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LICENÇA DE USO E PORTE DE ARMA
REQUISITOS
IDONEIDADE
Sumário
I - Não existe na nossa ordem constitucional um direito ao porte e uso de armas. II - Um dos requisitos para a concessão de licença de uso e porte de armas de fogo é o da idoneidade. III - A idoneidade para o uso e porte de arma é um conceito indeterminado que deve ser preenchido através de uma valoração das capacidades e habilitações físicas, psicológicas e técnicas, bem como da personalidade que possibilite a emissão de um juízo de prognose de que a arma irá ser utilizada de acordo com os fins legalmente permitidos. IV - Quem, como o requerente, foi condenado pelo cometimento de um crime de violência doméstica por ter agredido fisicamente a sua mulher, que ameaçou de morte, bem como lhe disse que ia matar a filha e ainda lhe apontou à cabeça um objeto com a aparência de uma arma de fogo, demonstrou nos factos uma personalidade agressiva e violenta que, somada às anteriores condenações em detenção de arma proibida e atividade ilícita de segurança privado, leva inequívoca e diretamente a concluir não só pela impossibilidade de fazer um juízo de prognose favorável quanto à utilização futura de arma de fogo, como também à verificação da falta de idoneidade para usar e portar armas de fogo, dado o risco de vir a utilizar uma arma de fogo para fins ilícitos.
Texto Integral
Processo n.º 1858/17.0PIPRT-A.P1
Sumário (da responsabilidade do relator):
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Relator: William Themudo Gilman
1º Adjunto: João Pedro Pereira Cardoso
2ª Adjunta: Liliana Páris Dias
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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:
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1-RELATÓRIO
Em incidente de reconhecimento de idoneidade nos termos da Lei nº 5/2006, de 23/02, apenso aos autos de processo comum singular n.º 1858/17.0PIPRT a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 2, a Sra. Juiz proferiu despacho em que decidiu ter-se como não demonstrada a idoneidade do requerente AA para obter a pretendida licença, improcedendo, portanto, a pretensão formulada.
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Não se conformando com esta decisão, o requerente recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação o seguinte (transcrição):
«CONCLUSÕES:
I. “Ser idóneo e ter licença de uso e porte de arma (…) exige que se analise não o perigo de cometer um crime com a mesma, mas o facto de ter condições, qualidades, aptidões, e competência para desempenhar a atividade lúdica que o uso de tal arma pressupõe” – cfr. o sumário do Ac. Relação do Porto de 29.04.2015, no processo 1271/10.0GAFLGA.P1, Relatado por ERNESTO NASCIMENTO.
II. O presente pedido de reconhecimento de idoneidade em causa proporcionou à Exma. Sr.ª Juíza um segundo palco para o julgamento do arguido pelo mesmíssimo crime de violência doméstica contra cônjuge pelo qual foi condenado pela sentença prolatada em 21.01.2020, transitada em 21.09.2020, neste mesmo Juízo Local Criminal 2 – Juiz 2.
III. Da decisão recorrida resulta evidente a identificação do tribunal com a vítima do crime, o que obstaculizou a ponderação que se impunha na concessão da idoneidade no caso sub judice.
IV. A ponderação que se pretende no processo de atribuição de idoneidade exige uma visão integrada que permita destacar a pessoa do arguido do momento do crime, da aplicação do castigo, abrangendo o seu percurso a jusante e a sua vivência atual.
V. O tribunal a quo não teve em linha de conta todo o caminho entretanto trilhado pelo arguido no sentido da sua integração social, ressocialização e melhoramento pessoal.
VI. Continuando a olhar para o arguido como uma ameaça, exigindo a permanência de um castigo, de uma sanção.
VII. Ainda, o tribunal recorrido refere que não resulta que o arguido tenha cometido qualquer outro ilícito criminal desde então e do relatório de acompanhamento da DGRSP extrai-se que o arguido se encontra atualmente bem integrado, caminha no sentido certo no domínio do seu comportamento e veio cumprindo de forma satisfatória o plano de reinserção social homologado ponto o juízo de prognose favorável que esteve na base da decisão de suspensão da pena de prisão nos autos principais teve assim um resultado positivo.
VIII. Pese embora, e sendo de esperar que tal resultado positivo culminasse na atribuição da idoneidade ao requerente, o tribunal decide, completamente fechado na anterior decisão preferida relativamente ao crime de violência doméstica dar enfoque ao seguinte: “não é de reconhecer idoneidade a requerentes de licença de uso e porte de arma que possuam condenações criminais anteriores, pela prática de crimes graves violentos e dolosos sem que isso viole quaisquer preceitos ou princípios quer legais quer constitucionais”.
IX. Nada mais errado e desconforme ao caso em apreço.
X. Não basta a prática de um crime violento anterior pelo arguido aqui requerente, para que se entenda que este venha a repetir o mesmo comportamento, agora na posse de uma arma.
XI. O tribunal recorrido transportou para esta decisão a afirmação de um perigo que não existia quando foi prolatada a decisão no âmbito do processo em que o arguido foi julgado e condenado por violência doméstica.
XII. Daí o esforço do tribunal recorrido em mencionar por inúmeras vezes o facto relativo ao arguido ter apontado à cabeça da vítima um objeto semelhante a uma arma de fogo.
XIII. Perante tal factualidade provada, era nesse processo que o tribunal recorrido, este mesmo tribunal, esta mesma excelentíssima Senhora juíza, que deveria ter recorrido ao número 4 do artigo 152 do código penal e aplicado ao arguido a pena acessória com vista a prevenir a perigosidade do arguido, inibindo-o de utilização de armas de fogo.
Mas não o fez.
XIV. Logo, se não o fez nessa altura, quer dizer não existia tal perigo. Pelo que também não existe neste momento.
XV. Muito menos quando temos um relatório social nos autos que atesta que o arguido está bem integrado, caminha no sentido certo no domínio do seu comportamento e autocontrolo.
XVI. O tribunal a quo, nos presentes autos, deve decidir sobre a idoneidade do arguido para efeito de atribuição da licença de uso e porte de arma para o exercício da prática do tiro desportivo.
