INSOLVÊNCIA
INDEFERIMENTO LIMINAR
ÓNUS DE ALEGAÇÃO DE FACTOS ESSENCIAIS
EXCEÇÃO DE CASO JULGADO
SITUAÇÃO SUBSTANCIALMENTE IDÊNTICA A ANTERIOR
Sumário


1. A falta absoluta de factos provados sobre os sujeitos, o objeto do processo e as decisões de dois processos de insolvência e a falta de possibilidade de suprimento nos termos do art.663º/2 do CPC, em referência ao art.607º/4-2ª parte do CPC, inviabiliza a apreciação jurídica do erro de direito da decisão recorrida que conheceu uma exceção de caso julgado sem esses factos e invalida a referida decisão.
2. A invalidade da decisão recorrida referida em 1 supra não exige a descida à 1ª instância para o suprimento da falta de factos provados, com elementos novos a recolher, nos termos do art.662º/2-c) do CPC, quando o estado do processo não permite o decretamento da insolvência e exige o indeferimento do requerimento inicial por falta de alegação e de cumprimento pela requerente de requisitos legais dos arts.23º/1 e 24º/1-a) do CIRE e por falta de satisfação de despacho de aperfeiçoamento, nos termos do art.27º/1-a) e b) do CPC.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães
           
I- Relatório:

No processo de insolvência, requerido por AA a 19.02.2024:
1. A requerente, no seu requerimento inicial:
1.1. Apresentou-se à insolvência e pediu a exoneração do passivo restante, alegando:
«1. A Requerente pretende apresentar-se à insolvência porquanto se encontra numa situação económica que não lhe permite cumprir as suas obrigações relativas a compromissos assumidos.
2. Nasceu na freguesia ... (...), concelho ..., em ../../1977, cfr. Doc. 1 em anexo, que aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, bem como os demais que se anexam.
3. A requerente é divorciada com um filho menor a seu cargo, BB, nascido em ../../2007, cfr. Doc. 2 em anexo.
4. A Requerente aufere, mensalmente, a retribuição equivalente ao salário mínimo nacional, enquanto funcionária pública junto do Município ..., exercendo as funções de Assistente Operacional, cfr. Doc. 3 em anexo.
5. A requerente não tem capacidade, por meios próprios, de cumprir pontualmente as suas obrigações.
6. Sucede que, a requerente, como se demonstrará, não obstante todos os esforços desenvolvidos, encontra-se em situação económica difícil.
7. Estando com sérias dificuldades em cumprir pontualmente algumas das suas obrigações vencidas.
8. A requerente, na sequência da união com o seu ex-marido, entrou numa espiral de endividamento para com entidades bancárias e financeiras.
9. O que conduziu à sua declaração de insolvência no âmbito do processo n.º 2040/13...., que correu termos no Juízo Local Cível de ..., Juiz ....
10. No âmbito do qual foi proferido despacho de recusa de exoneração do passivo restante.
11. Ao longo dos anos foi-lhe possível liquidar grande parte do passivo mas para tanto, contraiu outras obrigações que se vê impossibilitada de cumprir;
12. Contudo, entretanto, divorciou-se, ficando com o filho menor exclusivamente a seu cargo, tendo o progenitor abandonado ambos sem auxiliar no cumprimento das obrigações assumidas.
13. Actualmente os valores em dívida ascendem a 28345,87€, não tendo capacidade para continuar a liquidar os valores que lhe são imputados.
14. De salientar que, a dimensão dos problemas financeiros da requerente se agrava de dia para dia, e encontra-se com francas dificuldades em cumprir pontualmente as suas obrigações, estando iminente a propositura de ações judiciais, na medida em que foi já interpelada extrajudicialmente para proceder ao pagamento de quantias que efetivamente não consegue, de uma forma imediata, liquidar.
15. Não possuindo qualquer património, economias ou rendimentos suficientes para fazer face ao enorme valor em dívida.
16. Actualmente reside em casa emprestada com o filho;
17. Suportando as despesas inerentes ao consumo de água, luz, gás, telecomunicações e alimentação.
18. Ora, em face do avolumar de dívidas com o vencimento de juros de mora e despesas judiciais, o incumprimento alastrar-se-á a todos os seus credores.
19. A requerente não possui qualquer imóvel ou móvel sujeito a registo;
20. Ou, ainda, qualquer depósito ou aplicação bancária.
21. Sobrevivendo, muitas vezes, com ajuda de terceiros;
22. Estando, assumidamente, em situação de insolvência, nos termos estabelecidos pelo CIRE.
23. Devendo, a mesma, ser declarada insolvente.
Da exoneração do Passivo restante
24. A Requerente pretende a exoneração do passivo restantes, nos termos do art.º 235.º e seguintes do CIRE;
25. Encontra-se em situação económica difícil em virtude dos parcos rendimentos auferidos não tendo perspectivas que a sua situação melhore;
26. Desde já declara que se obriga a observar todas as condições que a exoneração do passivo restante envolve e as quais estão estabelecidas nos artigos 237a e ss. do CIRE.
27. O comportamento da Requerente sempre se pautou pela licitude, honestidade e boa-fé, quer no que toca à sua situação económica, quer quanto aos devedores associados a todo o processo de insolvência.
28. A ora requerente tem legitimidade e está em tempo para requerer a exoneração do seu passivo restante.
29. Nunca tendo beneficiado da concessão da exoneração do passivo restante.
30. Nem foi condenado pela prática de qualquer ilícito criminal, cfr. Doc. 4 em anexo.
31. O CIRE conjuga o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem das dívidas.
32. Configurando-se uma nova oportunidade de reabilitação económica para os Requerentes, um “fresh start”, como refere o douto Acórdão da Relação do Porto n.º 0556158 de 09-01-2006.
33. Face ao Exposto, requer a V.ª Ex.a se digne conceder a exoneração do seu passivo restante, nos termos dos artigos 236.º e ss. do CIRE, possibilitando assim, a sua reintegração plena na vida económica e reabilitação financeira.
34. Mais requer a V. Ex.a se digne excluir o seu sustento, nos termos do art. 239.º n.º 3 al. b) e i) do CIRE, do rendimento disponível cuja cessão deverá ser feita ao fiduciário durante 3 anos posteriores ao encerramento do processo.
35. Devendo ter-se em consideração que a Requerente terá de encontrar um imóvel para arrendar, aos preços extremamente elevados no actual mercado, para além de todas as despesas decorrentes do dia a dia de qualquer cidadão.
36. A requerente encontra-se isenta de pagamento prévio de taxa de justiça nos termos do disposto no artigo 15.º, número 1, alínea e) da Lei 7/2012 de 13 de Fevereiro.».

