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NULIDADES DE SENTENÇA
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CAUSA DE PEDIR
PRINCÍPIO DA COINCIDÊNCIA
PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE COLECTIVA
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
ARRESTO
CONTAS BANCÁRIAS
GRUPO DE SOCIEDADES
Sumário
SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC) I – Nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, aplicável aos despachos, por via do art. 613.º, n.º 3, do mesmo Código, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, o que pode suceder no caso de falta absoluta de fundamentação ou de uma fundamentação de facto ou de direito insuficiente ao ponto de não possibilitar às partes a compreensão cabal e análise crítica das razões (de facto e de direito) da decisão. Tal não sucede quando a decisão recorrida se mostra suficientemente fundamentada, em termos que possibilitaram às Apelantes identificar o invocado erro de julgamento (de direito) e desenvolver a sua argumentação crítica a esse respeito. II – Tendo sido invocada pelas Rés a exceção de incompetência absoluta, por (alegada) falta de verificação de qualquer um dos critérios de aferição da competência internacional previstos no art. 62.º do CPC, importa apreciar se algum deles se verifica, em função dos termos em que a ação foi posta e da forma como a Autora estruturou o pedido e a respetiva causa de pedir. III – A competência internacional é determinada, segundo uma “ordem decrescente de aplicação prática”, pelos princípios da coincidência, causalidade e necessidade previstos nas alíneas, a), b) e c), respetivamente, daquele artigo. Assim, se a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses já resultar, desde logo, da aplicação do princípio da causalidade [sendo claro que, no caso dos autos, não se verifica a previsão da alínea a)], não haverá que recorrer ao princípio da necessidade. IV – Segundo o princípio da causalidade, a ação pode ser instaurada nos tribunais portugueses quando a causa de pedir (ainda que apenas parte dos factos que a integram) foi praticada em território português. Já pelo princípio da necessidade, a ação pode ser instaurada nos tribunais portugueses quando uma situação subjetiva com uma ponderosa conexão, pessoal ou real, com o território português só possa ser reconhecida em ação proposta nos tribunais nacionais, o que pode suceder por uma impossibilidade jurídica ou prática. V – Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do art. 62.º, alíneas b) e c), do CPC, para decidirem uma ação intentada por uma sociedade estrangeira (uma instituição bancária com sede em Porto Rico) contra quatro sociedades com sede na Venezuela em que é peticionada, com fundamento no instituto da desconsideração da personalidade coletiva à luz da lei venezuelana, a condenação destas no pagamento da quantia de que é devedora a “sociedade mãe”, a qual, juntamente com as Rés e outras “sociedades filhas”, forma um grupo de empresas estatais petrolíferas, detidas pelo Estado da República Bolivariana da Venezuela e controladas pelo Governo desse país, tendo sido arrestadas, no procedimento cautelar apenso, quantias depositadas em instituição bancária portuguesa no âmbito de processo de consignação judicial, que a Autora alega serem a única garantia de satisfação do seu crédito, cujo pagamento coercivo está a ser exigido em ação executiva intentada no nosso país, mais tendo sido alegado, embora numa linha de alegação subsidiária, um conjunto de factos atinentes a uma atuação concertada por parte da “sociedade mãe” e das Rés no sentido de se valer do instituto da desconsideração da personalidade segundo a lei portuguesa.
