RESPONSABILIDADE CIVIL
DANO PATRIMONIAL
PRIVAÇÃO DO USO
Sumário

A afirmação de que a privação do uso gera um dano não decorre necessariamente do conceito normativo de dano usado no instituto da responsabilidade civil, dependendo sim das características do bem, da natureza das utilidades que ele proporciona normalmente ao seu titular, do modo como essas utilidades podem ser satisfeitas ou ficam por satisfazer e das demais características do caso, designadamente se e como a coisa era anteriormente usada.

Texto Integral

RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:8179.21.1T8VNG.P1


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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


I. Relatório:
A... Lda., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ...84, com sede em ..., instaurou acção declarativa com processo comum contra AA, contribuinte fiscal n.º ...78, residente em ..., B..., Unipessoal, Lda., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ...74, C... Lda., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ...50, D..., Lda., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ...08, e E..., Lda., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ...04, todas com sede em ..., formulando contra estas os seguintes pedidos:
A- declarado que a autora é proprietária do prédio urbano sito na Rua ..., ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ...10 (proveio do artigo urbano da mesma freguesia e concelho inscrito na matriz sob o artigo ...53), descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº ...33.
B- as rés condenadas a restituírem à autora o identificado imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens, não pertencentes à autora.
C- as rés, solidariamente, condenadas a pagar à autora a quantia mensal de € 6.714,00, desde a citação até à entrega do imóvel à autora, acrescida dos juros de mora à taxa legal, devidos desde as respectivas datas de vencimento e até o seu efectivo pagamento.
Alega para o efeito, em resumo, que é dona do imóvel identificado no pedido, que as rés se encontram a ocupar esse imóvel contra a vontade da autora e sem titulo que o legitime, que essa situação lhe causa danos dos quais quer ser ressarcida.
As rés contestaram, por excepção, excepcionando a inexistência de deliberação da autora a aprovar a instauração da acção contra a 1ª ré e o abuso de direito, e por impugnação, alegando factos para defender que a única ré que ocupa o armazém e com autorização da autora é a B..., Unipessoal, Lda.
Mais alegam que a presente acção não corresponde à posição da sociedade autora, mas à vontade do seu sócio gerente; que a autora foi constituída, no âmbito de relação conjugal existente entre os sócios da mesma e com o único propósito da 1ª ré puder estabelecer-se em Portugal, começando a investir e a trabalhar no ramo da construção civil, tendo sido esta que custeou todas as despesas de constituição da sociedade, de constituição do capital social, de aquisição de bens e de realização de obras; que foi sempre a 1ª ré quem, de facto, geriu a sociedade; que foi a 1ª ré quem, ao longo da vida da sociedade, foi injectando nas contas desta os fundos necessários à aquisição de todos os imóveis que integram o seu património, bem como os fundos necessários para a sociedade poder cumprir os seus débitos para com terceiros; que são inúmeros os conflitos judiciais entre ambos os sócios motivados pelo termo da relação conjugal e que a presente acção não passa de um acto de vingança por parte do sócio BB, contra a sua ex-mulher e 1ª ré.
No despacho saneador foi julgada sanada a falta de deliberação invocada pelas rés.
Na audiência de julgamento a autora desistiu do pedido contra a ré C... Lda., tendo a desistência sido homologada.
Realizado julgamento, foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e, em consequências, foram condenadas as rés a reconhecer a autora como proprietária do prédio identificado e a ré B..., Unipessoal, Lda. também a entregar à autora o prédio, livre de pessoas e bens; os restantes pedidos foram julgados improcedentes e as rés deles absolvidas.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1- A recorrente impugna o segmento da sentença que julgou improcedente o pedido de indemnização da privação do uso do armazém.
2- Resultou provado que a autora, por carta registada a 24.09.2021, interpelou a ré, B..., para no prazo de quinze dias após a recepção da mesma devolvesse à autora o armazém.
3- A ré B... recepcionou a carta a 29 de Setembro de 2021; por isso, a partir de 14 de Outubro de 2021, a ré passou a utilizar o armazém de forma ilegal e abusiva.
4- A ré B... ainda não entregou o imóvel à autora, mantendo-se lá de forma ilegal, abusiva e contra a vontade da autora.
5- Resulta da fundamentação da sentença de forma errada e conclusiva que a autora “Não alega que tinha a concreta vontade de arrendar o prédio e que possibilidade tinha de o fazer”, quando resultou provado que: a) a autora tem no seu objecto social a compra e venda de imóveis, arrendamento de imóveis; b) as demais propriedades da autora que têm condições para serem arrendadas, foram arrendadas; c) a autora tem mais de dez fracções arrendadas; d) o armazém tem bons acessos rodoviários; e) para melhor rentabilizar o armazém é possível fazer-se vários arrendamentos; f) se estivesse arrendado daria à autora um rendimento mensal não inferior a € 3,00/m2.
6- Não restam dúvidas que a autora manifestou a sua vontade inequívoca de pôr no mercado do arrendamento o armazém, se o mesmo lhe fosse devolvido pela 2ª ré, B..., como devia, a 14 de Outubro de 2021.
7- E, não colhe o fundamento, na sentença de que se recorre, segundo o qual a autora “não alega que tinha a concreta vontade de arrendar o prédio e que possibilidade tinha de o fazer, que o mesmo já tinha sido arrendado em momento anterior (sendo que resultou da prova produzida que nunca o foi, pelo contrário, foi sempre cedida a sua utilização gratuita) ou que tinha interessados actuais no arrendamento do mesmo”.
