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INTERESSE EM AGIR
ACÇÃO
MEIO DE PROVA
Sumário
1 - para o demandante, o interesse processual consiste na necessidade do recurso aos tribunais para, através da instauração da respetiva ação, obter a tutela judicial de uma situação subjetiva. 2 - o interesse processual e legitimidade não se confundem, ou seja, são diferentes porque o autor pode ser titular da relação material controvertida, tendo, por isso, um interesse potencial em demandar, e não ter, face às circunstâncias concretas da sua situação, necessidade efetiva de recorrer à tutela jurisdicional. 3 - uma coisa é ser titular da relação material litigada, base da legitimidade das partes; outra coisa, substancialmente distinta, é a necessidade de lançar mão da demanda, em que consiste o interesse em agir
Texto Integral
Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
AA, casado, contribuinte nº …., com morada na … nº …, freguesia da …. Angra do Heroísmo, intentou a presente acção declarativa de condenação contra
I - BB …., casada, NIF …, portadora do CC nº …, válido até, residente em … Angra do Heroísmo;
II – CC …, residente em … Angra do Heroísmo;
III - DD …, portadora do CC nº …, NIF …., residente na … Angra do Heroísmo e
IV - EE …, casado, NIF …., portador do CC nº …, residente na … Angra do Heroísmo;
Pedindo:
a) Deve a presente ação ser julgada procedente e por provada e decretar-se por Sentença que todo o sémen a que se refere o réu IV, EE …., na queixa crime supra referida no processo de inquérito …/23.0T9AGH pertencia, em exclusivo, quer à data de 2018, quer antes quer depois, à R.I BB …, concessionária do Centro de Armazenagem de sémen bovino de natureza privada de acesso particular referido e destinando-se tal sémen, que por ela fora adquirido, em exclusivo à sua exploração agro-pecuária;
b) condenando-se todos os réus a reconhecerem o decretado na alínea anterior;
Alega, em síntese:
a) é arguido no inquérito n.º …/23.0T9AGH, que corre termos no DIAP junto do Tribunal de Angra do Heroísmo, na sequência de queixa-crime apresentada, em nome próprio, por EE…;
b) na referida queixa, o réu EE … alega que um determinado toiro de raça brava que diz ter o número 88 e de que teria, segundo ele, sido apropriado sémen por um co-arguido nesse processo crime e aqui testemunha (Dr. J) afinal pertenceria e pertence à aqui ré DD …;
c) na referida queixa é, ainda, alegado que o referido sémen colhido teve como destino inseminação de vacas reprodutoras, e que a aqui testemunha J seria o responsável por tais inseminações, levantando a suspeita de que o mesmo pudesse ter cometido algum ilícito, mais concretamente, apropriando-se indevidamente de algum desse sémen, e levantando a suspeita de que algum desse sémen pudesse ter sido aplicado em alguma inseminação/inseminações de vacas da exploração do autor, eventualmente com o conhecimento, assentimento, conivência ou a pedido do aqui autor;
d) por força de tal queixa e do inquérito aberto na sequência do mesmo, acabou aqui autor por ser chamado ao referido inquérito crime onde foi constituído arguido;
e) num meio pequeno como este de uma ilha com 55 000 habitantes, já é voz corrente que o autor terá problemas com a justiça o que, naturalmente, com esta vaguidade tem prejudicado o bom nome do aqui autor;
f) apesar de o queixoso, aqui réu EE …, afirmar que o dito toiro ser pertencente da ré III DD …, com o número de exploração junto dos Serviços Agrários ….2 e nos termos da referida queixa até fazer inculcar essa impressão, a verdade é que a referida ré DD … não apresentou qualquer queixa nos autos, para além de não ter sido apresentada prova idónea da propriedade do referido toiro 88;
g) perante tal incerteza e cinzentismo nos autos de processo crime, o aqui autor, como forma legal e legítima de esclarecer estas questões fez notificar judicialmente por notificação judicial avulsa, a ré DD …, à qual esta respondeu de modo incompleto e obscuro, não tocando na questão da propriedade, nem do referido toiro 88, nem do sémen recolhido referido na queixa que teria alegadamente desaparecido, segundo o queixoso;