Texto Integral
Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados
I - RELATÓRIO
A …, S.A., sociedade de direito venezuelano, com número de identificação fiscal J- …, com sede na Avenida Libertador, Calle El Empalme, Edifício Petróleos da Venezuela, Torre Este, 10.º andar, La Campiña, Caracas, Venezuela, b …, S.A., sociedade de direito venezuelano, com número de identificação fiscal J- …, com sede Avenida Libertador, Calle El Empalme, Edifício Petróleos da Venezuela, Torre Este, 10.º andar, OF SN, La Campiña, Caracas, Venezuela, C …, S.A., sociedade de direito venezuelano, com número de identificação fiscal J- …, com sede na Avenida Libertador, Calle El Empalme, Edifício Petróleos da Venezuela, Torre Este, 6.º andar, La Campiña, Caracas, Venezuela, D …, S.A., sociedade de direito venezuelano, com número de identificação fiscal J- …, com sede na Avenida Libertador, Calle El Empalme, Edifício Petróleos da Venezuela, Torre Oeste, 7.º andar, OF 28, La Campiña, Caracas, Venezuela, Rés na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, foi intentada por E …, INC., com número de identificação fiscal …, com sede na Galeria San Patrício - Suite #207 B-5 Rua Tabonuco, Guaynabo, 00968 Porto Rico, interpuseram o presente recurso de apelação do despacho saneador na parte em que julgou improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal.
Os autos tiveram início em 30-09-2022, com a apresentação de Petição Inicial, em que a Autora pediu que as Rés fossem condenadas a pagar-lhe o montante global de USD 96.625.527,33, (EUR 99.552.366,92), a título de capital e juros contratuais vencidos até essa data, bem como os juros contratuais vincendos até efetivo e integral pagamento, alegando, para tanto e em síntese, que:
- No dia 22 de fevereiro de 2021, a Autora instaurou, no Juízo de Execução de Lisboa, umaação executiva para pagamento de quantia certa contra a PETRÓLEOS DE VENEZUELA, S.A., doravante designada por “A …, S.A.” (empresa petrolífera detida pelo Estado Venezuelano), com base nas certidões [emitidas nos termos do disposto no artigo 42.º, n.º 1, al. b), do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho] de decisões judiciais proferidas pelo Commercial Court, uma sub-divisão do Queen’s Bench Division do High Court of Justice do Reino Unido [mais precisamente, uma sentença (judgment) datada de 4 de novembro de 2020, proferida no âmbito dos processos n.ºs CL-2020-000318 e CL-2020-000320, e dois despachos (orders) de 3 de dezembro de 2020, um relativo ao processo n.º CL-2020-000318 e outro respeitante ao processo n.º CL-2020-000320], das quais resulta, em termos globais, ter sido a A …, S.A. condenada no pagamento à Autora de capital e juros contratuais, ao abrigo de dois contratos de mútuo, celebrados em 2016 e 2017, ascendendo o valor do crédito a USD 96.625.527,33, que corresponde a EUR 99.552.366,921, a título de capital e juros contratuais vencidos até à data (30-09-2022), a que acrescem os juros contratuais vincendos até efetivo e integral pagamento;
- Desde 08-03-2021, os valores líquidos da dívida vencida (saldo líquido da compensação) da A …, S.A. perante a Autora são os seguintes: (i) No processo n.º CL-2020-000318, o valor de USD 46.536.380,00; (ii) No processo n.º CL-2020-000320, o valor de USD 37.110.590,00, permanecendo em dívida o valor global de USD 96.625.527,33, que corresponde a EUR 99.552.366,9226, a título de capital e juros contratuais vencidos até à presente data (30-09-2022), a que acrescem os juros contratuais entretanto vincendos até efetivo e integral pagamento, constituindo o título executivo que deu origem à ação executiva instaurada pela Autora contra a A …, S.A. (pendente no Juízo de Execução de Lisboa, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, sob o n.º de processo …/…) prova da existência do crédito da Autora sobre a A …, S.A.;
- No âmbito dessa ação executiva, foram penhorados os saldos de dois depósitos bancários de que a A …, S.A. é titular junto do F …, S.A. (doravante, “F …, S.A.”), os quais eram – e continuam a ser – os únicos bens conhecidos da A …, S.A. em Portugal;
