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CONTRA-ORDENAÇÕES
IMPUTAÇÃO SUBJECTIVA
RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO
ACTO DE TERCEIRO
Sumário
I. O n.º 2 do art.º 7.º do DL n.º 433/82, de 27 de Outubro que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo (RGCO) deve ser lido de forma a admitir-se que o mesmo revela não um estrito modelo de atribuição de responsabilidade orgânica mas, antes, um outro de imputação funcional em que o que interessa não é a natureza da investidura de quem actua mas a possibilidade de esse sujeito gerar factos contrários à norma ao agir por pessoa colectiva, como sua «longa manus» e sem interesse individual; II. É, neste domínio, insuficiente um modelo orgânico, sendo necessário o reconhecimento da vigência de um arquétipo funcional no quadro do regime geral consagrado no n.º 2 do art.º 7.º do RGCO; III. Não é relevante, para afastar a responsabilidade contra-ordenacional da pessoa colectiva, a mera emanação de instruções genéricas e de enquadramento.
Texto Integral
Acordam na Secção de Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I. RELATÓRIO
CTT – CORREIOS DE PORTUGAL, S.A., com os sinais identificativos constantes dos autos, impugnou judicialmente a decisão da AUTORIDADE NACIONAL DE COMUNICAÇÕES (ANACOM) que lhe impôs sanções pela prática das infracções aí descritas.
O Tribunal «a quo» descreveu os contornos da acção e as suas principais ocorrências processuais até à sentença nos seguintes termos: Pelo presente recurso de contra-ordenação, veio a CTT – Correios de Portugal, S.A., pessoa colectiva n.º 500077568, com sede na Avenida ..., Lisboa (doravante CTT, Arguida ou Recorrente), nos termos do disposto no artigo 59.º do Regime Geral das Contra-ordenações (Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro – adiante abreviadamente, RGCO), impugnar judicialmente a decisão da ANACOM – AUTORIDADE NACIONAL DE COMUNICAÇÕES, que a condenou numa coima no valor de €9.000,00, pela prática dolosa de uma contra-ordenação prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro (na redacção vigente à data da prática dos factos, alterada pelo Decreto-Lei n.º 371/2007, de 6 de Novembro, pelo Decreto-Lei n.º 118/2009, de 19 de Maio, pelo Decreto-Lei n.º 317/2009, de 30 de Outubro, pelo Decreto-Lei n.º 242/2012, de 7 de Novembro, e pelo Decreto-Lei n.º 74/2017 de 21 de Junho), pela violação da obrigação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do mencionado diploma, acrescida da ocorrência da situação prevista no n.º 4 deste mesmo artigo. Para tanto, a Recorrente apresentou as seguintes conclusões: A. Vem o presente Recurso de Impugnação interposto da decisão da condenação numa numa coima no valor de nove mil euros, pela prática de uma contraordenação grave, prevista na alínea a) do nº1 do artigo 9º, acrescida da situação prevista no nº4 do mesmo preceito, todos do Decreto-Lei nº 156/2005, de 15 de Setembro, pela violação dolosa do disposto na alínea b) do nº1 do artigo 3º do mesmo diploma. B. Não pode a aqui recorrente conformar-se com o entendimento da entidade arguente, uma vez que não aceita ter praticado a infracção pela qual foi acusada e condenada, e, muito menos, a título doloso. C. A matéria de facto julgada como assente não foi fixada de forma rigorosa, com base na prova produzida em sede de audição prévia, tendo sido desconsiderados factos que foram demonstrados pela recorrente e que são determinantes para o correcto enquadramento jurídico da situação em apreço, concretamente, que: - A funcionária que atendeu a utente AO, no dia 19.09.2019, MM; é funcionária da União de Freguesias de Cacém e São Marcos; - Em 18 de Setembro de 2019, a arguida veiculou uma informação contendo novos procedimentos