I - Incorre na prática de uma contraordenação muito grave, prevista e punível nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 4º, n.ºs 1 e 3, 138º, n.º 1, 146º, al. l), e 147º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, em concurso real com um crime de desobediência, previsto e punível nos termos dos art.ºs 348º, nº 1, al. a), 69º, nº 1, al. c), do Código Penal e 152º, nºs 1, al. a), e 3, do Código da Estrada, quem, desrespeitando a obrigação de parar imposta por agente de autoridade em ação de fiscalização do trânsito, é de seguida perseguido e intercetado, e, sendo-lhe determinada a realização de prova de deteção de álcool no sangue pelos mesmos agentes, no âmbito de ação de fiscalização rodoviária, se recua a realizá-la.
II- Apenas o sancionamento previsto para cada um dos comportamentos ilícitos registados, na sua autónoma consumação típica, quer ao nível da sanção principal, quer ao nível da sanção acessória, permitirá legalmente responder ao desvalor das condutas dolosas autonomamente praticadas, ficando assim também afastada a possibilidade de as mesmas poderem integrar um qualquer concurso legal ou aparente de infrações, nomeadamente por via da consunção, sendo que esta só existiria se o comportamento ilícito mais grave contivesse ou incluísse na respetiva punição o menos grave, e assim se pudesse também dizer que com a aplicação das sanções previstas para cada uma das infrações se violaria o princípio da proibição da dupla valoração.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
Relator: Francisco Mota Ribeiro
Sumário
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1. RELATÓRIO
1.1. Após realização da audiência de julgamento, no Proc.º nº 172/24.9GAVFR, que corre termos no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, por sentença de 01/04/2024, foi decidido o seguinte:
“Por todo o exposto, julga-se parcialmente procedente, por provada, a acusação do Ministério Público, e, em consequência:
a) condena-se o arguido AA pela prática, em 31-03-2024, de um crime de desobediência dos artigos 348°, nº 1, al. a) por referência ao artigo 152°, nº 3, do Código da Estrada na pena de 5 (cinco) meses de prisão;
b) suspende-se a execução da pena de prisão por 1 (um) ano, mediante o cumprimento, que será apoiado e fiscalizado pelos serviços de reinserção social, dentro daquele período, de:
- obrigação de frequentar uma ação de formação promovida pela Prevenção Rodoviária Portuguesa com o objetivo de prevenir acidentes de viação e reduzir as suas consequências e sua sensibilização para o problema de álcool, nos termos dos artigos 50º e 52º do Código Penal;
- entregar a quantia de 600,00€ (seiscentos euros) à Associação ..., através de transferência bancária para o IBAN ... (Banco 1...) ou ... (Banco 2...), nos termos do artigo 51º, nº1, c) do Código Penal;
c) condena-se o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 (seis) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, n.º 1, c), do Código Penal;
d) condena-se o arguido nas custas do processo fixando-se em 1 (uma) UC a taxa de justiça devida, nos termos do artigo 8º, nº 9 e a Tabela III do Regulamento das Custas Processuais e artigos 513º, nº 1 e 3 e 514º, nº1 do Código de Processo Penal.”
1.2. Não se conformando com tal decisão dela interpôs recurso o Ministério Público, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
“1- O presente recurso, que se cinge unicamente a matéria de direito, vem interposto da sentença proferida nos autos, em 01-04-2024, que absolveu o arguido AA da prática da contraordenação prevista e punível pelo artigo 4º, n.ºs 1 e 3, e 138º, n.º 1, do Código da Estrada, pelo qual o mesmo vinha acusado.
2- Na referida decisão considerou-se como provada a totalidade dos factos descritos na acusação, factos esses que são subsumíveis à prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348º, nº1, al. a), do Código Penal, com referência ao artigo 152°, nº 3, do Código da Estrada, e da contraordenação prevista e punível pelo artigo 4º, n.ºs 1 e 3, e 138º, n.º 1, do Código da Estrada, sobre a qual versou a decisão de absolvição.