- Contudo, os saldos bancários penhorados a favor da Autora já se encontravam sujeitos a medidas decretadas em processos-crime, bem como a anteriores medidas de arresto e penhora a favor de outros credores, sendo tais saldos bancários insuficientes para a satisfação do crédito exequendo;
- A ora Autora requereu então ao Juiz de Execução, ao abrigo da lei venezuelana aplicável e invocando a desconsideração da personalidade coletiva, que ordenasse a penhora dos saldos bancários depositados em contas abertas em nome de quatro sociedades total ou maioritariamente detidas pela A …, S.A., as ora Rés, o que foi indeferido por despacho de 03-02-2022, em que se referiu, no essencial, que a responsabilidade das quatro sociedades em questão, subsidiárias da A …, S.A., apesar de bem fundamentada e reconhecida pela lei venezuelana, não podia ser apreciada na ação executiva, não sendo esse o meio processual adequado;
- A Autora requereu então, no Juízo Central Cível de Lisboa, o decretamento de uma providência cautelar de arresto dos saldos bancários das Rés, sociedades detidas pela A …, S.A., através da desconsideração da sua personalidade coletiva à luz da lei venezuelana, instituto nos termos do qual as dívidas de uma sociedade integrante de um grupo societário também são dívidas dos demais membros desse grupo;
- Esse procedimento cautelar foi julgado procedente por decisão final de 28-03-2022, tendo o Tribunal decretado o arresto das quantias depositadas nas identificadas contas da titularidade das aí Requeridas, domiciliadas no F …, S.A., até ao montante de USD 92.503.695,13 correspondente a 83.456.960,60 €, bem como o arresto das quantias depositadas noutras contas bancárias da titularidade das Requeridas em instituições de crédito sedeadas em Portugal;
- Notificado o F …, S.A. este veio informar que as contas de tais entidades haviam sido encerradas e que os saldos que existiam (nas referidas contas tituladas pelas entidades Requeridas) foram, à data do seu encerramento, transferidos para duas Contas-Cliente abertas junto do F …, S.A. emPortugal, uma em euros e outra em dólares, sendo que «mais recentemente, os fundos titulados pelas entidades requeridas B …, S.A., C …, S.A. e D …, S.A. foram objeto de consignação judicial no âmbito de um processo que se encontra atualmente em curso»;
- Nessa sequência, foram arrestadas as quantias depositadas, junto da Caixa Geral de Depósitos à ordem do processo judicial referido pelo F …, S.A., da titularidade das ora Rés B …, S.A., C …, S.A. e D …, S.A., sendo que as quantias arrestadas no âmbito do referido procedimento cautelar são a única garantia de satisfação do crédito da Autora;
- Atendendo ao caráter instrumental do procedimento cautelar, pretende a Autora, na presente ação de que o mesmo é dependente, obter a tutela definitiva do seu direito de crédito, obtendo a condenação das Rés no pagamento das dívidas da A …, S.A., através da desconsideração da sua personalidade coletiva à luz da lei venezuelana, assim se ressarcindo por via do património destas, previamente arrestado;
- A A …, S.A. (1.ª Ré) é detida, direta e integralmente, pela A …, S.A.; a B …, S.A. (2.ª Ré) também é detida, direta e integralmente, pela A …, S.A.; a C …, S.A. (3.ª Ré) é detida, indireta (por via da CORPORACIÓN VENEZOLANA DEL PETRÓLEO, S.A. e da A …, S.A., S.A., ambas detidas total e diretamente pela A …, S.A.) e integralmente, pela A …, S.A.; e a D …, S.A. (4.ª Ré) é detida, indiretamente (por via da CORPORACIÓN VENEZOLANA DEL PETRÓLEO, S.A. e da A …, S.A., S.A.) e a 70%, pela A …, S.A.;
- Todas estas sociedades são sociedades filhas da A …, S.A. e, com várias outras, concentram, sob o comando da sociedade-mãe A …, S.A., a atividade petrolífera da República Bolivariana da Venezuela;
