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ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
LEGITIMIDADE
USUCAPIÃO
PROVA DOS FACTOS CONSTITUTIVOS
Sumário
I “[A] natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.” II - Não obstante a questão da legitimidade dos autores/recorridos constituir uma questão nova, porquanto não foi suscitada no tribunal a quo, é possível conhecê-la em via de recurso, uma vez que a legitimidade constitui exceção dilatória de conhecimento oficioso (arts. 577º, al. e) e 578º, do CPC). III - Na tarefa de aferição do cumprimento do ónus imposto pelo art. 640º do CPC importa que os aspetos de natureza formal sejam analisados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, em conformidade com a filosofia subjacente ao atual direito processual civil de prevalência da dimensão material ou substancial sobre a dimensão meramente formal. IV - Em princípio e como regra geral, os factos devem ser impugnados de forma individual, com referência aos concretos meios probatórios que sustentam a pretensão impugnatória, e não de forma conjunta ou em bloco. Não obstante, tratando-se de factos intimamente relacionados, designadamente porque respeitam à mesma realidade, é de admitir a impugnação em bloco. V - A ação de impugnação de justificação notarial é uma ação declarativa de simples apreciação negativa visto com ela se pretender a declaração da inexistência do direito justificado na escritura. VI - Nesta ação, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito.
Texto Integral
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
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RELATÓRIO AA, BB e marido CC, DD e EE, na qualidade de herdeiros da herança indivisa de FF,intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra GG e mulher HH, II, JJ e KK pedindo que:
a) se declare impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura de justificação outorgada em 20 de novembro de 2017, no Cartório Notarial ..., a cargo do Notário LL, por os 1.ºs réus não terem adquirido a metade indivisa do prédio nela identificado, correspondente ao descrito no artigo 7.º da p.i., por usucapião;
b) se declare ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que os 1.ºs réus não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado;
c) se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base na dita escritura;
d) se declare que a totalidade do prédio rústico identificado no artigo 7.º da p.i. pertence à herança de FF;
e) se condenem os réus a reconhecer a herança de FF como proprietária da totalidade desse prédio rústico;
f) se condenem os réus a abster-se de praticar quaisquer atos que prejudiquem o direito de propriedade sobre o mencionado prédio, nomeadamente de cultivarem o prédio.
Como fundamento dos seus pedidos alegaram, em síntese, que são herdeiros do falecido FF, cuja herança permanece indivisa.
O imóvel descrito na CRP ... sob o artigo ... (melhor identificado na p.i.) pertencia ao falecido.
Após o óbito de FF, o 1º réu começou a querer-se apropriar do imóvel, cultivando o terreno e arrogando-se seu proprietário.
Em 20 de novembro de 2017, os 1ºs réus outorgaram escritura de justificação notarial na qual declararam ser donos e legítimos possuidores de metade do identificado prédio, por o terem adquirido em 1989, por compra verbal, aos titulares inscritos e que, desde há mais de 20 anos, mantêm sobre o mesmo uma posse pública e pacífica praticando diversos atos (que descreveram) correspondentes ao exercício pleno do direito de propriedade, concluindo que adquiriram o direito por usucapião.
Os demais réus intervieram na escritura na qualidade de testemunhas.
As declarações constantes da escritura de justificação não correspondem à verdade, pelo que a mesma é ineficaz.
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Regularmente citados, os 1ºs réus contestaram alegando, em síntese, que adquiriram o imóvel a FF em 1989 e que, desde essa altura, mantêm sobre o mesmo uma posse pública e pacífica praticando diversos atos (que descreveram) correspondentes ao exercício pleno do direito de propriedade, concluindo que adquiriram o direito por usucapião.
Pugnaram pela improcedência da ação.
Na hipótese de a ação proceder, deduziram reconvenção pedindo que os autores sejam condenados a celebrar o contrato definitivo de compra e venda ou, caso não o pretendam, a restituir aos réus o sinal em dobro, ou seja, a pagar-lhes a importância de € 40.000,00, acrescida de juros, à taxa legal, contados da notificação da contestação.
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Os autores replicaram, invocando, além do mais, a ineptidão do pedido reconvencional por manifesta contradição entre a causa de pedir. Impugnaram os factos alegados e invocaram a nulidade do contrato-promessa, pugnando pela improcedência da reconvenção.
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Foi proferido despacho (datado de 18.10.2020, ref. Citius 22927704) que admitiu a dedução de reconvenção e fixou o valor da causa em € 60 000,00.
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Na pendência da ação faleceram os autores AA e BB, tendo sido habilitados para intervirem nos autos MM, no lugar do primeiro, e CC, NN e OO, no lugar da segunda (decisões de 9.5.2022 e 8.11.2022, ref. Citius 24147297 e 24651875, respetivamente, esta última com a retificação constante do despacho de 11.1.2023, ref. Citius 24795294).
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Foi proferido despacho (ref. Citius 25077941) que, além do mais:
a) julgou inepta a reconvenção e dela absolveu os autores/reconvindos;
b) declarou os réus II, JJ e KK partes ilegítimas, absolvendo-os da instância;
c) julgou tabelarmente verificados os demais pressupostos processuais;
d) identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova e admitiu a prova requerida pelas partes.
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Realizou-se a audiência final e, após, foi proferida sentença com o seguinte teor decisório: “Por todo o exposto, julgo totalmente procedente, por provada, a presente acção e, em consequência: i) declaro, e condeno os Réus GG e HH a reconhecê-lo, que o prédio rústico sito no Lugar ..., da freguesia ..., do concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...01.º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...71, da freguesia ..., faz parte, na sua totalidade, da HERANÇA ABERTA POR ÓBITO DE FF; ii) declaro, e condeno os Réus a reconhecê-lo, que MM, NN, OO, DD e EE, únicos e universais herdeiros de FF, são proprietários, em comum e sem determinação de parte ou direito, da totalidade do prédio identificado em i); iii) condeno os Réus a absterem-se de praticar quaisquer actos que prejudiquem o direito de propriedade sobre o mencionado prédio, nomeadamente de cultivarem-no; iv) declaro impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura de justificação outorgada em 20.11.2017 pelos Réus, no Cartório Notarial sito na Rua ..., ..., em ..., a cargo do Notário PP, atinente à metade indivisa do prédio identificado em i); v) declaro ineficaz essa mesma escritura de justificação na parte atinente à metade indivisa do prédio rústico nela indicada sob o n.º ...; vi) ordeno o cancelamento de qualquer registo que haja sido feito com base em tal escritura relativamente ao prédio identificado em i).