3- A decisão em crise sustentou-se no entendimento de que existe uma relação de concurso aparente entre crime e contraordenação, na medida em que o arguido atuou na mesma ocasião e contexto e dentro do mesmo desígnio de não ser fiscalizado.
4- Ora, de acordo com a previsão dos artigos 20º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, e 134º, n.º 1, do Código da Estrada, se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente é punido sempre a título de crime, sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contraordenação.
5- Porém, no caso concreto, afigura-se que não estamos diante do mesmo facto, mas sim de factos distintos, ocorridos em momentos diferenciados, ainda que no mesmo contexto, e que representam um conteúdo de ilícito autónomo.
6- Na verdade, a abordagem e inerente procedimento de fiscalização das autoridades a que o arguido se pretendia furtar ao desobedecer à ordem de paragem tem um âmbito ou abrangência bastante mais amplo do que a fiscalização da condução sob a influência de álcool.
7- Por outro lado, no momento subsequente, a recusa do arguido em submeter-se à realização do exame para deteção da presença de álcool no sangue, representa um desvalor específico e acrescido relativamente à conduta adotada no momento anterior.
8- Neste contexto, cremos estar em presença de factos distintos, subsumíveis a um concurso real de infrações, que impõem a condenação do arguido, a par do crime de desobediência, pela contraordenação pela qual vinha acusado.
9- Quanto à medida da coima e sanção acessória a aplicar, à luz dos critérios previstos no artigo 139º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, considerando que a contraordenação em causa é classificada como muito grave, o grau de culpa é mediano, a existência de uma condenação anterior por contraordenação estradal e situação económica do arguido, reputa-se adequada a condenação numa coima não inferior a € 700,00 e na sanção acessória de inibição de conduzir por período não inferior a 6 meses.
10- Caso se entenda de forma diversa, em todo o caso, por obediência ao preceituado na última parte dos artigos 20º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro, e 134º, n.º 1, do Código da Estrada, sempre terá que ser aplicada ao arguido a sanção acessória prevista para a contraordenação que o Tribunal a quo considerou consumida pelo crime.
11- Pelo exposto, ao absolver o arguido da prática da contraordenação previsto e punível pelo artigo 4º, n.ºs 1 e 2, e 138º, n.º 1, do Código da Estrada, a decisão recorrida violou o artigo 20º do DL n.º 433/82, de 27 de outubro e artigos 4º, n.ºs 1 e 3, 134.º e 138º, n.º 1, do Código da Estrada do Código da Estrada, razão pela qual deverá ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática da contraordenação prevista no referido artigo 4º, n.ºs 1 e 3, e 138º, n.º 1, com referência aos artigos 146º, al. l), e 147º, n.ºs 1 e 2, todos do Código da Estrada, numa coima não inferior a € 700,00 e na sanção acessória de inibição de conduzir por período não inferior a 5 meses.
12- Subsidiariamente, caso assim não se entenda, deverá a decisão em crise ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela prática contraordenação prevista no artigo 4º, n.ºs 1 e 3, e 138º, n.º 1, com referência aos artigos 146º, al. l), e 147º, n.ºs 1 e 2, todos do Código da Estrada, em concurso aparente com o crime de desobediência pelo qual foi condenado em primeira instância, na sanção acessória de inibição de conduzir por período não inferior a 5 meses.”
1.3. Respondeu o arguido, concluindo pela negação de provimento ao recurso, nos seguintes termos:
“1 – O Tribunal a quo andou bem na decisão que proferiu ao absolver o arguido, ora recorrido, da contraordenação de que vinha acusado.
2 - Ainda que o Tribunal a quo tenha dado como provado todos os factos constantes da acusação, tendo inclusive dado como provado que o arguido não obedeceu à ordem de paragem efetuada pelo militar da GNR, a conduta do arguido teve, efetivamente, um único propósito, eximir-se á fiscalização.