- A sociedade mãe A …, S.A. é uma sociedade comercial de direito venezuelano que se dedica à exploração, produção, refinação, comercialização e transporte de petróleo da Venezuela, sendo detida a 100% pelo Estado Venezuelano e tendo a sua atividade controlada pelo Governo da Venezuela, concretamente pelo Ministerio del Poder Popular de Petróleo, formando, conjuntamente com as diversas sociedades, detidas direta ou indiretamente, total ou maioritariamente, pela A …, S.A. (doravante designadas por “Subsidiárias”, onde se incluem as Rés), o denominado Grupo A …, S.A., detido e controlado pelo Estado da República Bolivariana da Venezuela;
- As principais funções da A …, S.A. incluem planear, coordenar, supervisionar e controlar as atividades das Subsidiárias, que passam pela exploração, transporte, refinação, armazenamento, comercialização ou qualquer outra atividade da sua competência, em matéria de petróleo e demais hidrocarbonetos, desenvolvendo a A …, S.A. as suas atividades através das Subsidiárias;
- A existência deste grupo de empresas estatais petrolíferas é, aliás, imposta pela Constituição (artigos 302.º, 1.ª parte, e 303.º, 1.ª parte) e pela lei (artigos 29.º e 30.º da Lei Orgânica dos Hidrocarbonetos) daquele país;
- A Venezuela tem vindo a estar sujeita a medidas restritivas impostas pela Comissão Europeia e a diversas sanções económicas aplicadas pelos Estados Unidos, pelo reconhecimento internacional de que possui um elevado índice de corrupção ao nível do aparelho empresarial estatal, envolvendo a A …, S.A. e outras empresas do Grupo A …, S.A. em esquemas de branqueamento de capitais, suborno e desvio de dinheiro, em prejuízo do erário público venezuelano e, também, dos credores daquelas sociedades, sendo ainda internacionalmente reconhecida a falta de independência do sistema judicial venezuelano relativamente ao poder político;
- O Autor, enquanto credor da A …, S.A., pretende lançar mão do instituto da desconsideração da personalidade coletiva, de molde a que as Rés – que são detidas, total ou maioritariamente, pela A …, S.A. – sejam condenadas a satisfazer o seu crédito, sendo a lei aplicável (à desconsideração da personalidade coletiva da A …, S.A. e das Rés) a lei venezuelana, por força do disposto no art. 33.º, n.º 2, do CC;
- Ora, segundo a lei e a jurisprudência venezuelanas, o único requisito da desconsideração da personalidade coletiva é a existência de um grupo de sociedades, sendo que, nessas circunstâncias, cada sociedade é responsável pelas dívidas da outra, sem necessidade de demonstrar abuso do direito ou fraude, i.e., sem necessidade de haver uma utilização abusiva ou fraudulenta da personalidade jurídica;
- Caso se entenda ser aplicável ao caso a lei portuguesa, também deverá operar a desconsideração da personalidade coletiva das Rés, considerando que a atuação, perpetrada pela A …, S.A. e por Subsidiárias cujo controlo é unitário, constitui um padrão de abuso que o sistema jurídico não pode tolerar, pois a autonomia jurídica e patrimonial deste grupo de sociedades é um véu de proteção a coberto do qual se praticam atos ilícitos e censuráveis em prejuízo de terceiros;
- Exemplo disso é a ação cível que, em Portugal, intentaram contra o F …. S.A., pedindo a condenação deste no pagamento dos saldos existentes nas contas bancárias de cada uma das aí autoras, sendo nesse processo revelado, pelos documentos juntos, que as sociedades Rés PETRÓLEO, S.A., C …, S.A. e D …, S.A. pediram ao F …, S.A. que este transferisse os montantes depositados nas suas contas encerradas para contas das quais a beneficiária é a A …, S.A.;
- Por sua vez, a A …, S.A., S.A. pediu a transferência dos saldos detidos nas contas n.º (…) (EUR) e n.º (…) (USD), abertas junto do F …, S.A, e das quais é beneficiária, para a conta n.º (…), aberta junto do Evrofinance Mosnarbank (Rússia), da qual é beneficiária a A …, S.A.; a C …, S.A. pediu: (i) a transferência dos saldos detidos na conta n.º (…) (USD), aberta junto do F …, S.A., e da qual é beneficiária, para a conta n.º (…), aberta junto do Evrofinance Mosnarbank, da qual é beneficiária a A …, S.A.; (ii) a transferência dos saldos detidos na conta n.º (…) (EUR), aberta junto do F …, S.A., e da qual é beneficiária, para a conta n.º (…), aberta junto do Evrofinance Mosnarbank, da qual é beneficiária a A …, S.A.; a D …, S.A. pediu a transferência dos saldos detidos nas contas n.º (…) (USD) e n.º (…) (EUR), abertas junto do F …, S.A, e das quais é beneficiária, para a conta n.º (…), aberta junto do Sumitomo Mitsui Banking Corporation (Japão), sendo que, apesar de não ser indicada a entidade beneficiária desta conta, há notícias que indicam que este banco financiou a A …, S.A.;
