PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
NULIDADE POR EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário

I - Se na tomada de decisão sobre a (in)divisibilidade de determinado prédio foi essencial a questão do “prejuízo para as partes” que decorreria da divisão do prédio; e se essa questão do prejuízo da divisibilidade do prédio não foi equacionada/alegada/debatida pelas partes, tal integra violação do princípio do contraditório e da proibição de decisão surpresa, a inquinar a decisão com a nulidade por excesso de pronúncia.
II - O problema do prejuízo não pode ser equacionado em abstrato nem à revelia da invocação das partes, alegando o que bem entenderem na defesa dos seus interesses.

Texto Integral

Apelação nº 2938/20.0T8OAZ.P1




ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO





I – Resenha do processado

1. AA, e mulher, BB instauraram ação de divisão de coisa comum contra CC pedindo que seja:
Determinada a indivisibilidade do prédio rústico supra descrito sob o artigo ...º e, bem assim, da quota de compropriedade descrita sob o artigo 4º, ordenando-se a respetiva adjudicação a um dos interessados ou a sua venda.
Sustentaram tal pedido alegando serem comproprietários de 13/20 desse prédio rústico, juntamente com a Ré à qual pertence 07/20.
Existe um muro a dividir os prédios e cada um dos comproprietários tem vindo a usufruir da sua parcela de forma exclusiva e independente, dando-lhe a utilização que entende por conveniente.
O Autor construiu na sua parcela uma habitação com o intuito de a vender; após a construção da moradia, o Autores pretendendo a sua legalização, obtiveram uma certidão de destaque na Câmara Municipal ...; no entanto, para legalização da parcela a destacar na Autoridade Tributária, bem como na Conservatória de Registo Predial, por força do regime da compropriedade, é necessária a colaboração e intervenção da Ré, assinando os documentos necessários para o referido destaque.
Sucede que a Ré, interpelada pelos Autores para o efeito, afirma que não assinará documento algum, pelo que a divisão extrajudicial não se mostrou possível.
Em contestação, a Ré suscitou a ineptidão da petição inicial (os Autores alegam factos que defendem a divisibilidade do prédio, mas requerem seja determinada a indivisibilidade) e impugnou parcialmente a factualidade alegada. Alegou terem existido negociações entre todos para os Autores adquirirem a parte da Ré, mas que saíram goradas pela desistência dos Autores que entenderam que só fariam negócio com ela e com os filhos.
Acresce que no destaque autorizado pela Câmara se constata que foi autorizada a divisão do prédio em duas parcelas (uma com a área de 606 m2 e outra com a área de 4.101 m2) que em nada correspondem às quotas partes indicadas nestes autos.
Por outro lado, a operação de destaque foi efetuada ao abrigo do art.º 6º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE, Decreto-Lei nº 555/99, de 16 de dezembro), ou seja, para rentabilizar uma parte do que consideram ser a sua parcela, os Autores requereram um destaque que não põe fim à compropriedade, antes a vem onerar com a impossibilidade de novo destaque durante dez anos e mais cederam ao domínio público 93 metros do prédio, tudo sem consultar a requerida.
Por fim, como resulta da certidão de destaque, o prédio situa-se em perímetro urbano e ambas as parcelas têm capacidade edificativa, pelo que nada obsta à divisão do prédio.
Os Autores foram ouvidos sobre a exceção da ineptidão da PI, que consideraram não existir.
A Mm.ª Juíza decidiu inexistir ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, julgando improcedente a exceção.
Mais determinou a realização de uma perícia “uma vez que subsistem dúvidas quanto à divisibilidade do prédio em causa”.
Junto aos autos o relatório pericial, dele constam as seguintes conclusões:
I O prédio é indivisível se, as parcelas a criar respeitarem os limites materiais (físicos) existentes ‘’in situ’’ através de muros de vedação em alvenaria, uma vez a parte não delimitada não possuir um acesso público.
II A divisibilidade do prédio é possível, se os limites do mesmo se mantiverem inalterados face ao seu estado inicial, e, não se verificarem como limites materiais (físicos), os existentes ‘’in situ’’ através de muros de vedação em alvenaria.
No cenário de divisibilidade, os quinhões de cada um dos comproprietários corresponderão à quota parte da compropriedade do artigo rustico, ou seja, 13/20 avos do Requerente e 7/20 avos da Requerida.
III A área do prédio constante da certidão do registo predial, caderneta predial rustica e do levantamento topográfico apresentado no processo camarário ...58/2017 e pedido de Certidão de Destaque, é de 4800,00m2.
A área do prédio apurada através do levantamento topográfico realizado é de 3860,00m2, que somada a área cedida ao domínio publico de 93,00m2 perfaz um total de 3953,00m2.
Existe uma diferença na área apurada de 847,00m2.
IV O processo camarário ...58/2017 e o pedido de Certidão de Destaque foram assinados unicamente por um dos comproprietários, no caso pelo Requerente, AA.
V A Escritura de Compra e Venda nada refere quanto à divisibilidade do prédio.
Em conferência de interessados foi tentada, infrutiferamente, a conciliação das partes.
Foi então proferida sentença, em que o Tribunal concluiu «(…) que o prédio é indivisível, prosseguindo os presentes autos para a adjudicação do prédio a uma das partes ou a sua venda.»