relativamente ao Livro de Reclamações exclusivamente dos CTT, que entrariam em vigor a partir de 1 de Outubro de 2019, nos postos CTT; - As orientações emanadas pela da arguida foram no seguinte sentido: enquanto os livros de reclamações exclusivamente dos CTT não chegassem aos Postos a laborar em parceria com as juntas de freguesia, as reclamações dos utentes deveriam ser apresentadas nos Livros de Reclamações das Juntas de Freguesia, como se verificava até então; - A funcionária da União de Freguesias de Cacém e São Marcos, MM, contrariou as orientações que lhe foram transmitidas pela arguida, pois interpretou erroneamente tais indicações. D. A factualidade a que supra se aludiu resulta do depoimento das testemunhas que foram indicadas pela arguente, bem como dos documentos que foram juntos aos autos, em sede de audição prévia. E. A arguente também errou, ao fixar na matéria de facto, dada como assente, um conjunto de juízos conclusivos, tal como resulta dos pontos 8.; 9.; 10.; 11. e 12.. F. Em 18 de Setembro de 2019, junto dos Postos CTT, a arguida veiculou uma informação contendo novos procedimentos relativamente ao Livro de Reclamações exclusivamente dos CTT, que entrariam em vigor a partir de 1 de Outubro de 2019, informação que foi erroneamente interpretada pela funcionaria MM da União Juntas de Freguesia de Cacém e São Marcos. G. Na indicada data, a recorrente transmitiu que, enquanto os Livros de Reclamações exclusivamente dos CTT não chegassem aos Postos a laborar em parceria com as juntas de freguesia, as reclamações dos utentes deveriam ser apresentadas nos Livros de Reclamações das Juntas de Freguesia, como se verificava até então (cft. Doc. 2 - 5/5 anexo à Defesa). H. A funcionária da Junta de Freguesia agiu contra as orientações expressas da arguida, pelo que nos termos do nº 3 do artigo 3º da Lei Quadro das Contraordenações do Sector da Comunicações, aprovado pelo Lei n.º 99/2009, de 04 de Setembro (Regime Jurídico aplicável aos presentes autos por força do disposto no nº2 do artigo 1º do mesmo diploma), a responsabilidade da recorrente mostra-se excluída. I. Acresce que, nos termos do disposto no nº 2 do artigo do artigo 7º do RGC, aprovado pelo DL 433/82, de 27 de Outubro, “As pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticada pelos seus órgãos no exercício das suas funções”. J. A União de Freguesias de Cacém e São Marcos não faz parte dos órgãos dos CTT, e, como tal, tendo em conta o disposto no nº2 do artigo 7º do RGC aprovado pelo DL 433/82, de 27 de Outubro, considerando-se os factos provados, o presente processo deveria ter sido arquivado. K. À luz do disposto no nº 7 do artigo 2º do DL n.º 156/2005, de 15 de Setembro, a circunstância do objecto da reclamação ser alheio a qualquer serviço que tenha sido prestado no Posto de Correios em causa, também relevará no que diz respeito à obrigatoriedade de ser facultado à utente o Livro de Reclamações. L. E, ainda que a ora recorrente tivesse incorrido na contraordenação pela qual foi acusada e condenada – o que não se concebe - quanto à imputação da infracção a título doloso, na modalidade de dolo directo, tal imputação é incompatível com a prova produzida em sede de direito de audição, da qual resultou não ter existido qualquer conduta dolosa por parte da ora recorrente. Recebido o recurso e enviados os autos ao Ministério Público, este apresentou-os nos termos do artigo 62.º, n.º 1 do RGCO. Nos termos dos artigos 64.º e 65.º do RGCO, designou-se data para julgamento, o qual se realizou com observância de todo o formalismo legal, conforme plasmado em acta, não tendo a Recorrente, mediante representante legal, prestado declarações.
Foi proferida sentença que julgou improcedente a impugnação judicial.