8- É verdade que o armazém estava a ser utilizado pela 1ª ré e pelas empresas por ela tituladas, porque a 1ª ré provisionou a autora da quantia necessária para a sua requalificação. Mas uma coisa são os interesses individuais dos sócios, outra são os interesses da autora sociedade. Não tinha a autora sociedade qualquer obrigação perante a 1ª ré e as suas sociedades em manter uma situação que lhe era lesiva depois da 1ª ré propor acções contra a autora para lhe devolver todas as quantias que esta lhe mutuou para requalificar o armazém.
9- O armazém nunca esteve arrendado antes porque a autora o adquiriu para o reparar e utilizar; aliás, o alvará de autorização de utilização para comércio/prestação e serviços, só foi emitido a 08-01-2020 (facto provado 18), razão pela qual só a partir desta data poderia ser posto no mercado de arrendamento.
10- Não tinha a autora que – para provar a sua vontade de arrendar – apresentar um interessado actual no arrendamento do armazém. Só se fosse um interessado fictício. Ninguém se propõe arrendar um armazém com um ocupante que se recusa a sair apesar de interpelado.
11- Se a Ré B... entregasse o armazém como devia, a 14 de Outubro de 2021, não existiria esta acção em tribunal e de certeza que não faltaria quem quisesse arrendar o armazém por uma renda justa como a que resulta da avaliação pericial junta aos autos.
12- O que não se aceita, na sentença de que se recorre, é reconhecer-se que a ré B... ocupa o armazém de forma ilegal e abusiva desde 14 de Outubro de 2021; que a autora tem todos os seus imóveis com condições para arrendar, arrendados; que um dos objectos da autora é o arrendamento; que o armazém arrendado daria um rendimento nunca inferior a €3,00/m2 e depois decidir-se que: “a autora não sofreu qualquer dano patrimonial efectivo resultante da ocupação que tem vindo a ser efectuada pela 2ª ré”!...
13- Não se aceita que a Mma. Juiz do tribunal a quo na fundamentação da sentença refira que resulta provado que a 2ª ré apenas ocupa cerca de 180 m2. Tal facto não foi alegado pela 2ª ré na sua contestação; não foi submetido ao contraditório e por isso não pode ser considerado facto provado, por violação do princípio do contraditório que deve ser cumprido ao longo de todo o processo, consagrado no artigo 3º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
14- Ocupasse a 2ª ré 1/3, ½ ou a totalidade do armazém, a verdade é que o ocupa e a autora estava, e está, privada da sua totalidade, quem dispunha da utilização do armazém era a 2ª ré e não a autora, que estava impedida de lá entrar.
15- A autora provou que tinha por objecto social o arrendamento; provou que os restantes bens imóveis de que é proprietária – pelo menos dez imóveis – estão arrendados; provou que o armazém tem condições para ser arrendado – tem alvará de autorização de utilização para comércio e prestação de serviços desde 08-01-2020; provou que o armazém arrendado daria um rendimento nunca inferior a € 3,00/m2; provou que a 2ª ré desde 14 de Outubro de 2021 ocupa o armazém de forma ilegal, abusiva e contra a vontade da autora; provou, por perícia junta aos autos, que o armazém no mercado de arrendamento geraria uma renda mensal, nunca inferior a € 6.714,00; provou todos os requisitos necessários e suficientes para lhe ser atribuída uma indemnização pela privação de uso, conforme relevante jurisprudência neste sentido.
16- Deve a douta sentença do Tribunal a quo, de que se recorre, ser revogada na parte em que absolveu a 2ª ré B... do pedido de indemnização pela privação do uso e ser substituída por outra que a condene como se requer.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se estão demonstrados os requisitos para condenar a ré B..., Unipessoal, Lda. a pagar à autora uma indemnização pela ocupação do imóvel da autora.

III. Fundamentação de facto:
Foram julgados provados os seguintes factos:
1. A autora, por contrato de compra e venda outorgado a 11 de Abril de 2016, adquiriu à massa insolvente da sociedade comercial por quotas sob a firma F..., Lda., o prédio urbano constituído por armazém de rés-do-chão e andar, dependência e logradouro, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...10, descrito na primeira conservatória do registo predial de Vila Nova de Gaia sob o número ...33 (documentos nºs 1 a 3 juntos com a petição inicial, que se dão por reproduzidos).
2. O imóvel está inscrito favor da autora pela inscrição AP. ...56 de 2016/04/11.
3. A área total do prédio é de 3.298,40 m2 e a área de implantação do edifício é de 1.274 m2, tem um logradouro de cerca de 2.000 metros.
4. O imóvel tem o valor patrimonial tributário de € 517.320,00.
5. O edifício é constituído por rés-do-chão e andar, com a área bruta de construção de 2.238 m2, com a área bruta privativa de 1.928 m2 e uma área bruta dependente de 310 m2.
6. A autora, por si, e pelos anteriores possuidores possui o identificado imóvel, procedendo ao seu restauro, limpeza, pagando imposto, de forma pública e sem oposição de quem quer que seja, na convicção de que é sua propriedade.
7. A autora, após a compra do armazém em 2016 e até 2019, procedeu à sua remodelação total.
8. O imóvel estava degradado aquando da sua compra.
9. A autora substituiu a sua cobertura, renovou totalmente o rés-do- chão e o andar do armazém.
10. Em obras de remodelação no armazém entre 2016 e 2019, foram despendidos pela autora € 474.519,42.
11. A autora comprou o imóvel por € 266.500,00.
12. A ré B..., Unipessoal, Lda. ocupa o imóvel contra a vontade da autora.
13. A 1ª ré é sócia e gerente das 2ª, 4ª e 5ª rés (cf. certidões permanentes juntas com a petição inicial, contestação e requerimento de 03.10.2022, que se dão por reproduzidas).