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Os réus não se conformaram e interpuseram o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões: “1- Os Recorrentes/Apelantes sustentam que a douta sentença recorrida é injusta e não realiza uma avaliação, correcta e ponderada, da prova produzida e atendível. 2- Preconizam que a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, e, bem assim, a que foi sendo carreada para os autos, impunha resposta diferente à matéria de facto dada como provada; 3- Entendem, ainda, que, a factualidade dada como provada e a que deveria ter sido dada como provada, impunha a subsunção a normas jurídicas diversas das que foram aplicadas in casu ou, no menos, a uma outra interpretação das mesmas. 4- O Tribunal a quo deveria ter declarado os, ali, AA. como parte ilegítima (uma vez que não têm interesse em demandar ou ser parte na presente acção) e conhecido da nulidade da escritura de “compra e venda” que está na origem do registo de que os “compradores” se querem fazer valer… 5- Os Recorridos/Apelados arrogam-se como “únicos e universais herdeiros” de FF. 6- O Tribunal a quo apurou que o falecido FF “comprou” à EMP01..., “em data não concretamente apurada”, ½ desse prédio e que, também, “em data não concretamente apurada, mas sempre ulterior à aquisição referida em 9.”, o falecido FF, comprou verbalmente (essa quota parte !!!) a QQ. 7- A “primeira compra” (de metade) não resultou provada por documento e a M.ma Julgadora a quo bastou-se com a certidão do registo. 8- A existência da “segunda compra”, verbal – alegadamente, a metade que está, aqui, em discussão - resultou da prova testemunhal e documental, carreada para os autos. 9- Como é consabido, a compra e venda, verbal, de imóveis, mostra-se ferida de nulidade, insanável, e é do conhecimento oficioso do Tribunal (cfr. artº.s 286 e 875º. CC). 10- Assim, ressalvada melhor opinião, estamos na presença de um facto, absolutamente, inócuo e irrelevante para os presentes autos. 11- Ou seja, o Tribunal a quo releva, para efeitos da presente acção (e para efeitos de impugnação da escritura de justificação), um contrato de compra e venda, verbal, de ½ de um prédio rústico !!! 12- Não obstante a complacência (e as explicações/justificações) da M.ma Julgadora a quo, a verdade é que a “vendedora” EMP01... faz de conta que “vende” (uma vez que não é dona dessa metade, nem a possui) aos Recorridos uma parcela de terreno, declara que recebe um preço que, efectivamente, não recebeu, nem lhe foi pago e, por outro lado, os Recorridos, fazem de conta que “compram” (cientes de que a EMP01... nada tinha para vender e, pretensamente, cônscios de que a parcela de terreno já lhes pertencia…) e declaram que pagaram um preço que, realmente, nunca pagaram (nem, nunca, tiveram intenções de pagar). 13- Estamos, assim, perante uma simulação absoluta, que acarreta a nulidade do negócio e o consequente registo (decorrente de um negócio ferido de nulidade). 14- Em face do exposto, os Recorridos/Apelados carecem de legitimidade para ser parte na presente acção. 15- Assim, nunca, em circunstância alguma, o Tribunal a quo poderia ter declarado os Recorridos/Apelados como donos do imóvel, na sua totalidade (quando muito, de metade do imóvel, em resultado da mera presunção do registo e na exacta medida em que os Recorridos/Apelados realizaram o registo da “aquisição, por sucessão hereditária”). 16- O princípio da livre apreciação da prova, plasmado no artº. 607º., nº. 5 CPC, tem (deve) de ser exercido pelo Julgador de modo prudente e em relação a cada facto. Não pode ser exercido de forma imprudente e por “atacado” (de um lado, vale tudo e do outro, nada presta), como decorre da análise da douta decisão recorrida. 17- Não pode, o Tribunal a quo dar como provado, em 11 dos factos provados, que os, aqui, Recorrentes/Apelantes, declararam ter adquirido em 1989, “por compra verbal, à EMP01..., Lda”. uma vez que, o que consta da escritura é a indicação da compra ao “titular inscrito” (ocorre, assim, errada interpretação do texto da escritura). 18- Por outro lado, não pode o Tribunal a quo julgar como provado o facto relatado em 16 dos factos provados, uma vez que as testemunhas RR, SS, e TT relatam, de forma consistente, o inverso e, sobretudo, que os actos de posse tiveram início em momento anterior ao decesso de FF. 19- Da mesma forma, e pela sua irrelevância no âmbito dos presentes autos – uma vez que só tem como propósito, ainda que, involuntário, condicionar a Julgadora de um, outro, processo, onde as mesmas partes discutem a questão dos valores, ali, referidos, - não podem resultar provados os factos relatados em 20 e 21. 20- Os factos constantes dos nº.s 24, 25, 27, 34, 37 e 38 dos factos provados, em face da prova produzida (sobretudo, tendo, aqui, presentes os depoimentos prestados pelas testemunhas RR, SS, TT e UU), deveriam ter sido julgados como “não provados”. 21- Por outro lado, quase, todos os factos julgados como “não provados” deveriam ter sido julgados como provados (com excepção do último facto constante dos factos não provados), atentas as declarações prestadas pelas testemunhas RR, SS, TT e UU. 22- Em abono da verdade, a convicção da M.ma Julgadora teve por base uma escritura (de compra e venda) falsa, um registo nulo, e os depoimentos das testemunhas VV (que pouco, ou nada, de relevante referiu), das testemunhas WW e XX (que foram as pessoas contratadas pelos AA. para lavrar a terra “nas costas do GG” e, sobretudo, numa altura em que já sabiam que o GG dizia que a terra era dele), da testemunha YY (residente na região ..., há muitos anos, e que se desloca, ocasionalmente, à terra e pouco (ou nada) conviveu com o falecido FF ou com os RR. e que foi “arranjada”/arrolada in extremis) e da testemunha ZZ, que tem inegável interesse na causa, uma vez que é o marido da Habilitada MM. 23- Estas testemunhas que pouco (ou nada) conviveram com o falecido FF, que não têm qualquer contacto com os RR. e que, raramente, se deslocam à povoação onde se localiza o imóvel, mereceram total crédito por parte da M.ma Julgadora, 24- Enquanto que as testemunhas arroladas pelos RR. (que são as que residem/trabalham na aldeia, são as pessoas que lidavam todos os dias (ou amiúde) com o falecido FF e com os, aqui, Recorrentes/Apelantes, são as pessoas que conhecem a terra e quem nela trabalha) foram, liminarmente, rotuladas de tendenciosas e pouco credíveis… 25- A douta decisão recorrida viola, assim, o princípio da livre apreciação da 577º., 578º., 608º. e 615º., nº. 1, al. a) todos do CPC e 286º. e 875º. CC.”
Terminaram pedindo que seja revogada a sentença recorrida e substituída por acórdão que julgue a ação improcedente.
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Os autores e os habilitados contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida (..) (....)
OBJETO DO RECURSO
(...)
Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:
I - saber se os autores/recorridos são parte ilegítima na ação;
II - saber se os recorrentes cumpriram o ónus de impugnação da matéria de facto;
III - na hipótese afirmativa, aferir se a matéria de facto deve ser alterada;
IV - saber, à luz da factualidade provada, se estão reunidos os pressupostos legais para que a escritura de justificação notarial seja declarada ineficaz e para que seja reconhecido que os autores são donos da totalidade do imóvel.
FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTOS DE FACTO
Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:
1. FF faleceu em ../../2015, no estado de viúvo de AAA.
2. FF não deixou testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, assim como não deixou descendentes nem ascendentes vivos.
3. Sucederam-lhe, assim, como seus únicos e universais herdeiros, o seu irmão, AA, a sua sobrinha, BB, filha de BBB, pré-falecida irmã do de cujus, as suas sobrinhas, DD e EE, filhas de CCC, pré-falecido irmão do de cujus.