1.2. Apresentou documentos, entre os quais, a seguinte lista de credores (após a qual indicou os 5 maiores):
«1. Banco 1..., S.A., com sede na Rua ..., ..., ..., ... ..., portadora do NIPC ...27, no montante de 6057,32 €, comum;
2. Banco 2... Plc, com sede na ... nº 37 ... ..., portadora do NIPC ...74, no montante de 3416,33 €, comum
3. Banco 3... S.A., com sede na Rua ... ... ..., portadora do NIPC ...87, no montante de 3416,33 €, comum;
4. Banco 4..., com o NIPC ...95 e sede na ..., R. ..., ... ..., no montante de 13498,00 €, comum;
5. Banco 5..., Instituição Financeira de Crédito S.A, com sede na Zona Industrial ..., .... 2, ..., ... ..., com o NIPC ...32, no montante de 2400,00€, comum;
6. Banco 6... denominação de Banco 6..., S.A., como sede na PRAÇA ..., ... ..., portadora do NIPC ...82, no montante de 1995,93 €, comum;».
2. A 21.02.2024 foi proferido o seguinte despacho:
« Apresente a requerente uma lista dos créditos que motivam o presente processo de insolvência, com data de vencimento dos mesmos, por forma a avaliar do eventual caso julgado, conducente a indeferimento liminar do requerimento de insolvência (art.º 27,1,a) CIRE). ».
3. A 29.02.2024 a insolvente:
a) Informou não ter logrado elementos para satisfazer o despacho (por mudança de casa, desorganização de documentos e por a consulta ao centro de responsabilidades do Banco de Portugal - que deveria dar resposta à data de vencimentos dos créditos e respectivos prazos – encontra-se a “zero”, por razões que desconhece) mas juntar a listagem dos credores e respetivos créditos anexa ao seu processo de insolvência pessoal de 2013, que correu termos no Juízo Local Cível de ..., Juiz ..., sob o n.º de processo 2040/13...., por respeito ao princípio da colaboração, considerando ser patente a diferença na identidade dos mesmos e dos montantes devidos.
b) Juntou, sob o documento nº2, a lista referida em a):
[Imagem]
[Imagem]
4. A 07.03.2023 foi proferido despacho liminar de indeferimento do requerimento inicial, com os seguintes fundamentos (.....)
(.....)
Nestas circunstâncias, poder-se-á concluir que a pretensão de ver declarada a insolvência nos presentes autos será idêntica à pretensão já obtida na acção anterior se a realidade a que se reporta – balizada pelo activo e pelo passivo existente e pela impossibilidade de esse activo assegurar a satisfação do passivo – for a mesma, ou seja, se o passivo em questão for o mesmo que já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro activo tiver acrescido àquele que existia naquele momento.”
Remetemo-nos por isso para a apreciação da causa de pedir, reiterando que a causa de pedir do pedido de declaração de insolvência corresponderá ao concreto passivo e activo que exista em determinado momento temporal e à impossibilidade de o activo do devedor lhe permitir cumprir o passivo que nesse momento se encontra vencido.
No caso o passivo elencado já existia, no que respeita a 3 dos 5 créditos elencados, (o que resulta em 22.971,65 euros de créditos já existentes, contra 5142,23 euros de créditos novos), e quanto ao ativo este continua a situar-se no rendimento auferido pela devedora no exercício da mesma atividade.
Ou seja: a realidade a apreciar é substancialmente a mesma que foi apreciada naquela outra ação, não sendo também obstáculo a essa conclusão a existência de dois novos credores (também face ao respetivo valor) que por isso não sustentam o pedido –cfr. o apreciado no Ac. de 26/10/2021.
Em conclusão, a pretensão formulada nos autos é idêntica à pretensão que já foi obtida na ação anterior por via da declaração de insolvência, uma vez que a situação de insolvência que é invocada nos presentes autos é a mesma que já se invocou e apreciou no primeiro processo, com as devidas consequências, reconduzindo-se à impossibilidade de cumprir obrigações que já existiam naquela data, e essa impossibilidade continua a ser a mesma.
Verifica-se pois uma inutilidade de nova apreciação que está na génese da figura do caso julgado.
Com isto não se quer dizer que uma pessoa declarada insolvente não possa voltar a ser declarada insolvente. Porém tal dependerá da verificação de uma nova e diferente realidade fáctica que conduza à apreciação de uma distinta situação de insolvência, reportada a momento temporal distinto e envolvendo passivo ou ativo diferentes e não coincidentes com os que existiam à data da anterior declaração de insolvência.
No caso o que sucedeu foi que o anterior processo de insolvência não “resolveu” a questão do passivo existente, apenas o diminuiu; mas os credores que não viram as suas dívidas satisfeitas, e não tendo a devedora beneficiado do perdão das dívidas face à cessação (antecipada) da exoneração do passivo restante que num momento inicial lhe foi concedida, terminado o primeiro processo, aqueles credores têm de retomar os meios que visam a satisfação dos créditos