É dessa sentença que vem o presente recurso interposto por CTT – CORREIOS DE PORTUGAL, S.A., que alegou e apresentou as seguintes conclusões: A) Vem o presente Recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, no passado dia 25 de Junho de 2024, nos termos da qual foi a recorrente condenada no pagamento de uma coima de 9.000,00€ (nove mil euros), pela prática dolosa de uma contra-ordenação prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, pela violação da obrigação prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º do mencionado diploma, acrescida da ocorrência da situação prevista no n.º 4 deste mesmo artigo. B) A recorrente não se conforma com o entendimento e decisão daquela entidade administrativa, corroborado pelo Tribunal da Concorrência e Supervisão, que qualificou a prática da contra-ordenação a título doloso. C) Se se atentar aos pontos 4 e 14 e 15 da matéria de facto julgada provada: “4. Ao ser atendida pela Recorrente, na pessoa de uma colaboradora sua que estava, porém, laboralmente vinculada à Junta de Freguesia referida, a utente relatou o sucedido no dia anterior e solicitou que lhe fosse disponibilizado o livro de reclamações;” “14. A Recorrente emanou uma orientação escrita por email de 18.09.2019, pelas 19:27, enviada aos 150 postos instalados nos serviços e organismos públicos (na maioria Juntas de Freguesia), a entrar 151 em vigor em 01.09.2019, no posto dos CTT, no sentido de que enquanto os Livros de Reclamações 152 exclusivamente dos CTT não chegassem aos Postos a laborar em parceria com as juntas de 153 freguesia, as reclamações dos utentes deveriam ser apresentadas nos Livros de Reclamações dessas Juntas de Freguesia, como se verificava até então;” “15. A colaboradora interpretou erradamente as orientações da Recorrente.” É patente que a recorrente não praticou os factos de que foi acusada a título de dolo. D) A recorrente deu ordens expressas para que o livro de reclamações fosse disponibilizado, ordens essas que foram erradamente interpretadas pela trabalhadora da junta de freguesia onde funcionava o Posto dos CTT. E) Na fundamentação na sentença a propósito da imputação da contraordenação a título doloso, pode ler-se o seguinte “… a aqui Recorrente …. deve partir do acto típico em si mesmo (a quebra do dever) e não da relação contratual que é estabelecida entre a Arguida e o seu funcionário/colaborador/terceiro que utiliza na prossecução do seu objecto social. Por isso, a análise deve partir dos factos objectivos provados e que consistem, essencialmente, em não facultar por duas vezes seguidas o livro de reclamações a uma utente que o solicita, existindo, mais do que evidentemente, um propósito deliberado e intencional em não facultar tal livro de reclamações. Existe, aliás, cristalinamente um reforço desse intento quando se verifica uma segunda recusa de disponibilização. Salvo melhor opinião, é quase impossível evitar a conclusão de que foram dolosas as acções em causa. Para se perceber melhor a análise que importa realizar e apesar de se tratar tecnicamente de matéria de direito, consideramos que importa nesta sede chamar à colação a questão do conhecimento de uma pessoa colectiva, onde o critério hodiernamente mais adequado se tem considerado ser o do “risco da organização” – vide José Ferreira Gomes e Diogo Costa Gonçalves, in Imputação de 351 Conhecimento às Sociedades Comerciais, Almedina, 2017, pág. 70.” F) Salvo o devido respeito, entende a recorrente que, na situação em apreço, considerando que a agente em causa é funcionária da junta da freguesia e agiu contra ordens expressas da recorrente, não deverá ser observado o critério do “rico da organização”, pois a junta de freguesia não faz parte da organização da pessoa colectiva que é a recorrente, sendo, na verdade um agente externo. G) Acresce que, recurso a tal teoria fez com que o julgador tenha partido do pressuposto de que a recorrente agiu culposamente, o que subverte o princípio da presunção de inocência. H) Nos presentes autos ficou demonstrado que a recorrente cuidou de transmitir expressa e inequivocamente os procedimentos a adoptar pela junta de freguesia, no que ao livro de reclamações diz respeito. I) Não estamos na presença de uma deficiente organização da pessoa colectiva, mas sim na presença de uma conduta adoptada por um agente exterior à organização, que procedeu de forma contrária às normas, na convicção de que estava a proceder de modo lícito e enquadrado com o que a recorrente lhe havia transmitido, sendo que, tais circunstâncias não poderão deixar de relevar para a apreciação da culpa da recorrente. J) Tal como se pode ler no AC Relação de Coimbra, proferido no processo 2572/10.2TALRA.C1, disponível em www.dgsi.pt: “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência; 2. A estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito - o tipo objetivo de ilícito - e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável. O elemento volitivo consiste na