- Estes factos demonstram uma confusão ou promiscuidade entre esferas patrimoniais, tipicamente catalisadora da desconsideração da personalidade coletiva, e confirmam que os fundos depositados naquelas contas pertencem, materialmente, à A …, S.A.;
- A A …, S.A., além de não ter em Portugal bens livres de ónus que possam satisfazer (sequer parcialmente) o crédito do Autor, está em situação de default generalizado, sem capacidade financeira para solver as suas dívidas, não estando as contas da A …, S.A. relativas aos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 ao alcance do público (incluindo, portanto, dos credores da sociedade);
- O acesso às contas das Rés, embora não esteja vedado, também não revela a sua situação atual, estando a Autora a ser prejudicada, quer pela falta de bens da A …, S.A., quer pela falta de informação contabilística, cuja publicidade visa precisamente proteger credores e terceiros e cuja ocultação visa presumivelmente obviar às tentativas de cobrança e execução das dívidas do Grupo A …, S.A.;
- Identifica-se, pois, uma conduta abusiva por parte da A …, S.A., que está a causar danos à Autora, impedindo-a de satisfazer o seu crédito de mais de 90 milhões de Euros, sendo que essa conduta e esses danos, a par do domínio/controlo exercidos pela A …, S.A. sobre as Rés (todas uma extensão do Estado Venezuelano), justificam a desconsideração da personalidade coletiva das Rés de modo que os bens destas também respondam pela dívida da A …, S.A. perante a Autora.
Na sua Contestação, as Rés defenderam-se, invocando, além do mais, a exceção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, com a seguinte linha de argumentação:
- A Autora é uma sociedade constituída ao abrigo do Direito porto-riquenho, com sede em Porto Rico, e não exerce qualquer atividade em Portugal;
- As Rés são sociedades constituídas ao abrigo do Direito venezuelano, todas com sede na Venezuela, que também não exercem qualquer atividade comercial em Portugal;
- O único elemento de conexão entre as Partes e a jurisdição portuguesa é a (alegada) existência de bens em Portugal;
- Inexiste qualquer instrumento internacional que atribua competência aos tribunais portugueses para dirimir o presente litígio;
- Não foi celebrado qualquer pacto de jurisdição entre as partes por via do qual fosse atribuída competência internacional aos tribunais portugueses;
- Na presente ação não estão em causa as matérias indicadas no art. 63.º do CPC para atribuição de competência exclusiva dos tribunais portugueses;
- Restam os critérios para atribuição de competência internacional concorrente, previstos no art. 62.º do CPC;
- Considerando que a pretensão da Autora nesta ação é a de exigir o cumprimento de uma obrigação que alega ter sido incumprida, é aplicável a norma de atribuição de competência territorial interna para o cumprimento de obrigações contratuais prevista no art. 71.º do CPC, que atribui a competência ao tribunal do domicílio do réu, pelo que não se aplica o critério da coincidência;
- O critério da causalidade não é aplicável ao caso porque nenhum dos factos que serve de causa de pedir à ação foi praticado em Portugal;
- O critério da necessidade também não é aplicável, por não estarem preenchidos os seus pressupostos, porquanto a ação proposta não é o único meio de tornar efetivo o direito invocado, nem se verifica para a Autora dificuldade apreciável na propositura da ação nos tribunais estrangeiros competentes, a que acresce não se verificar a condição de existência de um elemento ponderoso de conexão entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa.
