedor, impossibilidade essa que é apreciada objetivamente, designada e principalmente por falta de liquidez e/ou de crédito, independentemente do conjunto das causas que, uma vez reunidas, determinaram essa situação.
A impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas. O que releva é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado, no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
Pode suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou de apenas uma indicie, só por si, essa impossibilidade.
Assim, se uma sociedade comercial, com algumas centenas de trabalhadores, deixa de pagar à segurança social e aos credores bancários mais relevantes, não deixará de estar em situação de insolvência, apesar de continuar a pagar aos trabalhadores e a assegurar o serviço da dívida a um ou outro banco.
Já não estará verificada uma situação de insolvência se deixar atrasar, circunstancialmente, o pagamento dos salários, continuando, no entanto, a satisfazer os credores bancários, fornecedores e sector público (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 86-87, que seguimos de perto até aqui e Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª edição, pág. 27)
Também Catarina Serra, in Lições de Direito da insolvência, Almedina, 2º Edição, 2021, pág. 55 refere: “…a única exigência legal para que se verifique a insolvência é que haja uma ou mais obrigações vencidas. (…) para a insolvência não releva nem o número nem o valor pecuniário das obrigações vencidas. (…) …tanto está insolvente quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de montante elevado (o montante em causa é demasiado elevado para que o devedor consiga cumprir) como quem está impossibilitado de cumprir ou mais obrigações de pequeno montante ou de montante insignificante (o montante é insignificante e ainda assim ele não consegue cumprir).”
E Nuno Pinheiro Torres, in O pressuposto objectivo do processo de insolvência, in Direito e Justiça, 2005, Vol. 19, t 2, apud Ac. do STJ de 04/04/2007, proc. 2160/15.7T8STR.E1.S1, refere que “O incumprimento aparece como uma manifestação externa da situação de ruína financeira”.
Mas a lei portuguesa também adoptou o critério do balanço no n.º 2 do art.º 3º, onde se dispõe que “as pessoas colectivas e os patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são também considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo normas contabilísticas aplicáveis”.
Enquanto o critério de definição da situação de insolvência referido no n.º 1 do art.º 3º do CIRE é de aplicação geral, a qualquer um dos sujeitos passivos de insolvência referidos no art.º 2º do CIRE, aqui estamos perante outro critério de definição da situação de insolvência, de aplicação exclusiva às pessoas colectivas e aos patrimónios autónomos (excluindo, portanto e desde lodo, as pessoas singulares, às quais só se aplica o critério do n.º 1) por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta (neste sentido cfr. Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, 2ª edição, pág. 56).
De notar que o critério do n.º 2 do art.º 3º não exclui a possibilidade de aplicação às pessoas colectivas e aos patrimónios autónomos do critério do n.º 1 do art.º 3º. Inverificado o critério do n.º 2 do art.º 3º, que é de aplicação exclusiva àquelas entidades, pode aplicar-se o critério geral do n.º 1 do art.º 3º (cfr. Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 4ª Edição, pág. 73).
Não é suficiente um qualquer défice do ativo; exige-se que o passivo seja manifestamente superior ao ativo.
Tal situação só determina a insolvência se, de acordo com a normalidade da vida, torna insustentável, a prazo, o pontual cumprimento das obrigações do devedor (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 89).
