SEGURO DE DANOS
REPOSIÇÃO NATURAL
REPARAÇÃO DO DANO
EXCESSIVA ONEROSIDADE
SUBSTITUIÇÃO DA COISA
Sumário

I - Sendo o fim precípuo da lei que o lesante proveja à directa remoção do dano real, e consistindo este em danos produzidos num equipamento, há que proceder à sua reparação ou, sendo inviável, como sucede in casu, à substituição, por outro idêntico ou similar, por conta do agente, que lhe proporcione igual utilidade e satisfação das suas necessidades, cabendo as despesas tendentes a esta substituição, tal como a reparação material, propriamente dita, na forma de indemnização, por reparação natural, e não na indemnização por equivalente.
II - A excessiva onerosidade da reconstituição natural tem de ser aferida, não, apenas, em função da diferença entre o preço da reparação e o valor venal do equipamento, mas, também, no confronto entre aquele preço e o valor patrimonial deste, como o valor de uso que dele retira o seu proprietário, sendo que a um insignificante valor comercial daquele pode corresponder a satisfação, em elevado grau, das necessidades do seu proprietário.

(Restrito à questão jurídica. Da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo 180/23.7T8ESP. P1

Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Competência Genérica de ... - Juiz 1




Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: Paulo Duarte
2º Adjunto: António Carneiro da Silva








Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:


I.
Companhia de Seguros A... SA intentou acção declarativa contra B... SA, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 9.282,08, (nove mil, duzentos e oitenta e dois euros e oito cêntimos).
Reconduziu-se à outorga de um contrato de seguro do ramo “Multirriscos para Pequenas e Médias Empresas”, titulado pela apólice nº ...87, através do qual assumiu a responsabilidade pela regularização dos danos ocorridos no imóvel e no conteúdo do imóvel da Tomadora do Seguro, sito na Rua ..., ... ..., em caso de ocorrência de algum dos sinistros abrangidos pelas coberturas contratadas, entre os quais cobertura de “Riscos Elétricos” [edifício e conteúdo], cujo capital seguro ascendia ao montante de €15.000,00, tendo, ainda, sido contratada uma franquia de 10% sobre o valor da indemnização, com o valor mínimo de €75,00; à verificação de um sinistro coberto e pagamento da quantia contratada à tomadora, cujo ressarcimento agora reclama da ré, a titulo de sub-rogação.
A ré B... SA apresentou contestação, pugnando pela improcedência da acção, na medida em que as avarias que deram origem ao ressarcimento cujo reembolso vem pedido não foram causadas por qualquer conduta ou incidente relacionados com as redes de distribuição da Ré.

Prosseguindo os autos os seus regulares termos e realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença, a qual julgou a acção totalmente procedente, por provada e, em consequência, condenou a ré B... SA a pagar à autora Companhia de Seguros A... SA a quantia de € 9.282,08 (nove mil, duzentos e oitenta e dois euros e oito cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.
É dessa decisão que vem interposto o presente recurso, no qual a Ré conclui nos seguintes termos:
1 . salvo o devido respeito por opinião contrária, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento impõe que se responda a algumas das questões de facto de forma diversa da que lhes foi dada pela Meritíssima Juiz a quo,
2 . tendo sido incorrectamente julgados os factos dos pontos 12. dos factos provados e dos pontos 1,2,3 e 4 dos factos não provados da sentença,
3 . nomeadamente por força do depoimento prestado pela testemunha AA, cujo depoimento se encontra gravado no Ficheiro áudio da audiência de julgamento de 05.02.2024, com início às 15:59 e fim às 16:49, nos pontos que se deixaram identificados com precisão no corpo destas alegações;
4 . porque, assim sendo, se impõe a reapreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, por forma a dar como não provados os factos do ponto 12. dos factos provados da sentença e como provados os factos dos pontos 1, 2, 3 e 4 dos factos não provados da douta sentença de fls.;
5 . devendo, por conseguinte, ser julgado improcedente o pedido da autora relativamente aos alegados prejuízos;
6 . porque, mesmo que assim se não entenda, vem alegado na douta p.i. que por causa da avaria dos equipamentos em questão a autora pagou à sua segurada a indemnização peticionada, nela se incluindo o custo da substituição de uma câmara frigorífica no valor de €6.060,00;
7 . porque, no entanto, e conforme se alcança do depoimento prestado pela testemunha arrolada pela autora, Sr. BB, perito de seguros nomeado para regularizar o sinistro em causa nos presentes autos, que se encontra gravado no Ficheiro áudio da audiência de julgamento de 05.02.2024, com início às 15:13 e fim às 15:37, e mais precisamente nos pontos que se deixaram identificados no corpo das alegações: a câmara frigorífica referida na alínea a) do ponto 16. dos factos provados da sentença tinha 30 anos de uso e o seu valor venal era de não mais de €297,94,
8 . impunha-se que, ao invés do entendimento expresso na douta sentença quando afirma que…não competindo aqui fazer qualquer apreciação sobre a eventual depreciação /amortização dos bens, em concreto a câmara frigorífica, a Meritíssima Juíza a quo tivesse levado aos factos provados o facto de a câmara frigorífica, que foi substituída por uma nova, ter trinta anos de uso e um valor venal – apurado pelo próprio perito nomeado pela autora – de €297,94,
9 . que no entender da recorrente releva para a determinação a que haja lugar do quantum indemnizatório a arbitrar a favor da autora;
10 . imposição que decorre, sem margem para dúvidas, da simples aplicação do princípio do apuramento da verdade material e bem assim do disposto no artigo 5º do Código de Processo Civil – que corresponde com profundas alterações ao anterior artigo 264º do CPC – para a qual o signatário fez apelo nas alegações orais que formulou aquando do encerramento da audiência de discussão e julgamento,
11 . pelo que, nestas circunstâncias, deve ser aditado aos factos assentes o seguinte: a câmara frigorífica referida na alínea a) do ponto 16. dos factos provados da sentença tinha 30 anos de uso e o seu valor venal era de não mais de €297,94;
12 . factos que têm manifesta relevância para efeito do cômputo da indemnização que se venha a apurar dever ser suportada pela aqui recorrente dado que a lesada inicial (seja, a segurada da autora) é uma sociedade comercial e os bens avariados estavam afectos à actividade comercial dessa sociedade;
13 . e porque assim, é evidente que no caso que ora nos prende jamais poderia ter aplicação o princípio da reconstituição natural, uma vez que a avaliação económica, para efeitos indemnizatórios, de um bem afecto à actividade comercial respeita, primordialmente…à desvalorização e utilidade de um bem corpóreo que ficou inutilizado, passa pela consideração da sua “vida útil”, considerando-se como tal o lapso de tempo expectável de utilização desse bem … e atém-se às regras contabilísticas inerentes à avaliação do activo e à depreciação dos equipamentos para efeitos fiscais -cfr. acórdão da Relação do Porto, de 15.04.2021, tirado no processo 8879/16.8T8PRT.1.P1, acessível na íntegra em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/7fa68c558d7f14138 2586d500513e94?OpenDocument&Highlight=0,8879%2F16.8T8PRT.1.P1 e Dec. Regulamentar 25/2009, de 14.09, que estabelece o regime das depreciações e amortizações para efeito do IRC, tão grande é a diferença entre o valor do bem avariado e o necessário para a sua substituição, de vinte vezes mais,
14 . e por isso mesmo não pode a aqui recorrida ser prejudicada por via do accionamento de um contrato de seguro outorgado entre a autora a lesada, ao qual o lesante é alheio, que é regulado por estipulações em relação às quais não foi tido nem achado, e que afinal obliteram os princípios inerentes à obrigação de indemnização plasmados nos artigos 562º e seguintes do Código Civil.
15 . Considera, por isso, a recorrente que ao ser arbitrada indemnização a favor da autora com base no pagamento que fez ao abrigo de um contrato de seguro ao qual a recorrente é absolutamente alheia e por via do qual foram aplicadas regras diferentes das previstas na lei substantiva, claramente violadoras do disposto no artigo 566º do Código Civil, que o instituto da sub-rogação não permite;
16. desta forma, ao decidir de forma diversa a douta sentença em crise fez errada aplicação e interpretação do disposto nos artigos 342º, 509º, 562º e 566ºdo Código Civil, pelo que, face ao que se deixa dito, e com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser reapreciada a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, ser dado provimento ao recurso e, em consequência, alterada a resposta aos factos concretos suprarreferidos, dos factos provados e não provados da sentença, por forma a julgar improcedente o pedido formulado com base naqueles;
ou, quando assim se não entenda, julgada procedente a apelação no tocante às demais conclusões que se deixaram expressas.

