TRANSPORTE RODOVIÁRIO
Sumário

Incorre na contra-ordenação prevista e punida no artigo 21 n.1 alínea b) do Decreto-Lei n.38/99, de 6 de Fevereiro, quem, sendo titular de alvará para o exercício da actividade de transportes rodoviários de mercadorias, utiliza veículo licenciado em nome de outrem.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal da Relação:

Nos autos de Recurso (Contra-Ordenação) n.º ../.., do -.º Juízo da Comarca da....., foi julgado improcedente o recurso e mantida a decisão proferida pelo Director da Delegação de Transportes do Norte que condenou a arguida A....., Lda, no pagamento da coima no montante de 1 995,19 euros, por contra-ordenação ao disposto no art.º 21.º, n.º 1, al. b) do DL n.º 38/99, de 6.2.

A sociedade condenada recorreu, alegando que é o art.º 23.º deste diploma legal o aplicável, por ter a ver com o licenciamento de veículos afectos à actividade das empresas titulares de alvará e não aquele art.º 21.º, que diz respeito ao licenciamento da própria empresa.
Invoca os seguintes argumentos:
- o art.º 21.º prevê apenas situações de utilização fraudulenta do alvará da empresa de transportes, nada tendo a ver com o licenciamento de veículos;
- remete para o art.º 3.º do mesmo diploma,, o qual respeita apenas ao alvará, isto é, ao licenciamento da empresa para o exercício da actividade de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem;
- é o art.º 10.º que exige que os veículos pesados pelas empresas detentoras de alvará estejam também licenciados no nome da empresa;
- a norma do art.º 21.º surgiu para combater uma prática corrente, segundo a qual alguns transportadores, mediante uma contrapartida, permitiam que um particular que fosse proprietário de um veículo de carga o transferisse para a propriedade da empresa de transportes, com o fim de obter uma licença para o veículo e o utilizar de forma fraudulenta na realização de transportes em proveito próprio, dando a aparência perante as entidades fiscalizadoras de que exerciam a actividade no âmbito da empresa transportadora.

Respondeu o M.º P.º junto da decisão recorrida, considerando ter esta procedido com acerto à aplicação do Direito.
Neste Tribunal, o Exmo PGA considerou que da factualidade provada se constata que a arguida realizou um transporte de mercadorias com um veículo licenciado em nome de outra empresa, mediante cedência; tal cedência, gratuita ou não, tem na sua base um contrato ainda que seja verbal. A norma aplicável é o art.º 21.º, n.º 1, al. b) do DL n.º 38/99, de 6/2, pois não restam dúvidas acerca daquele tipo de transporte e da existência de um contrato para a utilização do veículo, entre a empresa titular do alvará e a arguida, o que está abrangido pela previsão do n.º 2-c), do mesmo normativo.
Deve ser julgado improcedente o recurso.
Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Foram os seguintes os factos dados como provados:

1. Na decisão proferida pelo Director da Delegação de Transportes do Norte, com data de ../../.., consta, além do mais, decido aplicar a A....., Lda a coima de 1995,19 euros de acordo com os fundamentos constantes da proposta de decisão em anexo, que aqui dou por integralmente reproduzida.
2. No dia 15.2.2001, na E. N. n.º.., em..... concelho da....., José....., encontrando-se de serviço para a arguida, conduzia o veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-..-KD, pertencente à empresa “I......, Lda”.
3. Na posse desse condutor encontrava-se a guia de transporte n.º ...., inclusa a fls. 7, em nome da arguida e com a indicação do referido veículo, cujo teor restante se dá por reproduzido.
4. Na posse do mesmo encontravam-se ainda cópia do alvará n.º .../19.., de que é titular a arguida, para a realização de transportes rodoviários por conta outrem em território nacional, o alvará da mesma actividade pertencente à empresa “I....., Lda”, a licença do veículo para esse transporte e os documentos para circulação respeitantes ao veículo conduzido.
5. O identificado condutor utilizava o mencionado veículo em virtude de a arguida ter solicitado tal utilização à empresa “I....., Lda”, com a aceitação desta, na sequência de uma avaria que sofreu o veículo pertencente à primeira.
6. A arguida dispõe do capital social de 251.892,94 euros e não lhe são conhecidas anteriores contra ordenações.

Facto não provado: A arguida prestava a sua actividade em exploração do alvará da empresa “I....., Lda”.