2. Para assim decidir, atendeu-se à seguinte factualidade:
1) Os autores são proprietários e legítimos possuidores do prédio rústico, na proporção de 13/20, denominado “...”, situado em ..., ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o art.º ...58 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...35.
2) A respeito deste prédio resulta inserto na certidão de descrição predial a menção à área de 4800m2 (total e descoberta), o mesmo resultando da inscrição matricial, tendo assim uma área inferior a 2,5 hectares.
3) Este prédio foi adquirido pelos Autores por Contrato de Compra e Venda, celebrado por escritura pública, em 29-11-2016, no Cartório Notarial ..., encontrando-se registado a favor dos Autores, na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis, mediante a ap. ...31, de 31-01-... inscrito na matriz, na qual o autor consta como titular do mesmo na proporção de 64987/100000 (que corresponde a 13/20) e a Ré, na proporção de 35013/10000 (que corresponde a 7/20).
4) A parcela propriedade da Ré adveio-lhe por adjudicação em Inventário de partilha, que correu termos no Tribunal Judicial de Oliveira de Azeméis, cuja sentença homologatória da partilha transitou em julgado em 19-12-1986, tendo ficado adjudicada a referida parcela de 07/20 do aludido prédio, constante da verba 14 da relação de bens, à aqui Ré, conforme cópia do referido Inventário e Partilha.
5) Cada um dos comproprietários tem vindo, à vista de toda a gente, a usufruir da sua parcela de forma exclusiva e independente, dando-lhe a utilização que entende por conveniente.
6) O Autor construiu na sua parcela, uma habitação, a coberto do Alvará de Obras de Construção nº ...3/18, emitido pela Câmara Municipal ....
7) Após a construção da moradia, os autores obtiveram uma certidão de destaque na Câmara Municipal ....
8) Atualmente, o prédio encontra-se fisicamente dividido, sendo que parte do mesmo está ocupado com produção florestal, sendo possível o acesso a esta parte através de outros prédios, por caminho de servidão, com acesso na Rua ...; e outra parte com construção, estando esta última parte vedada com muros de alvenaria, possuindo acesso pela Travessa ....
9) O prédio confronta do norte com a Travessa ..., a poente, sul e a nascente com outros prédios.
10) O local tem acesso em boas condições e estacionamento.
11) Em termos de PDM o prédio classifica-se como Solo Urbano – Espaço Residencial I, com aptidão construtiva, não existindo condicionantes na zona onde o prédio está inserido.
12) O processo camarário n.º ..58/2017 deu origem ao Alvará de Obras de Construção n.º ...3/18, para construção de uma moradia unifamiliar de rés-do-chão com 176,51m2 de área de construção e um anexo de rés-do-chão com 39,68m2 de área de construção.
13) O requerimento de obras de edificação foi datado de 21 de junho de 2017 assinado unicamente pelo comproprietário do prédio AA.
14) Em 29 de agosto de 2017 foi apresentado requerimento de junção de elementos ao processo, também ele assinado unicamente pelo comproprietário do prédio AA.
15) O projeto de Arquitetura foi aprovado por informação datada de 16 de fevereiro de 2018; o requerimento dos projetos de especialidades de Engenharia foi apresentado em abril de 2018, assinado unicamente pelo comproprietário do prédio AA, os projetos de Especialidades de Engenharia foram aprovados por informação datada de 19 de abril de 2018; o requerimento de emissão de Alvará de Obras de Edificação foi apresentado em 15 de maio de 2018, assinado unicamente pelo comproprietário do prédio AA e a emissão do Alvará de Obras de Edificação teve informação datada de 5 de junho de 2018.
16) Foi apresentado requerimento para prazo adicional de 12 meses para conclusão dos trabalhos em 9 de junho de 2021, assinado unicamente pelo comproprietário do prédio AA e a informação de aprovação da prorrogação de prazo adicional é datada de 11 de junho de 2021 com prazo de término da obra em 9 de novembro 2022.
17) A divisão do prédio entre os seus comproprietários não se revelou possível até o momento.
18) Em caso de conservação do limite material físico existente actualmente e criado pelos muros de vedação em alvenaria e que separaram a parte do terreno com construção da restante área ocupada com produção florestal, não fica assegurado o acesso à via pública desta última parte ocupada com produção florestal.
19) Caso esses muros de vedação não subsistissem, seria possível o acesso direto à via pública (Travessa ...) para cada uma das referidas partes do prédio, caso em que corresponderia uma área de 3120m2 aos requerentes (por deterem 13/20) e a área de 1680m2 à requerida (detendo 7/20).
20) De acordo com o levantamento topográfico realizado no âmbito da perícia realizada nestes autos, ponderando a área já cedida ao domínio público de 93m2 e à área de parcela a destacar, aos requerentes corresponderá a área de 2509m2 (incluindo a área da parcela a destacar) e à requerida corresponderá a área de 1351m2.
21) De acordo com esse levantamento topográfico a área total do prédio é de 3860m2, que somada com a área cedida ao domínio público perfaz a área de 3953m2.
22) A área do prédio já delimitada com muros de vedação em alvenaria corresponde à área do prédio em construção, ou seja, 2660m2.
23) A área do prédio não delimitado e ocupado com produção florestal corresponde a 1200m2.