Veio a Recorrida apresentar contra-alegações, nos termos que dos autos resultam, pugnando pela falta de razão da Recorrente, de facto e de direito e pela manutenção na íntegra da decisão recorrida.

Colhidos os vistos legais, cabe decidir.

II.
Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são de facto e de direito as questões a tratar.
Quanto à primeira, cabe decidir se foram ou não incorrectamente julgados os factos dos pontos 12. dos factos provados e dos pontos 1,2,3 e 4 dos factos não provados da sentença.
De direito e para a hipótese de improceder o argumentário relativo à impugnação da matéria de facto, cabe determinar qual o objecto do direito ao reembolso exercido, mormente decidir se a Ré está obrigada a satisfazer apenas o valor da coisa destruída à data da destruição ou o valor de substituição desta. E é nesta sede que caberá também afrontar a possibilidade de ampliação da matéria assente, por forma a contemplar o valor venal do equipamento quanto ao qual a Recorrente pretende a “redução” do montante a satisfazer.

São os seguintes os factos havidos como provados na sentença recorrida.
1. A Autora exerce a atividade de seguros.
2. No exercício da sua atividade, a Autora celebrou com C..., Lda., um contrato de seguro do ramo “Multirriscos para Pequenas e Médias Empresas”, titulado pela apólice nº ...87.
3. Através do contrato referido em 2., a Autora assumiu a responsabilidade pela regularização dos danos ocorridos no imóvel e no conteúdo do imóvel da Tomadora do Seguro, sito na Rua ..., ... ..., em caso de ocorrência de algum dos sinistros abrangidos pelas coberturas contratadas.
4. Das condições particulares do contrato referido em 2., consta, além do mais, o seguinte:
“Coberturas, Franquias e Limites de Indemnização
Este contrato garante os danos materiais decorrentes de: (…)
Risco elétricos – 1.º risco: Edifício e conteúdo: €15.000,00; Franquia: 10 % Min. 75 €;
Equipamento eletrónico – 1.º risco: Conteúdo: €15.000,00; Franquia: 10% Min. 75€. (…)
“Danos em bens do senhorio
O que está coberto pela apólice
Garante o pagamento das despesas com a reparação ou substituição de bens pertencentes ao senhorio afetados por um sinistro ao abrigo deste contrato
Limites da Garantia
A indemnização só pode ser paga contra a apresentação de documentos comprovativos das despesas efetuadas.
Para sinistros de valor superior a 500,00 euros esta garantia só funciona no caso de o senhorio ou o respetivo segurador, quando exista, não procedam às referidas reparações ou substituições, ficando expressamente excluída nas situações que sejam imputáveis a título de culpa ao senhorio”.
Risco Elétricos
Definições
Acordo de manutenção
Prestação regular de serviços de controle, manutenção e reajustamento de funções efetuada pelo fabricante, fornecedor dos bens, seguros ou firma especializada que consista em: verificação periódica do estado de funcionamento; manutenção preventiva; eliminação de defeitos ou reparações devidas a uso ou desgaste normais; eliminação de falhas e/ou reparações de danos devidos ao funcionamento.
O que está coberto pela apólice
Ficam garantidos os danos causados a quaisquer máquinas elétricas, transformadores, aparelhos e instalações e aos seus acessórios desde que considerados no seguro, em virtude de efeitos diretos de corrente elétrica, nomeadamente sobretensão e sobre intensidade, incluindo os produzidos pela eletricidade atmosférica, curto circuito, mesmo quando não resulta incêndio.
O que não está coberto pela apólice
a) Danos causados a fusíveis, resistências de aquecimentos, lâmpadas de qualquer natureza, tubos catódicos dos componentes eletrónicos, quando não causados por incendio ou pela explosão de um objeto vizinho.
b) Devidos a desgaste pelo uso ou a qualquer deficiência de funcionamento mecânico;
c) Que estejam abrangidos por garantias de fornecedor, fabricante ou instalador;
d) Causados aos quadros e transformadores de mais de 500 KWA e aos motores de mais de 10 HP, salvo convenção diferente expressa nas condições particulares;
e) Custos com trabalhos que se inserem ou deveriam inserir no âmbito dos acordos de manutenção – ver definição incluindo os custos das partes, componentes ou módulos substituídos durante tais trabalhos.” (…)
Equipamento eletrónico (…)
O que está coberto pela apólice
Danos materiais diretamente causados aos bens seguro, incluindo o software dos respetivos sistemas operativos, sempre que estes estejam prontos para operar e sejam utilizados em atividades profissionais conforme o prescrito pelos fabricantes, resultantes de:
a) Negligência, manejo, inadequado, falta de habilidade, erro de operação, ou atos maliciosos de terceiros;
b) Efeitos diretos de corrente elétrica, sobretensão e sobreintensidade, curto-circuito, formação de arcos e todos os outros fenómenos elétricos, estando compreendidos os efeitos da eletricidade atmosférica;
c) Queda, choque, colisão ou introdução de corpos estranhos nos bens seguros;
d) Água proveniente de rebentamento de canos ou esgotos, inundações, ação de geadas, vapores, humidades, bem como de líquidos de qualquer outro tipo;
e) Falhas ou defeitos de projeto, dos materiais, de fabrico, ou de montagem.
5. A 1 de agosto de 2012 entre C... Lda, na qualidade de primeira outorgante e D... Lda, na qualidade de segundo outorgante foi celebrado o contrato de cessão de exploração comercial subordinado às seguintes cláusulas:
Primeira
A primeira-outorgante é dona de um estabelecimento comercial de padaria, pastelaria e cafetaria com venda ao público, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ....
Segunda
Por este contrato os primeiros-outorgantes cedem à segunda, e esta toma para si em cessão, a exploração o estabelecimento comercial identificado e descrito na cláusula anterior nos seguintes termos: (…)
Quinta
Obriga-se a cessionária a manter em bom estado todos os equipamentos, instalações sanitárias, elétricas ou outras, máquinas, vidros, portas, chaves, e tudo o que mais compõe o estabelecimento, designadamente o constantes da relação anexa, entregando-os à sociedade cedente no final do contrato em bom estado de conservação e funcionamento, como se encontram atualmente, sem prejuízo do desgaste de uma prudente e normal utilização. (…)”
6. A ré exerce em regime de concessão de serviço público, a atividade de distribuição de energia elétrica em alta e média tensão, sendo, ainda concessionária da rede de distribuição de energia elétrica em média e baixa tensão no concelho de Vila Nova de Gaia.
7. Assim, a ré abastece de energia elétrica o local de consumo n.º ...300, sito na Rua ..., ..., titulado pela sociedade D... Lda, através da linha de baixa tensão do PTD ESP ...72, que é alimentado pela linha de média Tensão Subterrânea ... –....
8. No dia 3 de setembro de 2021, ocorreram duas interrupções de energia elétrica no local de consumo referido em 7., em consequência de incidentes ocorridos na rede de distribuição de média tensão.
9. A primeira interrupção ocorreu às 10h28, tendo sido reposto o fornecimento pelas 11h 12.
10. A segunda interrupção foi detetada às 12h18 m, tendo sido reposto o fornecimento pelas 19h30.
11. No local de consumo n.º ...300, sito na Rua ..., ..., é explorada uma padaria, sendo que todos os equipamentos que nele se encontram destinam-se à respetiva laboração.
12. Em virtude das interrupções de energia referidas em 8. a 10., que afetaram a instalação elétrica existente no imóvel seguro, advieram danos, nos seguintes equipamentos: câmara frigorifica, máquina de gelo, abatedor de temperatura, máquina de fabrico de gelo, e duas máquinas de lavar loiça, os quais apareceram totalmente ou com componentes queimados.
13. Imediatamente antes das interrupções do abastecimento de energia elétrica, todos os equipamentos que se encontravam no local de consumo encontravam-se a funcionar corretamente.
14. Apenas após as interrupções de abastecimento de energia é que os equipamentos deixaram de funcionar.
15. A tomadora de Seguros C... Lda participou à ora autora a ocorrência do sinistro e comunicou a existência dos danos verificados.
16. Para regularização dos danos foi necessário:
a) Substituição de câmara frigorífica, no montante de € 6.060,00;
b) Substituição de máquina de gelo, no montante de € 1.120,00;
c) Substituição do moto ventilador, no montante de € 165,00;
d) Reparação da placa eletrónica, no montante de € 125,00;
e) Substituição de electroválvula, no montante de € 65,00;
f) Substituição de compressor da máquina de gelo de fabrico, no montante de €2.114,42;
g) Reparação do sensor da máquina de lavar loiça, no montante de € 45,00;
h) Substituição de electroválvula, no montante de € 65,00;
i) Substituição de electroválvula, no montante de € 130,00;
j) Substituição de termostato, no montante de € 44,00;
k) Mão de obra, no montante de € 360,00;
l) Deslocação de técnico, no montante € 20,00.
17. Não foi possível proceder à reparação da câmara frigorífica, da máquina de fabrico de gelo e da máquina de gelo, uma vez que o compressor da câmara frigorífica e da máquina de gelo e o motor triturador da máquina de fabrico encontravam-se queimados.
18. Em virtude do referido em 7. a 17., a autora pagou à tomadora de seguro C... Lda, a quantia total de € 9.282,08, após dedução do valor de € 1.031,34, referente à franquia, (€ 10.313,42 x 10%).
19. À data de 03.09.2021, quer a linha de média tensão, quer o ramal de baixa tensão que abastece o LC supra referido, encontravam-se em condições normais de exploração, dentro do seu tempo de vida útil e instalados de acordo com as regra técnica e de segurança legalmente previstas e em perfeito estado de conservação, não tendo sido detetadas quaisquer anomalias ou desconformidades nas ações de manutenção preventiva a que regularmente são submetidas.
20. A última ação de manutenção preventiva tinha sido levada a cabo em junho de 2021, não tendo sido detetadas quaisquer anomalias ou desconformidades.
21. A ré tem as infraestruturas em causa devidamente protegidas e equipadas.
22. Os incidentes referidos em 8. a 10. dos factos dados como provados, foram devidos a avarias nos cabos da rede subterrânea de Média Tensão que abastece diversos PT’s para além do referido PTD ESP ...72, que obrigaram, primeiro, à identificação das avarias, depois à abertura de vala e reparação dos cabos por meio de união e, finalmente, à reposição do pavimento.
23. A avarias referidas em 22., levaram à atuação das proteções da linha de Média Tensão, que por sua vez levaram à interrupção de fornecimento das três fases do LC em causa e ao corte do abastecimento a um total de 26.086 consumidores.
24. Não há conhecimento de que qualquer desses 26.086 clientes tivesse apresentado qualquer reclamação relacionada com os cortes de abastecimento que se verificaram.
Resultou não provada a seguinte matéria de facto:
1. As avarias referidas em 22. dos factos dados como provados ocorridas na rede de Média Tensão, não geraram quaisquer oscilações no abastecimento suscetíveis de danificar equipamentos em baixa tensão.
2. Quaisquer oscilações que gerassem não teriam impacto na rede de baixa tensão, uma vez que a rede de Média Tensão está protegida ao longo do seu percurso com dispositivos descarregadores de sobretensões, que impedem qualquer passagem para os Postos de Transformação e para a rede de Baixa Tensão a jusante.
3. Se as avarias ocorridas fossem suscetíveis de provocar os danos nos aparelhos identificados na petição teriam forçosamente de ter provocado danos nos restantes equipamentos do LC em causa e nos equipamentos dos 26.086 clientes que foram afetados pelos mesmos incidentes.
4. As avarias que se verificaram na rede de MT apenas provocaram a interrupção de energia em baixa tensão o que constitui um fenómeno equiparado ao desligar e ligar de um interruptor de iluminação de uma habitação, sem que daí advenham danos em equipamentos ligados à rede.

