AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
CONHECIMENTO DO MÉRITO DA CAUSA
VONTADE DO TESTADOR
CONFISSÃO
Sumário

I - Nas ações de simples apreciação ou declaração (arts. 10.º, n.os 2 e 3, al. a), do Cód. Proc. Civil), o interesse em agir decorre da incerteza sobre um direito subjetivo ou posição juridicamente tutelada e da necessidade da tutela judicial.
II - A ação judicial (processo comum declarativo) pressupõe um conflito de interesses (art. 3.º, n.º 1, parte inicial, do Cód. Proc. Civil), pelo que a incerteza só é relevante, para estes efeitos, quando exista controvérsia sobre a posição jurídica do autor, isto é, quando esta seja (extrajudicialmente) contestada por outrem ou se mostre necessário o recurso a tribunal para obter o reconhecimento do direito.
III - O tribunal não pode julgar a causa duas vezes numa única pronúncia. Pode desenvolver dois fundamentos para uma mesma decisão – por exemplo, de absolvição da instância –, mas nunca decidir duas vezes a mesma demanda, ainda que num único ato.
IV - Constatando o juiz que, para além de estar assente um fundamento de absolvição da instância, “nenhum outro motivo obsta, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte”, “não tem lugar a absolvição da instância”, mas apenas do pedido (art. 278.º, n.º 3, segunda parte, do Cód. Proc. Civil).
V - Perante a falta de impugnação da vontade real do testador alegada na petição inicial, pode este facto essencial ser considerado confessado, ainda que se trate de um facto interno.
VI - As circunstâncias em que a declaração do testador é proferida são relevantes – porque a lei admite a “prova complementar”, isto é, a (alegação e) prova de factos indiciários – na descoberta da vontade do testador, e não, enquanto limite, no afastamento da eficácia desta vontade.
VII - Relevante para limitar a eficácia da vontade do testador (já) apurada é, sim, o texto do testamento.

Texto Integral

Processo 1810/23.6T8OAZ.P1 – Apelação
Tribunal a quo Juízo Local Cível de Oliveira de Azeméis



Recorrente(s) AA
Recorrido(a/s) BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ e KK





Sumário
…………………………………………….
…………………………………………….
…………………………………………….


***




Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:





I – Relatório:

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

AA, LL, MM e NN instauraram a presente “ação de interpretação de testamento” (sic) contra BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ e KK, formulando o seguinte pedido:
a) Ser a vontade da testadora interpretada no sentido supra exposto (…);
b) Atribuir e integrar o legado ao 1.º autor do direito de habitação da casa (...79) bem como o usufruto daquele lote (...58); e
c) Aos restantes autores a propriedade da casa (...79) onerada com o direito de habitação ao primeiro e a propriedade do lote (...58) onerado com o usufruto também ao primeiro;
d) Custas pelos autores
Para tanto, alegaram que, em 24 de fevereiro de 2022, faleceu OO, deixando testamento público. “Acontece que, as características e vontade da supra referida disposição testamentária, não foram expressas de forma correta e pretendida pela mesma”, pelo que “deverá ser interpretada a vontade da testadora”. “Tal facto é do conhecimento de toda a gente inclusive, os demais herdeiros e legatários, que o reconhecem e bem sabem que era essa a vontade da testadora”.

Citados, os réus não apresentaram contestação.
Na fase intermédia da ação, o tribunal a quo julgou a ação, concluindo nos seguintes termos:
a) Julgar procedente, por verificada, a exceção dilatória de ilegitimidade passiva dos réus, assim absolvendo estes da instância;
b) Julgar procedente, por verificada, a exceção dilatória de falta de interesse em agir dos autores, assim absolvendo os réus da instância;
c) Julgar a presente ação improcedente, por legalmente inadmissível e, em consequência, absolver os réus do pedido contra estes deduzido pelos autores.