4. A herança aberta por óbito de FF permanece, até à presente data, indivisa.
5. Na pendência desta acção, em ../../2021, o 1.º Autor AA faleceu, tendo-lhe sucedido a filha ora Habilitada MM.
6. E em ../../2022 faleceu a 2.ª Autora BB, tendo-lhe sucedido o cônjuge ora 2.º Autor CC e os filhos ora Habilitados NN e OO.
7. No Lugar ..., da freguesia ..., do concelho ..., existe o prédio rústico inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...01.º e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...71, daquela freguesia.
8. Tal prédio pertenceu à EMP01..., L.da, por o haver comprado a DDD, aquisição essa que se encontra registada a favor daquela pela Ap. ...1 de 1959/11/28 na Conservatória do Registo Civil ....
9. Em data não concretamente apurada, FF comprou à EMP01..., L.da a quota de 1/2 desse prédio, aquisição essa que se encontra registada a favor daquele pela Ap. ... de 1987/08/19 na Conservatória do Registo Civil ....
10. Pela Ap. ...01 de 2015/11/12 encontra-se registada, a favor dos herdeiros de FF identificados em 3., a aquisição, por sucessão hereditária, dessa quota de 1/2 do prédio rústico identificado em 7..
11. No dia 20 de Novembro de 2017, os Réus GG e HH outorgaram no Cartório Notarial sito na Rua ..., ..., em ..., pertencente ao Notário EEE, a escritura pública de Justificação que se encontra junta a fls. 32-36 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, declarando, designadamente, que é dono e legítimo possuidor de metade indivisa do prédio identificado em 7., aí identificada sob o n.º ..., por a haver adquirido em 1989, por compra verbal, à EMP01..., L.da.
12. Há mais de 40 anos, tal quota parte do prédio identificado em 7. foi adquirida, por compra verbal, à EMP01..., L.da por VV, que, por sua vez, a vendeu, também verbalmente, a QQ.
13. Em data não concretamente apurada, mas sempre ulterior à aquisição referida em 9., o falecido FF comprou-a verbalmente ao referido QQ.
14. Porque os Autores, em representação da herança, tivessem obtido a informação sobre os negócios verbais referidos em 12. e 13. por contacto pessoal com os respectivos vendedores e tal quota parte ainda estivesse inscrita no registo em nome da proprietária originária, os Autores e a EMP01..., L.da outorgaram em 16.10.2017 a escritura de Compra e Venda que se encontra junta a fls. 27-29 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
15. E fizeram-no apenas para formalizar um negócio já celebrado, evitando-se, desse modo, a outorga de três escrituras de compra e venda para a obtenção do mesmo resultado.
16. Logo após o óbito de FF, os Réus GG e HH, aproveitando-se do facto de os herdeiros daquele, aqui Autores, não residirem em ..., começaram a cultivar o terreno e a arrogar-se de dele serem proprietários, tendo o 1.º Réu, inclusivamente, em 11.06.2015, registado no IFAP – Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas, I.P. a agregação do mencionado prédio rústico ao seu parcelário (ou seja, à sua parcela de exploração agrícola), também designado por Sistema de Identificação de Parcela (SIP), para ter acesso a fundos comunitários, através do IFAP.
17. Para o efeito, os Réus GG e HH valeram-se do denominado «contrato de promessa de compra e venda» que se encontra junto a fls. 30v e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
18. Não houve registo da entrada da quantia de € 20.000,00 nas contas bancárias do falecido, na data que consta no documento referido em 17. como tendo sido o da outorga do contrato promessa.
19. FF não sabia ler, nem escrever, apenas assinava o seu nome e com bastante dificuldade.
20. Por razões não concretamente apuradas, o Réu GG efectuou, no dia 09.01.2015, uma ordem de transferência no montante de € 40.000,00, da conta bancária do falecido na Banco 1..., S.A., sob o n.º ...78, a que tinha acesso, para a sua conta bancária sob o n.º ...61.
21. E no dia 18.02.2015, efectuou uma ordem de transferência no montante de € 31.000,00, da conta bancária do falecido no Banco 2..., S.A., sob o n.º ...90, a que tinha acesso, para a sua conta bancária sob o n.º ...71.
22. Os Réus GG e HH, desde que começaram a relacionar-se com FF, sempre souberam que a totalidade do prédio era pertença do mesmo.
23. Durante vários anos, FF viveu com um sobrinho, de nome FFF, que o auxiliava na administração dos seus bens e na gestão da sua economia doméstica.
24. E era o sobrinho quem cultivava o prédio em questão.
25. O que fez até 2012, quando faleceu.
26. Já antes havia relacionamento entre o Réu GG e FF, mas foi desde o decesso do sobrinho FFF que aquele passou a ter uma relação mais próxima com aquele.
27. Enquanto FF foi vivo o Réu GG nunca se arrogou proprietário do prédio em causa.
28. Foi apenas após o falecimento de FF que o Réu GG se candidatou, pela primeira vez, aos subsídios do IFAP.
29. Tal situação motivou uma denúncia por parte do Autor AA ao IFAP no ano de 2015, expondo a irregularidade da candidatura do Réu GG.
30. Na sequência, e sem que o Réu GG se tivesse pronunciado em sede de audiência prévia, o IFAP procedeu ao cancelamento do registo da parcela inscrita em nome daquele.
31. FF beneficiava, desde ../../2004, do serviço de Apoio Domiciliário da Santa Casa da Misericórdia de ... ao nível da alimentação, do tratamento de roupa, da higiene pessoal e habitacional.
32. Fruto da relação de amizade que existia, os Réus GG e HH acompanharam o falecido FF nos seus últimos anos de vida e prestaram-lhe o apoio de que necessitava, designadamente transportá-lo ao médico e a outros locais.
33. O falecido FF tinha confiança nos Réus GG e HH, sendo as pessoas com quem podia mais contar, até pela circunstância de todos os Autores residirem na área de ....
34. O Réu GG tinha acesso a contas bancárias do falecido FF, seja por delas fosse co-titular, seja por ter autorização para as movimentar.
35. A EMP01..., L.da, ao longo dos últimos 30 anos, nunca reivindicou dos Réus GG e HH ou do falecido FF o que quer que fosse em relação ao prédio em causa, o que sucedeu devido ao descrito em 9., 12. e 13..
36. Foi o documento referido em 17. que possibilitou que os Réus GG e HH se candidatassem a subsídios do IFAP.
37. Até ao falecimento de FF os Autores nunca haviam realizado qualquer tipo de intervenção no prédio em causa, tendo-o feito e/ou tentado fazer após tal acontecimento, por si ou por intermédio de terceiros, sempre com a oposição do Réu GG.
38. Os Réus GG e HH utilizaram e trataram o prédio em causa limpando-o, plantando oliveiras e colhendo os respectivos frutos, com a autorização do falecido FF enquanto foi vivo.