especial direção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo direto - a intenção de realizar o facto - o dolo necessário - a previsão do facto como consequência necessária da conduta - e o dolo eventual - a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta; 3. A afirmação da existência do elemento intelectual do dolo exige que o agente tenha conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática do facto;” K) Ainda que se considere que a funcionária da junta de freguesia agiu em representação da recorrente, ao ter errado na interpretação das orientações emanadas pelos CTT (vide ponto 15 dos factos assentes), é patente a ausência do elemento intelectual, de um elemento volitivo da sua conduta, no sentido de praticar um ilícito, pois, na verdade, ela agiu na convicção de que estava a proceder de forma lícita e de acordo com as orientações emanadas pela recorrente, que é patente terem sido interpretadas de forma errónea. L) O perfilhado na sentença, que concluiu pelo preenchimento dos elementos típicos do dolo, salvo o devido respeito, teve como base uma errada interpretação do disposto no artigo 8º do Regime Geral das Contraordenações, do artigo 13º do Código Penal, M) Pelo que sentença recorrida deverá ser revogada, substituindo-se por Acórdão, no qual seja aplicado correctamente o Direito, concluindo-se pela ausência de prova que permita imputar à recorrente o ilícito em causa a título de dolo, com as demais consequências legais Nestes termos se requer seja concedido provimento ao Presente Recurso, revogando-se a sentença, com as demais consequências legais,
A ANACOM respondeu às alegações de recurso apresentando as seguintes conclusões: I. Não houve qualquer erro por parte do Tribunal a quo na aplicação e/ou interpretação do Direito. II. Nem o Tribunal ad quem deve conhecer da alegação do Recorrente a esse respeito, porque o que esta efetivamente faz, sob a vestes de uma hipotética questão jurídica que alega ser uma(fantasiosa) má aplicação do Direito, é colocar em causa a matéria de facto que se encontra assente sobre o elemento subjetivo do tipo. III. A imputação da responsabilidade contraordenacional à pessoa coletiva resulta de se considerar autor quem tiver violado, quer por ação, quer por omissão, a proibição legal ou o dever jurídico cuja violação a lei sanciona com contraordenação, solução esta que é coerente com o facto de no Direito contraordenacional a ilicitude não assentar numa censura ético jurídica, mas sim na efetiva violação de um dever legal que cabe à pessoa coletiva cumprir, e não a qualquer pessoa individual, só podendo, por isso, ser punido por essa violação o ente coletivo. IV. No Direito das contraordenações, o critério de delimitação da autoria não é do domínio do facto, mas sim o da titularidade do dever, conduzindo, em regra, este conceito extensivo de autoria à responsabilização da entidade sobre a qual recai o dever, sempre que se tenha verificado o resultado que aquela estava legalmente incumbida de evitar. V. O que releva para aferir da imputação da responsabilidade às pessoas coletivas é que os trabalhadores e agentes, no exercício das suas funções, tenham agido em nome ou por conta da sociedade arguida, independentemente da natureza do vínculo – o que se verifica no caso em apreço. VI. Independentemente do vínculo jurídico que a Recorrente tem com as “entidades terceiras” que contrata para lhe prestar serviços no âmbito da atividade que exerce, é inegável que estas (tal como os trabalhadores ao seu serviço) encontram-se sujeitas ao exercício dos poderes de organização, direção e fiscalização dos CTT, agindo, assim, por sua conta. VII. Pelo que improcedem todas as conclusões do recurso interposto pela Recorrente, Termos em que, tudo visto e ponderado, deverão V. Exas., Venerandos Juízes Desembargadores, considerar o recurso apresentado pela CTT – Correios de Portugal, S.A. improcedente
Também o Ministério Público respondeu ao recurso concluindo: 1ª Os factos dados como provados integram a prática, pela arguida, com dolo direto, da contraordenação prevista pelo art.º 9º, nº 1, a), por violação do dever previsto no art.º 3º, nº 1, b), ambos do DL 156/2005, de 15/09, tendo sido necessária a presença de autoridade policial nos termos do art.º 3º, nº 4 do mesmo Diploma; 2ª O facto de a colaboradora da arguida ter interpretado erradamente as orientações constantes do email de 18/09/2019, como foi dado provado nos factos 14. e 15. da sentença recorrida, não integra a causa de exclusão da responsabilidade da pessoa coletiva aqui arguida, dado que essas ordens não foram dirigidas à colaboradora no âmbito do atendimento prestado à utente Srª AO. 3ª a conformação da decisão da ANACOM pela sentença do TCRS não enferma de erro de direito. Face ao exposto, o recurso deverá improceder, assim se fazendo Justiça.
Foi colhido o visto do Ministério Público junto deste Tribunal.
Após vistos legais dos membros deste Colectivo, cumpre apreciar e decidir.