3 – Dentro de um quadro homogéneo de condutas, o arguido levou a cabo um conjunto de ações tendentes ao alcance deste objetivo: furtar-se à fiscalização de álcool.
4 – O Tribunal a quo considerou a contraordenação, consumada no crime, na escolha da medida concreta da pena.
5 – O concurso aparente, visa impedir que o arguido seja condenado por dois crimes em concurso efetivo, o que, a suceder, violaria o princípio do ne bis in idem.
6 – O concurso aparente existe quando a conduta do agente apenas formalmente preenche vários tipos legais, mas por via da interpretação das normas conclui-se que essa conduta é inteira e exclusivamente absorvida por um só tipo, de modo tal que todos os demais devem ceder.
7 – No concurso aparente de infrações há um conjunto de normas legais em convergência, em concordância, de tal modo que em consequência de uma conexão entre elas, a aplicação de uma norma importa a exclusão de aplicação de outra, na observância das regras da especialidade, da consumpção, da subsidiariedade, do facto ulterior não punível, pois os diversos crimes podem mostrar-se conexionados por essas diversificadas relações entre si.
8 – A aplicação da regra da consumpção não abdica da consideração de que o preenchimento do tipo mais grave engloba o preenchimento de outro menos grave e, quando tal sucede as disposições legais encontram-se numa posição em que uma consome a proteção legal já conferida por outra, a lei mais ampla, a lex consumens, que é a mais eficaz e a aplicável por força do princípio ne bis in idem, do que a lei menos ampla, a lex consumpta, que não cobra aplicação.
9 – A contraordenação foi consumida pelo crime de desobediência, como, aliás, o devia ter sido.
Termos em que, e sempre com o mui douto suprimento de V. Ex.ªs, não deve o presente recurso merecer provimento, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.”
1.4. O Exmo. Sr. Procurador-Geral-Adjunto, junto deste Tribunal, emitiu douto parecer, no qual concluiu pela procedência do recurso.
1.5. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo Ministério Público e os poderes de cognição deste Tribunal, importa apreciar e decidir se dos factos provados resulta ter o arguido cometido, em concurso efetivo com o crime de desobediência pelo qual foi condenado em primeira instância, a contraordenação prevista, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 4º, nºs 1 e 3, 138º, nº 1, 146º, al. l), e 147º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, punível com coima entre um mínimo de 500 e um máximo de 2500 euros e com a sanção acessória de inibição de conduzir veículos a motor, entre o mínimo de 2 meses e o máximo de 2 anos.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Factos a considerar
2.1.1. Na sentença recorrida foi considerada provada a seguinte factualidade:
1. No dia 31/03/2024, pelas 02h15m, na Avenida ..., ..., em ..., o arguido AA conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-SG-.., sensivelmente a meio da faixa de rodagem.
2. Nessa ocasião, o militar da GNR BB, devidamente uniformizado, fez um gesto com o braço em direção à berma, dando ordem de paragem ao arguido.
3. Sucede que, o arguido não imobilizou o veículo e prosseguiu a sua marcha, apesar de ter visto o sinal de paragem que lhe foi feito pelo militar da GNR.
4. Nessa sequência, a patrulha da GNR composta pelos guardas BB e CC seguiram o arguido na viatura policial e ainda na Avenida ... conseguiram intercetá-lo e procederam a uma ação de fiscalização rodoviária.
5. Nesse momento, o guarda BB solicitou ao arguido que efetuasse o teste de despistagem de álcool no sangue, mas o arguido respondeu que não o fazia.
6. Perante o comportamento do arguido, o guarda BB, devidamente uniformizado e no exercício das suas funções, advertiu o arguido que a recusa injustificada na realização do exame de despistagem de álcool o fazia incorrer na prática de um crime de desobediência.