h) embora a queixa tivesse sido apresentada pelo réu EE …, em nome próprio, embora referindo de modo não muito seguro, que o sémen alegadamente desaparecido seria da ré DD …, indicando inclusive o número de exploração da mesma, e apesar de na referida queixa referir que tal sémen alegadamente desaparecido seria da Ganadaria …, sem identificar em concreto o(s) concreto(s) proprietário(s) de tal dito sémen, a verdade é que no n.º 26 da queixa, refere que o subcentro de colheita de sémen encontrava-se no nome da exploração de BB …, mas quem o geria e guardava a documentação e o stock de sémen era o Dr. J;
i) segundo apurou o autor, efetivamente tal sémen nomeadamente as amostras, doses ou palhinhas como se diz na gíria, de sémen recolhido para inseminação artificial não só estava em tal Centro de Armazenagem de sémen privado em nome da referida BB …, como efetivamente à mesma pertenciam e sempre pertenceram em exclusivo;
j) saber-se e determinar-se judicialmente a quem efetivamente pertenceriam tais doses de sémen, incluindo as que alegadamente teriam desaparecido desde logo sempre será relevante pois desde logo permitirá, a provar-se a propriedade de tais bens alegadamente desaparecidos, extinguir, como questão prévia, o processo de inquérito por falta de legitimidade do queixoso;
k) tal questão não é irrelevante para o autor, antes pelo contrário, pois é arguido em processo crime e tem direito a que, em sua defesa, esta questão seja esclarecida, pelo que dúvidas não subsistem de que o autor tem legitimidade ativa para a presente ação e interesse em agir.
Os RR contestaram :
-excepcionando a ineptidão da petição inicial;
- impugnando a factualidade alegada.
O A. respondeu à contestação, pronunciou-se quanto aos documentos juntos pelos RR. e deduziu:
- INTERVENÇÃO PROVOCADA DE BB … E DE FF… –
Os RR pronunciaram-se pelo indeferimento da intervenção.
Tendo falecida BB …., veio o A. requerer a intervenção dos respectivos herdeiros.
Foi proferida decisão final com o seguinte dispositivo:
“ Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos art.os 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º, do Código de Processo Civil, julga-se verificada a exceção dilatória insuprível de falta de interesse em agir e, em conformidade, absolvem-se os réus da instância, nos termos do disposto no art. 278.º, n.º 1, al. e), do Código de Processo Civil.”
Nessa mesma decisão fixou-se à causa o valor de €5.000,01.
Desta decisão interpõe o A. recurso, alegando, com as seguintes conclusões:
a) O interesse prosseguido pelo autor com a configuração da ação com a contestação dos réus que vieram adensar as dificuldades por ele criadas da descoberta da verdade material, nomeadamente sem o réu EE … se arrogar proprietário do sémen em discussão, reforçam a necessidade da presente ação.
b) É verdade que não se trata de um caso de vida ou de morte mas na ponderação entre proteger menos o cidadão e o prosseguimento dos autos, afigura-se que a presente açao se afigura como moderadamente necessária, sendo inteiramente razoável e plenamente justificada tendo em vista a mais ampla defesa dos direitos do cidadão.
c) o autor tem interesse em agir pelo que devem prosseguir os autos;
d) o Tribunal a quo ao absolver os réus da instância, violou o disposto nos art.os 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º, do Código de Processo Civil, no art. 278.º, n.º 1, al. e), e ainda artigo 2º,nº2 do Código de Processo Civil e artigo 20, nº1 da CRP.
Termos em que deve o presente recurso ser admitido, julgado procedente por provado e por via dele, deverá ser revogada a sentença da primeira instância que absolveu os réus da instância, ordenando-se ao Tribunal a quo que prossigam os autos para realização de audiência prévia seguindo-se os demais trâmites até final.