Inconformado, o autor apelou desta decisão, concluindo, no essencial:
A – Da exceção de ilegitimidade (passiva) dos réus. (…)
4. Desconhecendo os autores qual a posição e entendimento dos réus, herdeiros legítimos da testadora, em relação à sua pretensão e/ou entendimento quanto à verdadeira vontade daquela, em contraposição com os primeiros, herdeiros legatários, o interesse passivo em agir só poderá ser daqueles.
5. A questão em litígio apenas aos mesmos, naquela qualidade de herdeiros legítimos, interessa, porquanto se trata da partilha ou não de um bem (imóvel) a seu favor que, a confirmar-se o pedido e interpretado o legado nesse sentido, será excluído daquela. (…)
B – Da exceção da falta de interesse em agir por parte dos autores:
8. Inexiste qualquer outro meio, no nosso ordenamento, para dirimir o presente pedido – interpretar a real vontade do testador. (…)
14. Apenas está prevista a presente ação ou a da mera exigência de cumprimento do legado. (…)
17. A não contestação dos réus, no entendimento do recorrente, não significa a falta de litígio e/ou conflito. (…)
19. O legado conforme se encontra configurado e expresso no texto da escritura é impossível de cumprir. (…)
C – Da inadmissibilidade legal: (…)
29. Ao contrário do que a meritíssima juiz a quo “deduz”, algo que se revela comum e do que se faria prova, não foi a testadora quem informou o notário das descrições e/ou inscrições, mas sim um advogado pela mesma contratado e que fez a correspondente seleção e decidiu os termos do conteúdo do testamento.
30. Também este “não se apercebeu” da falta de um bem, da incoerência do texto e inerente impossibilidade da concretização, nomeadamente registal, do legado ao recorrente naquele formato. (…)
36. Só com a interpretação da vontade real da testadora, incluindo aquela “sua casa”, a mesma faz sentido e cumpre com a sua vontade, em nada violando o texto da escritura. (…)
37. São os próprios réus quem o reconhecem e confirmam ao não contestarem a ação e não, ao contrário do que a meritíssima juiz a quo refere, com o significado de que inexiste qualquer conflito de interesses entre estes e o recorrente e restantes autores
38. Tal entendimento condenaria à partida todas as ações de interpretação da vontade da testadora, sempre que os réus, seus herdeiros, legítimos ou legitimários, concordassem com a pretensão dos autores como sendo essa a vontade real da testadora.

Os apelados não contra-alegaram.

Após os vistos legais, cumpre decidir.


II – Questões a decidir:

As questões a apreciar respeitam à verificação das exceções dilatórias de falta de interesse em agir e de ilegitimidade passiva, e ainda da “inadmissibilidade” do pedido como fundamento de absolvição do pedido – e inadmissibilidade de prolação de mais que um julgamento da mesma causa numa única pronúncia.
Acresce a responsabilidade pelas custas.
*

III – Fundamentação:

Factos provados

Terminada a fase dos articulados, e perante a ausência de contestação, o tribunal a quo não proferiu o despacho imposto pelo art. 567.º do Cód. Proc. Civil: “Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor”. Talvez por assim ter procedido, o tribunal a quo não discriminou os factos que considera provados, como imposto pelos n.os 3 e 4 do art. 607.º do Cód. Proc. Civil. E, por esta razão, não podia o recorrente impugnar a (inexistente) decisão respeitante à matéria de facto.
Face a tal, resta a este tribunal ad quem assentar a sua decisão nos factos processuais registados nos autos, não deixando, no entanto, em sede de apreciação de direito, de retirar as devidas consequências do disposto no citado art. 567.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil.

1 – Na petição inicial, os autores alegaram, no que releva para o objeto do recurso interposto e em apreciação:
1. Em 24 de fevereiro de 2022, faleceu OO (…).
2. Deixou testamento público (…).
4. Tendo sido efetuada habilitação de herdeiros por escritura outorgada no Cartório Notarial (…), a qual habilita o autor e os réus (…).
8. O primeiro autor foi instituído legatário do “…direito de habitação, do seu prédio urbano situado na Rua ..., freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o número .../freguesia ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...90…”
9. E os restantes autores, seus filhos, a propriedade do mesmo, com ressalva para o direito de habitação permanente que o onera, a favor do primeiro.
10. Acontece que, as características e vontade da supra referida disposição testamentária, não foram expressas de forma correta e pretendida pela mesma. (…)
32. Deverá ser interpretada a vontade da testadora (…).
33. Tal facto é do conhecimento de toda a gente inclusive, os demais herdeiros e legatários, que o reconhecem e bem sabem que era essa a vontade da testadora. (…)
34. Naquela disposição testamentária, pretendia a testadora legar os seus dois prédios aos legatários, nos termos e na qualidade lá descritas (respetivamente, direito de habitação e propriedade), nos prédios: “Casa de dois andares, (…) no lugar de ..., desta freguesia e concelho ... (…), inscrita na matriz urbana sob o artigo ...”, da freguesia e concelho ... e atual n.º ...79 da União de Freguesias ..., ..., ... e registado na Conservatória do Registo Predial sob a descrição n.º ...25. (…) e
35. O lote ... correspondente a terreno de construção, (…) sito na Rua ..., no lugar de ..., na freguesia e concelho ..., (…)inscrito na matriz predial urbana sob o n.º ...58 e registado na Conservatória do Registo Predial sob a descrição n.º ...25/20030204 (…).
2 – Os autores remataram a petição inicial pedindo:
a) Ser a vontade da testadora interpretada no sentido supra exposto (…);
b) Atribuir e integrar o legado ao 1.º autor do direito de habitação da casa (...79) bem como o usufruto daquele lote (...58) e
c) Aos restantes autores a propriedade da casa (...79) onerada com o direito de habitação ao primeiro e a propriedade do lote (...58) onerado com o usufruto também ao primeiro.
d) Custas pelos autores
3 – Os réus não contestaram a ação.