3. Inconformada com a decisão, dela apelou a Ré, formulando as seguintes conclusões:
1- A matéria considerada assente nos n.os. 5, 7 e 8, não pode ser considerada assente, uma vez que foi impugnada e os documentos constantes dos autos apontam em sentido diverso.
2- Resulta dos autos que os autores/requerentes construíram uma moradia e muros no prédio objeto da ação, sem que para tal tenham obtido o consentimento/acordo da ré. E mais resulta que com tal atuação procuraram criar uma divisão no prédio, destinando à ré uma parcela sem acesso à via pública. Este comportamento ilícito, porque violador do disposto nos artigos 1406.º-1 e 1413.º, do CC, deve ser tido em consideração pelo tribunal, sendo que não pode beneficiar o infrator, neste caso os autores.
Ora, a douta sentença recorrida beneficia os autores indevidamente.
3- A perícia apenas aponta o prédio como indivisível caso se respeite a divisão que os autores unilateralmente fizeram com muros, uma vez que nesse caso a parcela destinada à ré careceria de capacidade construtiva por não ter acesso público.
4- Seria uma violação do princípio da justiça e do artigo 1406.º, do CC, ter-se em consideração a imposta unilateralmente divisão e para mais quando a mesma é efetuada dum modo escandalosamente penalizador da ré, uma vez que a atira para uma parcela sem capacidade construtiva, enquanto que os autores se assenhoreiam de toda a parte do prédio com frente para o arruamento publico, apropriando-se não só da parcela de terreno onde edificaram uma moradia, mas ainda do restante terreno. E, ainda, os autores reservam para si mais área do que aquele que me função do seu quinhão lhes competiria.
5- O prédio é divisível, física e juridicamente, como se extrai desde logo da certidão de destaque emitida pela Câmara Municipal ..., que permitiu a divisão do prédio em duas parcelas.
6- A sentença erra:
a) Ao equacionar a divisão efetuada pelos autores, uma vez que nenhuma das partes alegou factos que pudessem consubstanciar a existência de tal divisão;
b) Ao considerar uns hipotéticos prejuízos decorrentes duma eventual demolição de muros, uma vez que tal não resulta provado e mesmo que tal ocorresse, porque os muros resultam duma atuação ilícita, não deveriam ser considerados, sob pena de estarmos perante um abuso de direito – artigo 334.º. do CC.
7- Acresce que a sentença, ao suscitar agora a aludida questão do eventual prejuízo, suscita uma questão nova, uma questão não suscitada nos articulados e sobre a qual não foi possibilitado ás partes o exercício do contraditório. Desse modo foi violado o princípio do contraditório e o disposto no artigo 3.º-3, do CPC.
8- Não foram alegados e provados factos que obstem à divisão nos termos do disposto nos artigos 1376.º e 1377.º, do CC, nomeadamente que a divisão pudesse implicar alteração da sua substância, diminuição do seu valor, ou prejuízo para o uso a que se destina.
9- A divisão do prédio permite que o prédio seja valorizado, uma vez que permite a construção nas duas parcelas.
10- A sentença faz uma aplicação inconstitucional do artigo 209.º, do CC, uma vez que impõe uma venda do prédio quando há solução que evite tal, nomeadamente através da sua divisão.
11- A ré indicou e requereu prova, sendo que o tribunal não ordenou a sua produção e desse modo violou os princípios do dispositivo e do inquisitório.
Termos em que deve a sentença recorrida ser revogada e ser o prédio considerado divisível, prosseguindo os autos nos termos e efeitos do artigo 927.º, do CPC.
Ou, caso assim não se entenda, ser a sentença revogada, ordenando-se a produção de prova e prosseguindo os autos em função do que após tal produção vier a ser decidido.