A verificação da exceção de caso julgado tem por efeito o indeferimento liminar do requerimento de insolvência (artº. 27º, nº. 1, a), do CIRE), o que pelo presente despacho determino.
Custas a cargo da recorrida (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).».
5. A requerente interpôs recurso do despacho de I-4 supra, no qual apresentou as seguintes conclusões:
«I. Vem o presente recurso ser interposto da sentença proferido pelo Digno Tribunal a quo, que decidiu considerar verificada a excepção de caso julgado, com o consequente indeferimento liminar da petição inicial.
II. Há pois caso julgado quando se repete uma causa, sendo que há a “repetição da causa” quando há identidade de sujeitos, identidade do pedido e também da causa de pedir (cfr. art.º 581.º/1 do NCPC).
III. Em sede de primeira instância, o Tribunal entendeu que “(...) a pretensão formulada nos autos é idêntica à pretensão que já foi obtida na ação anterior por via da declaração de insolvência, uma vez que a situação de insolvência que é invocada nos presentes autos é a mesma que já se invocou e apreciou no primeiro processo, com as devidas consequências, reconduzindo se à impossibilidade de cumprir obrigações que já existiam naquela data, e essa impossibilidade continua a ser a mesma”(sublinhado nosso).
IV. Assentou tal conclusão no facto de o passivo ora elencado somente tem 2 novos credores – com novo crédito superior a cinco mil euros – mantendo-se 3 credores pré-existentes – com crédito próximo dos vinte e três mil euros.
V. Pugnando que a realidade a apreciar é substancialmente a mesma que foi apreciada na acção anterior.
VI. Porém, salvo melhor opinião, que se respeita mas não concebe, andou mal o Tribunal “a quo” na interpretação e restrição realizada aos artigos 580 e 581 do C.P.C.
VII. Ora, é o próprio Tribunal “a quo” que reconhece que os créditos e credores não são os mesmos;
VIII. O Tribunal “a quo” não pode negar que o passivo no primeiro processo de insolvência – datado de 2012 – excedia os cinquenta mil euros e, actualmente, o mesmo é inferior a vinte e nove mil euros, sendo mais de 20% novos créditos/débitos.
IX. Adicionalmente, a situação pessoal da insolvente não é a mesma, encontrando-se actualmente divorciada e só com recurso à sua retribuição, sem que o património (ou ausência do mesmo) do ex-cônjuge possa ser tido em consideração.
X. Em conclusão, ainda que não se possa falar em diferentes sujeitos processuais, sempre terá de se ater que as dívidas são diferentes e a realidade em causa no presente processo é totalmente nova e diferente daquela que ocorria no processo anterior.
XI. Existindo, tal como sumariado nos doutos acórdãos dos Tribunais da Relação de Coimbra, Lisboa e Guimarães supra referidos, não se verifica a excepção de caso julgado conquanto estamos presentes uma alteração significativa do passivo e na identidade dos credores.
XII. A sentença proferida pelo Tribunal “a quo” violou assim, o disposto nos art.º 580.º e 581.º do Código de Processo Civil.
XIII. Pelo que, reconhecendo-se que não se verifica a invocada excepção, deve ser revogada a decisão recorrida que indeferiu liminarmente a petição inicial, o que expressamente se requer, por outra conforme ao Direito. 
Mas V/ Excias. farão, como sempre, JUSTIÇA».
6. Foi admitido o recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo e foi fixado o valor da ação para efeitos de recurso em € 30 000, 01.
7. Subidos os autos a esta Relação de Guimarães, foi recebido o recurso nos termos admitidos na 1ª instância e colheram-se os vistos e realizou-se a conferência.
8. A 08.07.2024 proferiu-se o seguinte despacho de cumprimento de contraditório:
«A recorrente interpôs o presente recurso de apelação de despacho de indeferimento liminar por verificação de exceção de caso julgado (face ao decidido no anterior processo de insolvência, no qual foi também recusado à aqui requerente/aí insolvente a exoneração do passivo restante), considerando não estar verificada a referida exceção de caso julgado.
Todavia, ainda que não existam elementos para considerar verificada a exceção de caso julgado, prefigura-se que as faltas do requerimento inicial, não supridas pela requerente, podem determinar o indeferimento do requerimento inicial.
De facto, cabe ao requerente da insolvência alegar «os factos que integram os pressupostos da declaração requerida» (art.23º/1 do CIRE) e juntar relação de todos os credores, com indicação não apenas dos montantes dos créditos, mas também das «datas de vencimento, natureza e garantias de que beneficiem» (art.24º/1-a) do CIRE).
Por sua vez, a requerente: no seu requerimento inicial não alegou os factos integrativos da constituição e vencimento das dividas que fundamentam o seu pedido de decretamento da insolvência e de exoneração do passivo restante, nem juntou a lista de créditos com os requisitos enunciados; depois de ter sido convidada por despacho de 21.02.2024 a juntar a lista de créditos com datas de vencimento, com a cominação de indeferimento liminar, não supriu assim as faltas, nos termos do art.27º/1-b) do CIRE.
Este fundamento de indeferimento liminar é distinto daquele que foi discutido no recurso. Assim, impõe-se cumprir o contraditório.
Pelo exposto, convido a recorrente, no prazo de 10 dias, a cumprir o contraditório sobre a previsão de confirmação de indeferimento liminar do requerimento inicial, por causa distinta da constante do despacho recorrido.».
9. A 22.07.2024 a recorrente apresentou contraditório, no qual declarou:
(....)
7. Pelo que se requer a análise do recurso nos termos delimitados nas suas conclusões, não se verificando qualquer fundamento para o indeferimento liminar pela causa distinta apontada.».
10. Inscreveu-se novamente o recurso em tabela e realizou-se a conferência.