Análise dos factos e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito parcelares a abordar:
1. Interesse na demanda
1.1. Interesse (dos autores) em agir
1.2. Interesse (dos réus) em contradizer
2. Julgamento do mérito da causa
2.1. Decisão de mérito da ação
2.2. Contornos da demanda
2.2.1. Legado do “terreno para construção”
2.2.2. Legado da “casa de dois andares”
2.3. Conclusão
3. Responsabilidade pelas custas

1. Interesse na demanda

1.1. Interesse (dos autores) em agir

A ação judicial (processo comum declarativo) pressupõe um conflito de interesses (art. 3.º, n.º 1, parte inicial, do Cód. Proc. Civil). Tal não significa que pressupõe a (alegação da) existência de uma violação de uma disposição legal. Pode existir um conflito sem que ocorra uma violação atual ou pretérita da lei. No entanto, é necessária a existência de controvérsia.
É nas ações de simples apreciação ou declaração (arts. 10.º, n.os 2 e 3, al. a), do Cód. Proc. Civil) que surge com maior frequência e propriedade o problema do interesse processual em agir por parte do autor, face à inexistência de uma violação do seu direito. O interesse em agir decorre aqui da incerteza sobre um direito subjetivo ou posição juridicamente tutelada: “(…) o recurso a este tipo de ações encontra-se justificado sempre que a existência ou inexistência de um direito ou facto jurídico seja incerto (…)” – cfr. Diogo Castanheira Pereira, Interesse Processual na Acção Declarativa, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 107; no mesmo sentido, cfr. Daniel Bessa de Melo, O interesse em agir no Processo Cível. Em especial, nas ações de simples apreciação, Julgar Online, dezembro de 2021, p. 36.
No entanto, não é qualquer incerteza que confere ao demandante interesse em agir. A ignorância da lei, por exemplo, não se qualifica como incerteza para estes efeitos, não se podendo pedir ao tribunal pareceres jurídicos para a parte exibir, como “selo de qualidade”, nas suas relações jurídicas futuras. “(…) Não bastarão assim as dúvidas suscitadas pelos serviços de assessoria jurídica de uma empresa acerca da interpretação de determinada cláusula dos contratos por ela celebrados para preencher o interesse processual dessa empresa (…)” – cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p. 186, nota 3.
Só se concebe que se peça ao tribunal que fixe o sentido de uma declaração, se o sentido pretendido resultar no reconhecimento de uma posição jurídica ao autor, tendo esta sido contestada por outrem, isto é, sendo objeto de controvérsia. Ou seja, o tribunal só deve ser chamado a fixar o sentido de determinada declaração como etapa do reconhecimento de tal posição jurídica contestada.

No caso em apreciação, os autores, na petição inicial, são especialmente económicos na descrição do fundamento da suposta incerteza que lhes conferiria o interesse em agir processualmente. Apenas nos dizem:
1. Em 24 de fevereiro de 2022, faleceu OO (…).
2. Deixou testamento público (…).
8. O primeiro autor foi instituído legatário (…).
10. Acontece que, as características e vontade da supra referida disposição testamentária, não foram expressas de forma correta e pretendida pela mesma. (…)
32. Deverá ser interpretada a vontade da testadora (…).
33. Tal facto é do conhecimento de toda a gente inclusive, os demais herdeiros e legatários, que o reconhecem e bem sabem que era essa a vontade da testadora. (…)