Além disso, o n.º 3 do art.º 3º tempera o critério definido no n.º 2 – avaliação do activo e do passivo de acordo com as normas contabilísticas aplicáveis – permitindo que a avaliação do activo e do passivo tenha em consideração outros elementos: assim resulta da alínea a) que devem ser considerados, quer no activo, quer no passivo, outros elementos identificáveis, mesmo que não constem do balanço, pelo seu justo valor; resulta da alínea b) que quando o devedor seja titular de uma empresa, a avaliação deve ser efectuada numa de duas ópticas, consoante o que se afigure mais provável – na óptica da continuidade ou na óptica da liquidação – considerando-se a empresa economicamente falida quando o seu valor de mercado na óptica da continuidade da exploração da actividade económica for menor que o valor agregado da venda dos seus activos individualmente no mercado ( cfr. Mário João Coutinho dos Santos, in Algumas notas sobre os aspectos económicos da insolvência, in Direito e Justiça, 2005, vol 19, t 2, pág. 181-189, apud Luís Menezes Leitão, ob. cit., nota 107, pág. 84); e resulta da alínea c) não se incluem no passivo dívidas que apenas hajam de ser pagas à custa de fundos distribuíveis ou do activo restante depois de satisfeitos ou acautelados os direitos dos demais credores, ou seja, visa-se excluir obrigações de reembolso que apenas se concretizam quando e na medida em que, numa situação de liquidação, remanesçam bens após o pagamento integral dos créditos, o que se aplica os reembolsos do capital social ou estatutário aos titulares das correspondentes participações, bem como de prestações suplementares ou acessórias com idêntico regime e ainda de dividas subordinadas (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit. pág. 93)
A matéria da legitimidade activa para requerer a declaração de insolvência, está regulada nos art.ºs 18º (que estabelece o dever do devedor se apresentar à insolvência ), 19º ( que determina quem deve cumprir o dever consignado no art.º 18º) e art.º 20º n.º 1 que estabelece outros legitimados para requerer a declaração de insolvência, nomeadamente, “qualquer credor”, sendo certo que só têm legitimidade para tal desde que, para além de terem um interesse juridicamente atendível (que se presume, cabendo ao devedor invocar a inexistência desse interesse mediante a invocação de um interesse contrário ao Direito e, dessa forma, um abuso de direito), se verifique alguma das situações (a lei alude a “factos”) relativamente ao devedor, referidas nas diversas alíneas do n.º 1 do art.º 20º e que são: a) suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas; b) falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das obrigações; c) fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo; d) dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos; e) insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor; f) incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos nas condições previstas na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do art.º 218º; g) incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos: i) tributárias; ii) de contribuições e quotizações para a segurança social; iii) dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação desse contrato; iv) rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço de compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência; h) sendo o devedor uma das entidades referidas no nº 2 do artigo 3.º, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses, na aprovação e depósito das contas, se a tal estiver obrigado.
Relativamente aos credores (que devem justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito – art.º 25º n.º 1) a legitimidade processual não depende da natureza do crédito, nem do seu vencimento (cfr. Luís Menezes Leitão, ob. cit. pág. 142), nem da sua declaração judicial prévia ou sequer da existência de titulo executivo, podendo inclusive já ser objecto de discussão em outra sede judicial ou, ainda que nunca antes tenha sido discutido, passe a ser litigioso em virtude da oposição deduzida ao pedido de declaração de insolvência (dispõe o art.º 579º n.º 3 do CC: “Diz-se litigioso o direito que tiver sido contestado em juízo contencioso, ainda que arbitral, por qualquer interessado”) já que cabe no disposto no art.º 30º n.º 2 do CIRE a invocação da inexistência do crédito que o requerente da insolvência se arroga ser titular).
Mas nesta última situação já está em causa uma questão de legitimidade substantiva, ou seja, saber se a parte tem, na relação material controvertida, tal como é na realidade, uma posição – credor - que a torne sujeito de direitos ou de deveres e que constitui uma condição de procedência do pedido.
Como se refere no Ac. desta RG de 18/06/2020, processo 1607/19.8T8VRL.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg: “Coisa diferente é a legitimidade substantiva, porquanto respeita ao mérito da causa, como é o caso quando se trata de saber se o credor que requer a declaração de insolvência ao abrigo do disposto no artigo 20º tem efectivamente a qualidade de credor, a qual constitui uma condição de procedibilidade do pedido de declaração de insolvência, mesmo apurando-se alguns dos factos-índice enumerados no nº 1 do artigo 20º, cuja verificação faz presumir a situação de insolvência, tal como a caracteriza o artigo 3º”.
Assim, controvertido no processo de insolvência, a existência do crédito invocado, haverá lugar à produção da pertinente prova e caberá à sentença a proferir apreciar (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit. pág. 198).
Neste sentido o Ac. da RL de 23/02/2017, processo 2559/16.1T8FNC.L1-2 consultável in www.dgsi.pt/jtrl, constando do respectivo sumário: II–A lei atribui legitimidade para requerer a declaração de insolvência a qualquer credor, ainda que condicional, e qualquer que seja a natureza do crédito, designadamente se aquele for litigioso. III–Porém, nesta última hipótese, tratando-se apenas de uma legitimidade ad causam, deverá no processo de insolvência, se tal se revelar necessário, ser feita a prova da existência do crédito.