XVII. Pelo que não pode o tribunal, neste âmbito, afirmar que por via daquela condenação, o reconhecimento da idoneidade ao requerente possa causar alarme e intranquilidade pública.
XVIII. Revelando o arguido uma personalidade impeditiva da formação de juízo de prognose de uso legal de armas de fogo.
XIX. Quando não há qualquer elemento de facto que permita afirmar esta personalidade que possa causar alarme ou intranquilidade.
XX. Trata-se de uma generalidade assente no facto de ter sido praticado um crime de violência doméstica contra cônjuge.
XXI. Não existe nestes autos de reconhecimento de idoneidade nenhum elemento de prova que permita sugerir o quadro de personalidade perigosa do arguido no manuseio de uma arma de fogo.
XXII. Se tal perigosidade existia a mesma circunscreve-se ao processo de violência doméstica e deveria ter sido ponderado nesse âmbito pela Meritíssima Juíza e ordenado a aplicação da devida pena acessória.
XXIII. Repetimos que não o fez.
XXIV. De igual modo, não é a licença de uso e porte de arma que aporta perigo de reincidência na prática de qualquer crime, tanto mais que a grande maioria dos crimes praticados neste país, nos quais intervém arma de fogo, esta é ilegal.
XXV. No presente incidente, releva apreciar a idoneidade do requerente para efeitos de obtenção da licença de porte e de uso de arma de fogo, no caso para a prática do tiro desportivo.
XXVI. Para a consideração de idoneidade para a licença de porte e de uso de arma releva o facto de ter ou não condições, de ter ou não qualidades, de estar apto ou não, se ser capaz ou não para desempenhar tal atividade lúdica.
XXVII. E não, na vertente que lhe atribui a decisão recorrida, de voltar a praticar o crime da mesma natureza que praticou antes.
XXVIII. Porque apesar do enquadramento da decisão recorrida, e apesar de não referir expressamente que tem receio de que AA repita os crimes cometidos no passado, agora com uma arma.
XXIX. Nomeadamente, e em especial, o crime de violência doméstica, o teor da decisão recorrida clama tal temor.
XXX. Como é possível afirmar que AA revela ainda uma personalidade impeditiva da formulação de um juízo de prognose de uso legal de armas de fogo, em face da matéria de facto provada, nomeadamente a que se refere ao seu percurso atual desde a prolação da sentença de condenação no âmbito do processo de violência doméstica, com demonstração evidente de comportamento legalmente conformado e crescente autocontrolo.
XXXI. Devidamente inserido na sociedade, na vida familiar e profissional.
XXXII. Sem que haja notícia da prática de qualquer ilícito penal desde 2018.
XXXIII. Pese embora tenha ensaiado mascarar tal opção, facto é que o tribunal recorrido desconsiderou as demais factualidade constante do processo, a qual atribui ao arguido capacidade e aptidão ao arguido para a prática e exercício do tiro desportivo, devidamente avalizadas pelo Clube de Tiro e pela Federação de Tiro Portuguesa, conforme matéria de facto ínsita na sentença recorrida.
XXXIV. Tendo concentrado como único fundamento para indeferir a atribuição da pretendida idoneidade ao requerente a mera existência de condenações anteriores, em especial, e pelas razões já aduzidas anteriormente, a condenação do arguido pelo crime de violência doméstica contra a sua ex-mulher.
XXXV. Ora, se o legislador pretendesse atribuir efeito suficiente, imediato e automático à mera existência de uma condenação anterior,
XXXVI. Mas não o disse. por crime doloso, cometido com violência, em pena superior a 12 meses de prisão, tê-lo-ia dito.
XXXVII. Refere somente que tal condenação, entre outras razões devidamente fundamentadas, é suscetível de indiciar falta de idoneidade.
XXXVIII. O que se verifica no caso vertente corresponde apenas à existência de condenações prévias.
XXXIX. O que, por si só, não pode justificar a decisão.
XL. O alarme e a intranquilidade pública, conforme sugerido na decisão recorrida, não está minimamente provado pela prova produzida.
XLI. Do mesmo modo a personalidade do arguido que não permite um juízo de prognose favorável também não resulta provado nos autos.
XLII. A decisão recorrida não pode ser considerada como devidamente fundamentada, na medida em que não emana da mesma, inequivocamente, um juízo de prognose desfavorável em relação ao comportamento do arguido.
XLIII. O receio, a intranquilidade e o alarme a que o tribunal recorrido faz referência têm respaldo apenas e só seus próprios sentimentos, por identificação com a vítima de violência doméstica.
XLIV. Transportando tais sentimentos negativos e receio da sua repetição, agora com arma de fogo pelo arguido, para o presente incidente, o que deve ser rejeitado pelo tribunal ad quem.
XLV. Na medida em que não é o pretendido pelo legislador, violando-se o princípio constitucional contido no artigo 30.º da CRP.
XLVI. Mais se refira, a final, que, a decisão recorrida a manter-se é, claramente, desadequada e desajustada relativamente ao fim visado, violando ostensivamente o disposto nos artigos 15.º n.º 1, al. c) e 14.º, n.º 2, 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23/02 e artigo 30 da CRP.
Tudo considerado, deverá o presente recurso ser julgado provado e procedente, revogando-se a decisão recorrida, assim se afirmando a pretendida idoneidade.»
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O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se pela improcedência do recurso.
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Nesta instância o Ministério Público, no seu parecer, pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento devendo manter-se a decisão proferida.
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Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP.
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2-FUNDAMENTAÇÃO
2.1-QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão a apreciar e a decidir é a de se saber se, perante os factos apurados, deve ser reconhecida idoneidade ao recorrente, nos termos do disposto no art.º 14º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, com vista à concessão de licença de tiro desportivo.
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2.2- O Despacho recorrido.