Em articulado de Resposta, a Autora pronunciou-se pela improcedência da exceção, alegando, em síntese, que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, quer pelo critério da causalidade, quer pelo critério da necessidade, uma vez que:
- Existem factos ocorridos em Portugal que integram a causa de pedir complexa da presente ação;
- O efeito jurídico pretendido pela Autora depende da alegação e prova de factos que evidenciem a confusão ou promiscuidade entre as esferas patrimoniais das Rés e da sociedade-mãe, razão porque a Autora alegou (i) a ação cível proposta pelas Rés contra o F …S.A., em Portugal, e (ii) as ordens de transferência dadas pelas Rés ao F … S.A., em Portugal;
- A falta de independência do sistema judicial venezuelano e a sua subordinação ao poder executivo são factos públicos, consensualmente reconhecidos pela comunidade internacional;
- Existe a forte probabilidade de a Autora não ter acesso a um processo justo e equitativo, para mais tendo em conta que as Rés são subsidiárias da A …, S.A, que é detida a 100% pelo Estado Venezuelano e controlada pelo respetivo Governo, concretamente pelo Ministerio del Poder Popular del Petróleo;
- Embora as Rés não tenham domicílio em Portugal, estabeleceram uma relação preponderante com a ordem jurídica portuguesa no exercício da sua atividade, mantendo uma relação comercial estável com um banco português durante vários anos: a A …, S.A. celebrou com o então Banco Espírito Santo, S.A. contrato de abertura de conta de depósito à ordem, no âmbito do qual foram abertas contas a favor daquela; em 26-08-2011, a B …, S.A. abriu duas contas DO (depósito à ordem) corporate no BES; em 21-05-2012, a C …, S.A. abriu duas contas no BES; no dia 05-12-2013, a D …, S.A. abriu duas contas no BES;
- As próprias Rés alegaram, na petição inicial da ação que intentaram contra o F …, S.A. (proc. n.º …/…), que a abertura destas contas de depósito à ordem teve como propósito “fazer face a necessidades de pagamentos e recebimentos, emergentes da prossecução das atividades compreendidas nos objetos sociais de cada um dos Autores”;
- Cada uma das Rés é titular de número único de pessoa coletiva português (NIPC), sendo sujeitos passivos contribuintes em Portugal;
- Até março de 2019, o escritório europeu da A …, S.A, sociedade-mãe das Rés, situava-se em Lisboa;
- A presente ação foi proposta na sequência do decretamento pelos tribunais portugueses de uma providência cautelar de arresto sobre os bens das Rés localizados em Portugal;
- Sendo proferida uma decisão condenatória nos termos pretendidos, a mesma será executada perante os tribunais portugueses.
Em 17-04-2024 realizou-se audiência prévia, no decurso da qual foi proferido o Despacho saneador, que fixou o valor da causa em 99.552.366,92 €, e, no que ora importa, julgou improcedente a exceção de incompetência em razão da nacionalidade.