Contra-alegaram os RR com as seguintes conclusões:
A) Salvo o devido respeito, o presente recurso não tem qualquer fundamento.
B) Não merece qualquer reparo a decisão recorrida, nem a fundamentação que a sustenta.
C) Não se vislumbrando, assim, qualquer ilegalidade, deficiência, omissão ou erro na decisão recorrida, que aplicou adequadamente o Direito.
D) A verificação da exceção dilatória insuprível de falta de interesse em agir corresponde à justa aplicação da lei ao presente caso.
E) Não pode confundir-se direito de acesso à Justiça com abuso no acesso à Justiça.
F) Ao contrário do que sustenta o Recorrente, “interesse em agir” não corresponde ao interesse pessoal ou vontade pessoal da parte, mas ao interesse processual jurídico, nos termos exemplarmente sustentados na sentença recorrida.
G) Aliás, é esse o entendimento consensual da jurisprudência da qual se cita, meramente a titulo de exemplo e entre muitos outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 01.06.2023, relativo ao Processo 3531/21.5T8FNC.L1-2, ao concluir que “I) na medida em que o interesse processual delimita o perímetro do correto exercício do direito de ação, ele deverá ser analisado à luz dos princípios constitucionais do acesso ao Direito e à Justiça, de modo a que não vede o acesso necessário ou útil, nem permita o acesso inútil. (...) IV) A questão carecida de tutela judicial terá de ser séria ou justificada e atual, devendo o interesse em agir ser aferido, objetivamente, pela posição alegada pelo autor que tem de demonstrar a necessidade do recurso a juízo como forma de defender um seu direito”.
H) O presente processo constitui um uso abusivo da Justiça para fins que não aqueles que constam do pedido.
I) Na verdade, para além da evidente falta de interesse em agir, a causa de pedir demonstra-se ininteligível, o que constitui nulidade por ineptidão da petição inicial (p.i.), nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 186º do CPC.
J) O A., ora Recorrente, tenta, através do processo civil, defender-se de um processo criminal a decorrer os seus trâmites, normalmente, no DIAP de Angra do Heroísmo, Inquérito …/23.0T9AGH, conforme assumido pelo próprio.
K) Confundindo os direitos de defesa garantidos pela Constituição da República Portuguesa e legislação criminal com direitos civis que abusivamente arroga.
L) O A., ora Recorrente, tem ao seu dispor todos meios de defesa que lhe disponibiliza a lei penal portuguesa.
M) Porém, utiliza o processo civil para por em causa a queixa criminal, para levantar questões sobre a legalidade da obtenção da prova em processo criminal, ou para defender a inocência do próprio e da testemunha J em processo criminal.
N) O Recorrente, no fundo, insiste em tentar lançar a confusão processual com insinuações torpes e caluniosas e um arrazoado absolutamente irrelevante para o que aparenta ser o pedido que deduz.
O) A tudo isso acresce a evidente má-fé processual do Recorrente, ao concluir de forma a violentar a verdade.
P) Por exemplo quando alega “É que, na referida contestação, os réus acabam por confessar que o sémen do toiro 88 afinal era pertença̧ da ré BB …”. Quando, na verdade, os RR. não confessaram, de nenhum modo, “que o sémen do toiro 88 afinal era pertença da ré BB …”.
Q) Antes pelo contrário, os RR. demonstraram, de forma clara e sustentada na lei, que não há nenhuma impossibilidade legal, nem técnica, do sémen do toiro com o número de costado 88, com o número de identificação de SIA PT …, nascido a 11/06/2008, possa estar no sub-centro de sémen da R (I), nem tal situação implica com a propriedade do sémen que continua a pertencer ao proprietário do animal do qual foi retirado o sémen.