7. Apesar disso, o arguido persistiu no seu comportamento e recusou fazer qualquer exame de pesquisa de álcool no sangue.
8. Ao recusar submeter-se à prova legalmente estabelecida para a deteção de condução de veículo influenciado pelo álcool, o arguido agiu com o propósito concretizado de não respeitar a ordem que lhe foi dada, bem sabendo que essa recusa o faria incorrer em crime de desobediência por não acatar uma ordem formal e substancialmente legítima, regularmente comunicada e emanada de autoridade competente.
9. O arguido sabia que perante o sinal de paragem que lhe foi efetuado pelo militar da GNR teria de imobilizar o veículo e, não obstante, quis desobedecer àquela ordem e prosseguir a sua marcha.
10.O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
11. O arguido exercia a profissão de motorista de pesados exercendo atualmente as funções de operador de máquinas pelas quais aufere a remuneração mensal mínima garantida no valor de 820,00 €;
12. Tem um filho de 17 anos em regime de guarda partilhada;
12. Reside com a sua mãe, pessoa que é doente, prestando-lhe auxílio;
13. Contribui para as despesas domésticas e para a renda, sendo esta no valor de 150,00€;
14. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:
15. Foi condenado no processo 393/12.7GDVFR, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, por sentença transitada em julgado em03/07/2023, tendo o arguido sido condenado na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de 6,00 €, pena essa que foi extinta pelo seu cumprimento;
16. Foi condenado no processo 430/13.8TAVFR, por decisão transitada em julgado em 28/11/2014, pela prática de um crime de injúria, na multa de 120 dias à taxa diária de 6,00€, pena essa que foi extinta pelo seu pagamento;
17. Foi condenado no processo 659/14.1GDVFR, por decisão transitada em julgado em 06/07/2015, pela prática de um crime de desobediência, na pena de 3 meses de prisão substituída por 90 horas de trabalho a favor da comunidade e ainda pela prática dos crimes de corrupção ativa e de ameaça agravada, na pena de única de 150 dias de multa à taxa diária de 6,00€, penas essas vieram as ser extintas pelo seu cumprimento;
18. Foi condenado no processo 266/92.5GDVFR., por decisão transitada em julgado em 03/05/2022, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, na pena de 45 dias de multa à taxa diária de 7,00€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, penas que foram extintas pelo seu cumprimento;
19. Foi condenado no processo 1417/22.5T9VFR, por decisão transitada em julgado em 29/02/2024, pela prática de um crime de desobediência, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 7,00€;
20. O arguido tem ainda averbado no cadastro junto ANSR uma condenação pela prática de uma contraordenação em 28/04/2019 por condução sob o efeito do álcool, em coima e na inibição de conduzir pelo período de 60 dias.
2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos
Tendo-se o arguido recusado a realizar o teste de pesquisa de álcool no sangue, após ter desobedecido a uma ordem de paragem dada por agentes de autoridade, que o perseguiram de seguida numa viatura policial e, conseguindo intercetá-lo, procederam a uma ação de fiscalização rodoviária, no âmbito da qual lhe determinaram a realização do referido teste, o problema colocado por uma tal sucessão de comportamentos é o de saber se com eles o arguido cometeu apenas um crime de desobediência, punível com pena de prisão ou multa e ainda com a sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor, nos termos previstos nos art.º 348º, nº 1, al. a), e 69º, nº 1, al. c), do Código Penal, em conjugação com o disposto no artigo 152º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada, ou se, em concurso efetivo com esse crime, incorreu ainda na prática de uma contraordenação muito grave, por desobediência a ordem de paragem dada por autoridade na fiscalização do trânsito, prevista nos art.ºs 4º, n.ºs 1 e 3, e 138º, n.º 1, 146º, al. l), e 147º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, e punível com coima e sanção acessória de inibição de conduzir veículos a motor.