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Na 1ª instância foram considerados nãoprovados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos (com exceção da ordenação por letras, a qual foi por nós introduzida):
A - os Réus deram-lhe de comer, cuidavam da medicamentação, tratavam da sua higiene pessoal e da casa;
B - o falecido FF referia, publicamente, que a única família que tinha eram os 1.ºs Réus e que lhes ia deixar todo o seu património e dinheiro;
C - essa realidade é do conhecimento de toda a gente na povoação da ... e arredores;
D - os Réus compraram o prédio ao FF por quatro mil contos no ano de 1989;
E - desde então e até ao presente possuem o imóvel em causa como coisa sua, forma pacífica, à frente e com o conhecimento de toda a gente, sem a oposição de ninguém, com a convicção de serem os legítimos e exclusivos proprietários, participando nas vantagens e encargos do imóvel e praticando actos concretos em relação ao direito possuído,
F - esses actos de posse, sempre, foram conhecidos e respeitados por toda a população da ... e, também (e sobretudo), pelo falecido FF que, sempre, reconheceu que o imóvel pertencia aos 1.ºs Réus;
G - ao longo dos últimos 30 anos sempre foram os Réus que cuidaram das cepas e apanharam as uvas, sem prestar contas a ninguém e, sempre, como donos e legítimos proprietários das cepas e dos frutos;
H - ao longo dos anos, sucessivamente, os Réus recolhem o mato e limpam a terra;
I - uns anos antes de o Sr. FF falecer os Réus plantaram mais de duas dezenas de oliveiras na “...”, compraram as árvores, tendo realizado a plantação à vista de toda a gente e, designadamente, do falecido FF, que nunca manifestou qualquer tipo de oposição ou exigiu dos Réus o que quer que fosse.
J - após o decesso do Sr. FF, os Réus plantaram mais duas dezenas de oliveiras, sem qualquer oposição da parte dos Autores;
K - a “...” tem, hoje, um valor de mercado, por força do investimento que os 1.ºs Réus, ao longo dos anos, ali, vêm fazendo, da ordem dos 30 a 40 mil euros;
L - o “contrato promessa de compra e venda” foi o meio encontrado pelo falecido FF e pelo Réu GG de formalizar o negócio verbal ocorrido em 1989;
M - o Réu aproximou-se do Sr. FF com o logro de fazer seus os bens deste, aproveitando-se da fragilidade emocional e física daquele.
FUNDAMENTOS DE DIREITO
I – Legitimidade dos autores/recorridos
Os recorrentes alegam que os autores/recorridos “são parte ilegítima e não têm interesse directo e relevante na impugnação da escritura de justificação (e, por isso em demandar e ser parte no âmbito dos presentes autos).”
Como escreve António Santos Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pág. 119) “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas. Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não analisar questões novas, salvo quando (...) estas sejam de conhecimento oficioso (...). Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos seguido um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.”
Como se escreveu no Acórdão desta Relação de 8.11.2018 (in www.dgsi.pt) “por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido. Só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido (...). A única exceção a esta regra, como bem se compreende, são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes. Não sendo uma situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal superior apreciar uma questão nova, por pura ausência de objeto: em bom rigor, não existe decisão de que recorrer. É um caso de extinção do recurso por inexistência de objeto.”
No caso em apreço, a questão da legitimidade dos autores/recorridos constitui uma questão nova porquanto não foi suscitada no tribunal a quo, só o tendo sido no âmbito do presente recurso.
Não obstante se tratar de questão nova, é possível conhecê-la em via de recurso, uma vez que a legitimidade constitui exceção dilatória de conhecimento oficioso (arts. 577º, al. e) e 578º, do CPC).
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Quanto ao conceito de legitimidade, dispõe o art. 30º, do CPC, que:
1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. 2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Da leitura desta norma, conclui-se, utilizando as palavras de Castro Mendes (in Direito Processual Civil, Vol. II, págs. 187 e 192) que “a legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objeto do processo.” (...) Assim, a legitimidade da parte depende da titularidade, por esta, dum dos interesses em litígio”.
No mesmo sentido ensinava o Prof. Alberto dos Reis (in Comentário ao Código de Processo Civil, 2ª edição, Vol. I, pág. 41) que a “questão da legitimidade é simplesmente uma questão de posição quanto à relação jurídica substancial. As partes são legítimas quando ocupam na relação jurídica controvertida uma posição tal que têm interesse em que sobre ela recaia uma sentença que defina o direito.”
A exigência deste requisito pretende acautelar que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, tornando-se assim necessário que estejam em juízo, como autor e réu, as pessoas titulares da relação jurídica em causa (Acórdão da Relação de Guimarães, de 18.1.2018, in www.dgsi.pt).
A legitimidade, enquanto pressuposto processual que se exprime através da titularidade do interesse em litígio, exige que apenas se considere parte legítima como autor quem tiver interesse pessoal e direto em demandar, não bastando um interesse indireto, reflexo, conexo ou derivado.
“Concretizando, poderemos dizer que o autor é parte legítima sempre que a procedência da ação (previsivelmente) lhe venha a conferir (para si e não para outrem) uma vantagem ou utilidade” (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 3ª edição pág. 82).
À legitimidade, enquanto pressuposto processual definido no art. 30º, do CPC, interessa saber quem são os sujeitos da relação controvertida, tal como ela é configurada pelo autor. Saber se essa relação existe ou não e quem são efetivamente os seus sujeitos é matéria que pertence ao mérito da ação, e que se prende com a legitimidade em sentido material, e não com a legitimidade enquanto pressuposto processual.
Como referido no Acórdão do STJ, de 18.10.2018 (in www.dgsi.pt) a “legitimidade processual, constituindo uma posição do autor e do réu em relação ao objecto do processo, afere-se em face da relação jurídica controvertida, tal como o autor a desenhou. A legitimidade material, substantiva ou “ad actum” consiste num complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa.”
Por fim, como salientam Abrantes Geraldes e outros (in CPC Anotado, Vol. I, 2ª edição, pág. 64) “a legitimidade processual não se confunde com o interesse em agir, reportando-se este a situações que careçam objetivamente de uma resolução judicial que ponha cobro a um conflito de interesses ou que tutele interesses juridicamente relevantes sempre que os efeitos não possam ser alcançados com a mesma segurança por meios extrajudiciais”, constituindo o interesse em agir um pressuposto processual inominado que visa evitar a proposição de ações inúteis.
Revertendo agora ao caso em concreto, importa aferir, à luz dos pedidos formulados pelos autores e à causa de pedir por eles invocada, se os mesmos são dotados de legitimidade para a ação por terem interesse em demandar.
Os autores intentaram a presente ação na qualidade de herdeiros da herança indivisa de FF.
Alegaram que o imóvel descrito na CRP ... sob o artigo ... (melhor identificado na p.i.) pertencia ao falecido e que os réus/recorrentes outorgaram escritura de justificação notarial na qual declararam ser donos e legítimos possuidores de metade desse imóvel, por o terem adquirido por usucapião; porém, as declarações constantes da escritura de justificação não correspondem à verdade.
Com base nesta causa de pedir pretendem: por um lado, impugnar o facto justificado na escritura, por os réus não terem adquirido por usucapião metade do prédio nela identificado, e que se declare que essa escritura é ineficaz e de nenhum efeito por forma a que os réus não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio, ordenando-se o cancelamento de quaisquer registos efetuados (pedidos a), b) e c)); por outro lado, que se declare que a totalidade do prédio pertence à herança de FF e que se condenem os réus a reconhecer esse direito de propriedade e a abster-se de praticar atos que o prejudiquem (pedidos d), e) e f)).