*
Mostram-se cumpridos de modo satisfatório os requisitos específicos da impugnação da matéria de facto, consagrados no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que nada obsta à apreciação da mesma.
Desde logo, visto o desenho legal do recurso em matéria de facto, o reexame a fazer passa, em primeiro lugar, pela reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal “a quo”, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente (recurso de apelação limitada). Daí que esse reexame esteja sujeito a este ónus de impugnação, sendo através do mesmo que se fixam os pontos da controvérsia, possibilitando-se o seu conhecimento pela Relação, que formará a sua própria convicção sobre a factualidade impugnada (Acs. STJ de 04/mai./2010, Cons. Paulo Sá; 14/fev./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt). Porém, fica sempre em aberto, quando tal for admissível, a possibilidade do tribunal de recurso, designadamente por sua iniciativa e perante o mesmo, renovar ou produzir novos meios de prova (662.º, n.º 2, al. a) e b) NCPC), alargando estes para o reexame da factualidade impugnada (recurso de apelação ampliada)[1].
O NCPC preceitua no seu artigo 607.º, n.º 5 que “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”. A estes últimos condicionantes legais de prova, acrescem seja ainda os de natureza substantiva elencados no Código Civil, como os de natureza adjetiva enunciados na mesma lei do processo civil (410.º - 422.º; 444.º - 446.º; 463.º; 446.º, 489.º, 490.º, 516.º NCPC), com destaque para a prova ilícita (417.º, n.º 3 NCPC). Mas também existem outros condicionantes, estes até mais fortes, porquanto decorrem dos direitos humanos e constitucionais, como sucede com o direito a um processo justo e equitativo (20.º, n.º 4 Constituição; 10.º, DUDH; n.º 14.º, n.º 1 PIDCP; 6.º, n.º 1 CEDH; 47.º § 2 CDFUE). Nesta conformidade, podemos assentar que o regime da legalidade da prova, enquanto “imperativo de integridade judiciária”, tanto versa sobre os meios de prova, que correspondem aos elementos que servem para formar a convicção judicial dos factos submetidos a julgamento, como sobre os meios de obtenção de prova, que são os instrumentos legais para recolha de prova, acaba por comprimir o princípio da livre apreciação da prova, estabelecendo as correspondentes proibições de produção ou valoração de prova. Por tudo isto, o princípio da livre apreciação das provas é constitucional e legalmente vinculado, não tendo carácter arbitrário, nem se circunscrevendo a meras impressões criadas no espírito do julgador. O mesmo está desde logo sujeito aos princípios estruturantes do processo justo e equitativo (a) – como seja o da legalidade das provas –, como ainda condicionado pelos critérios legais que disciplinam a sua instrução (b), estando, por isso, submetido às regras da experiência e da lógica comum (i), e nalguns casos expressamente previstos (v.g. 364.º exigência legal de documentos escrito) subtraído a esse juízo de livre convicção (ii), sendo imprescindível que esse julgamento dos factos, incluindo a sua análise crítica, seja motivado (c).
Como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 23-02-2023, proc. n.º 30/21.9T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt: «[…] Os artigos 346.º do Código Civil e 516.º do Código de Processo Civil mandam que na dúvida o juiz decida contra a parte onerada com a prova. Todavia, não existe entre nós norma ordinária ou constitucional que se pronuncie sobre o que deve ser entendido por dúvida, rectius, por dúvida relevante para fazer operar essa consequência.
A nosso ver a prova de um facto num processo judicial e para fins jurídicos é, por princípio, a demonstração de um alto grau de probabilidade (e não de mera possibilidade) de o mesmo corresponder à realidade material dos acontecimentos (dita verdade ontológica). O poder soberano que o Tribunal exerce, impondo às partes, mais que os efeitos jurídicos dos factos, os efeitos práticos da decisão jurisdicional, supõe e exige, como matriz radical da sua própria legitimidade, não uma qualquer probabilidade (apenas mais provável que não) mas um alto grau de probabilidade.
Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz a ideia de que o facto em discussão, mais do que ser possível e verosímil, possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, a um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que, em princípio, se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.
Esta regra carece, contudo, de adequação prática. Trata-se de uma regra que o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há-de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspectos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da acção.
Na verdade, se o padrão de prova for particularmente exigente tal pode conduzir à negação dos direitos, na medida em que dificulta a demonstração dos pressupostos de facto do direito. Todavia, a aceitação de um padrão pouco exigente importa precisamente o mesmo risco, na exacta medida em que ao facilitar a prova de quase tudo acaba por contemporizar com estratégias processuais vagas, difusas e pouco sustentadas, seja do lado activo seja do lado passivo da lide e, portanto, potencia a possibilidade de se fazer a prova do que não é verdade, perturbando o reconhecimento dos direitos correspondentes ao que realmente sucedeu. Por conseguinte, caso a caso o juiz deve adequar essa regra – esse grau de exigência – aos contornos da concreta situação que tem para julgar e ao contexto da prova dos factos que a corporizam.
[…] Nos termos do artigo 414.º do Código de Processo Civil, havendo dúvidas sobre a realidade de um facto, a decisão deve ser desfavorável à parte a quem o facto aproveita. À outra parte não é exigida a prova do facto contrário, basta-lhe tornar o facto duvidoso. Isso mesmo resulta do artigo 346.º do Código Civil segundo o qual à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos e se o conseguir, rectius, se lograr criar dúvidas sobre a verificação dos factos, a questão é decidida contra a parte onerada com a prova. Por conseguinte, o esforço probatório a produzir pela parte sobre quem recai o ónus de prova é tanto maior quanto maior forem as dúvidas sobre o facto criadas pelos meios de prova produzidos pela parte contrária, mesmo que estes não sejam suficientes para fazer a prova do contrário.
Desse modo, na nossa leitura, numa situação como a que nos ocupa, não existe meio de prova que seja, pela sua própria natureza, isto é, abstractamente, mais valioso que outro, e todos se encontram sujeitos não apenas à livre apreciação do tribunal, como, sobretudo, aos critérios racionais de avaliação epistemológica do seu valor probatório relativo.»
Vejamos já a fundamentação da sentença recorrida quanto aos pontos 12 (em detrimento dos dados como não provados nos pontos 1. a 4), ou seja, quanto à causa do dano que justificou o pagamento pela Autora, por via do contrato de seguro:
«Segundo CC, gerente da C... Lda, apesar de num primeiro momento ter referido não se recordar, em concreto, do sinistro a que se reportam os autos, até porque ao longo da sua atividade profissional o estabelecimento em causa teve já diversos sinistros, afinal, já depois de ter sido confrontado com o documento junto aos autos a fls. 33 autoria confirmou), conseguiu concretizar que num desses sinistros verificaram que, após a quebra de energia, alguns dos seus equipamentos ficaram avariados/queimados.
Referiu, mesmo, que tais equipamentos se encontravam em perfeitas condições de utilização antes da quebra de energia elétrica.
Concretizou, ainda, os procedimentos que levou a cabo para regularizar o sinistro ou seja, chamou a equipa que procede à manutenção de tais aparelhos, os quais elaboraram o respetivo relatório técnico junto aos autos a fls. 34 e ss, assim como acionou o seguro junto da autora.
