REGISTO DE PENHORA
PRIORIDADE
TERCEIRO
ABUSO DE DIREITO
Sumário


I - O adquirente de um imóvel, por via de um processo executivo, não deve, para efeitos de registo predial, ser considerado terceiro em relação a um anterior adquirente, por via de escritura pública, do mesmo imóvel, mas com o registo da aquisição posterior ao registo da penhora, pelo que este adquirente pode opor àquele o seu direito de propriedade cuja aquisição foi operada pela escritura, e não pelo registo predial.
II - Ainda que a questão do abuso de direito seja uma questão nova que pode ser conhecida oficiosamente, a oficiosidade não pode ir para além dos factos que foram alegados e controvertidos.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

AA e BB,
instauraram a presente acção de divisão de coisa comum contra:
CC e DD
Invocaram, em suma, serem comproprietários juntamente com o requerido marido de uma parcela de terreno para construção, inscrita na matriz sob o art.º ...86º-P (actual ...74º), da União de freguesias ..., ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...81/...; que têm uma quota de, pelo menos, 3/4 sobre o referido prédio, e o requerido marido uma quota de 1/4, alegando ter adquirido o imóvel, em comum e partes iguais, juntamente com EE e que, posteriormente, adquiriram em acção executiva, pelo menos, ¼ do imóvel referente à meação de EE.
Alegaram ainda não pretenderem continuar na indivisão, pugnando pela adjudicação ou venda da coisa comum.  
Citados, os requeridos apresentaram contestaram, aceitando a existência da compropriedade, mas defenderam que a quota pertencente ao requerido marido é de metade do imóvel, sustentando que, previamente ao registo da penhora que originou a aquisição de ¼ do prédio, EE e FF haviam já doado ao requerido marido a metade que a ambos pertencia sobre o prédio em causa.
Concluíram, por isso, que a penhora não é válida, por o prédio não pertencer à data em que a mesma foi realizada a EE, mas ao requerido marido.
Mais defenderam que o imóvel é insusceptível de ser dividido.
Após terem sido convidados para o efeito, os requerentes apresentaram resposta à matéria de excepção, pugnando, como na petição inicial, pela fixação das quotas em ¾ para os autores e ¼ para o autor marido; tendo ainda defendido a validade do pedido de divisão e a indivisibilidade do prédio.

Findos os articulados, foi proferida decisão, nos termos previstos no art.º 926º, nº 2, do NCPC, constando do respectivo dispositivo o seguinte:
“VI. Decisão:
Pelo exposto, conhecendo-se liminarmente das questões do direito suscitadas, declaro:
a) Que os autores têm uma quota de 1/2 (metade) e o réu marido uma quota de 1/2 (metade) sobre o prédio urbano, composto de parcela de terreno para construção, a confrontar do norte com Município ... e outros, do sul com GG, do nascente com Rua ... e Rua ... e do poente com diversos particulares, com a área de 2309 m2, inscrito na matriz sob o art.º ...86º-P (actual ...74º), da União de freguesias ..., ... e ..., descrito na CRP sob o nº ...81/....
b) Que os autores têm direito a peticionar a divisão;
c) Mais declaro a indivisibilidade material do imóvel em causa.

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Custas em partes iguais, artigo 527º, nº 1 e 2 do CPC.
Notifique e registe.”.

Inconformados com a decisão assim proferida, vieram os requerentes recorrer, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

«1ª – Mantém-se que a doação feita ao réu marido por EE e HH, seus pais, em 21.03.2009, é inoponível à execução, melius à compra que o autor fez a EE, em 25.06.2021, no âmbito da execução fiscal mencionada nos art.os 11.º e 25.º da p.i.
2ª - O acto de disposição (doação), porque anterior à penhora, deveria ter sido levado a registo pelo réu para poder prevalecer sobre aquela.