O despacho recorrido é do seguinte teor: «DECISÃO
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Por apenso aos autos de processo comum singular n.º 1858/17.0PIPRT, veio AA, nascido em ../../1976, deduzir pedido de reconhecimento de idoneidade, requerendo a emissão de certidão de idoneidade a seu favor, nos termos do disposto no art.º 14º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, com vista à concessão de licença de tiro desportivo. Invoca, em suma, que é Atleta federado pela Federação Portuguesa de Tiro, é sócio do Clube de Tiro ... desde 30.12.2022 e é titular da Licença de Tiro n.º ...18... e pretende, agora obter a Licença de tiro desportivo com vista à manutenção da sua licença de atleta federado, para treino e participação em provas homologadas e do calendário da Federação Portuguesa de Tiro. Em Parecer proferido pela Digna Magistrada do Ministério Público, a mesma pugnou por que seja negada, ao requerente, idoneidade para obtenção da licença que o mesmo pretende solicitar. Para tanto, foi entendimento da DMMP que não obstante o requerente se encontrar social, profissional e familiarmente integrado, não pode deixar de entender-se que os crimes por si praticados e pelos quais foi condenado, a saber, crime de violência doméstica, de detenção de arma proibida, de ofensa à integridade física simples e de exercício ilícito da actividade de segurança privada, tendo em particular atenção a gravidade e a violência utilizados, demonstram profundo menosprezo pelas regras da sociedade em que se encontra inserido, não sendo, nessa medida, pessoa idónea para ser detentor de uma arma.
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Foi designada data para audição do requerente, nos termos do disposto no art.º 14º, n.º5, da lei 5/2006.
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Procedeu-se à realização da diligência agendada, com observância dos requisitos legais, como da respectiva acta decorre.
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Em sede de alegações finais, pela DMMP foi mantida a posição por si já consignada nos autos e pela Il Mandatária do requerente a posição constante do requerimento inicial.
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Factos Provados Da análise da prova produzida, com interesse para a decisão do requerido, resultaram provados os seguintes factos: - Da petição apresentada: - O requerente é atleta da modalidade de tiro desportivo, pela Federação Portuguesa de Tiro (FPT), sendo titular da licença n.º ...18.... - A atribuição da aludida licença federativa, obrigou à inscrição provisória, através de um Clube de Tiro – no caso, o Clube de Tiro ..., em .... - E à realização dos exames de acesso às licenças A e D. - Realizou, com aproveitamento, o exame de acesso a essa mesma licença, o qual implica o conhecimento teórico e prático das seguintes matérias: a) Regime jurídico das armas e suas munições; b) Regulamentação da utilização das armas para fins desportivos; c) Segurança no manuseamento; d) Noções de balística e de balística de efeitos. - A renovação das licenças Federativas dos tipos A e D está dependente da participação pelo seu titular, em cada época desportiva, numa prova do calendário oficial da FPT, homologada pela Direção da FPT, o que implica treino prévio. - A prática do tiro desportivo não só se realiza em recinto próprio, no âmbito das regras fixadas pela FPT, como ainda, se alinha pelas competições determinadas por esta mesma Federação. - No caso em apreço, a licença de uso e de porte de arma, destina-se à obtenção da licença de tiro desportivo. - Do certificado do registo criminal do arguido resulta que o mesmo já foi condenado: i) nos autos de proc. comum singular n.º ...8/99.0GCGMR do 2ºJuízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, por sentença de 21.12.2006, transitada em julgado em 18.01.2007, pela prática, em 05.04.1999, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de €4,00, declarada extinta em 16.03.2009; ii)nos autos de proc. comum colectivo n.º ...75/94.7JAPRT da 4ª Vara Criminal do Porto, por acórdão de 02.06.2000, transitado em julgado em 19.03.2001, pela prática, em 22.04.1994, de três crimes de ofensa à integridade física simples, na pena única de 20 meses de prisão suspensa pelo período de 3 anos, declarada extinta em 10.09.2012; iii) nos autos de proc. comum singular n.º ...5/08.2PUPRT do 1ºJuízo – 2ª Secção dos Juízos Criminais do Porto, por sentença de 07.05.2010, transitada em julgado em 27.05.2010, pela prática, em 19.11.2008, de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 200 dias de multa á taxa diária de €8,00, entretanto substituída por 200 horas de trabalho, declarada extinta em 10.05.2012; iv) nos autos de proc. comum singular n.º ...27/11.4TAVLG do JL Criminal de Valongo – Juiz 2 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 30.10.2013, transitada em julgado em 24.09.2014, pela prática, em 09.09.2011, de um crime de exercício ilícito da actividade de segurança privada, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de €12,00, declarada extinta em 12.10.2015; v) nos autos de proc. comum singular n.º 1858/17.0PIPRT do JL Criminal do Porto – juiz 2 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 21.01.2020, transitada em julgado em 21.09.2020, pela prática, entre inícios de 2007 e Fev/Março de 2018, de um crime de violência doméstica contra cônjuge, na pena de 3 anos de prisão suspensa por igual período, acompanhada com regime de prova, assente num plano de reinserção social, tendente a promover a interiorização do desvalor da sua conduta, mediante uma intervenção estruturada nas fragilidades que apresenta ao nível da gestão das emoções e resolução de problemas, bem como ao nível do autocontrolo, nos termos que vierem a ser delineados pelos serviços de reinserção social. Nestes autos, mais foi condenado no pagamento, à demandante, da quantia de € 3.500,00 (três mil equinhentos euros) a título de indemnização para ressarcimento dos danos não patrimoniais e respetivos juros calculados à taxa legal, contados desde a data da sentença. A pena aplicada ainda não foi declarada extinta. Neste último processo, foi dado como provado, no seu ponto E), que o arguido apontou à cabeça da assistente objeto com a aparência de arma de fogo. A pena de prisão de prisão de três anos imposta nos autos principais ao arguido foi suspensa na sua execução por igual período, por se ter entendido que a ameaça de cumprimento da pena aliada à censura pública dos factos em audiência se mostravam suficientes para convencer o arguido a não voltar a delinquir. - Do relatório de acompanhamento da execução da pena aplicada nos autos principais datado de 01.03.2023, decorre que: “AA mantém uma postura colaborante para com a intervenção da Equipa ..., da DGRSP, tendo comparecido às entrevistas agendadas pelo TSRS, nas instalações em ..., entrevistas de cariz motivacional e nas quais vêm sendo abordadas estratégias de resolução de conflitos, alternativas ao comportamento violento. O condenado reside no Lugar ... de cima, na freguesia ..., concelho ..., juntamente com a atual companheira, o filho de ambos, com cerca de 2 anos de idade, e a descendente da companheira, com 12 anos de idade. Por força dos seus horários de trabalho pernoita na cidade ... num apartamento, propriedade da companheira. AA é sócio de uma empresa no ramo da segurança privada, auferindo mensalmente 1000€ e a companheira labora em segurança privada, auferindo 850€ mensais. O quotidiano do condenado é gerido em função do acompanhamento do seu agregado e da sua ocupação laboral. O condenado referiu não ter tido mais contatos com a ofendida, nem com a descendente de ambos apesar das tentativas de reaproximação que encetou. Durante o período da avaliação, AA manteve uma postura de respeito pelos deveres estipulados, assim como pela intervenção efetuada por este serviço, pelo que o acompanhamento decorre de forma favorável. “
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Factos não provados Os que constam da petição inicial, em sentido diverso ou oposto ao dado como provado.