Confirmou, ainda, os equipamentos danificados, bem como a indemnização que recebeu por parte da autora como forma de regularização do sinistro, a qual se encontra corroborado com o documento junto a fls. 36. Salientou que já teve quebras de energia por diversas vezes, mas que, regra geral, nunca advêm danos nos equipamentos.
Também DD, gerente da empresa E..., confirmou que a sua empresa é quem está encarregue da manutenção e assistência aos equipamentos existentes na tomadora de seguro, tendo procedido ao relatório técnico junto aos autos a fls. 34 e ss, o qual confirmou.
Assim, esclareceu que a sua empresa foi chamada ao local seguro, com vista a proceder à análise e avaliação dos equipamentos que teriam sido danificados, tendo atestado não só quais os equipamentos que apresentavam danos, o que foi necessário para a sua reparação/substituição, como inclusive as causas da avaria, nomeadamente “picos de corrente, trovoada, descarga elétrica, oscilações”, (cfr. fls. 34).
Mais atestou, sem qualquer dúvida, de que os danos nos referidos equipamentos não tiveram origem no uso anormal do cliente, nem do mau funcionamento, desgaste do tempo, mas sim, nos problemas decorrentes de “correntes/alimentação/picos de correntes/trovoadas”, até porque nem todos os equipamentos do local de consumo apresentaram danos, mas apenas uns específicos, os que pertenciam ao mesmo circuito de abastecimento elétrico.
De resto, é a sua empresa quem está encarregue de proceder à manutenção/vistoria dos equipamentos da tomadora de seguro, sendo que na última vistoria nenhum problema foi detetado.
A testemunha BB, perito de seguro, afirmou ter sido contratado pela autora para fazer peritagem ao sinistro a que deu origem aos presentes autos.
Referiu, que, quando se deslocou ao local, apesar de não ter analisado/feito a vistoria aos equipamentos, dado que os mesmos já estavam reparados/substituídos, falou com CC e EE, e verificou o equipamento, tendo concluído que a causa dos danos/avarias foi derivada de problemas elétricos, decorrentes da quebra de fornecimento de energia ocorrida dias antes.
Ou seja, de acordo com tal testemunha, a conclusão a que chegou quanto à causa das avarias é compatível com a aventada no relatório técnico juntos a fls. 34 e ss, sendo que, o único ponto de desacordo prende-se com o valor da indemnização a atribuir pela câmara frigorífica, a qual, por ter mais de 20 anos, deveria ter, de acordo com a sua opinião, sido sujeita a um coeficiente de desvalorização.
(…) temos as declarações da testemunha AA, engenheiro eletrotécnico, e trabalhador da ré há já mais de 20 anos.
Assim, tal testemunha confirmou o local de consumo em causa, o titular do contrato, que o mesmo é alimentado pela rede de baixa tensão, e que corresponde ao PT 72, ....
Mais confirmou as ações de manutenção levadas a cabo pela ré, bem como os procedimentos que a ré leva a cabo quando se dá uma quebra de energia elétrica.
Assim, esclareceu que, tratando-se de uma linha subterrânea, quando há alguma avaria, têm, necessariamente, de abrir a vala, fazer medidas de isolamento, manobras para detetar onde é a avaria, e o tempo de quebra de energia é tão maior quanto mais tempo demorarem a detetar o local exato da avaria/do corte.
No caso em apreço, confirmou a quebra de energia, por duas vezes, no dia 3 de setembro de 2021, a qual de deveu a uma avaria detetada no cabo de média tensão.
Esclareceu que tal avaria decorre da normal exploração da rede, ou seja, é inerente à própria exploração da rede, não sendo imputável a qualquer negligência da ré na gestão da sua atividade.
Defendeu, ainda, que as consequências dessa avaria na linha de média tensão, apenas provocam a simples interrupção do fornecimento nos cabos de baixa tensão e que existem os descarregadores de sobretensão que impedem que os danos na média tensão se propague aos danos de baixa tensão.
Daqui que entende que os danos que advieram nos equipamentos da tomadora de seguro não foram provocados pela quebra de energia.
Até porque, a rede em questão abastece mais de 26.000 clientes e nenhum deles, com exceção da autora, reclamou qualquer avaria/dano.
Não obstante, instado para indicar quaisquer outras possíveis causas para tais danos, tal testemunha não conseguiu referir nenhuma, a não ser a dos equipamentos já estarem eles próprios danificados anteriormente.
(…) Já quanto à causa de tais danos, o tribunal não teve dúvida em considerar que adveio do corte de energia elétrica.
Em primeiro lugar e, desde logo, nesse sentido, temos o facto de os danos que os equipamentos apresentavam ser, precisamente o mesmo: “queimado”.
Ou seja, todos os equipamentos apresentavam danos compatíveis com consequência decorrentes de quebra de energia elétrica e não outros como por exemplo, estarem partidos, cabos danificados/roídos, etc.
Em segundo lugar, o único funcionário que procedeu à vistoria dos equipamentos imputou a causa de tais danos a “picos de corrente – trovoada – descarga elétrica – oscilações”, o que por sua vez é compatível não só com os danos que os equipamentos apresentavam (queimados), como também pelo facto de ter havido corte de energia elétrica precisamente por ocasião com o aparecimento de tais danos.
Ou seja, resultou do depoimento de EE, gerente da empresa E... que, um seu funcionário se deslocou ao local de consumo logo após o evento e atestou quais os equipamentos que apresentavam danos, quais os danos que, em concreto apresentavam e, bem assim, a respetiva causa para tais danos.
De facto, não obstante, não ter sido o próprio EE que se deslocou ao local de consumo e procedeu à vistoria dos equipamentos, o certo é que atestou que tal averiguação foi levada a cabo por um seu funcionário, este sim, especialista em tais danos, e que assegurou que os danos que os equipamentos apresentavam, e que a sua causa era precisamente “picos de corrente, trovoada, descargas elétricas, oscilações”.
Ora, da prova produzida resultou que mais nenhum perito/funcionário procedeu à averiguação/vistoria de tais equipamentos, pois quando o perito da autora se deslocou ao local, os equipamentos já tinham sido reparados.
Sem prescindir, tal testemunha afirmou ter concluído pela veracidade do que tinha sido a conclusão do relatório técnico de fls. 34 e ss.
De igual modo, nenhum perito/funcionário da ré se deslocou ao local e procedeu à vistoria dos equipamentos.
Subsequentemente, não foi feita qualquer prova de que a conclusão a que chegou o relatório técnico de fls. 34 e ss não corresponda à veracidade, tanto mais se tivermos em consideração toda a demais prova produzida.
Assim, e em terceiro lugar, todos os equipamentos em causa estavam em perfeito estado de conservação e utilização antes do corte de energia elétrica.
Em quarto lugar, foi precisamente após o reabastecimento de energia elétrica que se detetaram os danos nos equipamentos.
Em quinto lugar, tal como a testemunha CC atestou, o estabelecimento em causa já foi alvo de várias interrupções de energia elétrica, e, ao contrário desta, nunca houve danos nos equipamentos. Ou seja, não se evidencia, sequer, qualquer uso ou costume/habito de tais proprietários lançarem mão, de forma recorrente de tais expedientes para se conseguirem locupletar à custa de terceiros.
Em sexto lugar, as várias avarias inopinadas, tiveram lugar, cirurgicamente, aquando do corte de energia elétrica.
Em sétimo lugar, os aparelhos danificados estavam, precisamente no mesmo circuito de abastecimento elétrico.
Ou seja, houve vários outros equipamentos do estabelecimento que não sofreram qualquer dano, mas apenas aqueles que estavam, rigorosamente na mesma linha de abastecimento elétrico.
Nesse seguimento, e em oitavo lugar, não obsta a tal conclusão o facto de mais nenhum dos 26000 clientes não terem reclamado quaisquer danos decorrentes de tais cortes de energia.