Dado que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes (cf. o n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal aplicável ex vi do disposto no n.º 1 do art.º 41.º do RGCO) – sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – é a seguinte a questão a avaliar: A Recorrente não praticou, com dolo, os factos de que foi acusada?
II. FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentação de facto
Vem provado que: 1. A Recorrente é a concessionária do serviço postal universal, dispondo, para o exercício da sua actividade, de estabelecimentos, com atendimento ao público, destinados à prestação daqueles serviços; 2. No dia 19.09.2019, pelas 12h15, foi solicitada a presença da autoridade policial no estabelecimento comercial da Recorrente denominado «Ponto CTT» e a funcionar na Delegação da União das Freguesias de Cacém e São Marcos, localizado no Centro Comercial de São Marcos, por haver notícia de recusa de livro de reclamações; 3. A utente AO dirigiu-se na manhã do dia 19.09.2019 ao estabelecimento supra referido, para levantar uma encomenda e apresentar reclamação pelo facto de, no dia anterior, o carteiro ao serviço da Recorrente não ter tocado à campainha de sua casa para entregar uma encomenda, tendo-se limitado a deixar um aviso de recepção na sua caixa do correio; 4. Ao ser atendida pela Recorrente, na pessoa de uma colaboradora sua que estava, porém, laboralmente vinculada à Junta de Freguesia referida, a utente relatou o sucedido no dia anterior e solicitou que lhe fosse disponibilizado o livro de reclamações; 5. A Recorrente, na pessoa daquela colaboradora, informou a utente que a encomenda por esta pretendida apenas poderia ser levantada por volta das 12h00, visto que ainda não se encontrava naquele posto e que, nesse momento, lhe disponibilizaria o livro de reclamações; 6. À hora indicada pela Recorrente, a utente dirigiu-se novamente àquele estabelecimento comercial para efectuar a sua reclamação, tendo sido informada pela mesma pessoa que o livro de reclamações apenas lhe seria disponibilizado a partir do dia 01.10.2019; 7. A delegação da presta serviços postais em regime de parceria com os CTT – Correios de Portugal, S.A., há alguns anos e, até ao dia 18.09.2019, aquele estabelecimento só dispunha de um livro de reclamações relativo à delegação da União de Freguesias e no qual eram apresentadas as reclamações relativas aos serviços dos CTT; 8. Exercendo há vários anos a actividade de prestadora de serviços postais, a Recorrente conhece bem as obrigações que impendem sobre si, designadamente as que respeitam à disponibilização do livro de reclamações, a que passou a estar sujeita após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro; 9. A arguida sabia, pois, que estava obrigada não só a possuir o livro de reclamações em formato físico em todos os estabelecimentos e locais em que os seus serviços sejam prestados ao público, mas também a facultá-lo imediatamente a qualquer utente que o solicitasse num daqueles estabelecimentos e local; 10. E sabia também que a violação dessas obrigações constituía contra-ordenação; 11. Assim, ao adoptar a conduta descrita, não tendo, propositadamente, disponibilizado de forma imediata, à utente, o livro de reclamações quando esta o solicitou, bem sabendo que a isso estava legalmente obrigada e que essa conduta constituía contra-ordenação, a arguida agiu de forma livre, consciente e deliberada ([1]); 12. A 31 de Dezembro de 2018, a Recorrente tinha 10.843 trabalhadores ao seu serviço; 13. No ano de 2020, teve nesse ano um volume de negócios de €468.833.332,00, um balanço total de €1.053.283.403,00 e um resultado líquido do exercício no valor €16.720.995,00 e tinha 10.445 trabalhadores ao seu serviço; 13-A. A Recorrente, em 2023 apresentou vendas e serviços no valor de €466.669.945,00 e um resultado líquido do período de €70.805.389,00; 14. A Recorrente emanou uma orientação escrita por email de 18.09.2019, pelas 19:27, enviada aos postos instalados nos serviços e organismos públicos (na maioria Juntas de Freguesia), a entrar em vigor em 01.09.2019, no posto dos CTT, no sentido de que enquanto os Livros de Reclamações exclusivamente dos CTT não chegassem aos Postos a laborar em parceria com as juntas de freguesia, as reclamações dos utentes deveriam ser apresentadas nos Livros de Reclamações dessas Juntas de Freguesia, como se verificava até então; 15. A colaboradora interpretou erradamente as orientações da Recorrente; 16. À data dos factos em causa nos autos, a Recorrente já tinha sido condenada pela violação de obrigações previstas no Decreto-Lei n.