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Não se elencaram outros elementos constantes da petição inicial como provados ou não provados por se tratarem de matéria de direito ou meras conclusões.
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Motivação O tribunal fundou a sua convicção nos elementos/documentos juntos ao presente apenso e bem assim nos constantes dos autos principais, nomeadamente a sentença aí proferida, CRC do arguido e relatório social de acompanhamento da pena aplicada, em conjugação com as declarações prestadas pelo requerente nos presentes autos.
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O direito Por apenso aos autos de processo comum singular n.º 1858/17.0PIPRT, veio AA, nascido em ../../1976, deduzir pedido de reconhecimento de idoneidade, requerendo a emissão de certidão de idoneidade a seu favor, nos termos do disposto no art.º 14º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, com vista à concessão de licença de tiro desportivo. O artigo 5.º, n.º 1 do Regulamento de Licenças federativas estipula que “Aos cidadãos que forem aprovados nos exames de acesso às Licenças Federativas A ou D, será emitida uma Licença provisória do tipo A ou D, respetivamente, que só se converterá em definitiva quando for concedida ao seu titular Licença de Tiro Desportivo, nos termos da Lei 42/2006, de 25 de agosto.” Por seu turno, nos termos do disposto nos art.ºs 16.º n.º 1 b) e 3.º n.º 1 a) da Lei 42/2006, de 25/08, “As licenças federativas caducam quando: (…) b) Não seja emitida ou cesse, por qualquer motivo, a licença referida na alínea a) do artigo 3.º da presente lei” e “Para a detenção, uso e porte de armas de fogo destinadas à prática de tiro desportivo e coleccionismo são concedidas pelo director nacional da PSP licenças dos seguintes tipos: a) Licença de tiro desportivo” Da factualidade apurada resulta que o requerente é Atleta federado pela Federação Portuguesa de Tiro, é sócio do Clube de Tiro ... desde 30.12.2022 e é titular da Licença de Tiro n.º ...18.... Pretende, agora, o requerente, obter a Licença de tiro desportivo com vista à manutenção da sua licença de atleta federado, para treino e participação em provas homologadas e do calendário da Federação Portuguesa de Tiro. Assim sendo, a fim de consolidar a licença federativa provisória obtida, cumpre ao mesmo requerer junto da PSP, no prazo de um ano, a contar da data da emissão da licença federativa, a emissão da licença de tiro desportivo, a qual é, por remissão legal, equiparada, em substância, e requisitos de atribuição, à licença de uso e porte de arma. Ora, o artigo 4.º n.º 1 da Lei 42/2006, de 25/08, dispõe que “as licenças previstas no art.º anterior – in casu, a licença de tiro desportivo - são concedidas a cidadãos maiores de idade aprovados no competente exame médico de incidência primordialmente psíquica e que demonstrem ter idoneidade para o efeito, sendo esta aferida nos termos e nas condições previstas para a concessão de uma licença de uso e porte de arma da classe B 1”. Por seu turno, o art.º 14º, n.º1, da Lei 5/2006, de 23/02, que define o Regime Jurídico das Armas e das Munições, estipula que: “A licença B1 só pode ser concedida a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições: a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis; b) Demonstrem carecer da licença por razões profissionais ou por circunstâncias de defesa pessoal ou de propriedade; c) Sejam idóneos; d) Sejam portadores de certificado médico; e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.” Para efeitos de apreciação do requisito de idoneidade estabelecido naquela alínea c), estipula o mesmo artº 14º, no seu nº 2, que: " Sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante da alínea c) do número anterior é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.” O “direito” à detenção, uso e porte de armas Quando tal preceito legal invoca o disposto no art.º 30º da CRP, tal traduz-se na proibição de que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecânica, e independentemente de decisão judicial, apenas por força da lei, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos (artº 30º nº 4 da CRP). A referida proibição decorre do princípio jurídico-constitucional subjacente à ideia político-criminal de retirar às penas qualquer efeito infamante ou estigmatizante, e do dever do Estado de favorecer a socialização do condenado. Não basta, pois, que o Requerente da Licença de uso e porte de arma tenha sofrido condenações penais de todo e qualquer tipo de crime para que não seja considerado idóneo. De todo o modo, cumpre salientar que inexiste um direito constitucional à detenção, uso e porte de armas. Aliás, essa detenção, uso e porte de armas é, por princípio, proibida por lei, só não sendo tal situação ilegal se o agente tiver sido para tal autorizado, de harmonia com as exigências legais contidas no regime jurídico das armas e munições. Significa, pois, que a autorização de detenção, uso e porte de arma é excecional e depende da verificação das condições enumeradas no já supra elencado artigo 15º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 50/2013 de 24 de julho. Neste sentido se vem pronunciando a jurisprudência, nomeadamente no Acórdão da Relação do Porto de 12.05.2021, proferido no proc.º n.º 345/15.5PASTS-B.P1, disponível in www.dgsi.pt: “II – (…) como se decidiu no Ac. Trib. Constitucional n.º 243/2007, «estamos em presença de uma actividade cujo exercício está genericamente dependente de licença, o que significa (…) que não existe um direito constitucional ao uso e porte de armas, incluindo as de defesa, independentemente dos condicionamentos ditados designadamente pelo interesse público em evitar os inerentes perigos, interesse que é acautelado através de autorizações de carácter administrativo condicionadas por ilações extraídas da verificação jurisdicional de comportamentos que a lei qualifica como censuráveis. III – Com efeito, a lei rodeia com frequência a prática de certas actividades de pre-cauções, traduzidas em licenciamentos, em razão da perigosidade que encerram, e da necessidade de conhecimentos técnicos específicos não comuns à generalidade dos cidadãos, como é o uso de armas de fogo, ou o exercício da condução de veículos automóveis. Nestes casos, é legitimo afirmar que a licença visa excluir a ilicitude de um acto que é genericamente proibido. Na verdade, a necessidade de licenciamento pressupõe mesmo uma proibição geral do exercício dessas actividades, como é indiscutivelmente o caso do uso e porte de armas. Nada há, portanto, de ilegítimo no estabelecimento de restrições e condicionamentos diversos à posse de armas por particulares.” No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão da Relação de Évora de 27.04.2021, proferido no proc. n.