A existência e preenchimento do pressuposto do interesse em agir, nomeadamente no âmbito das ações de simpres apreciação, pressupõe a afirmação da necessidade de recurso a tribunal para a tutela do direito subjetivo que os demandantes pretendem fazer valer. Tal reclama a existência de factos/circunstâncias justificativas da necessidade dos autores de recurso a juízo para fazerem valer o(s) seu(s) direito(s).
Consegue percecionar-se, na alegação efetuada na petição inicial, a situação de incerteza quanto à existência do(s) direito(s) que os autores pretendem ver declarados/reconhecidos, através dos pedidos deduzidos – interpretação do testamento como nele se legando ao primeiro autor o direito de habitação do imóvel (casa de habitação) inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...79 e o direito de usufruto do imóvel (terreno para construção) inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...58 e legando aos demais autores a propriedade (onerada com o direito de habitação) do primeiro imóvel (inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...79) e a nua propriedade do imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...58 –, nomeadamente considerando a natureza do ato jurídico no qual se funda o invocado direito dos autores e as regras de interpretação estabelecidas no artigo 2187.º do Cód. Civil.
Mas tal situação de incerteza, por si só, não legitima o recurso a tribunal a não ser que a tutela judicial se revele necessária (indispensável) para a sua resolução – cfr. Ac. do TRL de 01-06-2023, proc. 3531/21.5T8FNC.L1-2.
Ora, concordando os réus com a interpretação dada pelos autores ao texto do testamento, de acordo com o alegado pelos próprios autores no art. 33.º da petição inicial, o interesse daqueles na demanda é claramente paralelo ao interesse destes. Com efeito, são os próprios autores que alegam que não existe nenhuma controvérsia entre autores e réus quanto à interpretação da vontade da testadora expressa no testamento no sentido por si alegado. Encontra-se, deste modo, assente que os réus, que são os herdeiros legítimos da falecida, como resulta da escritura de habilitação de herdeiros outorgada em 24 de novembro de 2022, referida no n.º 4. da petição inicial e junta aos autos, reconhecem/aceitam ter sido vontade da testadora a alegada pelos autores na petição inicial.
Os autores não alegam, por exemplo, que tentaram exercer o direito – exigiram o cumprimento dos legados aos réus, nos termos agora pretendidos – sem sucesso. De resto, atendendo à alegação efetuada na petição inicial da concordância dos réus quanto à real vontade da testadora, é equacionável a desnecessidade de recurso a tribunal, nomeadamente, pela possibilidade de outorga, por todos os herdeiros (legatários e herdeiros legítimos) – aqui autores e réus – de negócio jurídico apto à obtenção do cumprimento do legado nos termos da alegada e aceite vontade subjetiva da testadora ou de ato jurídico no qual todos intervenham reconhecendo e aceitando a pretendida interpretação do testamento (art. 2203.º do Cód. Civil).
Já se houver uma recusa de terceiro quanto ao reconhecimento do direito – por exemplo, uma recusa (documentalmente comprovada) de um pedido formal de registo, formulado ou instruído com a aceitação de todos os herdeiros habilitados – ou uma impossibilidade de obter extrajudicialmente o reconhecimento do direito – por exemplo, pela falta de colaboração de todos os herdeiros na prática dos atos necessários à obtenção do reconhecimento extrajudicial do direito –, então existirá fundamento justificativo da necessidade de tutela judicial.
Ora, no âmbito do exercício do contraditório quanto a eventual conhecimento de exceção dilatória de erro na forma do processo – atendendo à existência do procedimento de retificação de registo junto da Conservatória do Registo Predial – e da exceção dilatória inominada de falta de interesse em agir (despacho do tribunal a quo de 11-07-2023, ref. 128162810), os autores alegaram (requerimento de 14-07-2023, ref. 14844945) que através da ação apenas pretendem “a interpretação da vontade da “de cujus” no testamento pela mesma outorgado, justamente em saber se esta pretendia a inclusão ou não do artigo ...79.º lá identificado, correspondente à sua casa de habitação/morada de família”, alegando ainda que “antes da propositura da presente ação, os AA. esgotaram todas as possibilidades de resolver a questão dos autos, nomeadamente, pela via notarial e registral” – mas em seguida apenas alegam terem sido desenvolvidas diligências frustradas junto da “Sra. Conservadora do Registo Predial de Oliveira de Azeméis”, não alegando se e em que termos efetuaram um pedido de registo, não juntando qualquer documento comprovativo do pedido formulado nem da recusa apresentada, e não alegando quais as diligências desenvolvidas ‘pela via notarial’ nem as causas da frustração de tais diligências. Existe, por conseguinte, uma falta de concretização de factualidade que será passível de integrar o preenchimento da necessidade de tutela judicial para o reconhecimento do direito, pelo que se impunha ao tribunal a quo, face ao teor do aludido requerimento de 14-07-2023 e atento o disposto nos arts. 6.º, n.º 2, 7.º, n.os 1 e 2, e 590.º, n.º 2 e n.º 3, do Cód. Proc. Civil, a prolação de um convite à concretização do que foi exigido para a realização do registo, e de quais foram as concretas diligências desenvolvidas, designadamente, ‘pela via notarial’ e causas da sua frustração, por se tratar de matéria passível de substanciar a existência do interesse processual dos autores em agir, pela necessidade de recurso à tutela judicial que é invocada pelos autores no aludido requerimento.
Concluímos, deste modo, atento o teor do aludido requerimento e os poderes/deveres emergentes do disposto nos arts. 6.º, n.º 2, 7.º, n.os 1 e 2, e 590.º, n.º 2 e n.º 3, do Cód. Proc. Civil, que não estão reunidos os pressupostos para se concluir pela falta de interesse processual dos autores, antes se impondo a sua notificação para concretizarem factualmente a matéria alegada como fundamento da necessidade de recurso à tutela judicial.
Pelo que deve ser revogada a decisão de absolvição dos réus da instância por verificação da exceção dilatória de falta de interesse em agir dos autores.