Tendo em conta a descrita causa de pedir e os pedidos formulados tem que se concluir que os autores/recorridos são sujeitos da relação material controvertida invocada na p.i. porquanto têm interesse direto e pessoal em demandar uma vez que a procedência da ação lhes confere de forma direta e imediata uma vantagem ou utilidade, qual seja a de o prédio integrar a herança de FF da qual são herdeiros.
Por assim ser, os autores/recorridos são parte legítima na presente ação, improcedendo esta questão recursória.
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II – (In)cumprimento do ónus de impugnação da matéria de facto
Os recorridos consideram que os recorrentes não deram cumprimento ao ónus de impugnação imposto no art. 640º, do CPC, nomeadamente “não especificaram, de forma autónoma e individualizada as razões por que entendem que cada facto deveria ter tido uma resposta diferente (...) mormente, o meio de prova que, reapreciado, deveria permitir concluir em sentido diverso”.
Com este fundamento, pedem a rejeição do recurso, nesta parte.
Vejamos, então, se os recorrentes cumpriram, ou não, os ónus em questão.
Dispõe o art.º 640.º do CPC sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto” que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
Na tarefa de aferição do cumprimento do ónus imposto por esta norma importa que os aspetos de natureza formal sejam analisados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, em conformidade com a filosofia subjacente ao atual direito processual civil de prevalência da dimensão material ou substancial sobre a dimensão meramente formal.
Porém, se é certo que não se deve exponenciar a exigência de cumprimento de requisitos formais, não é menos certo que a impugnação da matéria de facto não se pode circunscrever a uma declaração vaga e genérica de inconformismo e discordância quanto à decisão proferida alicerçada em alusão e remissão igualmente genéricas para os meios probatórios produzidos nos autos.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre esta temática tem sido norteada pelo princípio da proporcionalidade, visando evitar soluções que possam conduzir à repetição total do julgamento, em virtude de recursos genéricos, mas permitindo a reapreciação de questões concretas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente que permitam um efetivo exercício do contraditório por parte do recorrido (cf. acórdão do STJ, de 13.1.2022, P 417/18.4T8PNF.P1.S1, in www.dgsi.pt).
Destarte, em princípio e como regra geral, os factos devem ser impugnados de forma individual, com referência aos concretos meios probatórios que sustentam a pretensão impugnatória, e não de forma conjunta ou em bloco.
Não obstante, tratando-se de factos intimamente relacionados, designadamente porque respeitam à mesma realidade, é de admitir a impugnação em bloco.
Neste mesmo sentido considerou o acórdão do STJ, de 19.5.2021, (P 4925/17.6T8OAZ.P1.S1 in www.dgsi.pt) que “[q]uando o conjunto de factos impugnados se refere à mesma realidade e os concretos meios de prova indicados pelo recorrente sejam comuns a esses factos, a impugnação dos mesmos em bloco não obstaculiza a perceção da matéria que se pretende impugnar, pelo que deve ser admitida a impugnação”.
No mesmo alinhamento de ideias, sumariou o acórdão do STJ de 1.6.2022 (P 1104/18.9T8LMG.C1.S1 in www.dgsi.pt), que:
“II - A impugnação da matéria de facto deve, em regra, especificar os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, relativamente a cada um dos pontos da matéria impugnada. III - Tendo em conta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos no conceito de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), nada obsta a que a impugnação da matéria de facto seja efetuada por “blocos de factos”, quando os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão e, para além disso - tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, o número de factos impugnados e a extensão e conexão dos meios de prova -, o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal, não exigindo a sua análise um esforço anómalo, superior ao normalmente suposto.”
Quanto aos concretos meios probatórios que impõem decisão diversa não é necessário que constem das conclusões, podendo tal menção constar da motivação.
Neste mesmo sentido, o acórdão do STJ, de 19.2.2015, (P 299/05.6TBMGD.P2.S1in www.dgsi.pt) considerou que “enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória”.
Também não tem obrigatoriamente que constar das conclusões a decisão alternativa pretendida quanto aos pontos de facto impugnados, pois, conforme Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 12/2023[1]“[n]os termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”
A consequência para o incumprimento dos ónus de impugnação é a rejeição do recurso na parte afetada, não admitindo a lei despacho de aperfeiçoamento sobre esta questão (art. 640º, nº 2, al. a), do CPC).
No caso em apreço verifica-se que, nas conclusões de recurso, os recorrentes referem que pretendem que os factos provados 11, 16, 20, 21, 24, 25, 27, 34, 37 e 38 sejam dados como não provados (cf. conclusões 17 a 20).
Impugnaram os factos 11 e 16 autonomamente (conclusões 17 e 18, respetivamente); impugnaram os factos 20 e 21 e os factos 24, 25, 27, 34, 37 e 38 conjuntamente (conclusões 19 e 20, respetivamente).
Os factos 20 e 21 respeitam a transferências bancária feitas pelo réu das contas do falecido FF para contas por si tituladas.
Os factos 24, 25, 27, 37 e 38 respeitam a concretos atos praticados no prédio em discussão nos presentes autos.
Por se tratar de factualidade conexa, considera-se admissível a impugnação conjunta ou em bloco.
Porém, o facto 34 nada tem a ver com os factos 24, 25, 27, 37 e 38, pois respeita ao acesso que o réu tinha às contas bancárias do falecido, razão pela qual não é admissível a impugnação em bloco e em conjunto com esta factualidade, tendo o recurso que ser rejeitado nesta parte.
Na parte da motivação, os recorrentes indicaram os depoimentos das testemunhas em que alicerçam a sua pretensão impugnatória, fazendo uma súmula do que as mesmas disseram, com referência aos tempos da gravação.
Não indicaram de forma discriminada que depoimentos justificam resposta diversa quanto a cada conjunto de factos.
Porém, da súmula efetuada resulta que se trata de depoimentos que incidiram sobre a aquisição do prédio e os atos nele praticados.
Assim, e adotando uma orientação conforme com a jurisprudência seguida pelo STJ, de proporcionalidade na aferição do cumprimento dos ónus impugnatórios e de primazia da vertente substancial sobre a formal, admite-se que os recorrentes cumpriram minimamente os ónus impugnatórios relativamente aos factos provados 11, 16, 24, 25, 27, 37 e 38, pois estes respeitam precisamente à aquisição do prédio e atos nele praticados,inexistindo fundamento para rejeitar o recurso, nesta parte, como pretendido pelos recorridos.
Porém, quanto aos factos 20 e 21, que respeitam a transferências bancárias de contas do falecido para contas do réu, já não se pode considerar que as súmulas dos depoimentos das testemunhas indicadas na motivação abranjam essa matéria. Assim, mesmo seguindo a orientação benevolente adotada quanto aos factos anteriores, não é possível considerar que os recorrentes indicaram os concretos meios probatórios que sustentam a pretensão de impugnação dos factos 20 e 21, pelo que incumpriram os ónus impugnatórios previstos no art. 640º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a), do CPC, tendo o recurso que ser rejeitado nesta parte.