O Tribunal a quo entendeu que os factos dados como provados são apenas subsumíveis ao crime de desobediência, por deles resultar que o arguido se “pretendia furtar à ação da GNR desde o início”, considerando ainda que os comportamentos descritos ocorreram “na mesma ocasião” e no “mesmo contexto”, e que “o arguido agiu dentro do mesmo desígnio” e “dentro de um quadro homogéneo de condutas”, concluindo que a contraordenação que lhe vinha imputada resultava consumida pelo crime de desobediência, no âmbito de um concurso aparente, a implicar a absolvição do arguido da prática da contraordenação.
Para poder ser válida a tese assim sustentada pelo Tribunal a quo necessário seria que o comportamento do arguido, no seu todo, enquanto concreto pedaço de vida, tivesse sido determinado por uma única intenção, como parece resultar da fundamentação fáctico-conclusiva e jurídica da decisão recorrida, manifestada nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e finalisticamente dirigida, desde o início, à recusa em efetuar o teste de álcool no sangue, e ter sido com a finalidade de consumação de uma tal recusa que imediatamente antes havia desobedecido à ordem de paragem que lhe havia sido legitimamente dada, ou seja, desde que esta primeira conduta tivesse sido realizada com o fito de, precisamente, cometer o crime de desobediência, por recusa de realização das provas de controlo de álcool no sangue, e se tornasse assim claro que a factualidade de que foi autor estava geneticamente marcada por uma forte conexão típica, desde logo ao nível do bem jurídico protegido, uma vez que tanto na desobediência à ordem de paragem constitutiva do ilícito contraordenacional imputado ao arguido, como na que resulta da recusa de realização do teste de pesquisa de álcool no sangue, constitutiva do crime de desobediência, porque ambos os ilícitos típicos cometidos são à partida ilícitos contra a autoridade pública, em que o bem jurídico protegido é a autonomia intencional do Estado - “de uma forma particular a não colocação de entraves à atividade administrativa por parte dos destinatários dos seus atos”[1].
Acontece, porém, que, em nosso entender, não é isso que se pode retirar dos factos dados como provados, já acima transcritos e que aqui damos por reproduzidos.
Em primeiro lugar, importa dizer que não é possível afirmar-se estarmos perante um concurso efetivo ideal, entre crime e contraordenação, para que em consequência disso pudéssemos invocar a norma do art.º 134º do Código da Estrada, que corresponde rigorosamente à também prevista no art.º 20º do Regime Geral das Contraordenações, ao estabelecer que “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, será o agente sempre punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contraordenação”, pois não constitui um “mesmo facto” o comportamento de desobediência à ordem de paragem dada ao arguido, subsumível ao ilícito contraordenacional já referido, precisamente por este se ter consumado em momento prévio à realização da conduta que deu lugar à consumação do crime de desobediência, por recusa do arguido em submeter-se ao exame de pesquisa de álcool no sangue, não se podendo por isso falar na existência de uma mesma ação que pudesse preencher vários tipos de ilícito ou várias vezes o mesmo tipo de ilícito, porquanto as condutas sucessivamente adotadas pelo arguido preencheram uma pluralidade de ilícitos típicos, ou seja, a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo comporta ações autónomas, portadoras de uma pluralidade de sentidos de ilicitude típica, fazendo com que os comportamentos nelas considerados sejam constitutivos de dois ilícitos típicos, e assim em concurso efetivo, real (porquanto assentes em diversas ações e não apenas numa única ação) e heterogéneo, porque constitutivos de diferentes tipos-de-ilícito.
Melhor dizendo.
Ao concurso efetivo opõe-se o chamado “concurso legal ou concurso aparente”, e mais precisamente nos casos em que, nas palavras do Professor Jorge de Figueiredo Dias, “apesar de o comportamento global ser subsumível a uma pluralidade de tipos legais concretamente aplicáveis, todavia deva concluir-se pela unidade do sentido de ilicitude do facto punível”[2]. E foi neste sentido que se dirigiu o entendimento do Tribunal a quo, ao considerar que a contraordenação resultava consumida pelo crime cometido de seguida, no âmbito de um concurso aparente, dada a circunstância de os comportamentos dados como provados terem ocorrido “na mesma ocasião” e no “mesmo contexto”, e ter o arguido agido “dentro do mesmo desígnio” e “dentro de um quadro homogéneo de condutas”.