º 53/15.7IDEVR-A.E1, disponível in www.dgsi.pt, onde se pode ler que o uso e porte de armas, na ordem jurídica portuguesa, não é um direito e muito menos um direito fundamental, com consagração constitucional, mas sim um privilégio, a que apenas têm acesso aqueles que reúnem determinados pressupostos legalmente previstos. Desta ideia-base podemos retirar alguns corolários, nomeadamente, que a falta de idoneidade para o uso e porte de arma, a que se referem os nºs 2 e 3 do art. 14º da Lei nº 5/2006 de 23/2, não é uma pena, nem uma medida de segurança ou sequer uma sanção administrativa, não constituindo mais do que um efeito jurídico desfavorável para quem pretenda obter uma licença para tal. De igual modo, não poderá falar-se de perda de direitos, no contexto do nº 4 do art. 30º da CRP e do nº 1 do art. 65º do CP, já que a faculdade de usar e possuir armas, em particular, armas de fogo, não se configura como direito. Os requisitos Dispõe o artigo 15º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 50/2013 de 24/7: “1- As licenças C e D podem ser concedidas a maiores de 18 anos desde que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições: a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis; b) Demonstrem carecer de licença de uso e porte de arma dos tipos C ou D para a prática de atos venatórios, e se encontrem habilitados com carta de caçador com arma de fogo ou demonstrem fundamentadamente carecer da licença por motivos profissionais; c) Sejam idóneos; d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.°; e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo. A questão que ora interessa, é a apreciação da idoneidade a que se reporta a alínea c) do preceito referido, estatui o artigo 14.°, n.º2, do mesmo diploma legal, já supra mencionado, para o qual remete o nº 2 do citado artigo 15º: A lei não nos dá uma definição de idoneidade, sendo que, como se viu, indica, a título não taxativo, factos suscetíveis de indiciar a sua falta. Como expende, a propósito, o Acórdão da Relação de Évora de 16.06.2015, in www.dgsi.pt, “I - Tanto a concessão como a renovação da licença de uso e porte de armas (das categorias C e D) dependem do preenchimento de diversos requisitos cumulativos, entre os quais se destaca a idoneidade dorequerente. II - Por "idoneidade " deve entender-se a capacidade ou qualidade de alguém para ser titular de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais.” Neste seguimento, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16 de setembro de 2015, disponível in www.dgsi.pt, nos termos do qual «I - A idoneidade exigida para a concessão de autorização de uso de arma de fogo traduz a capacidade técnica de o titular usar a arma, por um lado, e de a usar de forma avisada, prudente e de acordo com as leis em vigor, por outro. II - Não existe uma presunção de idoneidade geral e abstrata e reportada a qualquer eventual interessado, subjacente ao concreto juízo prévio da idoneidade para ser titular de licença de uso e porte de arma. Face à letra da lei a idoneidade tem que ficar provada, tem que ser demonstrada por factos». O Tribunal, para considerar verificada essa aptidão, deve, portanto, formular um juízo de prognose no sentido de que o requerente, presumivelmente, irá fazer um uso da arma em conformidade com a lei. Tecidas as considerações supra, importa apreciar a idoneidade do arguido. Invoca o requerente que o facto de ser atleta federado pela Federação Portuguesa de Tiro, sócio do Clube de Tiro ... desde 30.12.2022 e titular da Licença de Tiro n.º ...18..., tendo realizado exames de acesso às licenças A e D, lhe permitiram uma capacidade e um elevado nível de conhecimento que reforçam para que seja considerado pessoa idónea para efeitos de atribuição da licença de uso e porte de arma, já que a idoneidade significa aptidão, capacidade, conhecimento, o que, no âmbito do uso de uma arma, implica a exigência de conhecimentos técnicos específicos não comuns à generalidade dos cidadãos. Neste aspecto, e salvo melhor entendimento, é nosso entendimento que a idoneidade (no seu âmbito mais abrangente) é bem mais do que ter aptidão, capacidade ou conhecimentos técnicos para o uso de uma arma, passando, outrossim, pela cabal integração em sociedade, respeito pela seu semelhante em particular e a comunidade, em geral, comportamento, conduta, personalidade de controlo, domínio, reconhecimento, tratamento igualitário e cumprimento de regras de conduta que só assim permitirão uma integração cabal, que passará, nomeadamente, pela não existência de antecedentes criminais, o que se exige a qualquer homem comum. Como, aliás, reza o Acórdão da Relação do Porto de 12.05.2021, proferido no proc.º n.º 345/15.5PASTS- B.P1, disponível in www.dgsi.pt: “(…) a expressão “idoneidade” significa aptidão, capacidade, competência; qualidade de quem é idóneo, que significa ser conveniente, adequado, próprio para alguma coisa; que tem condições para desempenhar certos cargos, certas funções ou realizar certas obras; que tem qualidades para desempenhar determinada actividade…ou de quem se pode supor honestidade.” Vejamos os factos: O requerente é atleta da modalidade de tiro desportivo, pela Federação Portuguesa de Tiro (FPT), sendo titular da licença n.