3ª - Como os actos de disposição dos bens penhorados são inoponíveis à execução por força do disposto no art.º 819.º CC;
4ª – Como a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida, e
5ª – no caso sub judice, como o direito doado e o direito vendido advêm do mesmo transmitente comum – EE,
6ª – resulta, indubitavelmente, que há por parte do adquirente (autor), na venda executiva, uma aquisição derivada cujos polos são o executado (EE) e ele próprio (autor).
7ª – A intervenção do Estado (Fazenda Nacional/Serviço de Finanças), feita na posição de substituto do executado (CC), é de pura instrumentalidade no exercício de um poder público, mas sem que alguma vez o bem vendido tenha chegado a entrar na sua titularidade.
8ª – A partir destes princípios, tem que se concluir que na venda executiva o executado (CC) foi o transmitente, não obstante todas as peculiaridades dos mecanismos legais e circunstânciais de se tratar de uma venda que lhe foi imposta. (Cfr. Ac. STJ de 7 de Julho de 1999, in CJ Ac. STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 167)
9ª - A venda, por via da qual o autor comprou em execução movida contra o executado CC, a parte indivisa aqui disputada e a doação feita por CC ao réu, tem o mesmo transmitente.
10ª – O réu marido e o autor são terceiros para feitos do art.º 5.º do CRP.
11ª – Por isso, a doação feita ao autor em 21.03.2009 – apesar de ser cronologicamente mais antiga que a penhora – não é oponível ao autor.
12ª – O registo da aquisição enquanto não for registado, embora seja eficaz entre as partes contraentes, não é oponível a terceiros de boa-fé, face ao disposto no art.º 5.º/1.º CRP.
13ª – Existe uma incompatibilidade de direito, pelo que importa atender à data do respectivo registo, sendo que o registo da penhora a favor da Fazenda Nacional ocorreu em 25.03.2009 ou seja em data anterior ao registo de aquisição por doação pelo autor marido em 3.04.2009. (Cfr. als. b) e c) do item 9 dos Factos Provados)
14ª – Na venda executiva o executado (CC, pai do réu marido) foi o transmitente, não obstante as peculiaridades dos mecanismos legais e circunstanciais de se tratar de uma venda que lhe foi imposta. (Cfr. Ac. STJ de 7 de Julho de 1999, in CJ Ac. STJ. Ano VII, Tomo II, pág. 167)
15ª – A venda por via da qual o autor comprou em execução movida contra o executado CC (pai do réu marido) a parte indivisa aqui disputada, e a doação feita por aquele ao réu marido, tem o mesmo transmitente.
16ª – O autor (comprador) e o réu marido (donatário), adquiriram da mesma pessoa (CC) direitos incompatíveis) entre si e, por isso,
17ª – SÃO TERCEIROS, para efeitos do n.º 4 do art.º 5.º CRP.
18ª – A doação sub judice, porque só foi registada a favor do réu marido após o registo da penhora, não pode produzir efeitos contra a compra do autor. (Art.º 9.º/1 CRP)
19ª – Ao entender que o autor e o réu marido não adquiriram as partes indivisas sub judice a um transmitente comum (CC/executado doador), violou o tribunal recorrido, por errada interpretação, o disposto no n.º 4 do art.º 5 CRP.
20ª – O mesmo acontecendo quando afirma não conflituar a penhora com a doação prévia, levada a registo posteriormente àquela penhora, considerando ser formalmente válida a doação e oponível à penhora.
21ª – Entende-se haver conflito entre as normas estabelecidas no art.º 824.º CC e no n.º 4 do art.º 5.º CC.
22ª – No caso em apreço, o executado já depois do registo da penhora de ¼ parte indivisa feita pela Fazenda Nacional em 25.03.2009,
23ª – doou, com a mulher ao réu marido, filho de ambos, em 3.4.2009, ½ do prédio dos autos.
24ª – Esta doação foi feita de má-fé, uma vez que os doadores bem sabiam da pendência da execução e da penhora dos bens, e tinham consciência do prejuízo que a doação causava ao Estado.
25ª – A doação feita pelo executado, pai do réu marido, é ineficaz em relação à execução em que foi vendida pelo Estado a parte indivisa (1/4), ao ora autor, que a pagou.