Por último, quanto aos factos não provados, os recorrentes limitam-se a dizer na conclusão 21 que “quase todos os factos julgados como ‘não provados’ deveriam ter sido julgados como provados (com exceção do último facto constante dos factos não provados), atentas as declarações prestadas pelas testemunhas RR, SS, TT e UU”.
Na motivação efetuam idêntica afirmação, não fazendo aí qualquer alusão às partes concretas dos depoimentos dessas testemunhas que sustentam a sua pretensão impugnatória, nem por transcrição, nem por reporte aos tempos de gravação.
Ora, lendo os factos não provados, que supra se encontram transcritos, conclui-se que os mesmos não se reportam à mesma realidade factual, abrangendo várias matérias diferentes, o que significa que não é admissível a impugnação genérica e em bloco.
Perante tal, e também porque quanto aos aludidos factos não provados os recorrentes não indicaram os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida e não indicaram com exatidão as passagens da gravação em que fundam o seu recurso, considera-se que incumpriram os ónus impugnatórios previstos no art. 640º, nº 1, als. a) e b) e nº 2, al. a), do CPC, tendo o recurso que ser rejeitado nesta parte.
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Face ao explanado, decide-se:
a) admitir o recurso quanto à impugnação deduzida quanto aos factos provados 11, 16, 24, 25, 27, 37 e 38, por se considerarem cumpridos os ónus de impugnação; b) rejeitar o recursoquantoà impugnação deduzida quanto aosfactos provados 20, 21 e 34 e quanto aos factos não provados, por não se considerarem cumpridos os ónus de impugnação.
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III – Alteração da matéria de facto
(...)
Por conseguinte, improcede a impugnação deduzida quanto ao facto nº 11.
(...)Assim, improcede a impugnação deduzida quanto à 2ª parte do facto provado 16.
(...)Perante o explanado, improcede a impugnação deduzida quanto à 1ª parte do facto provado 16 e quanto aos factos nºs 24, 25, 27, 37 e 38.
IV – Verificação dos pressupostos legais para que a escritura de justificação notarial seja declarada ineficaz e para que seja reconhecido que os autores são donos da totalidade do imóvel
Com a presente ação, os autores pretendem que se declare impugnado o facto justificado na escritura de justificação outorgada em 20 de novembro de 2017, por os réus não terem adquirido, por usucapião, a metade indivisa do prédio nela identificado e que se declare ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura, por forma a que os réus não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio e se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base na dita escritura (pedidos a), b) e c)).
Trata-se assim de uma ação de impugnação de justificação notarial.
A justificação notarial é um meio que permite ao adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito obter a primeira inscrição, ou, caso exista inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, um meio que permite suprir a falta de intervenção do respetivo titular (art. 116º, do Código do Registo Predial).
Nos termos dos arts. 89º a 91º, do Cód. do Notariado, a justificação pode ter como finalidade:
a) o estabelecimento do trato sucessivo;
b) o reatamento do trato sucessivo;
c) o estabelecimento de novo trato sucessivo.
Recorrendo às palavras do Acórdão do STJ, de 5.11.2019, Relatora Maria Clara Sottomayor (in www.dgsi.pt) “a escritura de justificação notarial é um instituto que contribui para a paz social e para a justiça, na medida em que, nos casos em que os interessados encontram dificuldades no registo, derivadas da falta ou insuficiência dos documentos normalmente necessários, e estão impossibilitados de demonstrar o seu direito e, consequentemente, de transmitir ou onerar os seus bens, a lei permite-lhes a prova da aquisição por usucapião. Criou, assim, a lei uma providência de natureza excecional, a justificação, destinada a possibilitar o estabelecimento do princípio do trato sucessivo (inscrição prévia e continuidade das inscrições), sempre que os interessados não disponham de títulos que comprovem os seus direitos.”
No acórdão do Supremo Tribunal, de 25.06.2015, Relator Abrantes Geraldes (in www.dgsi.pt) refere-se que a justificação notarial é um instrumento com “uma elevada dose de pragmatismo e de eficácia que confluem para o objectivo da regularização registral de prédios, através da obtenção de um instrumento formal sem as exigências, os custos e as demoras inerentes quer à acção de justificação judicial, quer à acção de simples apreciação positiva para reconhecimento do direito real por usucapião, meios processuais de natureza contenciosa. Relativamente aos casos verdadeiramente patológicos, os efeitos negativos para os titulares inscritos, cujos interesses podem ser afectados pela justificação notarial, acabam por ser atenuados com a atribuição do direito de acção que lhes permite confrontar judicialmente o justificante e onerá-lo com a prova dos factos justificativos da usucapião, à semelhança do que ocorreria numa acção de reconhecimento do direito real pela mesma via. A experiência demonstra, aliás, que o uso razoável daquele mecanismo facilita e simplifica a regularização tabular dos prédios num sistema como o nosso em que, essencialmente fora dos grandes meios urbanos, ainda não está generalizada a percepção das vantagens do cumprimento dos requisitos formais no que concerne aos negócios que têm por objecto prédios rústicos e urbanos (outorga de escritura pública e registo predial dos factos) ou em que, com elevada frequência, se verifica uma desconformidade entre os aspectos de ordem substancial ou material e os aspectos de ordem formal atinentes ao património imobiliário”.
A justificação notarial não constitui ela própria o ato translativo ou constitutivo do direito real. Tal direito, no caso de invocação da usucapião, decorre dos concretos atos materiais de posse, revestidos de determinadas caraterísticas e mantidos durante certo período temporal, que conduzem a essa forma originária de aquisição e que são invocados na escritura de justificação.
Esses atos podem ser impugnados judicialmente, nos termos do art. 101º do Código do Notariado, em ação de impugnação de justificação notarial, a qual é uma ação declarativa de simples apreciação negativa visto com ela se pretender a declaração da inexistência do direito justificado na escritura.
Assim, como decorre do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/08, de 4.12.2007 (in DR, SÉRIE I, de 2008-03-31) “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial.”
Os réus na escritura de justificação declararam, para além situações relativas a outros prédios que para o caso não relevam, que adquiriram metade indivisa do prédio descrito e identificado na verba nº 2, no ano de 1989, na sequência de compra verbal efetuada aos referidos titulares inscritos, sendo que o titular inscrito é a EMP01..., Lda. como consta da descrição do imóvel feita na verba nº 2.
Declararam ainda que possuem o referido prédio há mais de 20 anos, posse que exerceram pacífica a publicamente, à frente e com conhecimento de toda a gente e sem a oposição de ninguém, com convicção de serem os legítimos proprietários, mantida e exercida em nome e interesse próprio, participando nas vantagens e encargos, praticando atos concretos em relação ao direito possuído, exercendo sobre ele todos os atos de posse, designadamente, cultivando o prédio, roçando o mato e ervas, colhendo os seus frutos, pagando as respetivas contribuições e impostos, agindo sempre por forma correspondente ao exercício pleno do direito de propriedade, posse que conduziu à aquisição por usucapião do prédio e que também invocam para efeitos de estabelecimento de novo trato sucessivo na conservatória e do competente registo em seu favor.