II. Questões a decidir:

(....)
Definem-se, como questões a decidir: se o despacho de indeferimento permite conhecer o erro de direito invocado de inexistência de caso julgado (por haver uma alteração do passivo, de credores e uma nova situação pessoal da insolvente face à da insolvência de 2012); em caso afirmativo, se existe erro de direito; e em caso negativo, qual o despacho a proferir.

III. Fundamentação:

1. Matéria de facto provada:
Encontram-se provados os atos processuais referidos em I supra, face à força probatória plena dos atos praticados no processo (art.371º do CC).

2. Apreciação do objeto do recurso:
A decisão recorrida indeferiu liminarmente o requerimento inicial de insolvência, nos termos do art.27º/1-a) do CIRE, por considerar verificada a exceção de caso julgado por a situação da presente ação de insolvência ser substancialmente a mesma que existia quando foi decretada a primeira insolvência da requerente no mesmo processo (face: aos três dos cinco créditos indicados já existirem no primeiro processo e o ativo insuficiente se limitar em ambos ao rendimento da devedora; à identidade da pretensão em ambas as ações), nos termos referidos em I-5 supra.
Importa reapreciar esta decisão, de acordo com os factos provados e o direito aplicável, primeiro na perspetiva do recurso e, após, na perspetiva oficiosa quanto aos factos e direito que é licito conhecer em relação à mesma decisão.