26ª – No caso dos autos, quer pela sujeição da compra feita pelo ora autor ao n.º 4 do art.º 5.º do CRP, quer pela sujeição do mesmo acto ao regime/imperativo do art.º 824.º CC,
27ª – o autor adquiriu, válida e legitimamente, por compra, ao executado/doador, pai do réu marido, no Processo de Execução Fiscal identificado nos itens 7) e 8) dos Factos Provados, ¼ indiviso do prédio identificado no item 1) dos Factos Provados.
28ª –Assim sendo, a quota dos autores é de ¾ =(1/2+1/4) e a do réu marido é de ¼.
29ª – Foi violado pelo tribunal a quo o disposto nos art.os 929.º/1CPC, 5.º/1 e 4 CRP e 819.º e 824.º/1 CC.
30ª – Atenta a factualidade provada nos itens 6,7,9-b), c) e d) dos Factos Provados, verifica-se que os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, previstos no art.º 240.º CC, foram manifestamente violados tanto pelo executado CC, pai do réu marido, como por este.
31ª – Ainda que formalmente o réu marido tivesse direito, sempre o seu exercício seria ilegítimo.
32ª – Ninguém pode pactuar com “habilidades” como as que foram praticadas pelo executado (pai) e mulher e pelo ora réu marido, materializados na doação do bem penhorado por conta das respectivas quotas disponíveis.
33ª – Sendo notória a intenção de pôr o bem penhorado a bom recato, para não ter que responder pelas dívidas ao Estado.
34ª – O abuso de direito que nestes autos se constata, constitui excepção peremptória, do conhecimento oficioso que impede o efeito jurídico da doação e transmissão.».
Terminaram pedindo que seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência, que seja revogada a al. a) da decisão recorrida e substituída por outra em que sejam fixadas as quotas de que os requerentes e o requerido marido são comproprietários, em ¾ e ¼, respectivamente, com custas a cargo deste.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
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No caso vertente, as questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, são as de saber:
- se o adquirente de um bem imóvel por via de um processo executivo deve ser considerado terceiro, para efeitos de registo predial, em relação a um adquirente anterior, mas com registo da aquisição posterior ao registo da penhora daquele bem; e
- se os requeridos agem em abuso de direito.
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III. Fundamentação

3.1. Fundamentos de facto

Como factualidade relevante interessa aqui ponderar os trâmites processuais consignados no relatório do presente acórdão, bem como os seguintes factos dados como provados pelo tribunal a quo:
«1) Na Rua ..., da cidade ..., existe um prédio composto de parcela de terreno para construção, a confrontar do norte com Município ... e outros, do sul com GG, do nascente com Rua ... e Rua ... e do poente com diversos particulares, com a área de 2309 m2, inscrito na matriz sob o art.º ...86º-P (actual ...74º), da União de freguesias ..., ... e ..., descrito na CRP sob o nº ...81/... e com o valor patrimonial de €272.111,35.