1.2. Interesse (dos réus) em contradizer

Quanto à ilegitimidade processual dos réus, considerou-se na sentença recorrida o seguinte:
«(…) observando a petição inicial, para além da menção à habilitação de herdeiros efectuada por óbito de OO, em momento algum é feita referência aos réus, não evidenciando a intervenção/contribuição destes para a relação material controvertida delineada.
Evidentemente, o réu é parte legítima quando tem interesse em contradizer, pois que a procedência da acção acarreta para o mesmo desvantagens, detendo este um claro interesse no naufrágio da acção intentada pelo autor.
No caso vertente, não se afigura qualquer interesse dos réus em contradizer, pois não basta alguém intervir em procedimento de habilitação de herdeiros para daí passar a ser parte legítima (no lado passivo) numa acção.
Deste modo, pela forma como a relação controvertida é apresentada pelos Autores, os Réus não têm qualquer interesse em contradizer, nem qualquer interesse na improcedência da acção. Repare-se que, estando em causa a interpretação de um testamento, não alegam os autores, em momento algum, que os réus tenham tido a percepção, por ouvirem directamente da testadora, da sua vontade efectiva quanto à determinação do legado e de direito de habitação e usufruto. (…)».

Não subscrevemos o raciocínio transcrito.
De acordo com o alegado na petição inicial e nos termos da escritura de habilitação de herdeiros de 24 de novembro de 2022 junta aos autos, os réus são os herdeiros legítimos da falecida OO (doravante, OO)– arts. 2132.º, 2133.º, n.º 1, al. c) e 2146.º, do Cód. Civil –, os quais vêm os seus direitos sucessórios nos bens da herança aberta por óbito da referida OO afetados pela disposição de bens a favor dos autores que esta havia efetuada no testamento outorgado em 3 de janeiro de 2013.
Nessa medida, visando-se com a ação intentada obter o reconhecimento de que a disposição testamentária se reporta aos dois imóveis referidos (e não apenas a um), da eventual procedência da ação resultará afetada a posição jurídica dos réus herdeiros legítimos – art. 2131.º do Cód. Civil –, pelo que são os mesmos partes legítimas na ação, por terem interesse direto em contradizer – art. 30.º do Cód. Proc. Civil.
Concluímos, deste modo, pela revogação da decisão de absolvição dos réus da instância por verificação da exceção dilatória de ilegitimidade passiva dos réus.