14. A ré B..., Unipessoal, Lda. é uma sociedade por quotas, com o capital social de € 5.000,00, em que a única titular é a 1ª ré.
15. A ré D..., Lda., é uma sociedade por quotas, com o capital social de € 100,00, dividida em duas quotas: uma de € 99,00, pertencente à 1ª Ré e outra de € 1,00, pertencente a CC, e a sociedade obriga-se com a intervenção de um gerente.
16. A ré E..., Lda. é uma sociedade por quotas, com o capital social de € 1.500,00, dividida em três quotas no valor de € 500,00 cada, uma é titulada pela 1ª ré e duas pela 2ª ré. A sociedade obriga-se com a assinatura de um gerente.
17. A 1ª ré, AA, instalou a organização e funcionamento da 2ª ré no armazém (confessado na parte provada).
18. Em virtude das obras de que foi objecto foi-lhe atribuído o alvará de autorização de utilização nº ...6/20 para comércio/prestação de serviços (documento nº 9 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido).
19. A 1ª ré instalou no imóvel a organização de produção da actividade comercial da ré B..., Unipessoal, Lda., onde trabalham, a tempo inteiro, três funcionários da mesma e onde desenha o vestuário.
20. A 1ª ré instalou no rés-do-chão do imóvel um ginásio, que utiliza.
21. O IMI do imóvel é pago pela autora e 1ª ré.
22. A 1ª ré foi destituída de gerente da autora, por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, de 14 de Setembro de 2021, onde se refere que “o pedido de destituição formulado pelo recorrente fundamentou-se na utilização de um imóvel da sociedade comercial “A..., Lda.”, sem o consentimento deste e contra a sua vontade, por iniciativa/decisão da recorrida, em seu próprio benefício ou de outras sociedades comerciais de que é sócia e gerente, sem o pagamento de qualquer contrapartida por essa utilização, bem como no facto de uma daquelas sociedades comerciais, a sociedade comercial C..., Lda. “exercer actividade concorrente, a favor da qual a recorrida cedeu os trabalhadores da sociedade comercial “A..., Ld.ª “, que estavam no activo” (documento nº 10 junto com a petição inicial, com certidão junta com o requerimento de 07.10.2022, que se dá por reproduzido).
23. As rés foram interpeladas, por cartas datadas e registadas a 24.09.2021, todas dirigidas para a Rua ..., ..., ..., para no prazo de quinze dias após a recepção das mesmas, devolverem à autora o armazém.
24. As cartas foram todas recepcionadas pelas rés em 29 de Setembro de 2021.
25. A 2ª ré não entregou o imóvel à autora.
26. A autora tem como objecto social a compra e venda de imóveis e revenda para esse fim, promoção imobiliária, arrendamento de imóveis e construção civil (cf. certidão permanente da autora junta com a petição inicial, com a resposta e requerimento de 03.10.2022).
27. As demais propriedades da autora que têm condições para serem arrendadas, foram arrendadas.
28. A autora tem mais de dez fracções arrendadas.
29. O armazém tem bons acessos rodoviários.
30. Para melhor rentabilizar o armazém é possível fazer-se vários arrendamentos.
31. Se estivesse arrendado daria à autora um rendimento mensal não inferior a € 3,00/m2.
32. A 1ª ré é sócia da autora.
33. Os dois sócios da autora mantêm entre si relação conflituosa.
34. Foi a ré AA quem custeou a aquisição do imóvel e as despesas de renovação do armazém da autora, bem como todas as demais despesas desta, através de suprimentos à sociedade.
35. A 2ª ré ocupa o armazém desde a conclusão das obras, com a anuência da autora até Setembro de 2021.
36. A 4ª ré, D..., Lda., que se dedica a actividades relacionadas com os cavalos e desportos equestres, nunca teve sede, nunca laborou e nunca ocupou o armazém, possuindo noutro local as instalações adequadas ao desenvolvimento da sua actividade, designadamente boxes e paddocks para cavalos (cf. certidão permanente junta como documento nº 4 com a contestação quanto à actividade da sociedade).
37. A 5ª ré, E..., Lda., alterou a sua sede para a Rua ..., a 28.05.2020, não laborando nem ocupando o armazém em causa (cf. certidão permanente junta com o requerimento de 03.10.2022).
38. A 1ª ré, sócia da autora, apenas utiliza o armazém enquanto gerente da 2ª ré.
39. O ginásio que existe no rés-do-chão do armazém sempre foi utilizado por ambos os sócios da autora e amigos do sócio-gerente.
40. A sociedade autora foi constituída entre a 1ª ré e BB, ainda solteiros, no dia 11.04.2012, com o capital social de € 5.000,00, dividido em duas quotas, de igual valor, cada uma titulada por cada um dos dois sócios.
41. A 1ª ré e BB casaram em ../../2012, na Bélgica, estando tal casamento transcrito em Portugal, tendo tal casamento sido precedido da celebração de convenção antenupcial (cf. assento de casamento e convenção juntos como documentos nº 5 e 6 da contestação com tradução junta a 09.06.2022, que se dá por reproduzido).
42. O regime de separação de bens foi escolhido pelo casal atendendo à desproporção dos patrimónios de cada um dos cônjuges.
43. A sociedade autora foi um projecto profissional da 1ª ré.
44. Quem custeou todas as despesas inerentes à constituição da sociedade e quem assegurou todas as entradas para a realização do capital social foi a 1ª ré.