Na verdade, tal como se apurou, mesmo dentro do local de consumo onde ocorreram danos em equipamentos - os que estavam no mesmo circuito elétrico -, outros houve sem quaisquer dano.
Com efeito, resulta das regras de experiência comum e normalidade que nem todos os aparelhos lidam de igual forma com as falhas de eletricidade, existindo vários fatores que contribuem para tal desfecho, nomeadamente estarem ou não no mesmo circuito elétrico.
E nem se diga que a probabilidade e/ou causa para tais danos terem ocorrido deriva do facto de os equipamentos serem já antigos.
Na verdade, não obstante algum equipamento ser antigo, como era o caso da câmara frigorifica (segundo BB foi adquirida em 1991), o certo é que por força das manutenções de que eram alvo e do manuseamento devido, se encontravam em perfeito estado de funcionamento.
Em nono lugar porquanto o depoimento da testemunha AA não mereceu a credibilidade do tribunal, pelo menos na parte em que negou que a causa dos danos adviesse do corte de energia – sem prejuízo da sua credibilidade quanto a outros aspetos do seu depoimento, nomeadamente no que concerne às considerações genéricas que fez da sua atividade.
Desde logo, não podemos olvidar que tal testemunha trabalha para a ré há já mais de 20 anos, pelo que, resulta das regras de experiência comum que uma testemunha que mantém uma relação profissional com uma das partes, não estará, em princípio, numa posição de absoluta isenção e afastamento quanto ao desfecho da causa.
Outrossim, a sua versão esbarra com as regras do senso comum e aquilo que resulta do normal acontecer.
Com efeito, embora o tribunal não possua de conhecimentos técnicos na área de energia elétrica, o certo é que não é credível que a interrupção, abrupta e inopinada, duas vezes seguidas, num único dia, de energia elétrica corresponda ao simples fenómeno equiparado de desligar e ligar um interruptor de iluminação de uma habitação.
Por outro lado, não obstante, segundo tal testemunha, existirem os “descarregadores de sobretensão” os quais têm como função impedir que quaisquer avarias nas linhas de média tensão se propaguem às linhas de baixa tensão, o certo é que se desconhece se tais descarregadores cumpriram a sua função no caso em concreto, ou se, por exemplo, as eventuais sobrecargas/oscilações de potencia e que motivaram as avarias nos equipamentos do local de consumo, tenham tido lugar antes mesmo do acionamento de tais descarregadores de sobretensão.
Por fim, porquanto tal testemunha, apesar de instado pelo tribunal para indicar quaisquer outras possíveis causas para tais danos, tal testemunha não conseguiu referir nenhuma, a não ser a dos equipamentos já estarem eles próprios danificados anteriormente, o que, como se referiu, não ocorria.
Ora, não olvidamos que é a autora que tem de provar que as avarias sofridas encontravam a sua causa na interrupção de energia elétrica.
No entanto, tal não deixa de ser fácil de demonstrar pela simples constatação de que os equipamentos funcionavam plenamente antes do episódio do corte de energia elétrica, que foi logo após a reposição do serviço de energia que se constatou, coincidentemente, todos os equipamentos apresentavam danos, com a mesma causa, (queimados), não sendo necessário, que o lesado prove a causa concreta da anomalia que originou a avaria do equipamento - seguimos bem de perto o Ac. do TRL de 13.09.2007, acessível in www.dgsi.pt, assim sumariado: “O ónus da prova de que determinado evento (interrupção e restabelecimento de energia elétrica) foi a causa de danificação de equipamento instalado no domicílio do consumidor (artigo 342.º do Código Civil), para os efeitos a que alude o artigo 509.º do Código Civil, ou seja, que a destruição do equipamento derivou da condução ou entrega da eletricidade, um tal ónus preenche-se com a prova de que o equipamento se avariou quando foi restabelecido o fornecimento de energia elétrica independentemente do desconhecimento pelo lesado da causa concreta da anomalia que originou a avaria do equipamento.”
Ou seja, tal como nos ensina o referido acórdão, “é inegável que a prova, que incumbia ao A. de que as avarias sofridas encontraram a sua causa na interrupção da energia elétrica foi produzida.
Não é exigível, à luz da doutrina da causalidade adequada, que o ónus da prova do nexo de causalidade se estenda, designadamente quando estamos diante de acidentes cuja causa envolve o conhecimento do funcionamento do complexo sistema de distribuição de energia elétrica, à determinação exata da causa que levou à interrupção e das condições em que se efetuou o restabelecimento do fornecimento de energia elétrica.
Nem verificámos pelos depoimentos transcritos que os técnicos da E.[…] possam garantir cabal e justificadamente que a interrupção de energia elétrica concretamente verificada de forma nenhuma determinou avaria na aparelhagem elétrica da A.
A própria referência que a ré faz ao Regulamento de Segurança de Instalações de Utilização de Energia Elétrica aprovado pelo Decreto-Lei n.º 740/74, de 26 de Dezembro, demonstra que não é impossível que a interrupção do fornecimento de energia eléctrica dê origem a avarias nos equipamentos dos consumidores; se assim não fosse, seria absurda a referência á necessidade de os consumidores adotarem medidas de proteção do respetivo equipamento.
A causa da interrupção do fornecimento de energia elétrica até está determinada: o disparo na linha elétrica em consequência da avaria na linha de média tensão.”
Na situação decidenda, atenda-se, desde logo, como antecede, à motivação pertinente e cuidada primeira instância, que analisa o tipo de testemunhos alvitrados, a partir ainda dos pontos cristalizados do lastro de coincidência das várias versões, no confronto agora com o grau indiciário de probabilidade implicado pelo evento mesmo (a avaria, por “queima” dos circuitos de vários equipamentos localizados na mesma “linha ou circuito” da distribuição de energia) (sobre estes conteúdos, vd. Karl Larenz, "Metodologia da Ciência do Direito", FCG, 2ª edição, 367 e ss.).
A recorrente quedou-se pela interpretação que a própria faz da prova produzida, mas esta não é manifestamente a forma de alterar a matéria de facto, pela via da impugnação ampla, ou seja com base em erro de julgamento, em que na reapreciação da concreta prova se vai constatar se a testemunha disse ou não o que foi vertido na sentença, que não tem a ver com a valoração que o tribunal dá ao depoimento.
A credibilidade refere-se aos resultados do desempenho consciente da testemunha. É o valor ou o mérito intra-pessoal do depoimento. É aqui que se reflecte, pela negativa, o testemunho falso ou a incoerência e contradição no próprio depoimento.
Como elucidam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida” [Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436].
Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.
De todo o modo, a M.ma Juiz mesma, em sede de motivação da decisão de facto, teve o cuidado de desvalorizar fundamentada e pertinentemente o único depoimento a que se reconduz a Recorrente, fundamentando a falta de credibilidade atribuída, assentando a prova do nexo causal entre as interrupções do fornecimento da energia e subsequente retoma deste, mediante variações ou picos de tensão na corrente e o dano nos circuitos dos equipamentos, atestados, em dados perfeitamente conformes a juízos de normalidade e regras da experiência e não desmentidos pelo depoimento novamente convocado.
Repita-se, o que nesta sede determina a procedência do Recurso é a conclusão de que as provas produzidas não consentem a análise feita pelo juiz, de que a análise crítica por ele feita contraria a lógica, a razão e as regras da experiência comum, ou uma qualquer regra de direito material probatório.