º 156/2005, quer numa coima única de 15.000,00 euros e numa sanção de admoestação (por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 05.03.2015, no âmbito do Processo n.º 109/14.3YUSTR.L1), quer numa sanção de admoestação (por sentença do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão de 28.05.2015, proferida no Processo n.º 22/15.7YUSTR); 17. Concretamente, a Recorrente, ao todo (incluindo os processos identificados em 16) já foi condenada no âmbito dos seguintes processos mediante decisões transitadas em julgado nas seguintes datas, conforme decisões constantes no expediente do citus de 13.05.2024, ref.ªs 462857 a 462882, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, por uma questão de economia processual: 1. Processo nº 22/15.7YUSTR, transitado em julgado em 08/06/2015; 2. Processo nº 92/21.9YUSTR, transitado em julgado em 31/03/2022; 3. Processo nº 109/14.3YUSTR, transitado em julgado em 20/03/2015; 4. Processo nº 149/22.9YUSTR, transitado em julgado em 11/09/2023; 5. Processo nº 163/22.4YUSTR, transitado em julgado em 29/08/2022; 6. Processo nº 177/22.4YUSTR, transitado em julgado em 23/03/2023. 7. Processo nº 222/18.8YUSTR, transitado em julgado em 10/10/2019; 8. Processo nº 247/23.1YUSTR, transitado em julgado em 21/12/2023.
Fundamentação de Direito A Recorrente não praticou, com dolo, os factos de que foi acusada?
A leitura das alegações de recurso inculca a aparência de que a Sociedade Recorrente abstraiu dos factos provados e construiu a sua manifestação de dissenção num quadro fáctico privativo e pré-instrutório, como se não tivesse havido um julgamento e o Tribunal «a quo» não tivesse formulado um juízo definitivo quanto à factualidade relevante em termos insindicáveis por este Tribunal de recurso face ao disposto no n.º 1 do art.º 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro que institui o ilícito de mera ordenação social e respectivo processo (RGCO) – sem prejuízo, claro, do estabelecido no n.º 2 do art.º 410 Código de Processo Penal aplicável ex vi do disposto no n.º 1 do art.º 41.º do RGCO.
Ignora, sobretudo, o facto n.º 11 que não pode ser alterado no quadro do conhecimento da presente impugnação judicial e que recebeu o seguinte conteúdo: 11. Assim, ao adoptar a conduta descrita, não tendo, propositadamente, disponibilizado de forma imediata, à utente, o livro de reclamações quando esta o solicitou, bem sabendo que a isso estava legalmente obrigada e que essa conduta constituía contra-ordenação, a arguida agiu de forma livre, consciente e deliberada.
Estão, aqui e na conjugação com o facto n.º 8, seguramente caracterizados os elementos intelectual e volitivo do dolo, aliás directo e intencional.
Não assume relevo desviante desta conclusão o facto de a intervenção física ter sido concretizada por uma cidadã «vinculada» à «União de Freguesias de Cacém e São Marcos».
É assim, desde logo, face ao fixado sob o n.º 4 dos factos provados (do qual consta que a utente foi atendida pela ora Recorrente), no n.º 7 desse bloco lógico (que revela a parceria dos CTT com a dita União) e no n.º 2 (do qual se extrai ser aquele um «Ponto CTT» e não um espaço de atendimento do órgão autárquico, ou seja, colocado sob a sua inteira responsabilidade) – vd., também, o n.º 5 (do qual brota que foi a Recorrente, na pessoa daquela colaboradora, que informou a utente) e o n.º 14 (que revela quem orientava e dirigia efectivamente os postos da natureza do referido nos autos).
O n.º 2 do art.º 7.º do RGCO estabelece que as «pessoas colectivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções».
Na leitura deste preceito, foi linear defender inicialmente uma interpretação muito literal e por demais cautelosa no sentido de que se estaria perante um regime de imputação restritivo e estritamente orgânico, justificado por «apenas os órgãos da pessoa jurídica» exprimirem «a vontade juridicamente relevante» – conforme se vê em SERRA, Teresa, “Contra-ordenações: responsabilidade de entidades coletivas. A propósito dos critérios de imputação previstos no regime geral do ilícito de mera ordenação social e em diversos regimes especiais. Problemas de (in)constitucionalidade”, RPCC, Ano 9, Fascículo 2, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pág. 190.