4. Os Autores contra-alegaram, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
5. Apreciando o mérito do recurso
Como se sabe, o objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
Os presentes autos, na forma como foram delineados pelas partes, suscitam várias questões de direito que, contudo, não são equacionadas no recurso.
Assim, no enquadramento das conclusões, são as seguintes as questões a decidir:
· Violação do princípio do contraditório e decisão surpresa
· Violação dos princípios do dispositivo e do inquisitório
· Reapreciação da matéria facto
· Reapreciação da matéria de direito

5.1. Violação do princípio do contraditório e decisão surpresa
Sob este item invoca a Ré que a sentença considerou a questão do eventual prejuízo, que não foi debatida/suscitada pelas partes, traduzindo assim uma questão nova, sobre a qual não foi possibilitado às partes o exercício do contraditório.
A proibição de decisão surpresa é um corolário do princípio do contraditório.
O processo civil é um processo de partes e é na esfera jurídica dos pleiteantes que se irão repercutir as consequências ou efeitos das decisões judiciais.
Essa realidade constitui uma das razões de ser da necessidade de observância do princípio do contraditório, considerado um dos princípios basilares do processo civil. [[1]]
Pretende-se com o contraditório que ambas as partes sejam ouvidas antes da tomada de qualquer decisão, que lhes seja conferida a possibilidade de explicitarem as suas razões, os argumentos de facto e de direito em defesa da tese que sustentam no processo ou que possam influenciar a tomada de qualquer decisão, ainda que intercalar.
É também hoje consensual que o princípio do contraditório se impõe ao juiz impõe-se quando toma conhecimento de questões não suscitadas pelas partes, designadamente em termos de oficiosidade.
É nestes casos, e sempre que o juiz perspetiva a existência de um obstáculo não tido em conta pelas partes, que a necessidade de audição das partes ganha maior acuidade.
Isso mesmo vinha sendo entendido jurisprudencialmente [[2]] e mostra-se hoje plasmado no art.º 3º nº 3 do atual CPC, “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito e de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
E, mesmo «[n]o plano das questões de direito, é expressamente proibida, (…), a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes. Esta vertente do princípio tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, (…).» [[3]]
Vejamos então se tal vício ocorreu.
Lida a sentença, depois de analisar as conclusões I e II do relatório pericial e se debruçar sobre as implicações do art.º 209º do Código Civil (CC), a Sr.ª Juíza discorreu assim: «Queremos com isto salientar que, ainda que fosse possível a divisão do prédio em duas parcelas, com respeito pelo quinhão de cada parte, tal implicava, sempre, consequências prejudiciais. No primeiro caso, a criação de uma parcela encravada, dependente de servidões de passagem. No segundo caso, com destruição de construção já implementada.
Por esse motivo, considera o Tribunal que a hipótese da divisão do prédio é aquela, em rigor, desrespeita o disposto no aludido art.º 209º do CC e suscita situações de desigualdade e prejuízo para as partes.»
Pode, pois, concluir-se que a questão do prejuízo foi essencial para a decisão tomada.
Como segundo requisito para o contraditório/decisão surpresa, há que averiguar se a questão foi ou não debatida nos autos.
Sobre esse aspeto, podemos dizer que a PI é tabelar, no sentido que apenas pugna pela indivisibilidade do prédio, sem nada referir sobre o prejuízo decorrente da divisão.
Em contestação, a Ré também nada diz sobre tal aspeto e pugnou pela divisibilidade (como resulta da certidão de destaque, o prédio situa-se em perímetro urbano e ambas as parcelas têm capacidade edificativa, pelo que nada obsta à divisão do prédio). O que de mais parecido é referido é o que consta dos artigos 12 a 17 dessa contestação, em que se alega, resumidamente: que o destaque autorizado pela Câmara autorizou a divisão do prédio em duas parcelas que em nada correspondem às quotas partes dos títulos das partes; que a operação de destaque requerida e efetuada pelos Autores foi feita de forma a rentabilizar a sua parcela, onerando a compropriedade com o ónus de não fracionamento durante dez anos, para além de terem cedido ao domínio público 93 metros do prédio, tudo sem consultar a requerida.
Ora, esta alegação da Ré integra uma questão de ilicitude/ilegalidade da conduta anterior dos Autores, mas não do prejuízo decorrente da divisibilidade. Aliás, o que se subentende é que a Ré se considera prejudicada com a conduta tomada pelos Autores, à sua revelia, com a operação de destaque.