R) É revelador dos seus reais propósitos e da própria ineptidão da p.i., que o A., ora Recorrente, na sequência de um processo criminal a decorrer, em que é arguido, alegue, nos presentes autos, que se tem inteirado de factos – sem os alegar, sequer - que “denunciam (...), por parte dos réus, toda uma opacidade e pulverização de factos pelos vários atores desse emaranhado de relações comerciais que, esclarecidos, contribuirão para o esclarecimento da verdade desde logo no que toca ao aqui autor, mas também esclarecendo e permitindo, se for o caso, as investigações que se afigurem necessárias em termos de interesse público não só relativamente a eventual recebimento indevido por algum ou alguns dos réus de verbas do erário público como, eventualmente, se de tal houver indícios, investigando-se se for o caso e se tal se justificar, da eventual prática de fraude, falsificação de documentos e ou eventual prática de falsas declarações para obtenção de subsídios”.
S) A confusão do A., ora Recorrente, chega, assim, a este ponto inusitado de pretender que, no âmbito do processo civil, se faça investigação criminal...
T) Culminando assunção da manifesta falta de interesse em agir e da ineptidão da p.i. com a tentativa de fundamentar um processo civil com a evocação do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa que se refere, exata e expressamente, às garantias do processo criminal.
U) De resto, é o próprio A. , ora Recorrente, a assumir, em 24 da p.i., que o verdadeiro propósito da ação civil é “extinguir” “o processo de inquérito por falta de legitimidade do queixoso”.
V) Por outro lado, confunde inexplicavelmente as posições processuais das partes e das testemunhas, ficando sem se perceber se o real A. – aquele que teria o interesse legítimo em defender um direito – é aquele que formalmente é apresentado na p.i. ou a testemunha J. (cfr., entre outros, 4, 21, 29, 61, 62 da p.i.).
W) Acresce a evidência da falta de interesse em agir e da ineptidão da p.i. com a confusa alegação de conclusões, manifestamente, irrelevantes, excrescentes ou inúteis, para o pedido apresentado relativamente à propriedade do sémen do toiro 88.
X) Com efeito, não consubstanciam qualquer interesse processual em agir, nem são inteligíveis, em face do pedido deduzido, as alegações relativas à atividade dos RR., ora Recorridos, aos seus rendimentos, à aplicação de rendimentos em despesas pessoais ou familiares, pretensas responsabilidades criminais, número de animais das explorações agro-pecuárias, data da declaração de início de atividade “nas Finanças” (sic), declarações fiscais, registo perante os “Serviços do Desenvolvimento e Agro-pecuários da Secretaria Regional da Agricultura dos Açores” (sic), nascimento, morte, compra e venda de animais, como sucede, nomeadamente, em 31, 32, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42 (duas vezes), 43, 44, 45, 66, 67, 68, 69 da p.i..
Y) Culmina a demonstração da falta de interesse processual em agir e falta de fundamento da ação e da ineptidão da p.i., com a assunção de inexistência de qualquer nexo entre as conclusões alegadas e o pedido e a falta de qualquer prova, com a pretensão da inversão do ónus da prova, como se tal não dependesse da lei mas da vontade e da conveniência do A.
Z) Decidiu, assim, bem o Tribunal a quo ao julgar verificada a exceção dilatória insuprível de falta de interesse em agir e, em conformidade, absolver os RR. da instância. Em estrito e rigoroso cumprimento da lei, no caso o disposto nos art.ºs 576º, nº 2, 577º e 578º, do Código de Processo Civil, no art. 278º, nº 1, al. e), e ainda artigo 2º,nº2 do Código de Processo Civil e artigo 20, nº1 da CRP.
Nada obsta ao conhecimento do recurso.
A questão a decidir é apenas a do acerto (ou não) da decisão que julgou verificada a falta de interesse em agir.
Na decisão recorrida discorreu-se assim:
«Entre o leque de pressupostos processuais no ordenamento jurídico nacional conta-se o designado interesse processual, o qual, apesar de ser aceite como tal, não dispõe de menção legal expressa.
Parafraseando as palavras de Antunes Varela, Sampaio e Nora e Miguel Bezerra, «o interesse processual consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação», acrescentando, ainda, os mesmos autores que, no que concerne a tal pressuposto processual, o que está em causa é a «necessidade justificada, razoável, fundada de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação» (cfr. Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., Revista e Actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, p. 179 e ss).