2. Julgamento do mérito da causa

Na sentença recorrida, além da prolação de decisão de absolvição da instância, foi ainda proferida decisão de absolvição dos réus do pedido. Com efeito, nas als. a) e b) do dispositivo, o tribunal a quo, redundantemente, absolve os réus da instância (por duas vezes). Não obstante tal absolvição da instância, no passo seguinte – al. c) do dispositivo –, absolve os réus do pedido – apesar de ter dispensado a realização da audiência prévia (arts. 591.º, n.º 1, al. b) e art. 3.º, n.º 3, do Cód. proc. Civil).
Embora as duas decisões constem do mesmo ato, pode dizer-se, por um lado, que uma surge depois da outra. Ou seja, pela al. c) do dispositivo, o tribunal extingue uma instância que já se encontrava extinta por força da(s) anterior(es) absolvição(ões) da instância. Por outro lado, sendo as decisões “cumuladas”, como não podem deixar de ser, e tendo elas efeitos distintos, surgem como conflituantes (incompatíveis).
Em primeiro lugar, cumpre referir que o tribunal não pode julgar uma causa duas vezes numa única pronúncia. Pode desenvolver dois fundamentos para uma mesma decisão – por exemplo, de absolvição da instância –, mas nunca decidir duas vezes a mesma demanda, ainda que num único ato.
Conforme resulta do disposto no art. 278.º, n.º 3, segunda parte, do Cód. Proc. Civil, constatando o juiz que, não obstante a existência de um fundamento de absolvição da instância, “nenhum outro motivo obsta, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte”, não tem lugar a absolvição da instância mas apenas do pedido.
Assim, nunca poderia o tribunal recorrido ter proferido em simultâneo uma decisão de absolvição da instância e uma decisão de absolvição do pedido: apesar de ter considerado ocorrerem as exceções dilatórias de ilegitimidade passiva e de falta de interesse em agir, se o tribunal recorrido considerou que o mérito da causa (em sentido integralmente favorável aos réus e desfavorável aos autores) podia ser imediatamente conhecido, não podia ter proferido decisão de absolvição da instância, mas apenas do pedido.
Tendo o tribunal recorrido absolvido ainda os réus do pedido, e dada a procedência do recurso com a revogação da(s) decisão(ões) de absolvição da instância, impõe-se-nos, naturalmente, a apreciação da impugnação da decisão de absolvição do pedido proferida pela primeira instância.

2.1. Decisão de mérito da ação

Dispõe o art. 2187.º do Cód. Civil (Interpretação dos testamentos):
1. Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.
2. É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa.
Numa leitura possível destas duas normas, poder-se-á sustentar que, na interpretação das disposições testamentárias, valerá a vontade do testador, salvo se não tiver no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa. Ora, no caso em apreciação, a vontade da testadora foi alegada, conforme resulta dos arts. 34.º e 35.º da petição inicial – cfr., ainda, o contexto também alegado nos arts. 6.º, 7.º, 10.º, 13.º, 26.º, 28.º e 31.º da petição inicial. Estamos perante um facto (essencial) interno (uma intenção) – ainda assim, perante um facto.
Face à falta de impugnação deste facto, pode ele ser considerado confessado, ainda que se trate de um facto interno, já que intervêm na ação todos aqueles que têm legitimidade para dispor ou discutir a disposição dos imóveis em discussão – podendo, por exemplo, por acordo, outorgar escritura de partilhas ou, em conjunto, alienar bens da herança.
Na sentença recorrida, o tribunal a quo invoca doutrina pertinente sobre o apuramento da vontade do testador, concluindo – em contradição com a alegação (ainda que não suficientemente concretizada, como se verá) não impugnada, e, por conseguinte, assente, da vontade real da testadora – que “sempre se terá de presumir que o testador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, uma vez que o testamento foi lavrado por notário no livro de testamentos públicos”.
Com efeito, a falta de impugnação dos factos atinentes àquela que foi a vontade da testadora implica a desnecessidade de realização de atos de instrução visando o seu apuramento, bem como o desenvolvimento de qualquer raciocínio probatório sobre ela: ou seja, não é necessária nenhuma atividade interpretativa visando o apuramento do sentido pretendido pela testadora. Fixada que esteja – de forma clara, o que não se pode afirmar, no caso, dada a existência de algumas insuficiências na alegação efetuada na petição inicial, designadamente, quanto ao contexto alegado no arts. 6.º, 13.º e 31.º da petição inicial, e perante a incongruência resultante da referência, efetuada no art. 12.º da petição inicial, a prédios com artigos matriciais distintos dos referidos no pedido deduzido – qual foi a vontade real da testadora, o que caberá apreciar é tão só se tal vontade real tem um mínimo de correspondência com o texto do legado – art. 2187.º, n.º 2, do Cód. Civil –, havendo ainda que considerar o regime previsto no art. 2203.º do Cód. Civil, que expressamente prevê a possibilidade de, sendo possível concluir da interpretação do testamento os bens a que a testadora pretendia referir-se, valer a disposição relativamente a tais bens.
Ora, atendendo aos concretos contornos da demanda – em seguida explicitados – consideramos que não era ainda possível a prolação da decisão sobre o mérito da causa, nos moldes efetuados na decisão recorrida.