Foi a seguinte a solução de Direito:

Sustenta a arguida, em segundo lugar, que não cometeu a contra ordenação que lhe foi imputada. Segundo explica no seu requerimento de recurso, sendo uma empresa licenciada para o transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, apenas teve de socorrer-se de um veículo pertencente a outra empresa (“I....., Lda "), para levar a mercadoria ao seu destino, por ter havido uma avaria na sua viatura que efectuava o transporte, não se verificando assim exploração do alvará do proprietário do veículo (art. 10° do requerimento).
Admite, no entanto, que a única infracção que lhe pode ser imputada é a utilização de um veículo que não estava licenciado em seu nome (art. 11°).
Vejamos o que a lei refere.
A regulação da actividade do o transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem encontra-se no DL n.º 38/ 99,de 6-2.
Determina esse diploma, além do mais, que a referida actividade tem de ser licenciada, pela Direcção Geral de Transportes Terrestres (art. 3°), desde que haja idoneidade, capacidade técnica ou profissional e capacidade financeira (art. 4° e segs.), estando os veículos utilizados para o efeito sujeitos a emissão de licença (nos termos do art. 10°). Para além da guia de transporte (art. 15°), o art. 16° enumera os documentos que devem ser apresentados em qualquer fiscalização.
Já no capítulo dedicado ao regime sancionatório, dispõe o art, 21° que a realização de transporte por entidade diversa do titular da licença a que se refere o art.º 3° é punível, distinguindo as duas alíneas diferentes sanções consoante o infractor, seja o titular do alvará ou da licença comunitária (al. a)), seja a pessoa que efectua o transporte (alínea b)).
E o n.º2 desse preceito contém o elenco das situações que devem considerar-se como transportes efectuados por entidades diversas.
Ora, a alínea c) refere-se expressamente à existência de contrato para utilização do veículo entre a empresa titular do alvará e um terceiro.
Esse terceiro, referido na norma legal, só pode ser uma entidade com alvará próprio, caso contrário a situação é abrangida pela contra ordenação do art. 20°.
Por outro lado, nada tem que ver com a falta de licença do veículo, pois que tal infracção está sob a alçada do art. 23° do diploma em análise.
Destaque-se que qualquer das referidas situações é sancionada mais severamente que a prevista no art. 21°.
Assim, temos de concluir que essa al. c) compreende as situações em que empresas dispondo de alvará utilizam veículos, devidamente licenciados, mas em nome de outrem. Situação que, apesar de menos grave que a realização de transportes por empresa não licenciada, ou com veículo sem licença, a lei entende ainda assumir relevância suficiente para a punição.
Sem que a situação se altere se entre a empresa titular do alvará tenha havido cedência do veículo mediante remuneração (à exploração) ou gratuitamente.
Na verdade, a cedência gratuita ainda configura um contrato, mais precisamente um contrato de comodato (cfr. art. 1129° do Cód. Civil), entre a empresa titular e outra licenciada, e portanto está abrangida na letra do preceito.
O que, aliás, materialmente, bem se compreende, para evitar que aparentes cedências gratuitas e ocasionais, encapotando situações de aluguer ou exploração reiterada, passem impunes.
É precisamente o que ocorre no caso dos autos: como admite a própria recorrente, a única infracção que lhe pode ser imputada (e deve mesmo sê-lo) é a utilização de um veículo que não estava licenciado em seu nome.
Sem que, ao contrário do que se sustenta no requerimento de recurso, isto seja completamente diferente do relatado no auto de notícia.
Na verdade, é esse facto essencial que é relatado no auto de notícia (efectuar transporte de mercadorias sem ser portadora de licença do veículo). E embora a esse se tenha aditado um facto que não se provou (a exploração do alvará do proprietário do veículo), constata-se que essa circunstância é perfeitamente irrelevante para a qualificação da conduta como contra ordenação, pois para esse efeito basta a existência de contrato, qualquer que ele seja”.

Fundamentação:
Importa recordar as noções de licença e alvará:

A licença é o acto administrativo que permite a alguém a prática de um acto ou o exercício de uma actividade relativamente proibidos.
O alvará é um documento firmado pela autoridade competente pelo qual esta faz saber a quem dele tome conhecimento a existência de certo direito constituído em proveito de determinada pessoa (...) é o título dos direitos conferidos aos particulares por deliberações... que os invistam em situações jurídicas permanentes.

(cfr. Marcello Caetano, “Manual de Direito Administrativo”, vol. I, Almedina, Coimbra, 1980, págs. 459 e 196, respectivamente).