Subjacente a tal princípio está a própria essência do processo civil. Na base da realidade processual civil está a necessidade de dirimir um conflito entre interesses opostos, pelo que, «quando o autor não configura, através dos factos que articula, a existência de um conflito de interesses com o réu, não existirá da sua parte interesse em agir» (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19/01/2017, proc. n.º 3583/16.0T8SNT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt).
Com feito, o interesse em agir constitui um pressuposto processual autónomo e consiste na necessidade ou utilidade da demanda, considerado o sistema jurídico aplicável às pretensões, tal como a ação é configurada pelo autor.
O interesse em agir visa impedir a prossecução de ações inúteis, pelo que a inexistência de interesse em agir constituí uma exceção dilatória inominada, que obsta ao conhecimento de mérito e impõe a absolvição do demandado da instância.
Ora, «o interesse em agir assume-se como uma relação entre necessidade e adequação.
De necessidade porque, para a solução do conflito é imprescindível a atuação jurisdicional, e adequação porquanto o caminho a seguir deve corrigir a lesão perpetrada ao autor tal como ele a configura» (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/12/2018, proc. n.º 742/16.9T8PFR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Neste sentido, o recurso à instância jurisdicional deve ser tido como último recurso, como mecanismo inevitável perante a impossibilidade de resolução do caso concreto por meio de instrumentos de natureza extrajudicial.
Nas palavras de J. Remédio Marques, «a exigência da verificação do interesse processual contribui para retirar dos tribunais os litígios cuja resolução por via judicial não é indispensável, nem necessária, e serve de freio, pois previne a dedução precipitada ou não refletida de ações» (cfr. Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª Ed., 2009, p. 394, apud Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19/01/2017, proc. n.º 3583/16.0T8SNT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt).
Com efeito, a necessidade de tutela jurisdicional é aferida objetivamente perante a situação subjetiva alegada pelo autor, ou seja, o autor tem interesse processual se, da situação descrita, resulta uma necessidade de tutela judicial para realizar ou impor o seu direito.
O acesso à justiça constitui uma garantia constitucional dos cidadãos, consagrada no art. 20.º, da Constituição da República Portuguesa, com o seu consequente reflexo a nível processual, consagrado no art. 2.º, do Código de Processo Civil.
Mas, uma coisa é os cidadãos poderem recorrer aos Tribunais, outra coisa será a apreciação da pretensão formulada, por estes órgãos.
Aquele direito geral de acesso à justiça e aos Tribunais, por si só, não constitui qualquer aferição prévia da admissibilidade do pedido formulado, mas antes a consagração de um direito fundamental qual é a da liberdade concedida aos interessados de poderem recorrer a juízo e de obterem uma decisão sobre a questão suscitada.
Tal direito de aceder aos órgãos competentes, não se confunde com a tutela jurisdicional da pretensão, já que esta tutela pressupõe uma previsão legal que confira ao interessado um direito subjetivo, sendo esta a dialética entre direito e correspetivo dever, e uma vez violado aquele, por falta de cumprimento deste, poderá ser pedida e obtida do órgão judicial competente uma decisão a recolher o direito e/ou a obrigar à sua realização coerciva.
No caso em apreço, o autor peticiona que se declare que “todo o sémen a que se refere o réu IV, EE …, na queixa crime supra referida no processo de inquérito …/23.0T9AGH pertencia, em exclusivo, quer à data de 2018, quer antes quer depois, à R.I BB …, concessionária do Centro de Armazenagem de sémen bovino de natureza privada de acesso particular referido e destinando-se tal sémen, que por ela fora adquirido, em exclusivo à sua exploração agro-pecuária”, condenando-se todos os réus em tal reconhecimento.
Porém, de uma leitura atenta da petição inicial resulta, claramente, que o que o autor pretende é utilizar a presenta ação para demostrar que o touro de raça brava com o número 88 (e, do qual, alegadamente, terá sido apropriado sémen) não é propriedade do réu EE …, o qual apresentou uma queixa, em nome próprio, que deu origem ao inquérito n.º …/23.0T9AGH, no âmbito do qual o autor foi constituído arguido, por forma a extinguir o referido processo crime, por falta de legitimidade do queixoso.