Inconformadas com esta decisão, vieram as Rés interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões: A. Vem o presente recurso interposto do despacho saneador, proferido nos presentes autos em sede de Audiência Prévia, pelo qual o Tribunal a quo julgou improcedente a exceção de incompetência absoluta deduzida pelas Rés, aqui Recorridas, na Contestação e se considerou competente para dirimir o presente litígio B. O Recorrido é uma sociedade com sede em Porto Rico, constituída ao abrigo do direito porto-riquenho, que não exerce qualquer atividade em Portugal, e as Recorrentes são sociedades constituídas ao abrigo do direito venezuelano, todas com sede na Venezuela, que também não exercem qualquer atividade comercial em Portugal. C. Inexiste qualquer instrumento internacional que atribua competência aos tribunais portugueses para dirimir o presente litígio, não foi celebrado qualquer pacto de jurisdição entre as partes por via do qual fosse atribuída competência internacional aos tribunais portugueses e não estão em causa nenhuma das matérias indicadas no artigo 63.º do CPC para atribuição de competência exclusiva destes tribunais. D. Restam, portanto, os critérios para atribuição de competência internacional concorrente, previstos no artigo 62.º do CPC: critério da coincidência [alínea a)]; critério da causalidade [alínea b)] e critério da necessidade [alínea c)]. E. Tal como se concluiu na decisão recorrida, os tribunais portugueses não têm competência internacional para julgar a presente ação ao abrigo do critério da coincidência – onde se inscreve o critério enunciado na alínea a) do n.º 1 do artigo 78.º do CPC, relativo à apreciação do arresto. F. O Tribunal recorrido tomou a sua decisão com fundamento exclusivamente no critério da necessidade, por entender que o direito do Recorrido teria mais garantias de se tornar efetivo se a ação fosse proposta em Portugal e por vislumbrar a existência de um elemento de conexão com a ordem jurídica portuguesa. G. O Tribunal a quo considerou que este critério deixou de assumir natureza excecional e subsidiária face aos demais, bastando a dificuldade apreciável para o autor na propositura da ação no estrangeiro, sem qualquer fundamentação ou explicação para que, da comparação entre uma anterior e a atual redação desta norma legal, se tenha retirado que a modificação textual operada afastou esse caráter excecional. H. Ao contrário do entendimento expresso na decisão recorrida, o critério da necessidade é um critério residual, que apenas pode ser convocado quando os demais critérios falhem e quando inexista outra jurisdição que possa apreciar o litígio, sendo este um aspeto consensual entre as Partes, além de ser entendimento pacífico na Doutrina e na Jurisprudência. I. Na perspetiva do Tribunal a quo, a sua competência vê-se justificada à luz deste critério, por três ordens de razão: (i) A ordem jurídica portuguesa conferiria mais garantias à efetividade do direito do Recorrido, atenta nomeadamente a existência de bens arrestados em Portugal; (ii) Entende existir um elemento de conexão real entre o litígio e a nossa ordem jurídica, consubstanciado na (alegada) existência de património das Recorrentes, objeto mediato da ação, junto de um Banco português e a sua (alegada) ordem de transferência a favor da A …, S.A. (sociedade comercial venezuelana detentora de participações sociais em cada uma das Recorrentes); (iii) Considera existir um elemento de conexão pessoal na “vontade” das Recorrentes em celebrar contratos de depósito bancário com um Banco português. J. O Tribunal a quo entendeu, ao arrepio do critério legal imposto, que o facto de, na sua perspetiva, a ordem jurídica portuguesa conferir “mais garantias” ao Recorrido é justificação suficiente para eleger este foro como competente, quando, em bom rigor, a lei impunha ao Recorrido que demonstrasse existir uma dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, coisa que manifestamente não logrou fazer. K. Porém, o Recorrido limitou-se apenas a tentar demonstrar que teria essa dificuldade apreciável na propositura da presente ação na Venezuela, invocando uma situação de denegação de justiça, quando toda a sua argumentação se baseia na tese de que a jurisprudência dos tribunais venezuelanos tem vindo a acolher a sua posição acerca da desconsideração da personalidade coletiva das aqui Recorrentes, argumentando que esses tribunais já emitiram decisões, inclusivamente contra a A …, S.A., com base nesta doutrina, pelo que os tribunais venezuelanos seriam assim o forum natural para atender e julgar procedentes tais argumentos. L. O Recorrido demitiu-se completamente de alegar sequer que teria essa dificuldade na propositura da ação no estrangeiro, como lhe é exigido pela norma vertida na segunda parte da al. c) do artigo 62.