2) Por escritura pública, denominada “Vendas”, outorgada a 8 de Julho de 1991, no Cartório Notarial ... e aí exarada a folhas 75 do Livro ...0-B, a EMP01... C.R.L., declarou vender “em comum e partes iguais” a EE, casado no regime de comunhão geral de bens com HH, e ao autor marido, casado no regime de comunhão geral de bens, um prédio urbano, “composto de casa com dois pavimentos e um mirante, com uma dependência e logradouro com a área de dois mil quatrocentos e oitenta metros quadrados, sito no Largo ..., nesta ..., também designado por Largo ..., com a superfície coberta de duzentos e trinta metros quadrados, inscrito na matriz respetiva de ... sob o artigo ...10 (antigo ...07) (…)”, conforme escritura pública junto aos autos a fls. 12 a 14, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
3) Por escritura denominada “Rectificação”, outorgada de 10 de Fevereiro 2009, no Cartório Notarial da Dr.ª II em ... e aí exarada a fls. 171 e segs., do livro n.º ...8-A de “Escrituras Diversas”, em que intervieram os representantes da EMP01..., EE, HH e o autor marido, foi declarado por todo os outorgantes que “pela presente, vêm retificar a citada escritura, no sentido que à data da mesma o prédio tinha a área coberta de 236 m2, dependência com 230 m2 e logradouro com 2.484 m2, e não como por erro ficou a constar da mesma … “Que, como resulta do processo de Expropriação n.º 1110/05...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Esposende, o Município ... requereu a expropriação aos aqui compradores, de uma parcela de terreno a destacar do prédio acima identificado, com a área de 641m2, expropriação que, por Despacho do Secretário de Estado da Administração Local, de 25.01.2005, publicado no Diário da República n.º 46 de 7/3, foi declarada utilidade pública, autorizando a tomada de posse a favor da Câmara Municipal ..., da referida parcela de terreno destacada, como resulta da certidão dos autos de expropriação emitido pelo Tribunal Judicial desta Comarca em 3 do mês corrente…” , conforme escritura pública junta aos autos a fls. 15 a 18, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
4) EE e FF contraíram casamento católico, com convenção antenupcial, no regime de comunhão geral de bens, a 28 de Dezembro de 1972, conforme documento junto aos autos a fls. 19 e 20, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
5) Por decisão de 10 de Novembro de 2003, transitada em julgado em 10 de Novembro de 2003, foi declarada a separação de pessoas e bens entre EE e FF, conforme documento junto aos autos a fls. 19 e 20, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
6) Por escritura pública, denominada “Doação”, outorgada a 21 de Março de 2009, no Cartório Notarial da Dr.ª II em ... e aí exarada a fls. 71 e segs., do livro n.º ...9-A de “Escrituras Diversas”, EE e HH, casados, mas separados judicialmente de pessoas e bens, doaram a seu filho CC, ora requerido, por conta das quotas disponíveis deles doadores, a metade indivisa de que eram proprietários no prédio referido em 1), conforme escritura pública junta aos autos a fls. 20v a 21, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
7) Por escritura pública, denominada “Compra e Venda”, outorgada a 25 de Junho de 2021, no Cartório Notarial do Dr. JJ, KK, na qualidade de legal representante da sociedade “EMP02..., Lda.”, a qual foi nomeada pelo Chefe de Finanças ... para proceder à venda (processo de execução fiscal número ...08)), declarou que “pela presente escritura, … pelo preço de trinta e dois mil e trezentos euros, já recebido, vende ao segundo outorgante, livre de ónus e encargos, o seguinte imóvel: um quarto do prédio urbano composto por parcela de terreno para construção…”, referido em 1), ao requerente marido, conforme escritura pública junta aos autos a fls. 25 a 27, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
8) Por escritura pública, denominada “Rectificação”, outorgada a 1 de Abril de 2022, no Cartório Notarial do Dr. JJ, KK, na qualidade de legal representante da sociedade “EMP02..., Lda.”, a qual foi nomeada pelo Chefe de Finanças ... para proceder à venda (processo de execução fiscal número ...08) e o autor marido, declararam que “invocando erro na declaração, retificam aquela mesma escritura de compra e venda, no sentido de ficar a constar que o objeto da venda é a meação que o executado EE é titular na proporção de metade indivisa, no prédio atrás identificado.”, conforme escritura pública aos autos a fls. 28 a 30, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
9) Sob o prédio referido em 1) mostram-se registados os seguintes factos registrais:
a) Pela Ap. ...1 de 2009/02/20, “Aquisição” a favor de AA, casado com BB, no regime da comunhão geral, e EE, casado mas separado judicialmente de pessoas e bens com HH e tendo como sujeito passivo a EMP01...;
b) Pela Ap. ...34 de 2009/03/25, “Penhora”, “Provisória por dúvidas”, tendo como sujeito ativo na proporção de 1/4 a Fazenda Nacional e sujeito passivo EE, casado mas separado judicialmente de pessoas e bens com HH, processo de execução fiscal ...08;
c) Pela Ap. ...36 de 2009/04/03 “Aquisição”, na proporção de 1/ 2, a favor do requerido CC e sujeitos passivos EE e HH;
d) Pela Ap. ...53 de 2009/5/08 a Ap. ...34 de 2009/03/25 foi convertida em definitiva “Na proporção de 1/2 Fazenda Nacional Penhora da Meação de EE.”