Acontece, porém, que a consunção, enquanto critério determinativo da unidade do sentido de ilicitude do facto punível, a implicar o afastamento da pluralidade de ilícitos típicos, usando novamente as palavas do Professor Jorge de Figueiredo Dias, só existirá quando “o conteúdo de um ilícito-típico inclui em regra o de outro facto, de tal modo que, em perspetiva jurídico-normativa, a condenação pelo ilícito típico mais grave exprime de forma bastante o desvalor de todo o comportamento. Lex consumens derogat legi consuntae”.[3] Ou seja, o que importa saber é se o caso sub iudice corresponde ou não a um “caso da vida” “em que os sentidos e os conteúdos singulares dos ilícitos se intercetam e se cobrem mutuamente, de tal modo que valorá-los na sua integralidade significaria violação da proibição da proibição de dupla valoração”[4]. Sendo certo que é isso que acontece, por exemplo, com o dano causado na fechadura da porta pelo agente que por esse modo entra na habitação onde comete o furto, dano esse que precede a consumação típica deste último crime, sendo nestes casos entendimento pacífico que o crime de dano, resultante da destruição da fechadura da porta, fica consumido pelo crime de furto qualificado previsto no art.º 204º, nº 1, al. e), do CP, assim como o de violação de domicílio, previsto no art.º 190º do CP resulta consumido pelo crime de furto qualificado previsto no art.º 204º, nº 1, al. f), do mesmo diploma[5]. Em ambos as hipóteses, porém, o desígnio do agente é o cometimento do furto, surgindo o dano ou a violação do domicílio como meio, instrumento ou ocasião para o cometimento do crime visado pelo agente, constituindo eles mesmos, ao mesmo tempo, fundamento para qualificação do crime de furto, fazendo assim com que, logicamente, a punição deste abranja em si o desvalor da ilicitude dos factos praticados na sua globalidade. O mesmo sucederá entre a violação do domicílio e o crime de dano, quando o primeiro é consumado através de arrombamento, pois a punição do agente pelo crime de violação de domicílio qualificado, previsto no art.º 190º, nº 3, do CP, contempla já na sua tipicidade, e logicamente na respetiva moldura penal, o desvalor da conduta danosa resultante desse arrombamento[6].
Face ao exposto, é bom de ver que, no caso dos autos não estamos perante um concurso legal ou aparente de infrações, por via da consunção, desde logo por não existir possibilidade de uma ligação genética entre a primeira e a segunda desobediências, nas circunstâncias de lugar e tempo em que as mesmas tiveram lugar, e muito menos uma relação de meio fim ou de instrumentalidade entre os factos constitutivos do ilícito contraordenacional e os de desobediência por recusa de realização do teste de pesquisa de álcool no sangue. Desde logo, ao nível da intenção do agente, pois, ao contrário dos exemplos acima dados, este não desobedeceu à ordem de paragem dos agentes de autoridade com a finalidade de posteriormente se recusar a realizar o teste de pesquisa de álcool no sangue, como se infere do exposto na fundamentação da decisão recorrida, mas o contrário disso, ou seja, precisamente para fugir à possibilidade de poder vir a fazê-lo. Surgindo as circunstâncias em que decide cometer o crime que sucedeu espaço-temporalmente à contraordenação, apenas e após a sua perseguição e interceção pela autoridade policial, contra a sua vontade e não por sua iniciativa, mas em resultado da atuação da autoridade policial, que o colocou perante novas e diferentes circunstâncias, deixando ao arguido a liberdade de escolher entre a realização do teste, a que estava obrigado, e, aceitando-a, caso acusasse uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2g/l, sujeitar-se a ver-lhe imputada a autoria de um crime de condução em estado de embriaguez, ou, recusando-se a realizar esse teste, cometer o crime de desobediência, pelo qual acabou por ser acusado e condenado nos presentes autos. Crime de desobediência este que, não é despiciendo sublinhar, tem ínsita a “presunção de que aquele que se recusa sem justificação ao exame está alcoolizado, não se tratando, porém, de presunção de embriaguez, nomeadamente para efeitos da prática dos crimes dos art.ºs 291º e 292º, mas de crime autónomo”[7].