Depois, temos o relatório pericial (conclusões acima transcritas) que, a nosso ver, não conclui pela (in)divisibilidade do prédio, antes refere a divisibilidade e equaciona as duas possibilidades, como se infere das conclusões I e II.
Notificados deste relatório, apenas os Autores vieram dele reclamar na parte atinente às áreas das parcelas consideradas pelo Sr. Perito. A Ré considerou não lhes assistir razão, o que foi corroborado pela Mmª Juíza (despacho de 25/12/2022).
Concluindo, do relatório pericial resulta a possibilidade de divisão do prédio, como, aliás, se infere da operação de destaque autorizada pela Câmara.
Para a tomada de decisão da Sr.ª Juíza foi essencial a questão da “desigualdade e prejuízo para as partes” que decorreria da divisão, atentos os contornos do caso em concreto.
E não tendo a questão do prejuízo da divisibilidade do prédio sido sequer equacionada/alegada/debatida pelas partes, tal integra violação do princípio do contraditório e proibição de decisão surpresa, a inquinar a decisão com a nulidade por excesso de pronúncia. [[4]]
Considerou-se na sentença que:
a) Em caso de deferimento da divisão com manutenção da divisão material estabelecida, a parcela que, em teoria, seria adjudicada à requerida, ficava encravada, sem acesso directo à via pública, o que, indubitavelmente, alterava a substância da quota-parte pertencente àquela, implicava uma alteração para o seu uso e um prejuízo ou decréscimo do seu valor;
b) Em caso de deferimento da divisão com destruição dos muros de alvenaria construídos, respeitando as áreas naturais e juridicamente declaradas na matriz e no registo, seria possível estabelecer uma divisão entre duas parcelas, ainda que com uma área inferior à unidade de cultura permitida para o local, por se tratar de solo urbano com aptidão construtiva, assegurando o acesso à via pública para ambas as parcelas. No entanto, implicava a destruição dos muros – o que não foi sugerido pelos requerentes -, com prejuízo económico.
Sucede que o problema do prejuízo não pode ser equacionado em abstrato nem à revelia da invocação das partes, alegando o que bem entenderem na defesa dos seus interesses.
Acresce que, no que toca ao problema do encravamento da parcela da Ré, não se teve em conta, designadamente, o teor dos factos provados 5 e 8:
5) Cada um dos comproprietários tem vindo, à vista de toda a gente, a usufruir da sua parcela de forma exclusiva e independente, dando-lhe a utilização que entende por conveniente. [[5]]
8) Actualmente, o prédio encontra-se fisicamente dividido, sendo que parte do mesmo está ocupado com produção florestal, sendo possível o acesso a esta parte através de outros prédios, por caminho de servidão, com acesso na Rua ...; e outra parte com construção, estando esta última parte vedada com muros de alvenaria, possuindo acesso pela Travessa ....
Por outro lado, como bem se diz nas alegações de recurso, 2- Resulta dos autos que os autores/requerentes construíram uma moradia e muros no prédio objeto da ação, sem que para tal tenham obtido o consentimento/acordo da ré. E mais resulta que com tal atuação procuraram criar uma divisão no prédio, destinando à ré uma parcela sem acesso à via pública. Este comportamento ilícito, porque violador do disposto nos artigos 1406.º-1 e 1413.º, do CC, deve ser tido em consideração pelo tribunal, sendo que não pode beneficiar o infrator, neste caso os autores.
4- Seria uma violação do princípio da justiça e do artigo 1406.º, do CC, ter-se em consideração a imposta unilateralmente divisão e para mais quando a mesma é efetuada dum modo escandalosamente penalizador da ré, uma vez que a atira para uma parcela sem capacidade construtiva, enquanto que os autores se assenhoreiam de toda a parte do prédio com frente para o arruamento publico, apropriando-se não só da parcela de terreno onde edificaram uma moradia, mas ainda do restante terreno. E, ainda, os autores reservam para si mais área do que aquele que me função do seu quinhão lhes competiria.
Efetivamente, se todo o processo de destaque foi efetuado à revelia da Ré como se refere nos autos, a conduta dos Autores foi violadora das normas que regulam a compropriedade, designadamente os artigos 1405º nº 1, 1406ºe 2 e 1408º do CC.
E, ainda pertinente ao prejuízo, haveria que apurar se com essa conduta acontece o que se alegava na contestação, ou seja, se para rentabilizar uma parte do que consideram ser a sua parcela, os Autores requereram um destaque que não põe fim à compropriedade, antes a vem onerar com a impossibilidade de novo destaque durante dez anos, mais cedendo ao domínio público 93 metros do prédio, tudo sem consultar a Ré.
Concluindo: incorreu-se na violação dos princípios do contraditório e da proibição de decisão surpresa, a impor a nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

