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REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DIVÓRCIO
PARTILHA DE BENS DO CASAL
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
CASO JULGADO
Sumário
SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC) I – Numa ação de revisão de sentença estrangeira que decretou o divórcio das partes e a partilha dos bens comuns do ex-casal, tendo ficado demonstrado que, antes de ter sido instaurada a ação em que veio a ser proferida tal sentença, já havia transitado em julgado a sentença proferida por um tribunal português que decretara o divórcio das partes, impõe-se julgar verificada a exceção dilatória do caso julgado, mas apenas no que concerne ao pedido de revisão da sentença na parte atinente ao divórcio da Requerente e do Requerido, com a consequente absolvição deste último da instância, nos termos conjugados dos artigos 980.º, al. d), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. i), 578.º e 580.º e 581.º do CPC. II – Quanto ao mais peticionado, não havendo notícia de que a partilha dos bens comuns do ex-casal – entre os quais dois imóveis situados em Portugal – já tenha sido efetuada no nosso país, judicial ou extrajudicialmente, procede a ação, por se mostrarem verificados os requisitos enunciados no art. 980.º do CPC, não sendo caso para considerar que tal sentença versa sobre matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses.
Texto Integral
Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados
I - RELATÓRIO
A …, de nacionalidade portuguesa, residente em …, Estados Unidos da América, intentou contra B …, de nacionalidade portuguesa, residente em …, Estados Unidos da América, a presente ação, com processo especial de revisão de sentença estrangeira, pedindo a confirmação da sentença proferida por um tribunal dos EUA que decretou o divórcio entre ambos e a consequente partilha.
Alegou, para tanto e em síntese, que:
- A Requerente e o Requerido celebraram casamento em Portugal, no dia 16 de dezembro de 1989, conforme docs. 1 e 2;
- Por sentença datada de 23 de novembro de 2022, proferida pelo Tribunal de Circuito do Condado de Fairfax, na Virgínia, foi decretado o divórcio entre os aqui Requerente e Requerido, em ação intentada pela Requerente contra o Requerido, que aí foi citado, tendo tal sentença transitado em julgado, conforme doc. 3;
- A propositura da presente ação advém, além do mais, da necessidade de se proceder ao registo dos bens na Conservatória do Registo Predial em Vila Verde, em conformidade com a partilha decretada por aquela sentença estrangeira.
Juntou três documentos.
Citado o Requerido, deduziu Oposição, em que pugnou pela improcedência da ação, invocando a exceção do caso julgado, bem como a falta de trânsito em julgado da sentença revidenda, alegando, em síntese, que:
- Por sentença proferida a 30 de dezembro de 2020, pelo Juízo 1 de Família e de Menores de Braga, do Tribunal da Comarca de Braga, no âmbito do processo n.º …/…, e transitada em julgado em 8 de junho 2022, foi decretado o divórcio entre a Requerente e o Requerido (conforme certidão que juntou);
- Logo, em 30 de agosto de 2022, altura em que a Requerente deu entrada à ação de divórcio junto do Tribunal da Virgínia, conforme consta da parte introdutória da sentença desse Tribunal, já se encontrava divorciada do Requerido, pelo que se verifica caso julgado;
- Do documento 3 junto pela Requerente não consta a menção do trânsito em julgado da sentença, bem pelo contrário, como o evidencia a sua parte final com as matérias objeto de recurso, enunciadas de 1 a 5.
Cumprido o disposto no art. 982.º, n.º 1, do CPC, a Requerente veio, mediante requerimento apresentado em 27-05-2024, requerer que a ação fosse julgada procedente “em relação à partilha dos bens comuns do ex-casal, a fim de ambos poderem registar os bens que lhes foram adjudicados”.
Posteriormente, veio requerer a desistência da instância quanto ao pedido de revisão da sentença estrangeira, na parte em que decretou o divórcio, tendo o Requerido vindo manifestar a sua oposição. Veio ainda a Requerente, no requerimento apresentado em 01-07-2024, dizer que mantinha a posição anteriormente assumida, devendo a exceção de caso julgado conduzir à absolvição da instância no que concerne ao divórcio.