2.2. Contornos da demanda

No essencial, os autores alegam que OO era proprietária de dois imóveis:
a) prédio urbano “casa de dois andares”, situado em ..., descrito na ficha n.º ...24/19851025 – ...; inscrito na matriz predial urbana com o art. ...79.º (anterior ...60.º);
b) prédio rústico “terreno para construção”, situado na Rua ..., descrito na ficha n.º ...25/20030204 – ...; inscrito na matriz predial urbana com o art. ...58.º (anterior ...99).

Por testamento, OO declarou (sublinhado nosso):
Que, pelo presente testamento, lega a seu sobrinho AA, o direito de habitação, do seu prédio urbano situado na Rua ..., freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o número .../freguesia ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...99 e lega o referido imóvel onerado com o direito de habitação, em comum e partes iguais, aos seus sobrinhos netos, LL, MM e NN, os quais são filhos do seu referido sobrinho, AA.

Ou seja, OO declarou literalmente legar ao primeiro autor o direito de habitação sobre o prédio acima referido na al. b) – “terreno de construção” –, e não o prédio referido na al. a) – “casa de dois andares”.
No entanto, pretendem os recorrentes que a deixa testamentária seja interpretada no sentido de:
a) Ser a vontade da testadora interpretada no sentido supra exposto, integrando os dois artigos (...79 e ...58) na disposição testamentária;
b) Atribuir e integrar o legado ao 1.º autor do direito de habitação da casa (...79) bem como o usufruto daquele lote (...58) e
c) Aos restantes autores a propriedade da casa (...79) onerada com o direito de habitação ao primeiro e a propriedade do lote (...58) onerado com o usufruto também ao primeiro.

2.2.1. Legado do “terreno para construção”

Pelo que respeita ao prédio acima referido na al. b) – “terreno para construção” –, sustentam os autores que foi vontade da testadora, imperfeitamente expressa no testamento, não legar o direito de habitação, mas sim o direito de usufruto. Para tanto, alegam que no prédio em questão não existe qualquer casa de morada.
Dispõe o art. 1484.º do Cód. Civil nos seguintes termos:
1. O direito de uso consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respetivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família.
2. Quando este direito se refere a casas de morada, chama-se direito de habitação.
Estamos, pois, perante direitos pessoalíssimos (intuitu personae), sendo intransmissíveis (art. 1488.º do Cód. Civil).
Ora, dos factos alegados pelos autores não se pode retirar que a testadora pretendeu declarar que legava o usufruto ao primeiro autor. A escolha do direito de habitação – menos conhecido do que o direito de usufruto – indicia fortemente que a testadora pretendia legar ao primeiro autor o direito “de se servir” do imóvel referido na al. b) – “terreno de construção” –, e haver os respetivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da sua família”. Ou seja, ainda que se pudesse considerar que OO se enganou na designação do direito legado, nunca se poderia concluir que legou o direito de usufruto, e não o direito de uso.
Sendo o pedido formulado na ação de reconhecimento do legado do direito de usufruto, e não do direito de uso, não poderá ele proceder na totalidade. No entanto, tendo o direito real uso um conteúdo compreendido no direito real de usufruto – este integra as faculdades daquele e todas as restantes do direito de propriedade, com exceção do poder de disposição da raiz e da sua duração –, pode entender-se que representa um minus, e não um verdadeiro aliud, em sentido próprio, no que para a necessária correspondência entre o pedido e a decisão diz respeito. Estaria assim aberta a possibilidade de, após um esclarecedor debate na audiência prévia, ser o pedido parcialmente procedente.