Neste sentido, é claro que o autor lança mão do presente processo para obter um meio de prova através da sentença a proferir.
Ora, as ações cíveis não se destinam a facultar às partes a obtenção de meios de prova, destinam-se a efetivar direitos que se encontram indefinidos, ameaçados ou violados.
E no caso sub judice, o autor não invoca qualquer direito próprio que pretenda ver judicialmente reconhecido. O que o autor pretende é o reconhecimento de um direito de um terceiro (da ré BB …), pelo que não tem qualquer interesse processual cível.
Por outro lado, o autor tem ao seu dispor outros mecanismos que lhe permitem extinguir o processo crime n.º 77/23.0T9AGH, por falta de legitimidade do queixoso, o aqui réu EE …, invocando e demonstrando que este não é o titular do direito de queixa.
Com efeito, na qualidade de arguido, o autor tem o direito de intervir no inquérito, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias (cfr. art. 61.º, n.º 1, al. g), do Código de Processo Penal).
Se for deduzida acusação contra o aqui autor, no âmbito do processo crime supra referido, este tem a possibilidade de requerer a abertura de instrução (cfr. art. 287.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal), podendo intervir na instrução, requerendo os atos de instrução que pretende que o juiz leve a cabo, indicando os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito, bem como os factos que, através de uns e de outros, pretende provar (cfr. art. Os 61.º, n.º 1, al. g) 287.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal).
E se for proferido despacho de pronúncia, o aqui autor, no âmbito do processo crime supra referido, tem, ainda, a possibilidade de, na fase de julgamento, apresentar contestação, invocando os factos que lhe aprouver, bem como requerer a produção das provas que entender adequadas (cfr. 311.º-B, do Código de Processo Penal).»
Manifestamos, desde, já o nosso acordo com a decisão proferida.
Faremos apenas acrescentos.
Sobre o que se deve entender por interesse em agir:
“Na medida em que toda a ação judicial se estrutura na base de um conflito de interesses (art. 3.º do Código de Processo Civil), só pode despoletar a intervenção dos tribunais judiciais quem nisso dispuser de um interesse sério e objetivo, ou seja, quem coloque sob a cognição do juiz um verdadeiro litígio carecido de ser dirimido por sentença com força de caso julgado3. Numa reflexão preliminar, é este o significado que detém a expressão interesse em agir ou interesse processual – expressemos que doravante iremos usar em sinonímia - e com o qual ele é habitualmente tomado na doutrina e na jurisprudência: “consiste na indispensabilidade de o autor recorrer a juízo para a satisfação da sua pretensão”; “consiste na necessidade de usar processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”; “consiste no direito do demandante estar necessitado de tutela judicial”; “deve traduzir-se numa necessidade justificada, razoável e fundada de recurso à ação judicial”Daniel Bessa Melo, revista Julgar on-line, Dezembro de 2021.
E mais adiante “ O entendimento dominante é, como dito, o de que o interesse na demanda é um pressuposto processual, resultando a carência de tutela judicial na inadmissibilidade da ação deduzida, devendo o juiz proferir decisão de absolvição do réu da instância. Por semelhantes caminhos se trilha na Alemanha, sob o epíteto de “interesse na proteção jurídica”, e na Itália, onde o interesse em agir vem expressamente previsto no art. 100.º do Codice di Procedura Civile21, enquanto pressuposto processual relativo à necessidade de tutela jurisdicional (“bisogno di tutela giurisdizionale, quale parametro per stabilire il grado di necessità e l’idoneità técnica dell’intervento del giudice”).