Notificada a Requerente para juntar nova certidão da sentença revidenda, tendo em vista a demonstração do respetivo trânsito em julgado, esta veio fazê-lo, mediante requerimento de 30-08-2024, não tendo esse documento sido impugnado pelo Requerido.
O Ministério Público, notificado nos termos e para os efeitos do art. 982.º do CPC, apresentou alegações nas quais concluiu, em síntese, que: “Nestes termos - e sendo este Tribunal competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia, sendo as partes legítimas, dotadas de personalidade e capacidade judiciária - nada obsta à revisão e confirmação da sentença no segmento atinente à Homologação da partilha de bens, pelo que se deverá atender parcialmente a pretensão apresentada. No caso em apreço, é evidente que a sentença proferida pelo Tribunal de Braga obsta à reapreciação da presente ação, cujo objeto é a sentença de divórcio proferida nos EUA, verificando-se assim a exceção do caso julgado. Nesta parte, a ação não pode proceder.”
*
O Tribunal é competente, o processo é o próprio, as partes têm personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Cumpre decidir se procede a exceção dilatória do caso julgado e se estão verificados os requisitos necessários para que a sentença constante do documento junto com a Petição Inicial possa ser revista e confirmada ou se, ao invés, ocorre algum motivo que obste a que possa ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.
II - FUNDAMENTAÇÃO Factos provados
Atento o teor dos documentos juntos aos autos, está provado que:
1. A Requerente e o Requerido contraíram casamento católico no dia 16 de dezembro de 1989, na freguesia de Espinho, concelho de Braga, tendo o casamento sido registado mediante assento de casamento n.º … de 2017 da Conservatória do Registo Civil de Vila Verde, bem como averbado ao assento de nascimento da Requerente n.º … do ano 2011 da referida Conservatória (averbamento n.º 1, de 2011-10-31) – cf. docs. 1 e 2 juntos com a PI.
2. Por sentença datada de 30 de dezembro de 2020, transitada em julgado em 8 de junho 2022, proferida pelo Juiz 1 do Juízo de Família e de Menores de Braga do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no âmbito do processo n.º …/…, foi decretado o divórcio entre a Requerente e o Requerido, o que foi averbado àquele assento de casamento (averbamento n.º …, de 2022-01-07) e àquele assento de nascimento (averbamento n.º …, de 2022-11-07) – cf. doc. 2 junto com a PI e certidão junta com a Oposição.
3. Por sentença datada de 23 de novembro de 2022, transitada em julgado, proferida pelo Tribunal de Fairfax, Estado da Virgínia, Estados Unidos da América, no âmbito de processo instaurado em agosto de 2022 pela Requerente contra o Requerido, foi também decretado o divórcio entre as partes (aí identificadas como A …, Requerente, e B …, Requerido), mais tendo sido «decidido, ordenado e decretado que as disposições contidas no acordo escrito celebrado pelas partes a 30 de agosto de 2022 e homologado pelo Tribunal e anexada à presente sentença como Anexo A, são aqui afirmadas, ratificadas e incorporadas (…) como se segue: (…) 3. Lugar da …, Pico de …, Portugal (“Imóvel Pico”): O imóvel comum sito em Lugar da …, …, Pico de …, Portugal, será atribuído à Sra. A … (…) A descrição legal do imóvel Pico sito em Portugal e registado em nome do Requerido, conhecido como B …, nos registos prediais de Portugal, e da Requerente, conhecida como A …, nos registos prediais de Portugal, é a seguinte: Prédio Urbano, composto por casa de dois pisos, com logradouro, destinado a habitação, sito no Lugar da …, na União de Freguesias de …, …, do concelho de Vila Verde, inscrito na respetiva matriz predial sob abrigo do artigo … (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o número … – Pico de .... Prédio urbano: Prédio em Propriedade plena, sito em …, da União de Freguesias de …, … e …, Concelho de Vila Verde, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o número …, inscrito na Matriz sob o artigo …. 4. R …, …, Vila Verde, Portugal (“Imóvel Verde”): O imóvel sito em R …, …, ..., Vila Verde, Portugal, será atribuído ao Sr. B … (…) A descrição legal do Imóvel Verde sito em Portugal e registado em nome do Requerido, conhecido como B …, nos registos prediais de Portugal, e da Requerente, conhecida como A …, nos registos prediais de Portugal, é a seguinte: Prédio urbano: Fração autónoma designada pela letra “…”, do edifício urbano sito na Rua …l nº …, na freguesia de … e …, concelho de Vila Verde, distrito de Braga, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o número …, inscrito na respetiva Matriz sob o artigo ….» - conforme certidão junta em 30-08-2024, aqui se dando por reproduzido o seu teor. Enquadramento jurídico
Os requisitos necessários para a confirmação de sentença estrangeira estão previstos no art. 980.º do CPC (a que pertencem os demais artigos adiante indicados), o qual preceitua: “Para que a sentença seja confirmada é necessário: a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão; b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida; c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses; d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição; e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes; f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.”