2.1. Enquadramento jurídico:
2.1.1. Situação de insolvência e instauração do processo de insolvência:
A. É considerado em situação de insolvência «1 – (…) o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. 2 – (…).» (art.3º/1 e 2 do CIRE).
B. A insolvência pode ser requerida pelo próprio devedor, que tem a obrigação legal de apresentação à mesma, nos termos prescritos no art.18º do CIRE («1 - O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la. 2 – (…) 3- (…).») e no art.19º («Não sendo o devedor uma pessoa singular capaz, a iniciativa da apresentação à insolvência cabe ao órgão social incumbido da sua administração, ou, se não for o caso, a qualquer um dos seus administradores.»).
A apresentação à insolvência onera o requerente/devedor com um ónus de alegação dos factos integrativos dos pressupostos de decretamento da insolvência, com as identificações complementares definidas e junção de documentos, nos termos do art.23º do CIRE («1 - A apresentação à insolvência ou o pedido de declaração desta faz-se por meio de petição escrita, na qual são expostos os factos que integram os pressupostos da declaração requerida e se conclui pela formulação do correspondente pedido. 2 - Na petição, o requerente: a) Sendo o próprio devedor, indica se a situação de insolvência é actual ou apenas iminente, e, quando seja pessoa singular, se pretende a exoneração do passivo restante, nos termos das disposições do capítulo I do título XII; b) (…) c) Sendo o devedor casado, identifica o respectivo cônjuge e indica o regime de bens do casamento; d) Junta certidão do registo civil, do registo comercial ou de outro registo público a que o devedor esteja eventualmente sujeito. 3 - Não sendo possível ao requerente fazer as indicações e junções referidas no número anterior, solicita que sejam prestadas pelo próprio devedor.») e do art.24º do CIRE (nomeadamente o referido na alínea a) do seu nº1 - «a) Relação por ordem alfabética de todos os credores, com indicação dos respectivos domicílios, dos montantes dos seus créditos, datas de vencimento, natureza e garantias de que beneficiem, e da eventual existência de relações especiais, nos termos do artigo 49.º;  (…) »).
Estes ónus exigem que o requerente prepare a instauração da ação com a obtenção prévia de informações e documentos que viabilizem a alegação na mesma dos fundamentos de facto e a indicação da prova.
Este dever prévio não fica afastado quando a obtenção de informações ou documentos se frustrar, pelos próprios meios do requerente ou pelas diligências extrajudiciais por si realizadas, uma vez que o mesmo dispõe de mecanismos legais ao seu dispor para obter as informações ou os documentos de que careça para poder instaurar a ação judicial com o cumprimento dos ónus que lhe são exigidos. De facto, entre os meios legais, o Código Civil prevê:
a) A obrigação de informação e de apresentação de coisas ou documentos nos seus arts.573º a 576º do CC, regime que prevê, nomeadamente: uma obrigação de informação «sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias.» (art.573º CC). José Lebre de Freitas, em relação a esta obrigação, refere «O direito em causa pode ser de qualquer natureza (real, obrigacional, social, intelectual, familiar, sucessório). O direito à informação, quando judicialmente exercido, pode sê-lo em ação declarativa instaurada para esse efeito ou na pendência de outro processo, aplicando-se neste caso o art.417.º do CPC. Cabe ao julgador verificar a ocorrência dos pressupostos do direito à informação, nomeadamente a recusa da informação extrajudicialmente solicitada (v. arts.216.º e 292.º do CSC) e a necessidade ou utilidade desta; a dúvida fundada acerca da existência ou do conteúdo do direito implica a apreciação sumária do bom fundamento do direito arrogado (“fumus boni juris”), que se pretende exercer à sombra das informações solicitadas (ac. STJ de 9-1-03 (…)»[i].
b) Uma obrigação de apresentação de coisas e documentos (cujo processo especial está previsto nos arts.1045º a 1047º do CPC), sendo: que, «1. Ao que invoca um direito, pessoal ou real, ainda que condicional ou a prazo, relativo a certa coisa, móvel ou imóvel, é lícito exigir do possuidor ou detentor a apresentação da coisa, desde que o exame seja necessário para apurar a existência ou o conteúdo do direito e o demandado não tenha motivos para fundadamente se opor à diligência. 2. Quando aquele de quem se exige a apresentação da coisa a detiver em nome de outrem, deve avisar a pessoa em cujo nome a detém, logo que seja exigida a apresentação, a fim de ela, se quiser, usar os meios de defesa que no caso couberem.» (art.574º do CC), disposições estas que «são, com as necessárias adaptações, extensivas aos documentos, desde que o requerente tenha um interesse jurídico atendível no exame deles.» (art.575º do CC); que, feita a apresentação, «o requerente tem a faculdade de tirar cópias ou fotografias, ou usar de outros meios destinados a obter a reprodução da coisa ou documento, desde que a reprodução se mostre necessária e se lhe não oponha motivo grave alegado pelo requerido.» (art.576º do CC).
C. Apresentado o requerimento inicial de insolvência pelo devedor, o juiz, consoante a situação em análise:
a) Profere despacho de aperfeiçoamento, nos termos do art.27º/1-b) do CIRE («1 - No próprio dia da distribuição, ou, não sendo tal viável, até ao 3.º dia útil subsequente, o juiz: (…) b) Concede ao requerente, sob pena de indeferimento, o prazo máximo de cinco dias para corrigir os vícios sanáveis da petição, designadamente quando esta careça de requisitos legais ou não venha acompanhada dos documentos que hajam de instrui-la, nos casos em que tal falta não seja devidamente justificada.»).