Em ambas as hipóteses, portanto, de recusa, com desobediência, ou aceitação de realização de exame de pesquisa de álcool, com resultado subsumível ao crime de condução em estado de embriaguez, não será possível falar-se de “unidade típica da ação” com o comportamento contraordenacional anterior, por inexistir, nem unidade resolutiva por parte do agente, nem, por outro lado, uma relação lógico-causal entre a primeira e a segunda condutas por este adotadas. E pese embora se possa dizer que tanto no ilícito contraordenacional como no crime praticado está em causa fundamentalmente o mesmo bem jurídico, não vemos como este argumento possa ser relevante, porquanto não se vislumbra como na sua tipicidade e na respetiva moldura penal o desvalor da conduta ilícita contraordenacional resultante da violação do dever de paragem legitimamente dada ao arguido por autoridade competente possa considerar-se abrangido pela punição do crime de desobediência, que se lhe seguiu, em circunstâncias que ocorreram após perseguição e interceção do arguido, levada acabo por aquela mesma autoridade, como o não seria se o arguido tivesse decidido realizar o referido teste e o crime cometido tivesse sido o de condução de veículo em estado de embriaguez, cujo bem jurídico protegido é a vida, a integridade física e o património de outrem, mas no qual a pena de prisão e multa aplicáveis acabam por ter uma moldura penal idêntica à prevista para o crime de desobediência, pelo qual o arguido foi condenado nos presentes autos – pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias.
Ou seja, os factos dados como provados não nos permitem concluir estarmos perante um caso em que “os sentidos e os conteúdos singulares dos ilícitos se intercetam e se cobrem mutuamente, de tal modo que valorá-los na sua integralidade significaria violação da proibição da proibição de dupla valoração” ou, usando o conceito de “facto progressivo”, referido pelo Professor Germano Marques da Silva, no âmbito da análise do concurso efetivo entre o crime de condução sem habilitação, previsto no art.º 1º do DL nº 123/90 e os crimes do art.º 291º do Código Penal, também aqui não estamos perante factualidade em que “o agente passa de uma conduta inicial que realiza um tipo de crime para uma conduta ulterior que realiza um tipo de crime mais grave, no qual se incluem os elementos constitutivos do crime menos grave, e entre um estádio e outro existe uma tal ligação causal que o estádio superior do crime absorve inteiramente os anteriores”[8].
E subjazendo a este juízo problemático-judicativo, usando as palavras do Professor Jorge Figueiredo Dias, “não um problema lógico de relacionamento de normas, mas um problema axiológico e teológico de relacionamento de sentidos e de conteúdos do ilícito”, sendo o mesmo válido para a relação de concurso entre crimes, não pode logicamente deixar de o ser também para a relação de concurso entre crimes e contraordenações. Como sucede no caso dos autos. Concurso no qual, quer ao nível da pena principal (coima, por um lado, e prisão ou multa por outro), quer ao nível da sanção acessória (de inibição de conduzir, no caso da contraordenação, e de proibição de conduzir de veículos a motor, no caso do crime praticado), apenas o sancionamento pela pluralidade de infrações cometidas salvaguardará o desvalor das condutas dolosas e autonomamente praticadas pelo arguido.