E o Ac. do STJ de 29/03/2012, processo 1024/10.5TYVNG.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, onde se refere: é “dotado de legitimidade para requerer a declaração de insolvência quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não – necessariamente – quem seja, efectivamente, na realidade, credor do demandado (cfr. art. 26º do CPC). É que a questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido prende-se com o mérito ou com o fundo da causa e não com a questão da legitimidade “ad causam” para deduzir o pedido de insolvência, a qual apenas contende com a verificação de um pressuposto processual positivo, consubstanciador, em caso de inverificação, de correspondente excepção dilatória, não podendo, pois, aquele ser privado da subsequente possibilidade processual de justificar e provar a real existência do seu invocado crédito.”
As situações descritas nas diversas alíneas do n.º 1 do art.º 20º constituem factos-índice que fazem presumir a situação de insolvência definida no art.º 3º e, como tal devem, nos termos do disposto no art.º 342º n.º 1 do CC, ser provados pelo requerente da insolvência (cfr. Marco Carvalho Gonçalves, in Processo de Insolvência e Processos Insolvenciais, pág. 85).
Referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit. pág. 197 que se tratam de “factos índice ou presuntivos da insolvência, tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, que é a pedra de toque do instituto”.
E mais adiante, pág. 200 referem: “O estabelecimento de factos presuntivos da insolvência tem por principal objectivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade de, a partir daí, de fazer a demonstração efetiva da situação de penúria traduzida na insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que aquela é assumida como característica nuclear da situação de insolvência (vd.art.º 3.º, nº 1, do CIRE). Caberá então ao devedor, se nisso estiver interessado, e, naturalmente, o puder fazer, trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir. Por outras palavras, cabe-lhe ilidir a presunção do facto-índice.”
A verificação de qualquer um deles é suficiente para a declaração de insolvência.
O devedor/requerido pode deduzir oposição invocando excepções dilatórias ou a inexistência do crédito que o autor se arroga para fundamentar a sua legitimidade.
Mas também o pode fazer alegando a inexistência do facto índice em que se fundamenta o pedido formulado (1ª parte do n.º 3 do art.º 30º), intentando assim impedir a demonstração daquele ou alegando a inexistência da situação de insolvência (2ª parte do n.º 3 do art.º 30º), intentando demonstrar que, apesar de estar verificado algum facto-índice, é-lhe possível cumprir as suas obrigações, demonstrando a sua solvência, baseando-se na escrituração legalmente obrigatória, se for o caso, ou seja, se isso lhe for aplicável (n.º 4 do art.º 30º do CIRE).
4.3. Em concreto
Pretende a recorrente que é possível concluir que a Recorrida não tem cumprido a generalidade das suas obrigações, nem se prevê que as venha a cumprir a curto prazo, o que permite confirmar a sua situação de insolvência, nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º 1, als. a) e b), do CIRE.
Como já se deixou referido apurando-se alguns dos factos-índice enumerados no nº 1 do artigo 20º, isso faz presumir a situação de insolvência, tal como a caracteriza o artigo 3º.
Destarte, a primeira questão a que se impõe dar resposta é a de saber se a factualidade provada permite considerar verificados os factos índice constantes das alíneas a) e b).
Alínea a) - suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas
Referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit. pág. 199, que esta alínea “reporta-se à hipótese tradicional que se reconduz a uma paralisação generalizada do cumprimento das obrigações do devedor de índole pecuniária”, na pág. 200 que “deve respeitar à generalidade das suas obrigações, o que se compreende visto que se autonomizou, na al. b), como facto-índice próprio, a falta de cumprimento de uma só ou mais obrigações que, pelas respectivas circunstâncias revele a impossibilidade do devedor de prover à satisfação pontual da generalidade das suas obrigações” e, ainda na pág. 200, que o vocábulo “suspensão” revela que “ não está (…) em causa uma situação necessariamente transitória a que a ideia de suspender poderia apelar”.
A expressão “suspensão“ indica que não é suficiente, a ocorrência de uma situação pontual, transitória e isolada (Marco Carvalho Gonçalves, in Processo de Insolvência e Processos Insolvenciais, pág. 87).
A suspensão tem de ser generalizada, o que não significa o incumprimento da totalidade das obrigações que se encontrem vencidas, mas sim o incumprimento (eventualmente num período de tempo relativamente próximo) de um conjunto de obrigações com fontes distintas e pluralidade de credores.
Assim e para que este facto-índice se possa considerar provado, é necessário que se mostre especificado o conjunto de credores que viu “cessado” ou “paralisado” o cumprimento das obrigações que o devedor tinha para com eles, ou quais as obrigações concretas que se viram assim suspensas (Ac. da RP de 11/09/2018, processo 6983/17.4T8VNG-A.P1, consultável in www.dgsi.pt/jtrp).