45. Desde o início do funcionamento da sociedade, BB nunca teve qualquer interferência, nunca participou nos negócios desta e nunca trabalhou na empresa.
46. BB foi nomeado gerente da A... por deliberação de 25.03.2014.
47. A 1ª Ré tem necessidade de se deslocar regularmente à Bélgica, onde tem interesses económicos que exigem a sua presença.
48. Em 06.11.2014 foi constituída a sociedade G..., Lda., com o capital social, de € 5.000,00, dividido por três quotas, uma no valor de € 3.000,00 pertencente a BB, uma no valor de € 1.000,00 pertencente à 1ª ré e uma no valor de € 1.000,00 pertencente a DD, tendo sido nomeados gerentes BB e DD (documentos nºs 9 e 10 juntos com a contestação, que se dão por reproduzidos).
49. A sociedade detinha um bar, situado junto à praia da ... e BB passou a trabalhar nesse bar.
50. A Autora adquiriu diversos imóveis e veículos automóveis, graças ao investimento massivo da 1ª ré, até hoje não recuperado, posto que foi a 1ª ré quem, ao longo da vida da sociedade até ao presente, foi injectando nas contas desta os fundos necessários à aquisição de todos os imóveis que integram tal património, e bem assim os fundos necessários para a sociedade poder cumprir os seus débitos para com terceiros, incluído as obras realizadas no armazém em causa.
51. A 1ª ré efectuou empréstimos à autora no valor de € 3.660.886.71.
52. O sócio BB efectuou empréstimos à autora no valor de € 54.979,81.
53. BB intentou contra a 1ª ré uma acção de destituição de titular de órgão social da autora, que deu entrada a 15.05.2020 e que corre termos no Juízo do Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 5, sob o n.º ...52/20.0T8VNG, que foi julgada improcedente em primeira instância e procedente na 2ª instância, encontrando-se pendente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (documentos nºs 13, 14 junto com a contestação).
54. A 1ª ré intentou contra BB, a 05.08.2020, uma acção de destituição de gerente da autora, que corre termos no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 1, sob o n.º ...87/20.7T8VNG, ainda sem decisão (documentos nºs 14 junto com a contestação).
55. Em razão da ruptura do casamento, a 1ª Ré instaurou acção de divórcio contra BB, que correu termos pelo Tribunal desta Comarca, no Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Gaia – Juiz 3, sob o n.º ...97/20.8T8VNG, tendo sido decretado o divórcio por mútuo consentimento, por sentença proferida a 01.06.2021, transitada em julgado (documento nº 15 junto com a contestação e certidão junta a 06.10.2022, que se dão por reproduzidos).
56. Encontra-se pendente processo crime por violência doméstica, que corre termos com o n.º ...71/20.9PIVNG, do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia - Juiz 4, tendo BB sido condenado pela prática desse crime, por sentença não transitada em julgado (documento nº 16 junto com a contestação e certidão junta a 06.10.2022, que se dão por reproduzidos).
57. Os créditos da 1ª ré sobre a autora relativos ao período desde a constituição da sociedade até ao ano de 2019, foram reconhecidos judicialmente na acção de fixação judicial de prazo para a restituição, pela sociedade, dos suprimentos que a 1ª ré lhe fez, no montante de € 3.308.542,20, que corre termos no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 6, sob o n.º 6643/20.9T8VNG, que fixou em nove meses o prazo para a sua restituição e na acção de condenação que corre termos no Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 2, sob o n.º 6642/20.0T8VNG, julgada procedente por sentença proferida a 09.06.2021, transitada em julgado, nos termos da qual a Autora foi condenada a restituir à 1ª ré as quantias por ela mutuadas, de €350.000,00 e de €2.344,51, acrescidas de juros de mora (documentos nº 17 e 18 juntos com a contestação, documento nº 5 junto com a resposta e certidão junta a 06.10.2022, que se dão por reproduzidos).
58. Posteriormente, nos anos de 2020 e 2021, a 1ª ré continuou a pagar contas da sociedade, nomeadamente dívidas fiscais, algumas já em fase de execução que o gerente BB não pagou.
59. A 1ª ré solicitou a restituição dessas quantias à sociedade.
60. O sócio-gerente BB sempre soube e sempre anuiu à utilização do armazém pela 1ª ré e pela 2ª ré até ao mês antecedente à propositura da presente acção.
61. No espaço de armazenamento da autora foram também guardadas, por BB, vários objectos que pertencem ao bar da G..., Lda.
62. BB frequentou o ginásio sempre que quis.
63. A 2.ª ré chegou a desenvolver uma marca de roupa de praia e desde final de 2016 exercia a actividade no armazém da autora.
64. No armazém também está instalada gratuitamente a sociedade H..., Lda.
65. No Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Porto - Juízo de Execução - Juiz 5 corre uma acção executiva com o nº. ...79/21.3T8PRT da 1ª ré contra a autora onde lhe é exigido o pagamento de € 365.603,96 mais custas prováveis tendo para o efeito penhorado cinco apartamentos (documento nº 4 junto com a resposta, que se dá por reproduzido).

IV. Matéria de Direito:
O objecto do recurso é somente a decisão de absolver a ré B..., Unipessoal, Lda. do pedido de condenação a pagar à autora, a título de indemnização pela ocupação ilegal do imóvel, a quantia mensal de €6.714,00 desde a citação até à entrega do imóvel, acrescida de juros de mora.
A recorrente pede a esta Relação que altere a sentença recorrida, condenando essa ré (e só ela) no pagamento da referida indemnização.
Antes de entrar na apreciação dessa questão jurídica, impõe-se uma precisão quanto à fundamentação de facto.