Atento o disposto no art. 983.º, n.º 1, o pedido de confirmação só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no art. 980.º ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g) do art. 696.º.
Relativamente às condições indicadas nas alíneas a) e f) do citado art. 980.º, impõe o art. 984.º que o tribunal verifique oficiosamente se as mesmas ocorrem e que também recuse a confirmação se dos autos concluir que não estão preenchidos os requisitos das demais alíneas daquele artigo. De salientar que a alínea a) respeita à autenticidade do documento de que conste a sentença e à inteligência da decisão, dizendo a alínea f) respeito à compatibilidade do seu conteúdo com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Estamos, assim, perante uma atividade de controlo da regularidade formal ou extrínseca da sentença estrangeira, que dispensa a apreciação dos seus fundamentos de facto e de direito.
Da análise da documentação junta aos presentes autos, que serviu de suporte à factualidade considerada provada, não resultam dúvidas acerca da autenticidade e inteligibilidade da sentença a confirmar.
Não tendo sido suscitada nem resultando do exame do processo a sua falta, é de concluir pela verificação dos demais requisitos enunciados nas alíneas b), c) e e) do art. 980.º do CPC.
Em particular, quanto à exigência da alínea b), entendemos ter ficado ultrapassada, com a junção documental que veio a ser efetuada pela Requerente, a objeção colocada pelo Requerido relativamente à falta de demonstração do trânsito em julgado da sentença revidenda.
De referir ainda que a sentença – pese embora tenha determinado, nos termos do acordo homologado, a partilha de bens comuns do ex-casal, alguns dos quais situados no nosso país – não versa sobre matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses, não se reconduzindo a situação aí apreciada à previsão do art. 63.º, al. a), do CPC. Neste sentido, sobre preceito correspondente do anterior Código (art. 65.ºA), veja-se o acórdão da Relação de Coimbra de 02-10-2009, no proc. n.º 137/09.0YRCBR, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma precisamente que: “(…) II - O artº 65º-A, al. a), do CPC, na sua redacção introduzida pela reforma de 95/96 – Dec. Lei nº 329-A/95, de 12/12 (visando, em sede de competência internacional, o objectivo de alinhar o nosso sistema de direito comum com o consagrado nas Convenções de Bruxelas e de Lugano, como escreve o Prof. Dr. Rui Manuel Moura Ramos, in R.L.J., ano 130º - 1997/1998, pg. 213) -, atribui competência exclusiva aos tribunais portugueses para as acções relativas a direitos reais…sobre bens imóveis sitos em território português – “fórum rei sitae”. III - Porém, a razão de ser dessa norma, sobre reserva da jurisdição dos tribunais portugueses, radica na circunstância de o tribunal da situação do bem imóvel estar melhor apetrechado para conhecer os elementos de facto inerentes e porque, em geral, nas acções sobre direitos reais terem frequentemente lugar diligências de prova ao local – inspecções e perícias (veja-se o artº 73º, nºs 1 e 3, do CPC). IV - Por isso, tem-se entendido que não é suficiente para determinar a competência exclusiva dos tribunais portugueses, neste particular, que as acções se prendam indirecta ou acessoriamente com um direito real sobre um imóvel, tornando-se indispensável que este (o imóvel) consubstancie o fundamento central da causa de pedir, com vista a assegurar a titularidade do sujeito respectivo. V - O CPC não considera como acções reais nem as acções de divórcio nem as acções de inventário, mesmo que compreendam bens imóveis, como bem resulta dos artºs 73º e 498º, nº 4, por um lado, e dos artºs 75º e 77º por outro. VI - Quando a sentença que se pretende rever/confirmar é de habilitação/inventário e nele não só constam como bens a partilhar bens imóveis sitos em Portugal mas também imóveis sitos no Brasil, tendo a partilha havida abarcado todo o acervo hereditário do “de cujus”, afigura-se-nos que o Tribunal brasileiro tem competência para essa habilitação e partilha, sem o que nunca poderia ter lugar uma partilha conjunta dos bens deixados pelo inventariado, como se pretende que seja possível e desejável.”