Dispõe o art. 1251º, do CC, que posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
Como se lê no art. 1287º, do CC, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida durante certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião.
A usucapião constitui assim uma forma de aquisição originária do direito real por aquele que tem uma posse com determinadas caraterísticas, mantidas durante determinado lapso temporal.
E constitui um modo de aquisição originária porque o direito surge, ou melhor, constitui-se ex novo na ordem jurídica.
A usucapião é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão e, por isso, os direitos que nela tenham a sua origem não sofrem em nada com os vícios de que possam eventualmente padecer os anteriores proprietários sobre a mesma coisa (Menezes Cordeiro; Direitos Reais; II; pág. 684).
A “aquisição por usucapião é uma constituição originária, que tem como sua fonte e génese a posse, geradora do direito, com título, sem título, contra um título de terceiro ou mesmo com um título afectado de nulidade substantiva” (Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião. Constituição Originária De Direitos Através da Posse, Almedina, Coimbra, 2008, págs. 12-13).
“Porque se trata de uma aquisição originária, o decurso do tempo necessário à sua conformação faz com que desapareçam todas as incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido - a posse que interessa para efeitos de usucapião não é a posse causal, ou seja, a posse conforme com um direito que inquestionavelmente se tem e de que representa simples exteriorização; é a posse formal, correspondente a um direito que comprovadamente se não tem ou que poderá não se ter, mas cujos poderes se exercem como sendo um titular, posse vista com abstracção do direito possuído, algo com existência por si, susceptível de conduzir, pela via da usucapião, à aquisição do direito, caso não se seja, já, senhor dele (Galvão Telles, O Direito, 121.º - 652)” (Acórdão do STJ, de 9.2.2017, Relator Silva Gonçalves, in www.dgsi.pt).
“Subjacente a esta orientação está a prevalência de interesses ligados à estabilidade e segurança jurídica que conduzem à consideração de que não faz sentido que, perante um longo período de tempo, se eternizem situações de incerteza pelo que se permite a realização das expectativas criadas à luz de uma prolongada configuração factual. Em suma, o sistema jurídico admite que certas situações de facto adquiram tutela jurídica e possam dar lugar ao reconhecimento de direitos em homenagem a interesses de natureza social e económica que acolhe como relevantes” (Luís Filipe Pires de Sousa, Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 1.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2011, pág. 62).
Segundo o nosso direito substantivo, para que a aquisição originária de imóveis se verifique é necessário que se demonstre a prática efetiva de atos materiais correspondentes ao conteúdo do direito de que o adquirente se arroga, levados a cabo de forma continuada, pública e pacífica durante mais de 20 anos (arts. 1251º, 1261º, 1262º e 1263º do CC).
A circunstância de a posse ser ou não titulada e ser de boa ou má fé não se repercute na aquisição de imóveis por usucapião desde que a posse tenha sido exercida durante mais de 20 anos (arts. 1258º e ss e 1294º e ss do CC).
A posse capaz de conduzir à aquisição originária do direito correspondente deverá, assim, ser integrada por dois elementos, a saber: o corpus, elemento material que consiste no domínio de facto sobre a coisa, consubstanciado no exercício de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade física desse exercício; e o animus, traduzido na intenção e convicção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto (Henrique Mesquita, in Direitos Reais, 1966, págs. 66 e 67).
O possuidor tem, pois, de provar a existência destes dois elementos. Porém, a prova do corpus faz presumir a existência do animus (art. 1252º, nº 2 do CC).
Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art. 1288.º do CC), coincidindo a aquisição do direito de propriedade com o momento do início dessa mesma posse (art. 1317.º, al. c), do CC).
Ora, revertendo ao caso concreto, e tendo sido impugnada a justificação notarial, competia aos réus a prova da veracidade dos factos que declararam na escritura pública de justificação.
Porém, essa materialidade factual não se provou, como resulta da factualidade não provada D a J e da factualidade provada sob os nºs 12, 13 e 22.
Na verdade, não se provou um único facto que permita concluir que os réus têm a posse de metade indivisa do prédio desde há mais de 20 anos, de forma pública e pacífica e que, por isso, o adquiriram por usucapião.
Bem pelo contrário, provou-se que só após o óbito de FF, ocorrido em ../../2015, os réus começaram a cultivar o terreno e a arrogar-se dele serem proprietários (factos 1 e 16), sendo que os réus, desde que se começaram a relacionar com FF sempre souberam que a totalidade do prédio era pertença do mesmo (facto 22) e, enquanto FF foi vivo o réu nunca se arrogou proprietário do prédio (facto 27). Acresce que os réus apenas utilizaram e trataram o prédio em causa limpando-o, plantando oliveiras e colhendo os respetivos frutos, com a autorização do falecido FF enquanto este foi vivo (facto 38).
Assim, os atos materiais praticados pelos réus no imóvel durante a vida de FF, ou seja, até ../../2015, nunca o foram a título possessório, sendo unicamente atos praticados com autorização de FF.
Por conseguinte, conclui-se que os réus não cumpriram o ónus legal que sobre si impendia de provarem os factos constitutivos do direito justificado, pelo que deve ser declarado impugnado o facto justificado na escritura impugnada de 20 de novembro de 2017, deve ser declarada ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial e deve ser cancelado qualquer registo feito com base nessa escritura, tudo unicamente com referência ao prédio identificado na verba 2, sendo, por isso, de confirmar a decisão recorrida quanto os pontos iv), v) e vi).
Deste modo, improcede esta parte desta questão recursória.
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A sentença declarou ainda que o prédio inscrito na CRP ... sob o n.º ...71 pertence, na totalidade, à herança aberta por óbito de FF, condenando os réus a reconhecerem que os autores e habilitados, na qualidade de únicos e universais herdeiros, são proprietários, em comum e sem determinação de parte ou direito desse prédio, e condenando-os ainda a absterem-se de praticar quaisquer atos que prejudiquem esse direito.
Os recorrentes insurgem-se contra esta decisão e entendem que “o Tribunal a quo [nunca] poderia ter declarado os Recorridos/Apelados como donos do imóvel, na sua totalidade (quando muito, de metade do imóvel, em resultado da mera presunção do registo e na exacta medida de em que os Recorridos/Apelados realizaram o registo da “aquisição, por sucessão hereditária)”.
Consideram que a escritura pública celebrada entre a EMP01... e os herdeiros é nula por simulação absoluta e não pode sustentar o consequente registo de aquisição.
A decisão recorrida considerou que, relativamente à metade do prédio adquirida por FF à EMP01..., Lda., aquisição que se encontra registada a favor do primeiro, se aplica a presunção registral do art. 7º do Código do Registo Predial, nos termos do qual o registo definitivo constitui presunção de que o direito registado existe e pertence ao titular inscrito.
Considerou também que, embora se trate de presunção ilidível mediante a prova de que a titularidade direito de propriedade não corresponde à última aquisição inscrita no registo predial, os réus não lograram demonstrar que adquiriram por usucapião o prédio de modo a obstar à transmissão de metade do direito de propriedade para os autores, por sucessão (arts. 1316º e 1317º, al. b), do CC)..