Razão por que cometeu o arguido uma contraordenação prevista e punida pelas disposições conjugadas dos art.ºs 4º, nºs 1 e 3, 138º, nº 1, 146º, al. l), e 147º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, em concurso efetivo (real) com o crime de desobediência previsto e punido pelos art.ºs 348°, nº 1, al. a), do Código Penal, por referência ao artigo 152°, nº 3, do Código da Estrada.
Chegados a este ponto importa agora determinar as medidas da coima e da sanção acessória de inibição de conduzir previstas nas disposições normativas citadas, sendo a primeira fixável entre um mínimo de 500 e um máximo de 2500 euros e a segunda entre um mínimo de dois meses e um máximo de dois anos - art.ºs 146º, al. l), e 147º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada.
Dispõe o art.º 139º, nº 1, do Código da Estrada que a medida da sanção é determinada “em função da gravidade da contraordenação e da culpa, tendo ainda em conta os antecedentes do infrator relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos”. Acrescentando-se no seu nº 2 que “Na fixação do montante da coima, deve atender-se à gravidade da contraordenação e da culpa, tendo em conta os antecedentes do infrator relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos, e a situação económica do infrator, quando for conhecida”.
A gravidade da infração cometida, do ponto de vista do grau da respetiva ilicitude, é de considerar mediana, e de igual modo a respetiva culpa, considerando as circunstâncias dolosas em que o arguido agiu, determinado pelo conhecimento e vontade de desobedecer à ordem de paragem dada pela autoridade competente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Por outro lado, o arguido é de modesta condição económico-social, exercendo atualmente a profissão de operador de máquinas, auferindo a remuneração mensal mínima garantida no valor de 820,00 €, tendo a seu cargo um filho de 17 anos em regime de guarda partilhada, residindo com a sua mãe, pessoa que é doente, prestando-lhe auxílio e contribuindo para as despesas domésticas e para a renda, sendo esta no valor de 150,00€.
Finalmente, tem averbado no cadastro junto da ANSR uma condenação pela prática de uma contraordenação em 28/04/2019 por condução sob o efeito do álcool, em coima e na inibição de conduzir pelo período de 60 dias.
Face ao exposto, tudo ponderado, e tendo em conta as necessidades de prevenção que o caso concretamente reclama, especialmente a circunstância de ao arguido ter já sido aplicada anteriormente a sanção acessória de inibição de conduzir com a duração de 60 dias, considera-se ademais adequado à gravidade dos factos, à culpa com que agiu e à sua situação económico-social, a fixação da coima no valor de € 600,00 (seiscentos euros) e a inibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses. Inibição de conduzir esta que, dada a sua diferente natureza, deverá ser cumprida sucessivamente à sanção aplicada pela autoria do crime de desobediência, ou seja, de proibição de conduzir veículos a motor, com a qual não é juridicamente cumulável.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal (4ª Secção Judicial) deste Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, condenar o arguido AA pela autoria da contraordenação prevista nas disposições conjugadas dos art.ºs 4º, nºs 1 e 3, 138º, nº 1, 146º, al. l), e 147º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada, na coima de 600,00€ (seiscentos euros) e na inibição de conduzir veículos a motor pelo período de 4 (quatro) meses, mantendo-se quanto ao mais a decisão recorrida.
Sem custas
Porto, 2024-10-02
Francisco Mota Ribeiro
Raul Cordeiro
Jorge Langweg
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[1] Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, p. 350.
[2] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, 3ª edição, Gestlegal, Coimbra, 2019, p. 1154.
[3] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, 3ª edição, Gestlegal, Coimbra, 2019, p. 1164.
[4] Ibidem.
[5] Por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal -À luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Portuguesa Editora, Lisboa 2021, p. 875.
[6] Neste sentido, Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 713.
[7] Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários Pena acessória e medidas de segurança, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1996, p. 27.
[8] Germano Marques da Silva, Idem, p. 81.