Já no que concerne ao requisito previsto na alínea d), importa determos a nossa atenção na defesa do Requerido, que invocou o caso julgado de sentença proferida por um tribunal português e que transitou em julgado antes mesmo de ter sido instaurada no tribunal dos EUA a ação em que veio a ser proferida a sentença revidenda. Com esse fundamento, pugnou pela improcedência da presente ação.
É sabido que a força obrigatória do caso julgado material se desdobra numa dupla (ou até tripla, se considerarmos um efeito preclusivo) eficácia: desde logo, um efeito negativo - pela exceção dilatória, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação; e também um efeito positivo - a autoridade do caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito, verificando-se quando o objeto da primeira decisão constitui questão prejudicial da segunda ação. A este respeito, na doutrina, destacamos a explicação de Rui Pinto “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, na revista “Julgar Online”, novembro de 2018, págs. 6-7: “O efeito negativo do caso julgado consiste numa proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão, por via da exceção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos artigos 577.º, al. i), segunda parte, 580.º e 581.º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem. O efeito positivo ou autoridade do caso lato sensu consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior [8 Assim, TEIXEIRA DE SOUSA, O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual), BMJ 325, 159]. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veritate habetur. Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão. (…) Explicado de outro modo, enquanto com o efeito negativo um ato processual decisório anterior obsta a um ato processual decisório posterior, com o efeito positivo um ato processual decisório anterior determina (ou pode determinar) o sentido de um ato processual decisório posterior. II. O efeito negativo tem por destinatário os tribunais e apresenta natureza processual. Traduz-se na exceção dilatória de caso julgado. O efeito positivo tem por destinatário as partes e os tribunais e apresenta diversa natureza, em razão do objeto da decisão. Assim, nas decisões que têm por objeto a relação processual o efeito positivo é estritamente processual; já nas decisões sobre o mérito da causa o efeito positivo é material – a sentença é título bastante de efeitos materiais”.
Na jurisprudência, destacamos, a título exemplificativo, o acórdão do STJ de 05-12-2017, proferido na Revista n.º 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1 - 1.ª Secção, sumário disponível em www.stj.pt: «II - Ao caso julgado material são atribuídas duas funções que, embora distintas, se complementam: uma função positiva (“autoridade do caso julgado”) e uma função negativa (“exceção do caso julgado”). III - A função positiva opera por via de “autoridade de caso julgado”, que pressupõe que a decisão de determinada questão – proferida em ação anterior e que se inscreve, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda – não possa voltar a ser discutida. IV - A função negativa opera por via da “exceção dilatória do caso julgado”, pressupondo a sua verificação o confronto de duas ações – contendo uma delas decisão já transitada em julgado – e uma tríplice identidade entre ambas: coincidência de sujeitos, de pedido e de causa de pedir.»
A exceção dilatória do caso julgado encontra consagração legal nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, al. i) do CPC, sendo de conhecimento oficioso conforme previsto no art. 578.º do CPC. Pressupõe a repetição de uma causa em dois processos distintos, sendo seu requisito, conforme dispõe o n.º 1 do art. 580.º do mesmo Código, que o primeiro desses processos tenha findado por decisão que já não admita recurso ordinário, isto é, que tenha transitado em julgado.
Como expressamente resulta do n.º 2 do art. 580.º, a exceção do caso julgado tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. Nas palavras de Alberto dos Reis, “Oposta a excepção de caso julgado e julgada procedente, o juiz absolve o réu do pedido [pois, no anterior Código, na versão então em vigor, era considerada uma exceção perentória], embora não chegue a conhecer do mérito da causa; e absolve-o fundado na força e autoridade do caso julgado constituído pela sentença anterior. Desta sorte, evita-se um novo julgamento de mérito da mesma causa, obsta-se a que o tribunal ou contradiga ou reproduza a decisão contida na primeira instância.” - in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume III, pág. 92.