º ...18.... A atribuição da aludida licença federativa, obrigou à inscrição provisória, através de um Clube de Tiro – no caso, o Clube de Tiro ..., em .... E à realização dos exames de acesso às licenças A e D. Realizou, com aproveitamento, o exame de acesso a essa mesma licença, o qual implica o conhecimento teórico e prático das seguintes matérias: a) Regime jurídico das armas e suas munições; b) Regulamentação da utilização das armas para fins desportivos; c) Segurança no manuseamento; d) Noções de balística e de balística de efeitos. O requerente já foi condenado pela prática de vários crimes, a saber, quatro crimes de ofensa à integridade física simples, um crime de detenção de arma proibida, um crime de exercício ilícito da actividade de segurança privado e um crime de violência doméstica. As decisões judiciais mencionadas nos pontos i) a iii), das quais as primeiras se fundaram na prática de crimes de ofensa à integridade física simples praticados quando o requerente tinha 22 e 17 anos, respectivamente, foram declaradas extintas há mais de 10 anos. Contudo, as decisões judiciais mencionadas nos pontos iv) e v) são mais recentes, reportando-se, as últimas, a crimes de detenção de arma proibida, exercício ilícito da actividade de segurança privada e violência doméstica, ou seja, todos mais graves do que os crimes pelos quais foi inicialmente condenado. Ademais, contrariamente ao alegado pelo requerente, no processo de violência doméstica pelo qual foi condenado referido em v) supra, foi dado como provado, no seu ponto E), que o arguido apontou à cabeça da assistente objeto com a aparência de arma de fogo, sendo certo que o requerente já havia sido condenado, anteriormente, no processo referido em iii) supra, por crime de detenção de arma proibida, o que é bem evidenciador do crescendo de violência em que o arguido tem vindo a evoluir e permite afirmar que existe um sinal claro de perigosidade acrescida quanto ao uso e porte de arma. Por outro lado, a pena de prisão de prisão de três anos imposta nos autos principais ao arguido foi suspensa na sua execução por igual período, por se ter entendido que a ameaça de cumprimento da pena aliada à censura pública dos factos em audiência se mostravam suficientes para convencer o arguido a não voltar a delinquir, mas acompanhado de regime de prova, face à gravidade do crime praticado e à personalidade demonstrada pelo arguido no cometimento dos factos. Do certificado de registo criminal não resulta que o arguido tenha cometido qualquer outro ilícito criminal desde então e do relatório de acompanhamento da DGRSP extrai-se que o arguido se encontra actualmente bem integrado, caminha no sentido certo no domínio do seu comportamento e veio cumprindo de forma satisfatória o plano de reinserção social homologado. O juízo de prognose favorável que esteve na base da decisão de suspensão da pena de prisão nos autos principais teve, assim, um resultado positivo. Ora, o citado art.º14º, no seu n.º2, impõe que a apreciação sobre o requerido em causa tenha em conta a aplicação, ao requerente, de medida de segurança ou a condenação pela prática de crime doloso, cometido com violência, em pena superior a 1 ano de prisão. Neste âmbito, pronunciou-se o Acórdão da Relação de Évora de 08.05.2018, no proc. n.º 194/04.6GBGDL-C.E1, disponível in www.dgsi.pt, no entendimento de que que: “(…) constitui indicio de falta de idoneidade (n.º2 do citado art.º14º) para efeitos de concessão, o facto de o requerente ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a um ano de prisão.” In casu, o requerente foi condenado pela prática, dolosa, para além dos crimes de ofensa à integridade física, ainda de crimes de detenção de arma proibida, de exercício ilícito da actividade de segurança privada, e ainda num dos crimes mais graves tutelados no Código Penal, a saber, o crime de violência doméstica, tendo, no cometimento deste, apontado à cabeça da vitima, objeto com a aparência de arma de fogo, sendo, neste último, condenado numa pena de 3 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, acompanhada com regime de prova. Aqui chegados, temos que, como resulta dos antecedentes criminais do arguido, nomeadamente no que respeita à detenção de arma proibida e ao crime de violência doméstica, o arguido, em várias ocasiões, utilizou arma ou objecto que aparentava uma arma, de forma dolosa e ilícita. Por esse uso espúrio de armas foi, de resto, condenado ainda recentemente. Aliás, note-se que para as ameaças por si levadas a cabo no cometimento do crime de violência doméstica terem maior impacto, o mesmo apontou à cabeça da vitima objecto que aparentava ser uma arma. O juízo de prognose anteriormente feito para a suspensão da execução da pena de prisão em que foi condenado no último processo judicial resultou positivo, mas não nos esqueçamos que o mesmo apenas se destinava ao não cometimento de outros crimes no período de suspensão, o que veio a verificar-se, e nada mais, não podendo arrastar-se, ad eternum, para toda a sua vivência em sociedade em termos futuros. Isto posto, e pese embora não sejam conhecidos outros ilícitos criminais ao arguido no período de suspensão e tenha o mesmo cumprido as finalidades da suspensão (limitada àquele tempo, note-se), o certo é que dos antecedentes registados se salienta uma crescente violência na sua actuação, concomitante com o cometimento de crimes cada vez mais graves, e não uma inflecção nessa personalidade de falta de controlo e domínio, pelo que resulta sobejamente indiciada a falta de idoneidade para efeitos da concessão que visa ser obtida, “não colhendo o argumento segundo o qual não existem (como de facto não existem) penas perpétuas, porque é a própria Lei das armas que define, naquele citado artigo 14º/2 da Lei das armas, como indício de inidoneidade, a condenação por crime doloso violento, ressalvando o preceituado pelo artigo 30º da CRP.” De facto, como continua o acórdão citado, “A não concessão de licença de uso e porte de arma não é uma modalidade penal, nem uma medida de segurança, pelo que não faz sentido algum recorrer ao argumento da perpetuidade aduzido pelo requerente.” E como também reza o mesmo acórdão, que seguimos de perto por se afigurar aplicável ao caso em apreciação, “Sem embargo do teor do relatório social (…), as razões de prevenção geral que podem e devem ser ponderadas quanto à respetiva concessão, não