A factualidade provada limita-se a evidenciar que a requerente é credora da requerida.
É certo que consta da alínea I) dos factos provados a identificação dos cinco principais credores da requerida.
Porém, nada se sabe quanto aos créditos em causa – natureza, montante, data de vencimento, situação actual.
Também resulta da factualidade provada ter sido intentada contra a requerida outra acção de insolvência.
Sendo tal acção posterior e tendo a mesma finalidade da dos presentes autos, estando, portanto sujeita às mesmas exigências, em nada releva.
Está também provado que foram intentadas contra a requerida duas AECOP´s, que estão pendentes.
Mas também ficou provado que a requerida deduziu oposição nas mesmas, pelo que da sua pendência nada se pode extrair.
Foi também intentada e está pendente uma execução sumária.
Porém, mesmo conjugando a insatisfação do crédito da requerente com este facto, não é suficiente para afirmar uma suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas por parte da requerida.
Em face do exposto, improcede a pretensão da recorrente à luz da alínea a) do art.º 20º do CIRE.
Alínea b) - falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das obrigações
Este facto-índice exige a alegação e prova: da falta de cumprimento de uma ou mais obrigações; do respectivo montante; ou das circunstâncias do incumprimento.
Este facto indiciador da insolvência não se basta com o mero incumprimento de uma ou de algumas das obrigações vencidas. É imprescindível que o incumprimento, ainda que de uma única obrigação, pelo significado da dívida no conjunto do passivo ou pelas circunstâncias em que ocorre o incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, revele a falta de liquidez.
Importam aqui factos que preencham a insatisfação de uma ou mais obrigações e o circunstancialismo que a rodeou, e que sejam tidos como idóneos e vocacionados para, razoavelmente e em consonância com os ditames próprios da experiência comum, fazer concluir pela falta de meios do devedor para solver em tempo os seus vínculos. (cfr. Ac. RL de 24.5.2011, processo 221/10.8TBCDV-A.L1-7, consultável in www.dgsi.pt/jtrl).
Como se refere no Ac. desta RG de 21/04/2016, proc. 7110/15.8T8VNF-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg, para o preenchimento do facto-índice da alínea b) do nº 1 do art. 20º do CIRE não é necessária a existência de várias dívidas, podendo bastar uma. O que releva são as circunstâncias do caso em concreto e o relacionamento do montante da dívida com as condições económico-financeiras e patrimoniais do devedor (sublinhado nosso).
Numa outra formulação, refere o Ac. desta RG de 10/11/2016, processo 815/16.8T8GMR.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg que a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas, na insolvência, não significa que se tenha de fazer a prova de que o devedor está impossibilitado de cumprir todas e cada uma dessas obrigações; basta a prova de que o devedor não consegue cumprir obrigações vencidas que demonstrem não ter possibilidade de cumprir as restantes.
Ainda em outra formulação, afirma-se no Ac. da RL de 12/11/2019, processo 14089/18.2T8LSB-A.L1-1, consultável in www.dgsi.pt/jtrl (sublinhado nosso), que “a lei basta-se com uma situação de mora/atraso no cumprimento desde que, pelo seu montante, no conjunto do passivo do devedor e quaisquer outras circunstâncias (atinente com a concreta atividade, resultados de exercício, valores de ativo corrente, disponibilidade de crédito, etc), tal evidencie a impossibilidade de continuar a satisfazer os seus compromissos. (…) [Estão] em insolvência (…) as entidades com fundo de maneio negativo e tesouraria negativa, mesmo que possuam ativos+ valiosos mas não geradores de fluxos de caixa para honrar as suas obrigações contraídas. A lei consagrou assim o critério do fluxo de caixa para avaliação da incapacidade / impossibilidade de cumprimento com que define a insolvência.”
O montante da dívida deve ser analisado na perspectiva do devedor.
E é um critério relativo, ou seja, o mesmo será, ou não, revelador da impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, em função da natureza da obrigação, do conjunto das obrigações a que o devedor está vinculado (montante, natureza e data de vencimento), do peso relativo ou expressão das obrigações incumpridas nesse conjunto, tudo isto conjugado com a natureza da actividade desenvolvida pelo devedor, do volume de negócios se for uma sociedade e se a mesma é geradora de rendimentos e excedente susceptível de proceder ao pagamento das suas dívidas.
Quanto às circunstâncias do incumprimento, releva, por ex., o lapso temporal significativo do vencimento das obrigações e se o devedor desenvolve uma actividade geradora de liquidez capaz de solver as suas obrigações.