É sabido que a repetição de causas ocorre quando nos deparamos com uma tríplice identidade, a qual fixa os limites subjetivos e objetivos do caso julgado: identidade quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (cf. art. 581.º CPC).
Relativamente aos limites subjetivos, a identidade dos sujeitos que releva para efeito da exceção de caso julgado é, como dispõe o art. 581.º, n.º 2, do CPC, a identidade jurídica. Assim, o caso julgado forma-se relativamente aos intervenientes no processo (pessoa singular ou coletiva) e ainda quanto aos sucessores na posição jurídica substantiva das partes, os quais, por sucessão mortis causa ou transmissão inter vivos, tenham assumido a posição jurídica de quem era parte no processo (independentemente da substituição se dar no decurso da ação, quer posteriormente à prolação da sentença), e quer se trate da parte vencedora, quer da parte vencida. Neste sentido, exemplificativamente, veja-se Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, 1985, págs. 722 e seguintes.
Quanto aos limites objetivos, estes traduzem-se na identidade do pedido e da causa de pedir. Quanto à identidade do pedido, o que importa é a obtenção pelo autor (ou réu-reconvinte, face aos pedidos reconvencionais) do mesmo efeito jurídico que se tentara alcançar com a propositura da primeira ação (dedução de reconvenção), tenha ou não esse objetivo sido alcançado. A este propósito, veja-se a seguinte passagem do sumário do acórdão do STJ de 05-12-2017, proferido na Revista n.º 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1 - 1.ª Secção, sumário disponível em www.stj.pt: “A identidade de pedido – que integra a tríplice identidade (…) – é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional – implícita ou explícita – pretendida pelo autor, no conteúdo e objeto do direito a tutelar e nos efeitos jurídicos pretendidos”.
Já a identidade de causas de pedir supõe que os factos em que se fundamenta o direito alegado pelo autor (ou réu-reconvinte) têm de ser os mesmos nas várias ações em causa (cf. art. 581.º, n.º 4, do CPC).
Em suma, na aferição do caso julgado, há que considerar a decisão do tribunal (a que já transitou) relativamente à pretensão do autor (ou do réu reconvinte), concretizada no pedido (ou na reconvenção) e delimitada em função da respetiva causa de pedir, como, de forma lapidar, afirmava Antunes Varela, obra citada, pág. 712: “a ordem pela qual, compreensivelmente, a lei enumera as três identidades caracterizadoras do caso julgado (a identidade do pedido antes da identidade da causa de pedir) mostra que é sobre a pretensão do autor, à luz do facto invocado como seu fundamento, que se forma o caso julgado”.
É certo que numa ação de revisão de sentença estrangeira de divórcio, o pedido de revisão da sentença propriamente dito não se confunde com o pedido de divórcio deduzido numa outra ação julgada procedente por sentença transitada em julgado. Porém, a verdade é que tais pedidos acabam por ter o mesmo efeito jurídico, entendendo o legislador, pois de outro modo não teria razão de ser o disposto na citada alínea d), que deve ser negada a confirmação quando perante tribunal português está a correr (caso em que há litispendência) ou já foi decidida ação idêntica à julgada pela sentença revidenda, salvo se, antes de a ação ser proposta em Portugal, já a outra (idêntica) havia sido intentada perante o tribunal estrangeiro, que assim preveniu a jurisdição (ressalva-se, pois, o requisito da prevenção da jurisdição pelo tribunal estrangeiro, para o que não basta considerar as datas de prolação das decisões ou do respetivo trânsito em julgado - para saber se o tribunal estrangeiro preveniu a jurisdição, há que atentar nas datas de instauração das ações de divórcio).
Neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Coimbra de 21-09-2010, proferido no proc. n.º 179/08.3YRCBR, disponível em www.dgsi.pt, aí se afirmando designadamente que: “o caso julgado formado por sentença portuguesa é, em regra, oponível, operando como excepção, ao pedido de confirmação de sentença estrangeira. Mas a regra sofre uma excepção prevista no preceito (a qual funciona como excepção à excepção): o caso de o tribunal estrangeiro ter prevenido a jurisdição. Neste caso, desaparece tal obstáculo à confirmação; o mesmo vale por dizer: prevenida a jurisdição pelo tribunal estrangeiro, o caso julgado não obsta à procedência do pedido de confirmação.” No caso aí em apreço verificava-se a identidade de ações (a revidenda e a proferida por tribunal português), tendo em ambas sido decretada a dissolução do mesmo casamento celebrado entre as partes, sendo que, quando transitou em julgado a sentença portuguesa de 31-07-2007 que dissolveu o casamento, ainda não havia sido proferida a sentença do tribunal suíço, o que só aconteceu em 14-01-2008, não operando, todavia, a exceção do caso julgado (ou seja, não sendo obstativa da revisão e confirmação da sentença estrangeira e, portanto, obstativa da eficácia desta em Portugal), por se ter constatado que o tribunal suíço preveniu a jurisdição; mais se referindo nesse acórdão que a prevenção da jurisdição pelo tribunal estrangeiro pressupõe um outro requisito, o da competência eletiva do tribunal estrangeiro, sendo que, nesse caso, a competência do tribunal suíço (ou também dele) não vinha posta em causa, tanto mais que as partes estavam emigradas nesse país; portanto, os autos não mostravam que essa competência tivesse sido provocada em fraude à lei e, com toda a segurança se podia afirmar, face ao disposto no art. 65.º-A do CPC então vigente, que a sentença versava sobre matéria que não era da exclusiva competência dos tribunais portugueses.
Transpondo estas considerações para o caso dos autos, é inevitável concluir que procede a exceção de caso julgado no tocante à parte da sentença revidenda que decretou o divórcio das partes, uma vez que foi proferida em ação intentada em agosto de 2022, quando já havia transitado em julgado a sentença proferida pelo tribunal português que decretara o divórcio das partes.
Ainda que assim não fosse, é óbvio que sempre faltaria à Requerente o interesse em agir quanto ao pedido formulado a este respeito, uma vez que até já estava inclusivamente, à data da propositura da presente ação, averbado o divórcio ao assento de casamento.
No entanto, quanto ao mais peticionado, não se verifica a exceção de caso julgado, pois não há notícia de que a partilha dos bens comuns do ex-casal já tenha sido efetuada no nosso país, judicial ou extrajudicialmente.
De referir, por último, que a decisão a confirmar, de partilha, é sem dúvida compatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português, cuja legislação também consagra a sua admissibilidade (cf. artigos 1689.º do CC e artigos 1082.º ss. do CPC).
Conclui-se, assim, pela confirmação da sentença em análise, por via da qual foi homologado o acordo das partes para partilha dos bens comuns, em consequência do seu divórcio, para que a mesma passe a ter plena eficácia na ordem jurídica portuguesa.
Quanto ao valor da causa, afigura-se adequado, ante os elementos constantes dos autos e face ao disposto no art. 303.º, n.º 1, do CPC, considerar o que foi indicado na Petição Inicial, sem impugnação por parte do Requerido.
A Requerente e o Requerido ficaram parcialmente vencidos, sendo certo que ambos retiram proveito da procedência da ação, pelo que são responsáveis pelo pagamento das custas processuais na proporção de metade (artigos 527.º a 529.º do CPC).
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
a) julgar verificada a exceção dilatória do caso julgado no que concerne ao pedido de revisão da sentença estrangeira na parte em que a mesma decretou o divórcio da Requerente A … e do Requerido B …, absolvendo este último da instância;
b) julgar parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, conceder a revisão e confirmar a referida sentença, datada de 23 de novembro de 2022, proferida pelo Tribunal de Fairfax, Estado da Virgínia, Estados Unidos da América, na parte em que homologou as disposições contidas no acordo escrito de partilha celebrado pelas partes a 30 de agosto de 2022 e que constitui o Anexo A dessa sentença, que assim passará a ter eficácia na ordem jurídica portuguesa.
Mais se decide fixar o valor da causa em 30.000,01 € e condenar a Requerente e o Requerido no pagamento das custas processuais, na proporção de metade.
D.N.
Lisboa, 26-09-2024
Laurinda Gemas
Carlos Castelo Branco
Paulo Fernandes da Silva