Porém, quer o legislador quer a jurisprudência foram apontando para a possibilidade de se estar muito para além desta restrição no âmbito do Direito de Mera Ordenação Social, atentas a sua ontologia e as suas finalidades.
Ao nível legislativo, encontramos no n.º 1 do art.º 203.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro) uma verdadeira transmutação de um modelo de atribuição de ilícito de etiologia orgânica para um outro que podemos chamar de imputação funcional em que o que interessa não é a qualidade de quem actua mas a possibilidade de gerar factos contrários à norma não em nome próprio mas enquanto «longa manus» da pessoa colectiva.
Nessa norma diz-se, expressamente e sem margem para dúvidas interpretativas, que as pessoas coletivas e as entidades equiparadas «são responsáveis pelas contraordenações cometidas (…) por mandatários, representantes ou trabalhadores do ente coletivo em atos praticados em nome e no interesse deste». Agir em nome e no interesse de uma pessoa colectiva são, aqui, efectivamente, as pedras de toque que permitem a aferição da possibilidade de atribuição da conduta desviada ao ente colectivo, sem que releve a natureza de quem actua.
No que tange à área de intervenção que nos ocupa vigora também um sistema normativo (que poderia ser apodado de especial por quem entendesse que a solução vertida no n.º 1 do art.º 7.º do RGCO teria estritamente natureza orgânica) que segue na linha deste diploma. Com efeito, o n.º 2 do art.º 3.º da Lei n.º 99/2009, de 4 de Setembro, que aprovou o regime quadro das contra-ordenações do sector das comunicações consagrou com muita clareza que:
«2 - As pessoas colectivas referidas no número anterior são responsáveis pelas infracções cometidas em actos praticados em seu nome ou por sua conta, pelos titulares dos seus órgãos sociais, pelos titulares dos cargos de direcção e chefia e pelos seus trabalhadores no exercício das suas funções, bem como pelas infracções cometidas por seus mandatários e representantes, em actos praticados em seu nome ou por sua conta».
A jurisprudência nacional emanada dos tribunais comuns, por seu turno, tem vindo a acolher a noção da insuficiência de um modelo orgânico e da necessidade de reconhecimento da vigência de um arquétipo funcional mesmo no quadro do regime geral consagrado no n.º 1 do art.º 7.º do RGCO – vd., por todos, os Acórdãos deste Tribunal da Relação de Lisboa proferidos nos processos n.ºs 67/22.0YUSTR.L1 e 52/23.5YUSTR.L1-PICRS, que partilham o Relator com o presente recurso, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 27.01.2020, proferido no processo n.º 510/19.6T8FAF.G1 – que invocou coincidência de entendimento com os «acórdãos do TRC de 29-11-2000 (processo n.º 452/2000) e de 09-11-2011 (processo n.º 179/10.3TBMMN.C1), do TRP de 06-06-2012 (processo n.º 4679/11.0TBMAI.P1), de 27-06-2012 (processo n.º 7402/11.5TBMAI.P1) e de 21-03-2013 (processo n.º 6334/11.1TBMAI.P1) e do TRL de 27-06-2019 (processo n.º 5840/14.0ECLSB.L1-9)»; veja-se, ainda, a «notícia» doutrinal desta tendência em ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, “Comentário ao regime geral das contra-ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, UCP, Lisboa, 2011, pág. 53, e BENTO COELHO, Joana Sofia, em «Critérios de imputação do facto à pessoa coletiva nas contra-ordenações bancárias», UCP, Lisboa, 2017, pág. 18.
Também a jurisprudência constitucional não se deixou manietar por uma visão orgânica, estrita e redutora. No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 134/03 encontramos, com muito relevo, ainda que a propósito da responsabilidade criminal e de outro diploma legal, a afirmação que também aqui faz pleno sentido se cambiarmos «órgãos no exercício de funções» pelo análogo «representante»: «Na verdade, a expressão “representante”, sem qualquer qualificativo – diversamente do que acontece no imediatamente precedente artigo 6.º –, é, à partida, idónea a abranger quer representantes com legitimação representativa (que, aliás, para efeitos civis, pode ser superveniente), quer “representantes de facto”.