e) Pela Ap. ...90 de 2022/05/18 foi registada “compra por negociação particular em processo de execução”, tendo como sujeito ativo o requerente de AA e sujeito passivo “EE … Aquisição da meação. Compra por negociação particular no âmbito do processo de execução fiscal ...08”., tudo conforme documento junto aos autos a fls. 23 e 24, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.».
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3.2. Fundamentos de direito

Considerando o acima exposto, a questão que primordialmente se suscita no presente recurso, como já vimos, é a de saber se a aquisição da quota parte do bem imóvel identificado nos autos pelo requerido marido, apesar do registo posterior ao da penhora efectuada no âmbito do processo de execução fiscal ...08, prevalece ou não sobre esta e sobre a subsequente venda executiva.
Com efeito, ressuma da factualidade apurada que a Fazenda Nacional instaurou uma execução fiscal contra EE, no âmbito da qual foi penhorada uma quota parte indivisa (1/4) de um prédio urbano; a penhora foi registada em 25.03.2009 e, em 3.04.2009, foi inscrita a aquisição de ½ do referido prédio a favor do requerido marido (ora recorrido) por doação do executado e da sua mulher celebrada em 21.03.2009 (ou seja, em data anterior à penhora). Posteriormente, os requerentes adquiriram na execução a quota parte indivisa do prédio aí penhorada em 21.06.2021 e registaram tal aquisição em 18.05.2022.
Alegam os recorrentes, que a aquisição de um bem imóvel é um facto sujeito a registo obrigatório que, enquanto não for registado, embora seja eficaz entre as partes contraentes, não é oponível a terceiros de boa fé face ao disposto no art.º 5º Código de Registo Predial (CRP).
Concluem que, verificada uma incompatibilidade de direitos, importa atender à data dos respectivos registos, sendo que, o registo de aquisição da quota parte indivisa do bem imóvel a favor do requerido marido ocorreu em data posterior ao registo de penhora a favor do exequente, o que torna a escritura de doação ineficaz e inoponível ao referido exequente, bem como aos adquirentes na execução de tal bem penhorado, os aqui recorrentes (conclusões 1ª a 29ª).
A argumentação dos recorrentes remete-nos, pois, e mais uma vez, para a mais do que debatida questão do conceito de “terceiros” para efeitos do disposto no art.º 5º do CRP, questão esta que já foi exaustiva e exemplarmente tratada na decisão sob recurso.
De todo o modo, vejamos.

Sob a epígrafe “Oponibilidade a terceiros”, preceitua o aludido art.º 5º do CRP que:

“1 - Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo.
2 - Exceptuam-se do disposto no número anterior:
a) A aquisição, fundada na usucapião, dos direitos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º;
b) As servidões aparentes;
c) Os factos relativos a bens indeterminados, enquanto estes não forem devidamente especificados e determinados.
3 - A falta de registo não pode ser oposta aos interessados por quem esteja obrigado a promovê-lo, nem pelos herdeiros destes.
4 - Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.
5 - Não é oponível a terceiros a duração superior a seis anos do arrendamento não registado.”.

A questão enunciada supra foi objecto de aceso debate doutrinário e jurisprudencial, o que justificou a prolação sobre a mesma, de dois acórdãos uniformizadores de jurisprudência, que tiveram por base situações semelhantes à que se debate nos autos: penhora com registo anterior ao registo da aquisição por terceiro.
De tal amplo debate resultou a formação de duas correntes jurisprudenciais quanto à noção de terceiro para efeitos de registo predial.