são de molde a permitir, sem que com isso se cause justíssimo alarme social, que alguém (a menos que houvesse razão muito ponderosa - e o gosto que o requerente sente pela atividade venatória, uma atividade de âmbito mais ou menos lúdico, não consubstancia razão, quando mais ponderosa, para derrogar aquele indício, legalmente consagrado -), condenado pelo referido crime, praticado nas referidas circunstâncias, aceda a uma licença de uso e porte de arma, independentemente desta ser de caça, ou de outra natureza. Contrariam essa possibilidade as razões de ordem e de tranquilidade públicas, das quais os tribunais são tributários, que não se compadecem com a autorização pretendida.” Neste enquadramento, ainda que o arguido seja atleta de tiro desportivo, tenha obtido licença provisória e tenha realizados os respectivos exames com aproveitamento, estando ainda satisfatoriamente integrado em termos sociais, não cremos que o seu comportamento num passado recente infunda a garantia de que aquelas armas possam ser usadas apenas para fins lícitos. Perante a apurada factualidade, o juízo de prognose que não voltará a repetir essa utilização encontra-se, aliás, deveras fragilizado indiciando, ao invés, a sua falta de capacidade para utilizar as armas de modo adequado e de acordo com os fins legais a que as mesmas se destinam. De facto, os crimes praticados pelo arguido nas circunstâncias e termos em que foram perpetrados, são reveladores de uma personalidade incompatível com um juízo de idoneidade para que lhe seja deferida a sua pretensão de renovação de licença de uso e porte das armas para tiro desportivo. Sublinhe-se, aliás, que o facto de o requerente ser Atleta federado pela Federação Portuguesa de Tiro, ser sócio do Clube de Tiro ... desde 30.12.2022 e ser titular da Licença de Tiro n.º ...18..., tendo realizado, com aproveitamento, o exame de acesso a essa mesma licença, tendo, portanto, conhecimento teórico e prático de matérias como o Regime jurídico das armas e suas munições, a Regulamentação da utilização das armas para fins desportivos, a Segurança no manuseamento, e Noções de balística e de balística de efeitos, como salienta, não o inibiram de utilizar armas do modo como o fez. Assim, se o requerente possui capacidade técnica para usar as armas de fogo, o certo é que não se demonstra, face à revelada personalidade do arguido já aludida, que seja merecedor de um juízo de confiança que essa utilização será prudente e de harmonia com as normas legais. Neste sentido se pronunciou, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 29.05.2019, no proc. 446/13.4PAGDM-A.P1, disponível in www.dgsi.pt, nos termos do qual “Não poderá formular-se um juízo de prognose no sentido de que o requerente, presumivelmente, irá fazer um uso das armas em conformidade com a lei, ou seja, utilizando-a apenas para a actividade venatória, quando o mesmo não hesitou em utilizar as armas cuja licença para uso e porte pretende renovar para fins diversos daquela actividade, antes as utilizando para intimidar a sua companheira, o que gerou a sua condenação criminal.” Ademais, o apuramento dos elementos referentes aos antecedentes criminais do requerente tem, em nosso entender, um pendor menos atenuante do que pretende o requerente, face ao juízo de censura social/comunitária, bem como ao consequente alarme e intranquilidade públicas que causaria uma decisão favorável àquele. Seguindo tal entendimento, e como conclui o citado Acórdão da Relação de Évora de 08.05.2018, “Não é de reconhecer “idoneidade” a requerentes de licença de uso e porte de arma que possuam condenações criminais anteriores, pela prática de crimes graves, violentos e dolosos, sem que isso viole quaisquer preceitos ou princípios – quer legais quer constitucionais”. Destarte, importa salientar que o indeferimento da pretensão do requerente não é consequência automática da condenação do mesmo pela prática do crime a que os autos principais se reportam, mas antes, como supra se referiu, pela sua revelada personalidade, impeditiva da formação de juízo de prognose de uso legal de armas de fogo. Assim sendo, tem-se como não demonstrada a idoneidade do requerente para obter a pretendida licença, improcedendo, nessa medida, a pretensão formulada.
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Decisão Face ao exposto: Tem-se como não demonstrada a idoneidade do requerente para obter a pretendida licença, improcedendo, portanto, a pretensão formulada. Custas pelo requerente, as quais se fixam no mínimo legal. Registe e Notifique. ***»
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2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO.
Em suma, entende o recorrente que lhe deve ser reconhecida a requerida declaração de idoneidade, nos termos do disposto no art.º 14º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, com vista à concessão de licença de tiro desportivo, pois que tendo em conta todo o caminho entretanto trilhado pelo arguido no sentido da sua integração social, ressocialização e melhoramento pessoal - na sociedade, na vida familiar e profissional - sem que haja que haja notícia da prática de qualquer ilícito penal desde 2018, é errado considerar que o arguido revela uma personalidade impeditiva da formação de juízo de prognose de uso legal de armas de fogo.
Vejamos.
Não existe na nossa ordem constitucional um direito ao porte e uso de armas.
Não há tal direito constitucional de porte e uso de armas, incluindo as de defesa, como o Tribunal Constitucional afirmou nos acórdãos 243/2007[1] e 1010/96[2].
A detenção, uso e porte de armas de fogo é, por princípio, proibida na nossa ordem jurídica, só não sendo ilícitas se o agente tiver sido autorizado para tal[3].
Com efeito, contrariamente à Constituição dos Estados Unidos da América, na interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça dos E.U.A. tem feito da segunda emenda[4] admitindo o direito à detenção e porte de armas pelos cidadãos, em Portugal não existe tal direito.
Nem o legislador constituinte nem o legislador ordinário consagraram na ordem jurídica portuguesa um direito ao uso e porte de armas de fogo pelos cidadãos.