Os pontos 14 e 15 da matéria de facto provada não inculcam a noção de que estejamos perante uma actuação contra ordens expressas e menos no exclusivo interesse da agente – vd., quanto à caracterização das condições de exclusão de responsabilidade, ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, ibidem, que afirmou:«A responsabilidade da pessoa colectiva deve ser excluída se o agente actua no exercício das suas funções, mas contra ordens expressas da pessoa colectiva ou em seu exclusivo interesse (concordantes, SOARES RIBEIRO, 2003:57 e 229, ISABEL MARQUES DA SILVA, 2007: 62, JOSÉ MOUTINHO, 2008: 94, e OLIVEIRA MENDES e SANTOS CABRAL, 2009:38,anotação 2.ª ao artigo 7.º, e, já antes, parecer do CC da PCR, n.º10/94, in DR, II. a Série, de 28.41995, acórdão do TRC, de 5.4.2000, in CJ, XXV, 2, 60».
De tais pontos apenas resulta ter ocorrido a definição prévia de um suporte substitutivo do livro de reclamações devido, sendo que se foi demonstrado que não se interpretou correctamente o que a esse respeito foi definido, não provou que a denegação de acesso apreciada tenha ocorrido por causa dessa inadequada interpretação – designdamente, a denegação poderia ter ocorrido por a funcionária não ter tido qualquer formação sobre as condições e obrigatoriedade do uso do livro de reclamações ou reacção subjectiva indevida ao pedido.
Não se entender que enquanto não está disponível um livro se pode usar o outro nada nos diz sobre os motivos da recusa de se facultar esse suporte físico.
O provado é muito pouco para que se possa dar o salto decisório pretendido, o que sempre se faria arcando coma grave consequência de dispensa de responsabilidade de quem é destinatário da imputação não por ter domínio do facto mas por estar investido na titularidade de um dever, in casu grosseiramente não cumprido por quem actuava em seu nome.
Abrir a porta ao pretendido branqueamento de imputação seria criar e alargar um espaço de litigação contrário à vontade legislativa, dotado da potencialidade de frustrar as finalidades que pairam sobre todo o espaço de regulação e supervisão que se referem à conformação de condutas em áreas geralmente desprovidas de sinal ético.
Foram adequadas as referências lançadas pelo Ministério Público, na sua resposta em primeira instância, à tendência interpretativa deste Tribunal de recurso no sentido da não concessão de relevo, neste domínio, a meras instruções genéricas e de enquadramento – vd. o nosso acórdão de 12/10/2022, proferido no Processo 67/22.0YUSTR.L1, acima apontado (e também os lavrados nos processos n.ºs 198/19.4YUSTR.L1 e 87/20.0 YUSTR.L1, invocados pelo Ministério Público).
Face ao exposto, justifica-se, sem mais considerações, atentas a estabilidade e adequação das respostas jurisprudenciais e doutrinais narradas e a força das razões enunciadas, responder negativamente à quetsão apreciada, o que ora se concretiza.
III. DECISÃO
Pelo exposto, julgamos o recurso improcedente e, em consequência, negando-lhe provimento, confirmamos a sentença impugnada.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCS.
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Lisboa, 23.09.2024
Carlos M. G. de Melo Marinho
Bernardino J. Videira Tavares
Alexandre Au-Yong Oliveira
______________________________________________________ [1] A Recorrente defende que os factos provados na decisão impugnada sob os n.ºs 8 a 12 se traduzem em factos conclusivos. Parte de tais factos estão vertidos nesta sentença sob os n.ºs 8 a 11, na medida em que, com elevado respeito, não se tratam de factos conclusivos. Tratam-se antes de factos que integram o elemento subjectivo da infracção imputada, na perspectiva de uma imputação a título doloso. Como é sabido, a estrutura do dolo comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo. O elemento intelectual consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objectivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável (factos provados n.ºs 8 a 10). O elemento volitivo consiste na especial direcção da vontade do agente na realização do facto ilícito, sendo em função da diversidade de atitude que nascem as diversas espécies de dolo a saber: o dolo directo – a intenção de realizar o facto – o dolo necessário – a previsão do facto como consequência necessária da conduta – e o dolo eventual – a conformação da realização do facto como consequência possível da conduta (facto provado n.º 11).