É referido na fundamentação de direito da sentença que «resultou da prova produzida em audiência que a 2ª Ré apenas ocupa cerca de 180 m2». Ora este facto não foi julgado provado e, como tal, não está incluído na fundamentação de facto da sentença que é composta pelos factos julgados provados. O tribunal só pode alicerçar a sua decisão na fundamentação de facto da sentença, isto é, só pode proceder à qualificação jurídica e subsunção dos factos julgados provados, estando-lhe vedado usar argumentos de facto que não façam parte daquela fundamentação, razão pela qual aquela afirmação tem de ser afastada.
A recorrente alegou que o facto em apreço «não foi submetido ao contraditório e por isso não pode ser considerado facto provado, por violação do princípio do contraditório». Trata-se de uma afirmação sem objecto: o facto não foi mesmo julgado provado, pelo que o que deve ser afastado não é que o tenha sido (porque não foi) é que seja usado na fundamentação de direito da decisão.
Já a recorrida defendeu que o facto em questão foi demonstrado pela prova produzida em audiência. Porém, ainda que assim fosse, como ele não foi julgado provado, a recorrida teria de fazer uso da faculdade prevista no artigo 636.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, da ampliação do objecto do recurso, requerendo à Relação a alteração da decisão sobre a matéria de facto e o julgamento desse facto como provado. O que não é possível é defender que como a prova produzida permitia julgá-lo provado deve ser tido como provado, quando o não foi e essa decisão não foi objecto de impugnação nos termos legalmente previstos.
Por tudo isso, a questão jurídica suscitada será decidida tendo como fundamentação de facto apenas os factos que a 1.ª instância julgou provados, não o facto referido a despropósito na fundamentação de direito da sentença recorrida.
Dito isto, foi já decidido, e nessa parte não há recurso da decisão, que o imóvel pertence à autora, que está ocupado pela ré B..., Unipessoal, Lda., que essa ocupação não está legitimada por título válido, constituindo uma violação ilícita do direito de propriedade da autora e, consequentemente, que aquela sociedade deve restituir à autora o imóvel livre de pessoas e bens.
O que se questiona é somente se a ré ocupante deve ainda pagar uma indemnização por, em consequência da prática desse ilícito, causar à autora um dano.
Está por isso colocada a questão de saber se estão reunidos todos os pressupostos da obrigação de indemnizar com fundamento na responsabilidade civil (artigo 483.º do Código Civil) e, estando, a questão de saber como se calcula a indemnização pelo dano.
É sabido que o dano é um dos pressupostos da obrigação de indemnizar: para que essa obrigação se constitua não basta a prática do ilícito, é ainda indispensável que em resultado dessa actuação do agente sobrevenha um dano para o lesado. A actuação ilícita e culposa que não desencadeie dano para o atingido não gera a obrigação de indemnizar.
A nossa lei civil não contém uma definição de dano, nem estabelece o modo que proceder à avaliação do dano, apenas menciona que a medida da indemnização é o resultado da avaliação entre duas situações, a actual ou real e a hipotética (artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil; Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª edição, pág. 389).
Segundo informa Mota Pinto, in Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, I Vol., 2008, pág. 540, a doutrina costuma fornecer uma noção geral de dano, definindo-o como a lesão ou prejuízo real, sob a forma de destruição, subtracção ou deterioração de um certo bem (Pereira Coelho, O problema da Causa Virtual, 1998, pág. 188), a lesão de bens juridicamente protegidos do lesado, patrimoniais ou não, uma desvantagem de uma pessoa que é juridicamente relevante por ser tutelada pelo Direito ou como diminuição duma qualquer vantagem tutelada pelo Direito, ou de um bem, em sentido amplo, que seja protegido (Menezes Cordeiro, Direito das obrigações, II, págs. 283 e 300).
No caso, se estiver provado que a autora, se não tivesse sido privada do uso do imóvel, tê-lo-ia arrendado a terceiros e dessa forma obtido uma determinada renda, deve aceitar-se sem dificuldade que a autora sofreu um dano real, indemnizável e cuja medida é o valor da renda perdida.
Porém, a dificuldade em afirmar a presença de um dano acentua-se quando em consequência do acto ilícito o lesado não sofre uma qualquer diferença patrimonial (em consequência do acto danoso não teve que suportar qualquer despesa ou não se viu privado de qualquer receita), apenas se vê privado da possibilidade de fazer uso da coisa que foi ilicitamente atingida pela actuação do agente.
A teoria da diferença não resolve todas as questões co-envolvidas na autonomização do dano como pressuposto da indemnização porque a determinação da situação hipotética que é um dos polos da comparação que delimita a medida da indemnização se defronta com as dificuldades próprias de se tratar de uma situação meramente hipotética, de uma situação que não sucedeu nem vai suceder, que apenas se conjectura e cujas variáveis não são inteiramente certas, para além de serem futuras e, por isso, passíveis de serem influenciadas por outros factores.
No caso resultou provado que o imóvel é um prédio urbano com área total de 3.298,40 m2, constituído por armazém de rés-do-chão e andar, dependência e logradouro, sendo a área de implantação do edifício de 1.274 m2, e a área do logradouro de cerca de 2.000 metros.
A ré B..., Unipessoal, Lda. funciona nesse armazém, onde tem a trabalhar, a tempo inteiro, 3 funcionários, e onde a ré AA desenha vestuário.
Todavia, resultou ainda provado que no rés-do-chão do imóvel existe um ginásio, que é utilizado pela ré sociedade e por ambos os sócios da autora e amigos do sócio-gerente, e que no armazém está instalada gratuitamente outra sociedade (a H..., Lda.) e um dos sócios da autora guarda vários objectos que pertencem a outra sociedade (a G..., Lda.).