Conforme se disse no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 27.04.2021[5], citado na decisão recorrida:
«O uso e porte de armas, na ordem jurídica portuguesa, não é um direito e muito menos um direito fundamental, com consagração constitucional, mas sim um privilégio, a que apenas têm acesso aqueles que reúnem determinados pressupostos legalmente previstos.»
De acordo com o artigo 14º, n.º 1 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro (regime jurídico das armas e munições - RJAM) um dos requisitos para que alguém obtenha a concessão de licença de uso e porte de armas da classe B1 é o da idoneidade.
A apreciação do requisito da “idoneidade”, é feita nos termos do disposto nos nºs 2 a 4 do artigo 14º da Lei nº 5/2006, ou seja:
«2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 30º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante da alínea c) do número anterior é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão. 3 - No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação. 4 - A intervenção judicial referida no número anterior não tem efeitos suspensivos sobre o procedimento administrativo de concessão ou renovação da licença em curso.”»
A remissão para o artigo 30º da Constituição da República Portuguesa prende-se diretamente como seu n.º 4 onde se estabelece que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, disposição essa que teve consagração também no Código Penal, no seu artigo 65º, n.º 1.
A idoneidade para o uso e porte de arma é um conceito indeterminado que deve ser preenchido através de uma valoração das capacidades e habilitações físicas, psicológicas e técnicas, bem como da personalidade que possibilite a emissão de um juízo de prognose de que a arma irá ser utilizada de acordo com os fins legalmente permitidos.
Assim, a “idoneidade” a que aludem os artigos 14º a 17º da Lei nº 5/2006, traduzirá a capacidade ou qualidade de alguém para ser titular de licença de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais.
A presunção de falta de idoneidade resultante do artigo 14º, n.º 2 da Lei nº 5/2006, a presunção de afastamento da emissão de um juízo de prognose de que a arma irá ser utilizada de acordo com os fins legalmente permitidos é ilidível[6].
Assim, a suscetibilidade de se mostrar indiciada a falta de idoneidade pela condenação do requerente pela prática de crime deve ser apreciada casuisticamente[7].
E foi o que se fez na decisão recorrida, de modo que nos parece correto, amplamente fundamentado e conforme às regras legais e constitucionais aplicáveis.
Com efeito, e conforme se refere na decisão recorrida o arguido já foi condenado pela prática de vários crimes: quatro crimes de ofensa à integridade física simples, um crime de detenção de arma proibida, um crime de exercício ilícito da atividade de segurança privado e um crime de violência doméstica.
Por outro lado, se é certo que as condenações pelos crimes de ofensa à integridade física simples já são muito antigas, a verdade é que as demais, por crimes mais graves - crimes de detenção de arma proibida, exercício ilícito da atividade de segurança privada e violência doméstica – já são mais recentes.
Nos autos principais - proc. comum singular n.º 1858/17.0PIPRT -, por sentença de 21.01.2020, transitada em julgado em 21.09.2020, o recorrente foi condenado pela prática, entre inícios de 2007 e fev/março de 2018, de um crime de violência doméstica contra cônjuge, na pena de 3 anos de prisão suspensa por igual período, acompanhada com regime de prova, assente num plano de reinserção social, tendente a promover a interiorização do desvalor da sua conduta, mediante uma intervenção estruturada nas fragilidades que apresenta ao nível da gestão das emoções e resolução de problemas, bem como ao nível do autocontrolo, nos termos que vierem a ser delineados pelos serviços de reinserção social.
Entre os demais factos provados integradores da violência doméstica, os quais se podem ler da sentença transitada em julgado proferida nos autos principais, além de várias agressões e ameaças de morte à sua esposa, incluindo que também matava a filha de ambos, resultou ainda provado que o arguido apontou à cabeça da assistente um objeto com a aparência de arma de fogo.
Ora, não obstante o requerente não ter cometido qualquer ilícito penal desde 2018, ter mantido uma postura colaborante com a DGRSP, ter integração familiar e ocupação laboral, não nos parece que, tendo em conta a violência física e psicológica cometida pelo arguido contra a ofendida dos autos principais, incluindo ameaças de morte e com o apontar à cabeça da ofendida de um objeto com a aparência de arma de fogo, a que acrescem as anteriores condenações em detenção de arma proibida e atividade ilícita de segurança privado, se possa fazer um juízo de prognose favorável quanto à utilização futura de arma de fogo, encontrando-se assim afastada a possibilidade de se concluir pela adequação ou conveniência de ao arguido ser concedida a licença requerida, pois há o risco, dada a sua personalidade violenta, de vir a utilizar uma arma de fogo para fins ilícitos.
Ora, quem, como o requerente, foi condenado pelo cometimento de um crime de violência doméstica por ter agredido fisicamente a sua mulher, que ameaçou de morte, bem como lhe disse que ia matar a filha e ainda lhe apontou à cabeça um objeto com a aparência de uma arma de fogo, demonstrou nos factos uma personalidade agressiva e violenta que, somada às anteriores condenações em detenção de arma proibida e atividade ilícita de segurança privado, leva inequívoca e diretamente a concluir não só pela impossibilidade de fazer um juízo de prognose favorável quanto à utilização futura de arma de fogo, como também à verificação da falta de idoneidade para usar e portar armas de fogo, dado o risco de vir a utilizar uma arma de fogo para fins ilícitos.
Face ao exposto, não se nos afigura, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, ter havido qualquer violação dos artigos 15.º n.º 1, al. c) e 14.º, n.º 2, 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23/02 e artigo 30 da CRP.
Tudo visto, concluímos pela falta de idoneidade do requerente para obter a concessão de licença de uso e porte de armas de fogo da classe B1, pelo que nenhum reparo merece a decisão recorrida, ao julgar improcedente o pedido de emissão de certidão de idoneidade a favor do requerente, nos termos do disposto no art.º 14º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23.02, com vista à concessão de licença de tiro desportivo.
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3- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
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Notifique.
Porto, 2 de outubro de 2024
William Themudo Gilman
João Pedro Pereira Cardoso
Liliana De Páris Dias