Ora, tal não sucede minimamente. Bem ao invés.
Ainda quando se siga o entendimento exposto no Acórdão da Relação de Guimarães, de 26/09/2018[2], nos termos do qual os poderes do Tribunal da Relação não podem ser restritivamente circunscritos à simples apreciação do juízo valorativo efectuado pelo julgador a quo, ou seja, ao apuramento da razoabilidade da convicção formada pelo juiz da primeira instância face aos elementos probatórios disponíveis no processo, devendo antes a Relação, fazendo jus aos poderes que lhe são atribuídos enquanto tribunal de segunda instância que garante um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, efectuar uma autónoma apreciação crítica das provas produzidas (em vista de formar uma convicção autónoma), alterando a decisão caso adquira, face a essa autónoma apreciação dos elementos probatórios a que há-de proceder, uma diversa convicção[3].
A análise crítica dos elementos probatórios (em ordem à justificação racional da decisão – elemento verdadeiramente estruturante e legitimador desta, que lhe confere a natureza de decisão, afastando-a do que seria uma simples imposição judicial) consiste na sua apreciação e valorização, tanto individual como conjugada (na sua relacionação reversiva – na sujeição dos elementos probatórios a mútuos testes de compatibilidade), à luz das regras da normalidade, da verosimilhança, do bom senso e experiência da vida (das leis da ciência, quando for o caso).
Os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.
Assim, tal como a análise crítica das provas produzidas e especificação dos fundamentos decisivos para a formação da convicção (art. 607º, nº 4 do C.P.C.), também a impugnação factual se deve revestir dos mesmo requisitos, resultando, assim, como evidente que devem ser especificados os fundamentos decisivos para a convicção do julgador sobre a prova (ou falta de prova) dos factos, mencionando-se incumbir ao juiz o dever de indicar os “fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade aquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado, sendo certo que tal exigência de motivação não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão”, já que através “dessa fundamentação, o juiz deve passar de convencido a convincente”[4].
Ora, como se antecipou e transcreveu, na motivação da matéria facto tribunal recorrido formou a sua convicção com fundamento nos elementos de prova, que identificou, e fez a valoração de tudo ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, dando relevância a uns elementos de prova em detrimento de outros que, fundadamente, entendeu não possuírem consistente credibilidade que permitissem alicerçar uma motivação positiva sobre a materialidade impugnada.
Com efeito, analisados os fundamentos da impugnação factual efectuada em termos de conclusão genérica e antes da própria análise concreta do meios de prova, poderá desde já afirmar-se que a conclusão que inelutavelmente se retira é a de que o presente recurso de facto, na sua essencialidade, não se funda na desconformidade entre a prova produzida em audiência, aproveitada pelo tribunal recorrido para formar a sua convicção, e os factos que, com base nela, veio a considerar provados, mas antes no entendimento da recorrente de que a interpretação que faze do substrato probatório em que a pretendem alicerçar, é que é merecedora de credibilidade, e não a versão diversa dessa, que permitiu ao tribunal dar como assentes os factos impugnados, assente na análise crítica positiva de um leque de meios probatórios, e que veio a ser acolhida na sentença recorrida.
Atentas as dificuldades – desde logo sob o ponto de vista técnico – em demonstrar a existência desse nexo de causalidade, têm vindo a ser utilizados alguns critérios que poderão ajudar a determinar as consequências desse tipo de anomalia na rede eléctrica. Não deixa de ser verdade que, se considerarmos a tipologia da rede de distribuição de energia eléctrica, o que é estabelecido para um cliente estende-se a todos os clientes ligados à mesma linha de alimentação, o que significa que, existindo uma perturbação na rede, ela propaga-se a todos os clientes ligados à rede comum, tornando-se assim mais provável que a causa dos danos seja atribuída à rede de distribuição quando a perturbação afectou, pelo menos, alguns clientes vizinhos. A ausência de outros danos ou reclamações pode, assim, constituir-se como um indício de que a interrupção verificada não originou uma variação de tensão superior aos limites regulamentares.
Mas não é decisivo, porquanto, como se anota na decisão recorrida, outros factores podem interferir na existência ou verificação de danos e, assim, desde logo, estarem ou não os aparelhos existentes e não danificados especialmente protegidos (por zelo dos proprietários ou características técnicas particulares, v. g, estabilizadores, no break, filtros de linha)…
Sempre não resulta comprovado suficientemente sequer esse pressuposto fáctico, qual seja, o de que a lesada tenha sido o único cliente da F..., S. A. afectada na sequência do referido evento. Certo que referindo desconhecerem as testemunhas arroladas pela A. outras reclamações na sequência, o que não caracteriza o facto-indiciário pressuposto.
Dir-se-á pois que é irrelevante a (alegada) inexistência de reclamações de outros clientes da recorrente, e, por outro, que a (também alegada) não verificação de qualquer dano na rede eléctrica da ré não significa que a sobretensão não tenha aí ocorrido, até porque não caracterizado cabalmente o problema com a linha de média tensão (sabido que é, por exemplo, que descargas atmosféricas se podem constituir como causa de fenómenos de agravamento da tensão).
Num outro plano, como também se anota na fundamentação de facto da sentença, os meios probatórios produzidos também não permitem concluir que a instalação elétrica particular da Autora ou os equipamentos mesmos se encontravam em mau estado, estando a causa da avaria relacionada por exemplo com um curto-circuito no seu sistema mesmo. Ausente, assim, uma causa relacionada com a instalação particular da Autora.
Subsistem, por outro lado, dúvidas sobre a aptidão preventiva absoluta (no plano da impossibilidade, sempre negada pelas múltiplas situações de danos reais e efectivos consequentes a avarias naquela linha que são sujeitos a apreciação judicial), como atestada pela testemunha da Recorrente, dos equipamentos instalados (disjuntores) na linha de média tensão para obstar à verificação de danos nos equipamentos dos clientes.
Ora, a verificação de uma “sobretensão de manobra”, devida à reposição do fornecimento, com a consequência verificada, de lesão efectiva dos circuitos por sobrecarga é uma inferência necessária a partir agora da imediata sequência ao evento demonstrado e admitido (duas quebras no fornecimento) e dos danos apresentados pelos equipamentos, como analisados pelos técnicos devidamente habilitados e referidos na decisão, em termos, pois, de uma probabilidade qualificada de afirmação, a tal certeza bastante com que trabalha o juiz.
Queda-se irrelevante, na ausência outrossim de demonstração pela Recorrente dos registos da tensão efectivamente registada na linha em causa a alusão ao respeito pelos limites regulamentares conclusivamente aventada.
Tudo para dizer que não há razões para alterar o julgamento da matéria de facto pela M.ma Juiz, cabendo julgar improcedente o recurso, nessa parte.
Assim ainda quanto à impugnação da aquisição do valor de substituição havido por assente sob a alínea a) do ponto 16) dos factos, também contida na argumentação da recorrente.