A primeira, na esteira da doutrina defendida por Manuel de Andrade (cfr. Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p. 19 e 19 verso) restringe a qualidade de terceiro aqueles que do mesmo transmitente adquirem direitos incompatíveis sobre o mesmo prédio. (Neste sentido, ver, entre outros, os acs. do STJ de 29.09.93, CJ/STJ-93-III-29, 18.05.94, CJ/STJ-94-II-111, 22.11.95, CJ/STJ-95-III-109 e 13.02.96, CJ/STJ-96-I-89, da RP de 07.04.92, CJ-92-II-230, da RC de 24.05.88, CJ-88-III-79, 26.06.90, CJ-90-III-62 e 05.05.96, CJ-96-2-7, e da RL de 14.01.93, CJ-93-I-1059).
Assim, para esta corrente, o penhorante e o adquirente do mesmo bem não seriam terceiros um em relação ao outro porque os seus direitos, ainda que incompatíveis, não provêm do mesmo autor.
O que significa que a aquisição anterior, ainda que não registada, pode ser oposta à penhora posterior registada, prevalecendo a primeira.
A segunda corrente defende um conceito mais amplo de terceiro para efeitos de registo predial, definindo-o como todo aquele que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veria esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente.
Com amplo apoio doutrinário (v.g., Oliveira Ascensão, Direitos Reais, p. 408 e seguintes, Antunes Varela e Henrique Mesquita, RLJ, Ano 127º, 20, Vaz Serra, RLJ, Ano 103º, p. 165 e Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3ª ed., p. 161), esta corrente jurisprudencial mostrou-se, no entanto, sempre minoritária, embora tenha sido acolhida nalguns arestos, quer das Relações, quer do STJ. (Neste sentido se pronunciaram, entre outros, os acs. do STJ de 17.02.94, CJ/STJ-I-105, da RP de 11.04.94, CJ-94-II-207 e da RL de 26.09.89, BMJ 389º-640).
A divisão da jurisprudência neste domínio levou a que viesse a ser proferido o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 15/97 de 20.05.97 (DR I Série-A, de 04.07.97).
Este acórdão consagrou a segunda corrente jurisprudencial acima mencionada, preferindo o conceito amplo de terceiro para efeitos de registo predial que por aquela corrente vinha sendo defendido.
A jurisprudência ficou, pois, na altura, uniformizada do modo seguinte, conforme se pode ler no referido acórdão: “Terceiros, para efeitos de registo predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto jurídico anterior não registado ou registado posteriormente”.
Entende-se naquele acórdão que o conceito amplo de terceiro é mais consentâneo com os fins do registo predial, argumentando-se que, se este se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (cfr. art.º 1º do CRP), tão digno de tutela é aquele que adquire um direito com a intervenção do titular inscrito (compra e venda, doação, etc.) como aquele a quem a lei permite obter um registo sobre o mesmo prédio sem essa intervenção (credor que regista uma penhora, hipoteca judicial, etc.).
A questão, no entanto, continuou longe de ser pacífica, o que levou a que viesse a ser proferido o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 3/99, de 18.05.99 (DR I Série-A, de 10.07.99), que reviu a posição tomada no referido Acórdão nº 15/97.
O acórdão mais recente considera “radical” e “provocatória” a posição tomada no acórdão anterior e entende que a mesma foi tomada no pressuposto de que a ela se seguiria uma intervenção legislativa urgente no sentido de tornar certo o registo predial, nomeadamente estabelecendo a sua obrigatoriedade e a obrigatoriedade de imediata comunicação pelo notário ao conservador do registo predial da celebração da escritura pública.
Dessa forma se daria pleno cumprimento ao comando do citado art.º 1º do CRP, assegurando a intenção ali expressa de publicitar a situação jurídica dos prédios para alcançar segurança no comércio jurídico imobiliário. Não se tendo verificado a esperada actuação do legislador no indicado sentido, a aplicação da doutrina do aresto nº 15/97 acabou por conduzir à situação contrária da insegurança de quem comprou, pagou e cumpriu a formalidade da escritura notarial se ver mais tarde confrontado com o facto de o bem objecto da compra pertencer a outrem por efeito de um registo efectuado posteriormente.