É certo que um perscrutar pela letra do Código de Processo Civil – e, em especial, pelo elenco das exceções dilatórias - não permite descortinar qualquer norma que preveja que a admissibilidade de uma ação fica condicionado necessidade de o autor recorrer à mesma. O interesse processual (rectius, a falta dele) não consta do rol das exceções dilatórias (art. 577.º) nem, a despeito da sua configuração como pressuposto processual relativo às partes, é expressamente referido no Título III do CPC. No entanto, é apodítico que o catálogo do art. 577.º é meramente exemplificativo (“entre outras”), não contendo uma enumeração exaustiva das condições de admissibilidade da instância cível24. Por outro lado, a proibição de ações inúteis aparenta ser um afloramento – uma concretização a fortiori, se se quiser – da regra da proibição de atos inúteis (art. 130.º): se se proíbe a prática de atos inúteis, por maioria de razão se haverá de proibir ações que, mesmo julgadas procedentes, não são aptas a despoletar qualquer vantagem objetivamente apreciável para o seu autor.”
Assentamos aqui que a falta de interesse em agir tem a natureza de um pressuposto processual e a sua verificação conduz à absolvição da instância.
No confronto com a legitimidade processual diremos que: “a legitimidade exprime a relação entre a parte no processo e o objecto deste, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o; o interesse em agir traduz-se na necessidade objectivamente justificada de recorrer à acção judicial” Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24.10.2002, proc. n.º 0231246 (Relator GONÇALO SILVANO).
No acórdão do STJ de 27/10/2022, proc 82/19.1T8STB.E.1S1 distingue-se “I - A legitimidade e o interesse em agir, sendo ambos pressupostos processuais, embora o último não previsto na lei, mas reconhecido na doutrina e jurisprudência, não se confundem: ser parte legítima significa que se é titular da relação jurídica, tal como o autor a delineou; já no interesse em agir está em causa a necessidade de recurso aos tribunais para tutela de um direito.”
No acórdão do STJ de 9/5/2018 proc 673/13.4TTLSB.L1.S1 pode ler-se:
« Nas palavras de Antunes Varela, o interesse processual consiste “[n]a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a ação.
(…)
Relativamente ao Autor, tem-se entendido que a necessidade de correr às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem de ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou o puro interesse subjetivo (motivo, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial.
O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação. ”
Para se justificar o recurso à tutela jurisdicional tem que se verificar uma situação objetiva de carência, em que o titular de uma relação material controvertida se encontra.
Ora, para o demandante, o interesse processual consiste na necessidade do recurso aos tribunais para, através da instauração da respetiva ação, obter a tutela judicial de uma situação subjetiva.
Por fim, interesse processual e legitimidade não se confundem, ou seja, são diferentes porque o autor pode ser titular da relação material controvertida, tendo, por isso, um interesse potencial em demandar, e não ter, face às circunstâncias concretas da sua situação, necessidade efetiva de recorrer à tutela jurisdicional.
Ou seja, uma coisa é ser titular da relação material litigada, base da legitimidade das partes; outra coisa, substancialmente distinta, é a necessidade de lançar mão da demanda, em que consiste o interesse em agir.
Apesar dessa diversidade, têm em comum a necessidade de deverem ser aferidos objetivamente pela posição alegada pelo autor.»
Efectivamente, analisada a petição, não se vislumbra que direito o A pretende ver tutelado. O que o A pede é o reconhecimento da propriedade do sémen reportado a uma das R. e não ao A.
Atendendo aos considerandos que deixaram feitos somos a concluir que nem o A tem legitimidade para acção, pois não cabe ao A defender os direitos da R., mas apenas os seus, nem tem interesse em agir através duma acção civil, por inexistir um direito seu que se mostre digno de tutela.
O que o A pretende, como se salienta na decisão recorrida, é obter um meio de prova para ser usado no processo crime. Ora, as acções cíveis não se destinam a servir de meio probatório, mas sim a definir direitos que se mostrem controversos.
O que o A pretende ver esclarecido poderá fazê-lo em sede de processo crime, onde dispõe, desde logo da fase de instrução para carrear para o processo as provas que entender relevantes.
Neste quadro é de confirmar a decisão.
Nestes termos acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.