b) Indefere liminarmente o requerimento inicial por manifesta improcedência ou quando ocorram exceções dilatórias insupríveis, nos termos do art.27º/1-a) do CIRE («1 - No próprio dia da distribuição, ou, não sendo tal viável, até ao 3.º dia útil subsequente, o juiz: a) Indefere liminarmente o pedido de declaração de insolvência quando seja manifestamente improcedente, ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente; (…) 2 - Nos casos de apresentação à insolvência, o despacho de indeferimento liminar que não se baseie, total ou parcialmente, na falta de junção dos documentos exigida pela alínea a) do n.º 2 do artigo 24.º é objeto de publicação no portal Citius, no prazo previsto no n.º 8 do artigo 38.º, devendo conter os elementos referidos no n.º 8 do artigo 37.º») ou quando não for satisfeito o despacho de aperfeiçoamento referido em a) supra (art.27º/1-b) e 2 CIRE).
c) Decreta a insolvência se não for o caso de a) ou b) supra, nos termos do art.28º do CIRE («A apresentação à insolvência por parte do devedor implica o reconhecimento por este da sua situação de insolvência, que é declarada até ao 3.º dia útil seguinte ao da distribuição da petição inicial ou, existindo vícios corrigíveis, ao do respectivo suprimento.»).
D. O processo de execução universal de insolvência é composto: por uma primeira fase declarativa constitutiva de declaração de insolvência (art.10º/3-c) do CPC; arts.18º a 45º do CIRE), na qual o thema decidendum é a verificação da impossibilidade do devedor satisfazer as suas obrigações vencidas, sendo a declaração ou não declaração da insolvência (com base nos factos provados, em face dos alegados e dos investigados oficiosamente pelo juiz) o único efeito jurídico decretado no dispositivo; por uma fase de execução coerciva, na qual, os procedimentos processados por apenso ao processo de insolvência, destinam-se à apreensão e à administração de bens apreendidos, à verificação e à graduação dos créditos reclamados (na qual o thema decidendum passa a ser o apuramento e o reconhecimento ou não reconhecimento dos créditos reclamados, nomeadamente os do credor, que deverão ser objeto de decisão no dispositivo da sentença, que sobre os mesmos for proferida, nos termos assinalados dos arts.128º ss do CIRE) e à liquidação da massa e ao pagamento aos credores (arts.46º ss do CIRE).
Neste processo de insolvência pode correr, a pedido do devedor/insolvente, o incidente de exoneração do passivo restante, com vista e à exoneração do devedor, mediante prévio cumprimento de deveres no decurso do período da cessão, da parte do passivo não satisfeita pela liquidação e pela distribuição que tiver sido feita dos rendimentos por si entregues à fidúcia (arts.235º ss do CIRE).
2.1.2. Caso julgado:
A sentença ou despacho, por sua vez, «considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação» (art.628º do CPC). Assim, a definitividade de uma decisão sujeita a recurso ordinário consuma-se quando estiver esgotada a possibilidade de recurso ordinário (arts.629º ss do CPC, sem prejuízo da renúncia do art.632º do CPC) e a definitividade de uma decisão sem recurso ordinário ocorre no fim do prazo de 10 dias para reclamação por eventual arguição de nulidades ou de reforma de sentença (arts.149º, 615º, 616º do CPC).
A decisão definitiva, de acordo com um critério da eficácia, terá força obrigatória: dentro do processo e fora dele, se for sentença ou despacho saneador que decida do mérito da causa- caso julgado material, nos termos do art.619º do CPC (nos limites fixados pelos arts.580º e 581º do CPC, ressalvado recurso extraordinário de revisão dos arts.696º do CPC e sem prejuízo da oposição à execução baseada em sentença transitada em julgado, nos termos do art.729º do CPC); ou apenas dentro do processo, se for sentença ou despacho que tenha recaído apenas sobre a relação processual- caso julgado formal, nos termos do art.620º do CPC.
Esta imutabilidade e indiscutibilidade da decisão transitada em julgado, como «garantia processual de fonte constitucional enquanto expressão do princípio da segurança jurídica, própria do Estado de Direito (cf. artigo 2.º da Constituição)»[ii], manifesta-se, de acordo com a construção doutrinária e jurisprudencial do caso julgado:
a) Num efeito negativo e formal, que opera como exceção dilatória e que evita que o Tribunal julgue a ação repetida (entre os mesmos sujeitos e sobre o mesmo objeto processual) e reproduza ou contradiga a decisão anterior, nos termos dos arts.577º/i), 578º, 580º e 581º do CPC: «Entre as mesmas partes e com o mesmo objeto (isto é, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir), não é admissível nova discussão: o caso julgado opera negativamente, constituindo uma exceção dilatória que evita a repetição da causa (efeito negativo do caso julgado)»[iii]. Neste caso, a decisão anterior impede o conhecimento do objeto posterior[iv].
b) Num efeito positivo e material, que opera no conhecimento de mérito da causa, através da autoridade do caso julgado, quando, apesar de existir identidade de sujeitos ou via equiparada a esta, se está perante objetos processuais distintos («Entre as mesmas partes mas com objetos diferenciados, entre si e ligados por uma relação de prejudicialidade, a decisão impõe-se enquanto pressuposto material da nova decisão: o caso julgado opera positivamente, já não no plano da admissibilidade da ação mas no do mérito da causa, com ele ficando assente um elemento da causa de pedir (efeito positivo do caso julgado).[v]». Este efeito «admite a produção de decisões de mérito sobre objetos materiais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão»[vi]). Neste caso, a decisão anterior vincula a decisão de mérito do distinto objeto posterior[vii].