Agora entendem-se as normas correlativas normas do DL n.º 38 / 99, de 6 de Fevereiro:
- art.º 3.º (Licenciamento da actividade), n.º 1: “A actividade de transportes rodoviários de mercadorias por conta de outrem, nacional ou internacional, só pode ser exercida por sociedades comerciais ou cooperativas, licenciadas pela Direcção-Geral de Transportes Terrestres”; n.º 2: “A licença para o exercício da actividade de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem consubstancia-se num alvará”;
- art.º 10.º (Licenciamento de veículos) , n.º 1: “Os veículos automóveis, reboques e semi-reboques afectos ao transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, com peso bruto superior a 3,5 t, estão sujeitos a licença, que é emitida pela DGTT, quer sejam propriedade do transportador, quer tenham sido objecto de contrato de locação financeira ou de contrato de aluguer sem condutor”; n.º 3: “As licenças dos veículos caducam sempre que se verificar a caducidade do alvará”.

Pode-se distinguir entre licenciamento da actividade de transporte de mercadorias; licenciamento específico para a circulação de cada veículo; e alvará, que é um título que materializa aquela licença de actividade.

Compreendidas estas noções, também resultam inteligíveis os tipos legais de infracção em causa na argumentação do presente processo.
Assim, o art.º 20.º do diploma em causa, prevê as situações de realização de transportes por entidade não licenciada, nos termos do disposto no artigo 3.º- isto é, sem licença e, consequentemente, sem alvará.
Por seu lado, o art.º 23.º prevê os casos de realização de transportes em veículos sem a licença a que se refere o art.º 10.º. Trata-se de uma situação objectiva do veículo, o qual é afectado a uma actividade de transporte sem licença para tal.
Por fim, resta o art.º 21.º, intercalado entre os dois preceitos acabados de mencionar e cuja epígrafe é transportes efectuados por entidade diversa do titular da licença.
Esta norma estatui:
1. A realização de transportes por entidade diversa do titular da licença a que se refere o artigo 3.º é punível:
a) relativamente ao titular do alvará ou da licença comunitária, com a coima de 250 000$ a 750 000$ e de 1 000 000$00 a 3 000 000$00, consoante se trate de pessoa singular ou colectiva;
b) Quanto à pessoa que efectua o transporte, com a coima de 100 000$00 a 300 000$00 e de 300 000$00 a 900 000$00, consoante se trate pessoa singular ou colectiva.
2. São considerados como efectuados por entidade diversa do titular do alvará os transportes em que se verifique alguma das seguintes situações:
a) inexistência de contrato de trabalho entre o condutor e a empresa titular do alvará;
b) prestação do serviço de transporte com facturação ou recibo em regime de acumulação liberal;
existência de contrato para utilização do veículo entre a empresa e um terceiro.

É a própria lei que define como entidade diversa do titular do alvará um terceiro que intervenha como parte na celebração de um contrato com a entidade detentora de alvará – sendo desnecessárias grandes considerações teóricas sobre esse terceiro. É que é o próprio legislador que nos impõe um critério formal.
Como bem se sublinha na decisão recorrida, esse terceiro não pode ser alguém sem licença e alvará para a realização da actividade em causa, pois caso tal se verificasse, mostrava-se directamente aplicável o tipo muito mais gravoso do art.º 20.º supra descrito.
Com esta art.º 21.º pretendeu certamente o legislador combater situações dúbias, em que possa haver um aproveitamento que ele legislador considera ilegítimo, de licenças regularmente emitidas com vista a determinados fins, criando mercados paralelos de aluguer.
Não tem aplicabilidade à situação dos o art.º 23.º, o qual tem em vista o incumprimento do art.º 10.º, a circulação de um veículo sem estar licenciado. Pode até tal infracção concorrer com a que estamos apreciando nestes autos.
O argumento de que o art.º 21.º pretendeu combater práticas de particulares desprovidos de licença e que visavam subtrair-se ao normal mercado de aluguer de veículos é também aplicável à recorrente; como eles poderiam facilmente alugar um veículo num qualquer rent a car, isso também é verdade para a recorrente – devia tê-lo feito, pois sabia bem que a lei proíbe às sociedades transportadoras que, no exercício da sua actividade, circulem com veículos licenciados em nome de outra sociedade .
O recurso tem, pois, que ser rejeitado, por ser manifestamente improcedente – art.º 420.º, n.º 1 do CPP.

Decisão:

Em face do exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em rejeitar o recurso, por manifestamente improcedente- art.º 420.º, n.º 1 do CPP.
A recorrente pagará taxa de justiça, cujo montante se fixa em 4 UCs e a sanção prevista no art.º 420.º, n. 4 do CPP, que se estipula em 4 UCs.

Porto, 25 de Fevereiro de 2004
José Carlos Borges Martins
Élia Costa de Mendonça São Pedro
José Manuel Baião Papão