Consideramos que esta fundamentação é juridicamente correta pois, efetivamente, quanto a essa metade do prédio, os autores e habilitados, na qualidade de sucessores do falecido FF, gozam da presunção constante do art. 7º do CRPredial e, percorrendo a factualidade provada, não existe nenhum facto que permita concluir que de algum modo os réus detiveram a posse dessa metade com caraterísticas e por tempo necessário à aquisição do correspondente direito por usucapião.
Assim, nesta parte, acompanha-se a sentença recorrida, sendo a mesma de confirmar.
Relativamente à metade indivisa do prédio que foi objeto da escritura de justificação, a decisão recorrida baseia-se na escritura de compra e venda celebrada entre a EMP01..., Lda. e os herdeiros (referida no facto provado 14) para concluir que os autores adquiriram também validamente essa metade.
Não se pode sufragar esta fundamentação. Com efeito, resulta da conjugação dos factos provados 12 a 15 que o negócio de compra e venda é um negócio simulado, porquanto nem a Sociedade quis vender nem os herdeiros quiseram comprar, nem houve pagamento de qualquer preço, tendo apenas recorrido à realização da escritura como meio de formalizar um negócio já celebrado, evitando-se, desse modo, a outorga de três escrituras de compra e venda para a obtenção do mesmo resultado.
Isto porque a metade indivisa do prédio já tinha sido vendida verbalmente pela Sociedade, há mais de 40 anos, a VV que, por sua vez, a vendeu, também verbalmente, a QQ e, posteriormente, o falecido FF comprou-a verbalmente a este último (factos 12 e 13).
Estas vendas verbais são nulas, por inobservância de forma, porquanto a compra e venda de imóveis, à data, tinha que ser celebrada por escritura pública, podendo ser celebrada por documento particular autenticado desde ../../2009 (art. 875º, do CC), o que implica que o direito de propriedade, juridicamente, permaneceu na esfera jurídica da Sociedade. Mas, ainda assim, esta Sociedade não transmitiu validamente o direito de propriedade aos herdeiros por meio da escritura referida no facto provado 14, a qual é nula, por vício de simulação.
Na verdade, na referida escritura há uma divergência entre a declaração negocial e a vontade pois nem a Sociedade quis vender nem os herdeiros quiseram comprar, antes quiseram formalizar um negócio já anteriormente celebrado e evitar a celebração de três escrituras.
Houve também acordo entre declarante e delaratários quanto a essa divergência e há intuito de enganar terceiros, pelo menos do ponto de vista objetivo, pois ocultam-se três negócios intermédios de compra e venda e declara-se uma venda direta da Sociedade aos herdeiros, a qual nunca existiu, nisto consistindo o objetivo engano de terceiros.
Assim, trata-se de um negócio simulado, de acordo com a noção constante do art. 240º, do CC, o qual é nulo, podendo a nulidade ser declarada oficiosamente pelo tribunal (art. 286º do CC).
Por conseguinte, não se pode sustentar juridicamente a aquisição de metade indivisa do prédio com base na escritura de compra e venda referida no facto 14, pois este negócio foi simulado e é nulo.
Não obstante, importa analisar se os factos provados permitem concluir pela aquisição dessa metade indivisa por via originária, mediante o instituto da usucapião a que já acima aludimos.
Recordamos que a Sociedade vendeu essa metade, há mais de 40 anos, a VV que, por sua vez, a vendeu a QQ que, de seguida, a vendeu ao falecido FF (factos 12 e 13).
Nos termos do art. 1256º, do CC, aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte, pode juntar à sua a posse do antecessor e a posse mantém-se enquanto durar a atuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a continuar (art. 1257º, do CC) e, por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa (art. 1255º, do CC).
Os autores podem juntar à sua posse a dos anteriores possuidores sendo que o ato de vender um bem verbalmente integra um ato de posse pois o vendedor, ao assim proceder, comporta-se como sendo proprietário transmitindo a outrem esse seu direito.
O que, no caso em apreço, significa que a posse dos autores se retrotrai à posse da Sociedade, a qual vendeu, há mais de 40 anos, a metade do prédio nos moldes descritos, tendo o prédio sido objeto das sucessivas transmissões verbais já referidas até ser vendido a FF.
Quanto a concretos atos de posse, salienta-se que FF viveu com um sobrinho, de nome FFF, que o auxiliava na administração dos seus bens e na gestão da sua economia doméstica, sendo esse sobrinho quem cultivava o prédio em questão, o que fez até 2012, quando faleceu (factos 23 a 25), e os réus GG e HH utilizaram e trataram o prédio em causa limpando-o, plantando oliveiras e colhendo os respectivos frutos, com a autorização do falecido FF enquanto foi vivo (facto 38). Ora, a posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem (art. 1252º, nº 1, do CC).
Os réus, desde que começaram a relacionar-se com FF, sempre souberam que a totalidade do prédio era pertença do mesmo e enquanto ele foi vivo o réu nunca se arrogou proprietário do prédio em causa (factos 22 e 27).
Assim, esta factualidade permite concluir que FF adquiriu por usucapião a metade indivisa do prédio em discussão nos autos por ter mantido sobre o mesmo uma posse pública e pacífica durante mais de 20 anos.
Deste modo, embora com uma diferente fundamentação jurídica, chega-se a conclusão idêntica à da sentença recorrida de que a totalidade do prédio pertence à herança de FF sendo, por isso, atualmente propriedade dos seus únicos e universais herdeiros, em comum e sem determinação de parte ou direito.
O que significa que é de confirmar a decisão recorrida quanto os pontos i), ii) e iii), deste modo improcedendo esta parte desta questão recursória.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente na totalidade, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida, embora parcialmente com diferente fundamentação jurídica.
Custas da apelação pelos recorrentes.
Notifique.
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Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):
I “[A] natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.”
II - Não obstante a questão da legitimidade dos autores/recorridos constituir uma questão nova, porquanto não foi suscitada no tribunal a quo, é possível conhecê-la em via de recurso, uma vez que a legitimidade constitui exceção dilatória de conhecimento oficioso (arts. 577º, al. e) e 578º, do CPC).
III - Na tarefa de aferição do cumprimento do ónus imposto pelo art. 640º do CPC importa que os aspetos de natureza formal sejam analisados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, em conformidade com a filosofia subjacente ao atual direito processual civil de prevalência da dimensão material ou substancial sobre a dimensão meramente formal.
IV - Em princípio e como regra geral, os factos devem ser impugnados de forma individual, com referência aos concretos meios probatórios que sustentam a pretensão impugnatória, e não de forma conjunta ou em bloco.
Não obstante, tratando-se de factos intimamente relacionados, designadamente porque respeitam à mesma realidade, é de admitir a impugnação em bloco.
V - A ação de impugnação de justificação notarial é uma ação declarativa de simples apreciação negativa visto com ela se pretender a declaração da inexistência do direito justificado na escritura.
VI - Nesta ação, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito.
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Guimarães, 19 de setembro de 2024
(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Fernando Manuel Barroso Cabanelas
(2º/ª Adjunto/a) José Alberto Martins Moreira Dias
[1] Publicado no DR, Série I, de 14.11.2023 e de acordo com a Declaração de Retificação n.º 25/2023 publicada no DR, Série I, de 28.11.2023.