2.2. Apreciação da situação em análise:
2.2.1. A recorrente pediu a revogação da decisão recorrida referida em III-2.1. supra, impugnando a verificação dos seus pressupostos, por entender que a realidade da presente ação é nova em relação àquela que existia em 2012, quanto ao passivo e ao ativo (os atuais credores não são os mesmos do primeiro processo de 2012 e o crédito atual é inferior àquele de 2012; que requerente está divorciada e não tem o património do ex-cônjuge como tinha na primeira ação).
A reapreciação desta decisão, exigia a reapreciação da subsunção jurídica realizada pelo Tribunal a quo dos factos ao direito aplicável.
Todavia, examinando a decisão tomada pelo Tribunal a quo, verifica-se que esta: não elencou quaisquer factos provados sobre os sujeitos, fundamentos e decisão do processo de insolvência de 2012 e do processo de insolvência de 2024 (nomeadamente quanto ao pedido da insolvência, quanto à reclamação, verificação e graduação de créditos do primeiro processo, quanto ao incidente de exoneração do passivo restante do primeiro processo); considerou apenas verificar-se uma exceção de caso julgado por entender que se verificava a mesma realidade substancial do passivo e do ativo da devedora entre ambos os processos de 2012 e de 2024, com base numa mera comparação entre a lista simples de credores e créditos junta a estes autos (como sendo aquela junta aos autos do processo insolvência de 2012 mas sem qualquer certificação do ato) e a lista de créditos junta a estes autos.
Assim, esta decisão padece de total falta de factos provados que permitam apreciar se a decisão de direito encerra ou não de erro de julgamento e este Tribunal não dispõe de qualquer certidão do processo de insolvência de 2012 que permita suprir a falta, com a consideração oficiosa dos factos provados com força probatória plena, nos termos do art.607º/2-2ª parte do CPC, ex vi do art.663º/2 do CPC, em referência ao art.371º do CC.
A falta absoluta de factos que viabilize a reapreciação jurídica de uma decisão pode ser conhecida oficiosamente pela Relação, nos termos do art.662º/2-c) do CPC, não obstante não ter sido arguida a nulidade da decisão recorrida por falta absoluta de fundamentação de facto (art.615º/1-b) do CPC, ex vi do art.17º do CIRE). De facto, «A Relação deve, mesmo oficiosamente: (…) c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;» (art.662º/2-c) do CPC, ex vi do art.17º do CIRE).
No entanto, neste caso, importa apreciar se, apesar da invalidade da decisão recorrida quanto à verificação da exceção de caso julgado, os elementos dos autos e o seu estado atual permitiriam admitir o processo e a possibilidade de decretar a insolvência, caso não se verificasse a exceção de caso julgado.
2.2.2. Coube à requerente da insolvência, como se referiu em III-2.1.1. supra, o cumprimento de ónus que não observou.
A requerente, para cumprimento dos ónus que lhe cabiam, deveria:
a) Ter alegado «os factos que integram os pressupostos da declaração requerida» (art.23º/1 do CIRE), isto é, dos factos constitutivos da constituição e do vencimento das dívidas integrativas do passivo e a insuficiência do ativo liquido para satisfazer as dívidas vencidas.
Tendo a requerente alegado neste requerimento inicial que já foi declarada insolvente em 2012 e que lhe foi recusada a exoneração do passivo restante nesse processo, tornava-se ainda mais exigente a necessidade da requerente ter cumprido o ónus de alegação de factos essenciais que permitissem conhecer quer o vencimento das dívidas anteriores, quer o vencimento das dívidas posteriores à primeira insolvência.
b) Ter juntado, entre os documentos previstos por lei, a relação de todos os credores, com indicação não apenas dos montantes dos créditos, mas também das «datas de vencimento, natureza e garantias de que beneficiem» (art.24º/1-a) do CIRE).
No entanto, a requerente não cumpriu estes ónus- nem no requerimento inicial, nem depois de ter sido convidada a juntar a relação de dívidas com as respetivas datas de vencimento.
De facto, a requerente, no seu requerimento inicial: invocou conclusivamente ter em dívida o valor global de € 28 345, 87, sem todavia alegar os factos integrativos da constituição e do vencimento de cada uma das dívidas integrativas deste valor global, com o qual pretendeu fundamentar o seu pedido de decretamento da insolvência e de exoneração do passivo restante, nos termos do art.23º/1-a) do CIRE; não juntou a lista de créditos com os requisitos enunciados no art.24º/1-a) do CIRE (limitando-se a indicar nomes de credores e valores totais de dívida, sem indicação de datas de vencimento).
E, depois de ter sido convidada por despacho de 21.02.2024 a juntar a lista de créditos dos seus credores com datas de vencimento, com a cominação de indeferimento liminar nos termos do art.27º/1-b) do CIRE, a requerente não supriu as faltas, indicando que estava impossibilitada de o fazer por falta de elementos.
Assim, a requerente/recorrente não cumpriu as exigências legais enunciadas para se poderem apreciar de mérito os pedidos por si realizados.
Esta falta de cumprimento determina um indeferimento liminar subsequente do requerimento inicial, conforme decorre expressamente dos termos da cominação do art.27º/2-b) e 2 do CIRE, que não é impedido pelos argumentos aduzidos pela recorrente no contraditório apresentado antes da conferência, nos termos do art.655º do CPC.
Por um lado, a justificação dada pela requerente/recorrente para não identificar as datas de vencimento das dívidas (a invocada perda de documentos e a falta de registo das dividas na pesquisa realizada no Banco de Portugal) é totalmente impertinente e improcedente e não evita a cominação do art.27º/2-b) do CIRE.
De facto, as dívidas da requerente/ devedora são factos pessoais, cujo conhecimento (da identidade dos credores, dos valores, das datas de constituição e de vencimento) lhe era exigível, sobretudo se pretendia obter efeitos jurídicos com fundamento nas mesmas (nomeadamente a insolvência, com exoneração de passivo restante).
E, por sua vez, as invocadas perdas de documentos ou de falta de registo das dívidas vencidas no Banco de Portugal não justificam que a requerente não tenha preparado a instauração da ação de insolvência por outras vias, de forma a poder cumprir na mesma os seus ónus de alegação e de junção de documentos (nomeadamente através da procura de informações e documentos junto de cada um dos seus credores, obtenção essa que, caso lhe fossem recusados, poderia ser obtida pela via judicial, conforme se referiu em III- 2.1.1. – B supra).
Por outro lado, a defesa da recorrente que o requerimento inicial não pode ser indeferido por ineptidão (uma vez que o tribunal a quo se pronunciou sobre a inexistência de ineptidão ou teria que se ter pronunciado sobre a mesma por esta ser de conhecimento oficioso) afirma pressupostos incorretos e não permite evitar o indeferimento liminar do requerimento inicial por falta de alegação do art.23º/1 do CIRE dos factos constitutivos do passivo e do seu vencimento e de junção da lista do art.24º/1-a) do CIRE.
De facto, o Tribunal a quo não se pronunciou expressamente sobre a aptidão da petição inicial quando, após a prolação do despacho de aperfeiçoamento, escolheu considerar verificada a exceção dilatória de caso julgado, sem factos provados e mediante absoluta falta de elementos comprovativos dos fundamentos e das dívidas do primeiro processo de insolvência e das decisões proferidas no mesmo.
Por sua vez, a exceção dilatória de ineptidão da causa de pedir, por falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, determinante da nulidade do processo (art.186º/1, 2-a) do CPC), pode ser oficiosamente apreciada pelo Tribunal (a quo ou ad quem), caso ainda não tenha sido feito: até ao despacho saneador, se o processo o comportar; até à sentença final, se o processo não comportar despacho saneador.
Ora, tendo-se considerado inválida a decisão que conheceu a exceção dilatória de caso julgado em despacho de indeferimento liminar subsequente ao despacho de aperfeiçoamento, por falta de fundamentos de facto, o processo ainda está em fase de conhecer a falta de alegação dos factos constitutivos das dívidas e das datas de vencimento, que pudesse ser passível de qualificar o requerimento inicial como inepto.
Em qualquer caso, para além desta falta de alegação, mesmo que não se considere integrar uma ineptidão do requerimento inicial, a requerente/recorrente não satisfez o despacho de aperfeiçoamento que a convidou a juntar a lista de créditos, com a indicação das datas de vencimento de cada uma das dívidas, nos termos do art.24º/1-a) do CIRE. A justificação por si apresentada para não cumprir o despacho não a desonera da responsabilidade pela falta de cumprimento do mesmo, conforme se referiu supra, e que implica necessariamente o indeferimento liminar subsequente do requerimento inicial, nos termos da cominação constante e de que foi advertida do art.27º/1-b) do CIRE.
Assim, deve ser indeferido o requerimento inicial de insolvência, nos termos dos art.27º/1-a) do CIRE (em referência à inobservância do art.23º/1 do CIRE) e do art.27º/1-b) do CIRE (em referência à inobservância do art.24º/1-a) do CIRE).