Daqui se extrai que a ré não ocupa a totalidade do armazém, isto é, a sua actuação não é causa adequada da privação total do armazém da autora e para cujo ressarcimento esta reclama a indemnização, sendo certo que se desconhece o espaço ocupado pelos bens que o sócio da autora ali guarda de outra sociedade de que é sócio e pela outra sociedade que o mesmo permitiu que ali se instalasse gratuitamente.
Noutra dimensão, resultou provado que a autora tem como objecto social a compra e venda de imóveis e revenda para esse fim, promoção imobiliária, arrendamento de imóveis e construção civil. Trata-se de um objecto social amplo que não implica que todos os imóveis se destinem ao arrendamento, podem perfeitamente destinar-se à venda ou à utilização, total ou parcial, para o desenvolvimento da própria actividade da empresa e/ou dos respectivos serviços administrativos e/ou logísticos, caso existam ou sejam criados.
No entanto, provou-se que os demais imóveis da autora com condições para serem arrendadas, foram arrendados; todavia isso sucede com fracções urbanas (ponto 28) sendo que no caso está em causa um armazém. Provou-se ainda que o armazém tem bons acessos rodoviários, possui alvará de autorização de utilização para comércio e prestação de serviços, pode ser objecto de vários arrendamentos e que o seu valor locatício não é inferior a €3,00/m2/mês.
Extrai-se destes factos que a autora podia arrendar o armazém e com isto obter um rendimento mensal e que a sua natureza comercial e o seu objecto social indiciam a probabilidade dessa utilização.
Todavia, não se pode descurar que até ao momento em que se instalou o conflito pessoal, económico e societário entre os únicos sócios da autora que durante algum tempo foram casados entre si (BB que aprovou sozinho a deliberação social da instauração da presente acção e AA que é sócia da autora, em conjunto com aquele e única sócia da ré) e nessa situação constituíram a sociedade autora, a ré ocupou o imóvel com autorização da autora e sem efectuar o pagamento de qualquer contrapartida ou renda.
Por conseguinte, essa situação só pode mudar por decisão do actual representante da autora, obviamente relacionada com o desenvolvimento daquele conflito e o entendimento pessoal de cada um dos sócios sobre a melhor forma de sair a ganhar desse conflito.
Por fim, está provado que a autora foi constituída pela AA e pelo BB com o capital social dividido em duas quotas, de igual valor, tituladas por cada um deles, mas foi a AA que suportou todas as despesas inerentes à constituição da sociedade, assegurou todas as entradas para a realização do capital social, custeou a aquisição do imóvel e as despesas de renovação do armazém, e todas as demais despesas da autora, através de suprimentos, não tendo o BB tido, desde o início da sociedade, qualquer interferência ou participação nos negócios desta ou trabalhado na empresa.
Está ainda demonstrado que a ré AA efectuou à autora suprimentos e/ou empréstimos no valor de quase três milhões e meio de euros, tendo sido já fixado prazo para a sua devolução pela autora, o que esta não fez estando já pendente execução para cobrança de parte desse valor.
Neste contexto parece poder concluir-se que as sociedades estão única e exclusivamente ao serviço dos interesses pessoais dos respectivos sócios e do modo como estes entendem servir-se das sociedade para alimentar o conflito entre eles (basta ver a cedência que o BB fez gratuitamente de parte do armazém a outra empresa), que a autora é resultado de investimentos significativos da ré AA e só desta, que o armazém foi adquirido e inteiramente remodelado em nome da autora, mas com dinheiro da ré AA que continua desembolsada dele.
Nestas circunstâncias de facto, na nossa opinião não é possível afirmar que a ocupação do armazém pela autora até ao trânsito em julgado da acção cause à autora um dano material real, efectivo, isto é, que a prive de um rendimento que se não fosse aquela ocupação e o modo como os sócios da autora e da ré usam as duas sociedades para atingirem os seus fins pessoais no conflito que os divide seria obtido com toda a probabilidade.
E com essa conclusão somos levados à questão de saber se não obstante isso há lugar a indemnização só por a sua proprietária estar privada da disponibilidade do armazém, ou seja, se a mera privação do uso, leia-se, da possibilidade de usar o bem, constitui para o proprietário um dano juridicamente indemnizável.
É conhecido que o chamado dano da privação do uso acabou por ser reconhecido como um dano passível de ser indemnizado. Todavia, os casos em que o mesmo gera o direito à indemnização, rectius, os pressupostos da indemnizabilidade da privação do uso, estão longe do consenso havendo várias posições sobre essa matéria. Entre nós, mesmo no Supremo Tribunal de Justiça subsistem divergência como dá conta o Acórdão dos Supremo Tribunal de Justiça de 17-11-2021, proc. n.º 6686/18.2T8GMR.G1.S1, in www.dgsi.pt, no qual a maioria dos Conselheiros seguiu uma posição e o Conselheiro vencido outra posição, todos dando conta da existência de divergências naquele tribunal.
O que está essencialmente em causa é saber se para haver lugar à indemnização basta a possibilidade abstracta do uso, isto é, que o proprietário tenha sido privado do poder, compreendido no seu direito de propriedade, de decidir usar, ou se, pelo contrário, é necessário que tenha sido perdida a possibilidade concreta de fazer esse uso, ou seja, que tenham sido perdidas vantagens concretas que seriam obtidas com o uso efectivo. Na primeira hipótese o proprietário apenas tem de fazer a prova de que foi privado (da disponibilidade) do uso, no segundo é ainda necessário provar que se o bem estivesse disponível, ele seria aproveitado, seriam tiradas utilidades dele.
Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, pág. 301 e seg., Abrantes Geraldes, in Temas da responsabilidade civil, I, Indemnização do dano da privação do uso, Júlio Gomes, in O dano da privação do uso, Revista de Direito e Economia 12, 1986, pág. 231 e seg., e in Custo das reparações, valor venal ou valor de substituição?; O conceito de enriquecimento, o enriquecimento forçado e os vários paradigmas do enriquecimento sem causa, Universidade Católica Portuguesa, 1998, págs. 257 e seg. e 274 e seg., Almeida Costa, in Direito das obrigações, 10.ª ed., 2006, pág. 777, nota 3, defendem, com argumentos não inteiramente coincidentes, que o dano da privação do uso é sempre, só por si, um dano indemnizável, já que o mero uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano, uma vez que tem um impacto negativo na esfera do titular do direito.
Para Abrantes Geraldes, «o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, do mesmo modo que confere ao proprietário o direito de não usar. A opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectada pela privação do bem. Neste contexto, sendo a indisponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excepcionalmente, perante um quadro factual mais complexo, será possível afirmar que a paralisação não foi causa adequada de danos significativos merecedores de justa indemnização. Sob uma diversa perspectiva ligada à teoria das normas, que serve para determinar como deve processar-se a distribuição do ónus da prova em situações como esta, não deve recusar-se sequer a seguinte proposição: a privação do uso corresponde a um facto constitutivo do direito de indemnização correspondente ao dano imediatamente emergente; constatada a privação do uso determinativa da perda temporária das faculdades inerentes ao direito de propriedade, a negação da indemnização pressuporá a contraprova de factos atinentes ao inerente prejuízo patrimonial».
Paulo Mota Pinto, Dano da privação do uso, in Responsabilidade Civil, cinquenta anos em Portugal, quinze anos no Brasil, II, pág. 226 e seg., sustenta que «há que distinguir, por assumirem diversa relevância para efeitos de regime, entre a faculdade abstracta de utilização da coisa, os direitos de utilização resultantes, por exemplo, de um contrato destinado a proporcionar tal gozo, e as concretas e determinadas vantagens retiradas do gozo da coisa. A primeira, como possibilidade abstracta (embora referida a uma coisa determinada), é logo inerente ao licere que constitui o “lado interno” dos direitos de domínio e não tem uma estrita vinculação temporal, na medida em que o direito de usar e fruir uma coisa (não deteriorada) pode ser exercido num momento posterior. Confere ao proprietário um “espaço de liberdade”, dependente na sua actualização da possibilidade e opção de uso. Os direitos de gozo fundamentam-se num título (normalmente um contrato) que molda decisivamente o seu âmbito e visa justamente proporcionar uma possibilidade de gozo, e por um período de tempo limitado, distinguindo-se daquela faculdade de utilização do proprietário (como é patente, além do mais, quando está em causa a privação do uso, não pelo proprietário, mas, justamente por um titular de um direito de gozo limitado no tempo). Diversamente, as concretas vantagens do gozo da coisa não se situam no plano do mero licere inerente à propriedade — como faculdade deôntica —, mas situam-se também no plano fáctico. Como concretizações dependentes de elementos subjectivos e contextuais, as vantagens concretas do gozo autonomizam-se, quer do direito pessoal de gozo, por exemplo, de um locatário, quer daquele ius utendi et fruendi do proprietário em que se traduz a faculdade de utilização».
Este autor, in Interesse contratual negativo, Interesse contratual positivo, I, pág. 594 a 596, entende por isso que «o dano só se concretiza ao nível das privações concretas das vantagens que a coisa proporciona e não antecipadamente ao nível da perturbação (ilícita) das possibilidades abstractas de uso que resultam para o proprietário derivadas do ius utendi et fruendi inerente ao direito de propriedade», pelo que «o dano da privação do uso ressarcível é a concreta e real desvantagem resultante da privação do gozo, e não logo qualquer perda da possibilidade de utilização do bem, a qual pode não ser concretizável numa determinada situação». O autor acrescenta que «a concessão de uma indemnização pela mera privação do uso, independentemente da prova de outros prejuízos patrimoniais, corresponde à posição dominante na generalidade dos países europeus, mas tal não significa que baste a factualidade abstracta de utilização, ignorando-se a concreta vontade ou possibilidade de utilização da coisa, por si próprio ou por interposta pessoa», acrescentando que é desse modo que deve ser interpretada a posição da jurisprudência alemã, «a qual pode ser resumida na máxima “a privação da possibilidade de uso é apenas uma fonte possível de dano, mas não já em si mesmo um dano”».
Também Mafalda Miranda Barbosa, in Liberdade vs. Responsabilidade: a precaução como fundamento da imputação delitual? A propósito dos cable cases, Coimbra, 2004, pág. 148-150, defende que a privação do uso pode constituir um dano ou não «consoante o que em concreto se apure». Em Lições de Responsabilidade Civil, 1.ª Edição, 2017, pág. 300, esta autora assinala que «uma coisa é a lesão do bem jurídico em si mesmo – que se traduz na ilicitude; outra é a repercussão negativa que essa lesão comporta na esfera jurídica do lesado»; o dano é a «repercussão negativa do comportamento ilícito – consequência negativa que se faz sentir a dimensão material espiritual ou moral que é tutelada subjectivamente ou objectivamente. Ora, é exactamente este o cerne da compreensão da categoria dano». Por fim, na obra Entre a ilicitude e o dano, in Novos desafios da responsabilidade civil, Actas das II jornadas luso-brasileiras de responsabilidade civil, pág. 255, defende que «porque o dano não se confunde com a ilicitude, e porque o preenchimento da responsabilidade nos insta a um confronto entre a esfera de utilidade geral do bem e a esfera de utilidade particular dele, a autonomização da figura do dano da privação do uso não pode senão passar pela adesão a esta última posição. Na verdade, não é a simples impossibilidade de usar que está em causa, mas a impossibilidade de se satisfazer por essa via uma necessidade concreta».