Resulta da factualidade provada que a requerida está em incumprimento para com a requerente relativamente às facturas nela referidas.
Precise-se que as quatro primeiras facturas em dívida são de 2021, com valores que oscilam entre os € 1.153,94 e € 3.958,19 que totalizam € 9.592,82.
A requerida apenas entregou € 857,37 para pagamento da primeira factura.
No entanto e apesar disso a relação comercial entre a requerente e a requerida continuou, pois as quinta e sexta facturas em dívida são de respectivamente, 2022 e 2023 e no valor, também respectivamente, de € 11.013,42 e € 9.312,08.
Entretanto e para pagamento da totalidade do crédito a requerida apenas entregou € 500,00, estando em dívida a quantia de € 28.560,95.
À primeira vista o montante da dívida conjugado com o facto de uma parte das facturas ser de 2021 e de a requerida apenas ter entregue duas quantias irrisórias para solver a sua dívida, não pode deixar de impressionar.
Mas, como ficou referido, não basta o incumprimento de uma ou de algumas das obrigações vencidas.
É imprescindível que o incumprimento, pelo seu montante ou pelas circunstâncias em que ocorre, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
No caso sabe-se que o crédito em causa emerge de fornecimentos à requerida.
Mas desconhece-se a composição do conjunto das obrigações a que a requerida está vinculada.
Como já ficou referido, é certo que consta da alínea I) dos factos provados a identificação dos cinco principais credores da requerida.
Porém, nada se sabe quanto aos créditos em causa – natureza, montante, data de vencimento, situação actual – pelo que tal indicação resulta inócua.
Também já ficou referido que resulta da factualidade provada terem sido intentadas contra a requerida e estarem pendentes duas AECOP´s, uma execução sumária e uma insolvência.
A instauração de outra acção de insolvência não releva, por ter a mesma finalidade dos presentes autos.
A requerida deduziu oposição nas AECOP’s.
Desconhece-se o estado da execução, nomeadamente se já foi verificada a insuficiência de bens penhoráveis.
Em face do exposto, o montante da dívida não evidencia, com a necessária consistência e segurança e por desacompanhado de outros elementos, a impossibilidade de a requerida satisfazer pontualmente a generalidade das obrigações.
Por outro lado, quanto às circunstâncias do incumprimento, apenas se sabe que uma parte da dívida - € 9.592,82 – é de 2021, outra - € 11.013,42 – de 2022 e outra - € 9.312,08 - de 2023.
Esta factualidade revela uma continuidade da relação comercial, pese embora a requerida apenas tenha entregue € 857,37 para pagamento da primeira factura e € 500,00 para pagamento da totalidade do crédito.
Além disso, nada mais se sabe, nomeadamente se a requerida desenvolve o seu negócio e, caso o faça, se o mesmo é gerador de liquidez capaz de solver as suas obrigações.
Como refere Maria João Coutinho dos Santos, in “Algumas Notas sobre os Aspectos Económicos da Insolvência da Empresa”, in “Direito e Justiça”, 2005 /tomo II, pág. 182, a “situação de insolvência sendo, conceptualmente, um fenómeno de índole económica manifesta-se sob a forma de uma insuficiência de liquidez para solver as obrigações financeiras contratuais, a qual é resultante da incapacidade, não necessariamente transitória, da empresa gerar excedente económico”.
Destarte, também as circunstâncias do incumprimento provadas não evidenciam, com a necessária consistência e segurança, a impossibilidade de a requerida satisfazer pontualmente a generalidade das obrigações.
Em face do exposto, também improcede a pretensão da recorrente à luz da alínea b) do art.º 20º do CIRE.
Não tendo ficado provado nenhum dos factos índice previstos nas alíneas a) e b) do art.º 20º, fica prejudicada a questão da prova da solvabilidade da requerida.
Em face do exposto, ainda que com outra fundamentação, a sentença recorrida deve manter-se e o recurso deve ser julgado improcedente.
4.4. Custas
As custas são a cargo da recorrente por vencida – art.º 527º, n.º 1 e 2 do CPC.
5. Decisão
Termos em que acordam os Juízes que compõem a 1ª secção da Relação de Guimarães em manter a decisão recorrida, ainda que por outros fundamentos, e, em consequência, julgar improcedente o recurso.
Custas pela recorrente
Notifique-se
*
Guimarães, 19/09/2024
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
Relator: José Carlos Pereira Duarte
1º Adjunto: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade
2º Adjunto: Maria João Marques Pinto de Matos