E, nesta perspetiva, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO

7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar nula, e de nenhum efeito, a sentença, por excesso de pronúncia, devendo os autos prosseguir, notificando-se as partes para o exercício do contraditório no tocante à questão do possível prejuízo da divisibilidade do prédio e a consequente instrução que se vier a revelar necessária em conformidade com a posição que as partes vierem a assumir.
Custas do recurso a cargo dos Autores, face ao decaimento.




Porto, 26 de setembro de 2024






Relatora: Isabel Silva
1º Adjunto: Aristides Rodrigues de Almeida
2º Adjunto: António Carneiro da Silva

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[[1]] E, até, de consagração constitucional, enquanto corolário dos princípios do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, plasmados no art.º 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
[[2]] Cf., a título de exemplo, os acórdãos do STJ, de 15.10.2002 (processo 02A2478), de 16.05.2000 (processo 00B354), de 14.05.2002 (processo 02A1353) e de 13.01.2005 (processo 04B4031), todos disponíveis em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[[3]] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 3ª edição, 2014, Coimbra Editora, pág. 9.
[[4]] Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, “Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária”, comentário de 22/09/2020 ao acórdão do STJ de 02/06/2020, proc. 496/13.0TVLSB.L1.S1) e em “Por que se teima em qualificar a decisão surpresa como uma nulidade processual?”, comentário de 12/10/2021, ambos no blog do IPPC, no sítio https://blogippc.blogspot.com, onde concluiu: «Em suma: cabe reafirmar — agora até com argumentação reforçada — que uma decisão-surpresa constitui um vício próprio e autónomo que determina a nulidade dessa decisão por excesso de pronúncia (art.º 615.º, n.º 1, al. d), 666.º, n.º 1, e 685.º CPC)».
[[5]] No que os Aurores concordaram, como se extrai do seu requerimento datado de 13/03/2023, ref.ª 14290264 (página Citius):
Impõe-se referir que desde 1986, quando a Ré adquiriu por partilha a porção de sete vinte avos do prédio, já existia uma divisão física, que se mantinha quando os Autores compraram, a uma irmã da Ré, a porção de treze vinte avos do prédio, consubstanciada na ainda existência de marcos pelo preciso alinhamento atual.
A Ré sempre acedeu à porção que lhe foi adjudicada pela servidão existente e referida pelo Sr. Perito, que, de resto, reúne todas as condições para o efeito.