Cremos que a questão não deve ser vista em termos puramente conceituais, através da adopção de uma tese doutrinária, aplicável à margem do respectivo resultado.
Em primeiro lugar, há que distinguir os bens de cuja privação estamos a falar. Para efeitos do conceito jurídico de dano, não pode ser a mesma coisa ficar privado do uso de um bem de utilização comum, frequente, normal, que em regra é adquirido pela sua necessidade e para ser usado e que os respectivos proprietários efectivamente usam na sua vida corrente (um veículo automóvel, um electrodoméstico, um telemóvel, um computador) ou ficar privado de um bem excepcional (uma jóia ou outro bem de luxo), de um bem utilizado para satisfação de aspectos imateriais associados ao deleite ou prazer (bens de colecção, quadros) ou de um bem que pode ser explorado de formas que não são afectadas directamente pela privação temporária (um bem que se comprou apenas para investimento e que se vai manter parado, apenas à espera da sua valorização ou de uma oportunidade de mercado para o alienar com lucro).
Em segundo lugar, há que entender que não é por o direito de propriedade compreender o poder potestativo de decidir usar ou não usar que se segue que a privação desse poder constitua uma afectação directa desse poder e, por essa via, um dano. O poder de disposição é apenas uma posição subjectiva sobre o bem, mais propriamente a legitimidade para decidir o que fazer (ou não fazer) com o bem, não é uma fruição das utilidades do bem. O proprietário de um bem que não tem a intenção de o usar (v.g. porque o comprou só por razões afectivas ou de outra natureza, para o ter, ou está decidido a aliená-lo logo que apareça a oportunidade de lucrar com a venda e se vai limitar a deixar o bem como está, sem qualquer uso que o desvalorize), ao ser privado do uso do bem, sofre a eliminação da possibilidade de mudar de opinião e, mudando, passar a fazer uso dele, mas não é privado de qualquer utilidade ou vantagem proporcionada pelo bem.
Em terceiro lugar, deve entender-se que em relação a bens de uso comum, frequente, normal, bens produzidos e adquiridos normalmente para serem usados de facto na vida corrente das pessoas, pode presumir-se, por presunção natural, que esse uso seria feito e, como tal, que a privação do bem conduz à privação das utilidade concretas que o bem proporcionaria ao seu titular. Nesses casos, não será necessário ao proprietário fazer a prova de que efectivamente o seu desígnio era usar o bem, que o faria de facto se não tivesse sido privado dele, porque se deve presumir essa utilização. Porém, essa presunção não deve ser feita relativamente a bens que não possuam aquelas características, designadamente aqueles que apenas proporcionam utilidades intelectuais, de deleite subjectivo, ou aqueles cujo proprietário possui em abundância podendo extrair de qualquer deles a totalidade da utilidade concreta de que necessita.
Nesse pressuposto, assoma como determinante no caso a circunstância de o imóvel ter sido adquirido pela autora em 2016, ter estado sujeito a obras de remodelação profundas até 2019, ter passado a dispor de alvará de utilização para comércio e serviços só em Janeiro de 2020, ter estado à disposição da ré sociedade desde a conclusão das obras até Setembro de 2021, com autorização da autora e de forma gratuita, ter sido a sócia da autora e da 1.ª ré a suportar com dinheiro seu não só a compra do imóvel como as obras de remodelação nele efectuadas, a decisão de pedir a entrega do imóvel ter sido tomada já no desenvolvimento do conflito pessoal entre os dois sócios da autora subsequente à ruptura da respectiva relação afectiva e do divórcio, essa decisão ter sido facilitada por os sócios da autora serem apenas estas duas pessoas o que lhes permite subordinar integralmente os interesses das pessoas colectivas que constituíram aos respectivos interesses pessoais e à alimentação do conflito pessoal e patrimonial que as separa, por fim, ter nesse ínterim o imóvel sido usado quer pela 1.ª ré por decisão da sócia AA (uso pela ré sociedade), quer por decisão do sócio BB (depósito de coisas, cedência gratuita a outra sociedade) sempre sem proveito económico para a autora.
Por tudo isso, pese embora a natureza comercial da autora, o seu objecto social e a circunstância de possuir outros imóveis arrendados e a gerarem rendimento (decisão que não foi tomada em relação a este até o conflito pessoal assinalado se ter avolumado e o sócio BB ter passado a ter condições para decidir unilateralmente a condução dos destinos da autora), afigura-se-nos não estarem demonstrados os pressupostos necessários para afirmar a presença de um dano, ainda que na modalidade da privação do uso. Perante essa conclusão, afigura-se-nos ser de manter a decisão de absolver a ré B..., Unipessoal, Lda., do pedido de condenação em indemnização a favor da autora.
Improcede assim o recurso.


V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.

Custas do recurso pela recorrente, a qual vai condenado a pagar à recorrida, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
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Porto, 26 de Setembro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 848)
1.º Adjunto: Francisca Micaela da Mota Vieira
2.º Adjunto: António Paulo Vasconcelos Esteves







[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]