É que, ao contrário do que argumenta a recorrente, o depoimento da testemunha BB não torna duvidoso que a aquisição de máquina para substituir a avariada e cuja reparação era inviável, como comprovou, tenha importado no valor tido por demonstrado, tanto mais que referindo-se à documentação comprovativa da aquisição respectiva… De resto, o pagamento mesmo daquela quantia ao lesado pela Autora, quando se tenha presente, de acordo com juízos de normalidade e regras da experiência, a actividade por ela exercida e o natural rigor no que importa à prova documental das despesas ou gastos ressarcíveis, induz que o valor havido como provado foi efectivamente o despendido na substituição… O que o depoimento da referida testemunha traz é a dúvida daquela quanto à ressarcibilidade da despesa efectivamente documentada no quadro do contratado, por via já do facto cujo aditamento a Recorrente pretende, o do valor de mercado da máquina à data da destruição. No quadro, pois, já não da mera avaliação do dano, mas da averiguação do sinistro… Irrelevante, pois, para colocar em causa o valor despendido com a substituição mesma, reconhecido/atestado, nada resultando daquele depoimento, como de qualquer outro meio de prova, que a lesada tenha adquirido uma máquina com características ou qualidades bem superiores à destruída, sendo o que justifica o valor demonstrado… De resto, tal seria já contrário a juízos de normalidade, quando se atente no facto de o pagamento pela Autora o ter sido após a substituição e sem qualquer comunicação prévia da aprovação do pagamento, com o que inexistindo o “conforto” para a lesada de saber que seria satisfeito o preço e assumindo aquela o risco do prejuízo… Constituindo-se o juízo probatório como um discernimento de probabilidades qualificadas, o valor demonstrado de aquisição da máquina como valor necessário à sua substituição, isto é, como o preço de mercado de uma máquina idêntica à destruída ou danificada é mais do que razoável.
Donde a manutenção do facto respectivo.
Quanto ao valor a indemnizar/ressarcir, assentando-se em que está em causa o instituto da responsabilidade civil (não se impondo aqui analisar, por não dissidência da fundamentação acolhida na sentença, nessa parte, se o é contratual ou extra-contratual, tanto mais que idêntico o quadro legal do objecto da indemnização).
Nos termos do artigo 562.º e 564.º, do C.C., quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstruir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (Princípio da reconstituição ou restauração natural), compreendendo o dever de indemnizar não só o prejuízo causado (dano emergente) como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucro cessante).
Por seu lado, prescreve o artigo 566.º, n.º 1, do C.C., que o obrigado à reparação, na impossibilidade de reconstrução natural da situação que existia antes do acidente, deve pagar ao lesado uma indemnização em dinheiro.
Indemnização pecuniária essa que, nos termos do disposto no artigo 566.º, n.º 2, do C.C., deve medir-se pela diferença entre a situação (real) em que o facto deixou o lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria sem o dano sofrido (teoria da diferença).
Assim, aplicando estas normas ao caso em apreço, pagando a ré à autora o valor por esta despendido com a substituição dos componentes danificados, reconstituirá a situação (hipotética) em que esta se encontraria se não tivesse sofrido os referidos danos (emergentes) em consequência desse incumprimento contratual; quantia essa sobre a qual são devidos juros de mora, à taxa legal, desde a data de citação até integral pagamento (cfr. artigo 805.º,n.º 1, do C.P.C.).
É o que justifica agora a irrelevância da ampliação da matéria de facto à demonstração do valor venal de um dos equipamentos substituídos.
De resto, desde logo, discutível a possibilidade processual de consideração desse facto, por não ter sido oportunamente alegado nos termos que se impunham e manifestada pela parte a vontade de se aproveitar da prova a um tal propósito.
A lei processual civil permite que a parte a quem aproveitem alegue, em articulado posterior ou em novo articulado, os factos modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes (588º, n.º 1 do CPC). A superveniência será subjectiva quando os factos se tenham verificado antes desses momentos, mas a parte deles só tenha tomado conhecimento posteriormente (588º, n.º 2). Os factos supervenientes alegados que interessem à decisão da causa constituem tema da prova, nos termos e para os efeitos dos art 588º, n.º 6 e 596º do CPC. A admissibilidade de alegação de factos supervenientes prende-se não só com razões de economia processual, mas também com a necessidade de aproximação a uma justiça efectiva, tendo em vista o objectivo de que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
Ora, não estando em causa um facto cuja natureza se enquadre em qualquer uma das previsões do nº 2 do art. 5º do CPC, antes um facto modificativo da obrigação de indemnizar, por via da disposição da parte final do nº 1 do art. 566º do CC., o mesmo, ainda quando chegado ao conhecimento da Recorrente apenas na audiência mesma, teria de ter sido alegado pelo modo processualmente exigido.
Não o tendo sido, como dos autos ressalta, não podia ser objecto de consideração probatória.
Sempre se vislumbra que, novamente[5], acertada a decisão recorrida, ao decidir que a indemnização o tem de ser pelo valor de substituição da coisa, que não pelo valor depreciado da destruída, com o que inútil, como adiantado, a pretendida ampliação.
Sendo o fim precípuo da lei que o lesante proveja à directa remoção do dano real, e consistindo este em danos produzidos num equipamento, há que proceder à sua reparação ou, sendo inviável, como sucede in casu, à substituição, por outro idêntico ou similar, por conta do agente, que lhe proporcione igual utilidade e satisfação das suas necessidades, cabendo as despesas tendentes a esta substituição, tal como a reparação material, propriamente dita, na forma de indemnização, por reparação natural, e não na indemnização por equivalente.
A excessiva onerosidade da reconstituição natural tem de ser aferida, não, apenas, em função da diferença entre o preço da reparação e o valor venal do equipamento, mas, também, no confronto entre aquele preço e o valor patrimonial deste, como o valor de uso que dele retira o seu proprietário, sendo que a um insignificante valor comercial daquele pode corresponder a satisfação, em elevado grau, das necessidades do seu proprietário. É errado estabelecer-se a comparação entre o valor venal ou de mercado do equipamento destruído, por um lado, e o custo da sua restituição natural [reparação ou aquisição de bem idêntico, em valor e qualidades[6]], por outro, porquanto os termos da relação são, antes, entre o valor necessário para a satisfação dos interesses legítimos do credor, por um lado, e o custo da restauração natural, por outro. A existência da excessividade da restauração natural resulta da verificação cumulativa de dois requisitos, sendo o primeiro o do benefício para o credor, consequente à reconstituição, e o segundo o de que esta se revele iníqua e abusiva, por contrária aos princípios da boa-fé, pelo que a reconstituição natural será, excessivamente, onerosa para o devedor e, portanto, de excluir, por inadequada, apenas, quando se apresente como um sacrifício, manifestamente, desproporcionado para o lesante, quando confrontado com o interesse do lesado na integridade do seu património. Sendo a regra geral da restauração natural imposta, no interesse de ambas as partes, como modo primário de indemnização, se o credor reclama a restauração natural é ao devedor que pretenda contrapor-lhe a indemnização pecuniária, enquanto réu, que cabe o ónus de alegação e de prova da excessiva onerosidade da mesma, enquanto facto excetivo, justificativo da possibilidade da restituição por equivalente, ou seja, a prova da excepção, isto é, que a restauração natural é, excessivamente, onerosa para si.
Nada disso resulta na situação decidenda.