IV. Decisão:

Pelo exposto, os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam:
1. Julgam a decisão da 1ª instância inválida.  
2. Decidem indeferir liminarmente o requerimento inicial de insolvência por falta de cumprimento dos arts.23º/1 e 24º/1-a) do CIRE, nos termos enunciados em III-2.2.2. supra.

*
Custas da ação e do recurso pela recorrente (art.527º do CPC), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
*
Sumário da Relatora:

1. A falta absoluta de factos provados sobre os sujeitos, o objeto do processo e as decisões de dois processos de insolvência e a falta de possibilidade de suprimento nos termos do art.663º/2 do CPC, em referência ao art.607º/4-2ª parte do CPC, inviabiliza a apreciação jurídica do erro de direito da decisão recorrida que conheceu uma exceção de caso julgado sem esses factos e invalida a referida decisão.
2. A invalidade da decisão recorrida referida em 1 supra não exige a descida à 1ª instância para o suprimento da falta de factos provados, com elementos novos a recolher, nos termos do art.662º/2-c) do CPC, quando o estado do processo não permite o decretamento da insolvência e exige o indeferimento do requerimento inicial por falta de alegação e de cumprimento pela requerente de requisitos legais dos arts.23º/1 e 24º/1-a) do CIRE e por falta de satisfação de despacho de aperfeiçoamento, nos termos do art.27º/1-a) e b) do CPC.
Guimarães, 19 de setembro de 2024

Assinado eletronicamente pelo coletivo de juízes
Alexandra Viana Lopes (J. Des. Relatora)
Fernando Barroso Cabanelas (J. Des. 1º Adjunto)
Gonçalo Oliveira Magalhães (J. Des. 2º Adjunto)


[i] José Lebre de Freitas, in Código Civil Anotado Coordenado por Ana Prata, Almedina, Vol. I, 2ª Edição, 2019, anotação 2 ao art.573º do CC, pág.771.
[ii] Rui Pinto, in Código de Processo Civil anotado, Almedina, vol. II, Almedina, 2018, nota 2-I ao art.619, pág.185.
[iii] Lebre de Freitas, in «Um polvo chamado Autoridade do Caso Julgado», pág.693, in www.portal.oa.pt
[iv] Ac. RG de 07.08.2014, relatado por Jorge Teixeira no processo nº600/14.TBFLG.G1.
[v] Lebre de Freitas, in artigo citado in ii, pág.693. 
[vi] Rui Pinto, in obra citada in i, nota 2- II ao art.619, pág.186.
[vii] Ac. RG de 07.08.2014, referido supra.