2.2.2. Legado da “casa de dois andares”

No que se refere ao prédio acima referido na al. a) – “casa de dois andares” –, pretendem os autores que se considere que o mesmo se encontra abrangido pela declaração da testadora. Ou seja, os autores querem que se aproveite o inciso “o direito de habitação, do seu prédio urbano”, atribuindo-o, no entanto, não ao “terreno para construção” referido na al. b), mas sim à referida “casa de dois andares”.
Nos arts. 6.º, 13.º e 31.º da petição inicial, os autores sugerem que a casa de habitação referida na al. a) era a única que a testadora possuía – pelo menos, naquele lugar e rua de ... – na data da outorga do testamento. Note-se que o teor do art. 3.º da petição inicial não é unívoco, podendo reportar-se à data da abertura da herança. Também transparece da alegação dos autores que o logradouro do prédio mencionado na al. a) é contíguo ao terreno para construção referido na al. b), inexistindo entre ambos um muro contínuo que impeça a passagem entre ambos.
Estes factos, não esclarecidos – em especial o primeiro –, podem levar à conclusão de que a testadora pretendeu, efetivamente, legar o prédio referido na al. a), se se concluir que, por não ter outras “casas de morada” às quais se pudesse estar a referir, só esta interpretação empresta sentido e racionalidade à sua declaração. Daqui resulta que se encontra por clarificar esta factualidade essencial, concretizadora da factualidade essencial já alegada.
Perante esta realidade, caberia ao tribunal a quo convidar os autores a concretizarem os factos alegados, com vista ao apuramento dos mencionados factos essenciais concretizadores (art. 590.º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil), não podendo, por conseguinte, conhecer imediatamente o mérito da causa.

2.3. Conclusão

Do raciocínio expendido resulta que não era possível, no momento da apreciação da exceção de falta de interesse em agir, a prolação de uma decisão sobre o mérito da causa integralmente desfavorável aos autores. Assim sendo, não pode ser mantida a decisão de absolvição dos réus do pedido, a qual se revoga, antes devendo os autos prosseguir, com a prolação, nos termos do disposto no art. 590.º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil, de convite aos autores para – sem prejuízo de outros esclarecimentos que o tribunal a quo possa considerar necessários –, concretizarem o alegado nos arts. 6.º, 13.º e 31.º da petição inicial, clarificando se a testadora, na data da outorga do testamento, apenas possuía a casa de habitação referida, indicando o nome da rua em que tal casa de habitação se situa e o nome da rua em que se localiza o terreno para construção, descrevendo a configuração dos referidos prédios urbanos inscritos nos dois artigos matriciais ...79 e ...58, designadamente, se os mesmos são ou não contíguos entre si, se existe ou não alguma separação física que impeça a passagem entre os mesmos, e esclarecendo ainda o teor do art. 12.º da petição inicial, dado que aí é referido que o prédio que a testadora pretendia legar é constituído pelos artigos matriciais urbanos ...75 e ...17.

3. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Custas Processuais).
No caso, estando em causa um recurso interposto pelos autores face a uma decisão do tribunal recorrido que punha termo à ação que não foi contestada pelos réus, não tendo estes intervindo nem na ação nem no recurso, a revogação da sentença proferida pelo tribunal a quo, não consubstancia um vencimento de uma pretensão contestada por uma parte, pelo que não atua aqui o critério da causalidade, mas sim o princípio do proveito – cfr. Ac. do TRL de 11-02-2021, Proc. 1194/14.3TVLSB.L2-2.
Sendo os apelantes que retiram proveito do recurso interposto, as custas do recurso de apelação ficam a seu cargo, nos termos do disposto no art. 527.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil.


IV – Dispositivo:

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação e, em consequência, revoga-se a decisão proferida pelo tribunal a quo, determinando-se o prosseguimento dos autos, com a formulação, pelo tribunal a quo, nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 6.º, n.º 2, 7.º, n.os 1 e 2, e 590.º, n.º 2 e n.º 3, do Cód. Proc. Civil, de convite aos autores à concretização da factualidade alegada no requerimento dos autores de 14-07-2023 (o que foi exigido pela Sr.ª Conservadora para a realização do registo; quais foram as concretas diligências desenvolvidas, designadamente, ‘pela via notarial’ e causas da sua frustração) e – sem prejuízo de outros esclarecimentos que o tribunal a quo possa considerar necessários –, para concretizarem o alegado nos arts. 6.º, 13.º e 31.º da petição inicial e esclarecerem o teor do art. 12.º da petição inicial, nos moldes supra referidos em 2.3..
Custas a cargo dos apelantes.
*

Notifique.






Porto, 26/9/2024
(data constante da assinatura eletrónica)

***

Ana Luísa Loureiro
Paulo Duarte Mesquita Teixeira
Isabel Silva