Com tais fundamentos (acima expressos de uma forma muito sumária) entendeu o Supremo Tribunal de Justiça ser necessário repensar a doutrina do Acórdão nº 15/97.
O Acórdão nº 3/99 considerou, em síntese, que:
a) no estado legislativo vigente o registo predial não tem natureza constitutiva, conforme resulta do disposto no art.º 7º do CRP;
b) a legislação registral tende a agredir princípios fundamentais de natureza substantiva e essa agressão é frontal com a adopção do conceito alargado de terceiro (v.g., no caso de compra e venda, o direito de propriedade transfere-se no momento da celebração da escritura que a formaliza);
c) a eficácia do registo não é independente da boa ou má fé de quem regista, argumento que se extrai dos casos em que se atribui ao registo relevância especial e em que esta se faz sempre depender da boa-fé do adquirente (v.g. art.º 291º, do CC e art.º 17º, nº 2 do CRP).
Pelas razões expostas, entendeu-se unificar a jurisprudência no seguinte sentido: “Terceiros, para efeitos do disposto no art.º 5º do C. Registo Predial, são os adquirentes de boa-fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”.
A boa-fé a que se faz referência no aresto é a boa-fé do adquirente posterior que regista. O adquirente que regista a aquisição do seu direito, não sabendo nem lhe sendo exigível que soubesse que o titular inscrito já havia alienado ou onerado o prédio sem que o adquirente anterior tivesse registado a aquisição está de boa-fé e por isso é terceiro para efeitos de registo predial, não lhe podendo então ser oposta a primeira aquisição não registada.
A doutrina do AU nº 3/99 foi transposta para o Código do Registo Predial pelo DL nº 533/99, de 11.12, que acrescentou ao art.º 5º daquele diploma legal o nº 4, onde se fez constar que "terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si".
Pode ler-se no preâmbulo do aludido DL nº 533/99 que "se aproveita tomando partido pela clássica definição de Manuel de Andrade, para inserir no art.º 5º do Código do Registo Predial o que deve entender-se por terceiros, para efeitos de registo, pondo-se cobro a divergências jurisprudenciais geradoras de insegurança sobre a titularidade dos bens".
Donde, a redacção dada ao nº 4 do art.º 5º do CRP não pode deixar de se ter como interpretativa para os efeitos do nº 1 do art.º 13º do CC, como tal se integrando na lei interpretada.
Na redacção dada ao preceito em causa, omitiu-se a referência à boa fé como requisito da qualidade de terceiro, mas essa boa fé não pode deixar de ser exigida.
Como se escreveu no ac. do STJ de 05.05.05 (relatado por Araújo de Barros e acessível in www.dgsi.pt), a boa fé constava expressamente do segmento uniformizador do AU nº 3/99 e correspondia à noção defendida por Manuel de Andrade, a que o legislador declarou aderir. E, na verdade, o que se pretende com a publicidade registral é informar os terceiros acerca das titularidades sobre os prédios, a fim de evitar que sejam feitas aquisições a quem não tenha legitimidade para alienar. Sendo assim, parece legítimo concluir que a letra do art.º 5º, nº 1, do CRP apenas pretendeu proteger os terceiros que, iludidos pelo facto de não constar do registo a nova titularidade, foram negociar com a pessoa que no registo (ou fora dele) continuava a aparecer como sendo o titular do direito, apesar de já o não ser.
Sucede que, no caso, como vimos, o acto registado em primeiro lugar é uma penhora. O que significa que esse direito surgiu sem intervenção voluntária do titular inscrito e, portanto, não é “adquirente de um mesmo transmitente comum”, pelo que, desde logo, não é terceiro para efeitos de registo predial.
O nº 4 do art.º 5º do CRP, na esteira do AU nº 3/99, ao restringir o conceito de terceiro nos termos em que o fez, excluiu ab initio os casos em que o titular inscrito não tem intervenção voluntária na transmissão do direito, mas é sujeito passivo desse direito, abrangendo assim os direitos reais de garantia, tais como, o arresto, a penhora, a hipoteca judicial, etc.