III.
Assim sendo, e pelas razões acabadas de expender, decide-se negar provimento à apelação, com a consequente manutenção da decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.







Porto, 26 de Setembro de 2024

Isabel Peixoto Pereira

Paulo Duarte Teixeira

António Carneiro da Silva - [ Voto de Vencido: Com todo o devido respeito pela posição que fez vencimento, voto vencido quanto à condenação da ré no pagamento da quantia líquida de € 6.060,00 como indemnização pela danificação da câmara frigorífica, resumidamente pelos motivos que a seguir indico.
Não parece haver dúvida que a recorrente coloca em causa [conclusões 6ª a 8ª do recurso] o juízo probatório que está na base da afirmação da matéria vertida no ponto 16-a) do elenco dos factos provados, matéria cujo ónus probatório indiscutivelmente recai sobre a autora, afigurando-se ao caso notoriamente irrelevante o simples acto de pagamento que a propósito a autora, enquanto seguradora, terá efectuado ao seu segurado, na medida em que a seguradora aparece aqui sub-rogada na posição do lesado.
A própria decisão recorrida reconhece inexistirem elementos seguros que permitam afirmar ser de exactamente € 6.060,00 valor de reposição da câmara frigorífica [cfr fls 17 da decisão recorrida], fundando a sua decisão na circunstância de a autora ter efectuado esse pagamento ao seu segurado [elemento que, como disse, considero em absoluto irrelevante], e no facto de o valor de mercado de uma câmara frigorífica oscilar entre €3.000,00 e €10.000,00, assim considerando razoável o valor de €6.060,00.
Parece-me indiscutível que o apelo a juízos de razoabilidade, normalidade e experiência, no âmbito da decisão sobre a matéria de facto, devem ser enquadrados no regime das presunções judiciais [artigo 349º do Código Civil].
Ora, no caso, o facto base da presunção considerado pelo tribunal refere-se à normalidade de o custo de reposição de uma câmara frigorífica se situar entre €3.000,00 e €10.000,00, não que deve corresponder a exactamente €6.060,00.
Portanto, sabendo-se que o dano ocorreu, não se sabendo o seu exacto valor, e nada apontando para que não seja possível apurar em decisão ulterior, teria, nessa parte, condenado no que se determinar em incidente de liquidação posterior, nos termos do nº 2 do artigo 609º do CPC, onde, aí sim, se poderá justificar o julgado por recurso a juízos de equidade.].

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[1] Mas em ambas as situações, sob pena de excesso de pronúncia e de nulidade do acórdão (666.º, 615.º, n.º 1, al. d) parte final), o tribunal de recurso continua a estar vinculado ao ónus de alegação das partes (5.º) e ao ónus de alegação recursiva (640.º) – de acordo com a primeira consideram-se como não escritos o excesso de factos que venham a ser fixados, face à segunda o tribunal superior não conhece de questões não suscitadas, salvo se for de conhecimento oficioso (Ac. STJ de 11/dez./2012, Cons. Alves Velho, www.dgsi.pt).
[2] Proferido no processo nº 702/18.5 T8BRG.G1. in www.dgsi.pt
[3] Defendiam-no a propósito do regime processual anterior ao introduzido pela Lei 41/2013, de 26/07, ao nível da doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2ª edição revista e actualizada, pp. 283 a 286 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 227 (referindo que, por se encontrar na posse dos mesmos elementos de prova que a 1ª instância, a Relação, se entender, dentro do princípio da livre apreciação da prova, que aqueles elementos impõem uma decisão diferente sobre o ponto impugnado da matéria de facto, alterará a decisão que sobre ele incidiu – a reapreciação da prova pela Relação coincide em amplitude com a da 1ª instância); ao nível da jurisprudência (tirada no âmbito da vigência do anterior regime processual), p. ex., os Acórdãos do STJ de 01/07/2008, de 25/11/2008, de 12/03/2009, de 28/05/2009 e de 01/06/2010, no sítio www.dgsi.pt/jstj.
Posição que doutrina e jurisprudência vêem mantendo (e veementemente reforçando) quanto ao regime processual vigente – p. ex., na doutrina Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, p. 298 a 303 (máxime 302 e 303) e na jurisprudência (por mais recente) o Acórdão do STJ de 8/01/2019, no sítio www.dgsi.pt/jstj.
[4] Cfr. Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348.
[5] Pese embora a localização também em sede de motivação da matéria de facto do argumentário respectivo…
[6] Sequer demonstrada a possibilidade desta.