Para justificar aquela exclusão, sustenta-se no citado AU que quando estão em causa dois direitos reais da mesma natureza, é justo que a segunda aquisição registada deva prevalecer sobre a primeira não registada. Por exemplo, perante dois compradores sucessivos do mesmo prédio, só o segundo tendo registado, “...a negligência, ignorância ou ingenuidade do primeiro deve soçobrar perante a agilidade do segundo, cônscio não só dos seus direitos, como os ónus inerentes”. Neste caso, a prioridade do registo ultrapassa a incompatibilidade dos direitos, desde que o adquirente que registou esteja de boa-fé.
Já quando estão em confronto, v.g., o direito real de propriedade não registado e o direito real de garantia resultante da penhora registada, permitir a prioridade do registo, mantendo a viabilidade executiva seria, no fundo, permitir que um direito de crédito (embora sob a protecção de um direito real de garantia) prevalecesse sobre um direito real, e seria permitir que o credor executasse bens de terceiro em situação não abrangida pela previsão dos art.ºs 735º, nº 2, do NCPC e 610º, do CC (ainda que o credor estivesse originariamente de boa-fé: ou seja, que, ao penhorar os bens não soubesse nem devesse saber que aqueles já haviam saído da esfera jurídica do devedor).
Estando então actualmente o conceito de terceiro restringido nos termos acima expostos, relembramos que, segundo tal doutrina, o exequente, assim como o adquirente do bem penhorado, nunca são “terceiro” para efeitos de registo predial porque não adquiriram o seu direito com intervenção voluntária do titular inscrito (não há, portanto, aquisição de um mesmo transmitente comum) e, por isso, nem sequer há que apreciar se agiram de boa ou má-fé.
Como também salientado pelo tribunal a quo e sem prejuízo de algumas vozes discordantes de que é exemplo o aresto citado nas alegações dos recorrentes (e a doutrina ali citada), é neste sentido que se tem vindo a pronunciar maioritariamente a jurisprudência, quer ao nível das Relações, quer do Supremo Tribunal de Justiça, sendo ainda de assinalar pela sua pertinência e pela proximidade ao caso que nos ocupa os seguintes arestos:
- o ac. da RP de 14.11.2002, relatado por Moreira Alves e acessível in jurisprudencia.pt em cujo sumário se pode ler: “O adquirente de um imóvel, por via de um processo executivo, não deve, para efeitos de registo predial, ser considerado terceiro em relação a um anterior adquirente, por via de escritura pública, do mesmo imóvel, mas com o registo da aquisição posterior ao registo da penhora, pelo que este adquirente pode opor àquele o seu direito de propriedade cuja aquisição foi operada pela escritura, e não pelo registo predial.”; e
- o ac. do STJ de 12.01.2012, relatado por Silva Gonçalves no processo nº 121/09.4TBVNG.P1.S1, consultável in www.dgsi, cuja fundamentação pela sua clareza e profundidade não podemos deixar de trazer aqui à colação (alertando apenas para o facto que o mesmo foi proferido ao abrigo do Código Processo Civil anterior, sendo que as normas ali citadas e relativas aquele diploma legal não sofreram alteração relevante):
«O legislador caracterizou a penhora (artigo 822.º do C.P.Civil) como um direito real de garantia, tal qual a consignação de rendimentos (art.º 656.º C.C. e 879.º C.P.C.), o penhor (art.º 666.º a 678.º do C.C.) e a hipoteca (art.º 686 a 733.º C.C.), deste modo visando reforçar a obtenção do objectivo próprio de um direito de crédito e que se consegue, essencialmente, por duas formas: - pelo aspecto compulsório que envolve, incitando o devedor ao cumprimento e pela especial tutela que confere à posição do credor quando, havendo incumprimento, haja que recorrer aos esquemas da coacção jurídica, conferindo-lhe uma posição de privilégio, em caso de incumprimento (artigos 758.º e 759.º, do C.C.).