º do CPC, dedicando-se exclusivamente a tentar demonstrar tal dificuldade em relação a uma única ordem jurídica, a venezuelana, quando as próprias partes e a factualidade subjacente ao presente litígio revelam diversos elementos de conexão com outras ordens jurídicas, que podem ter uma competência internacional concorrente, designadamente através de pactos atributivos de jurisdição, que aparentemente estarão na base das sentenças obtidas pelo Recorrido em reconhecimento do seu alegado crédito. M. Assim, pendia sobre o Recorrido a alegação e prova de “dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro”, ou seja, nas ordens jurídicas com que o litígio apresenta elementos de conexão, tanto legal como convencional. N. Como bem se anotou em duas decisões recentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal da Relação do Porto, a mera comodidade para o Recorrido na instauração da ação em Portugal não justifica a atribuição de competência aos tribunais portugueses O. O Tribunal a quo limitou-se a considerar, como premissa para a sua competência, que seriam conferidas mais garantias à efetividade do direito do Recorrido se exercido junto dos tribunais portugueses, apesar de não apresentar qualquer fundamentação para esse seu entendimento, o que redunda na nulidade da própria decisão. P. Com efeito, faz-se apenas referência ao facto de existirem bens arrestados em Portugal, circunstância que apenas poderia ser valorada, como vimos, à luz do critério da coincidência, sendo certo que no caso presente, nenhuma das regras de competência territorial conduz à competência do Tribunal a quo para a decisão da causa. Q. O facto de os tribunais portugueses terem indiscutivelmente competência para declarar o arresto de bens sitos em Portugal e proceder à respetiva execução não pode pesar na atribuição da mesma competência para julgar a ação principal que a antecede (no caso da execução) ou a sustenta (no caso do arresto) porque, se assim fosse, o legislador tê-lo-ia dito expressamente, conforme defendido pelo Professor Doutor Miguel Teixeira de Sousa no parecer jurídico junto aos autos. R. Essa ação principal não tem necessariamente de correr termos em Portugal, bastando que a eventual decisão judicial estrangeira que julgue procedente a pretensão do Recorrido seja reconhecida na nossa ordem jurídica, podendo assim servir de base à subsequente ação executiva. S. Donde, mal andou o Tribunal a quo ao aplicar a referida norma legal, considerando verificada uma situação de necessidade que, segundo este critério residual, justificaria a competência dos tribunais portugueses, mas que não foi demonstrada pelo Recorrido, nem se encontra sustentada ou fundamentada na decisão recorrida. T. O segundo requisito exigido pelo critério da necessidade – existência de um elemento ponderoso de conexão, real ou pessoal, entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa – também não se encontra preenchido. U. O momento relevante para a aferição da existência de elementos de conexão com a ordem jurídica portuguesa para efeitos de atribuição de competência internacional aos nossos tribunais é o momento da propositura da ação. V. Os factos alegados pelo Recorrido e considerados pelo Tribunal a quo, para aplicar este critério ao caso, ocorreram no passado e, por isso, de nada valem para a sua qualificação como elemento de conexão com a ordem jurídica portuguesa no presente. W. Assim, o critério da necessidade segue a regra da atualidade da verificação do critério legal de atribuição de competência. X. Por outro lado, a exigida conexão entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa, a existir, só se poderia verificar no caso em presença no momento da propositura da ação, visto que, antes disso, não existia sequer um litígio entre as partes que se opõem na presente ação. Y. Tendo presente a exigência da atualidade do elemento de conexão, resulta de forma clara que o Tribunal a quo valorou indevidamente factos ocorridos no passado como tendo relevância para a atribuição de competência para esta ação no presente Z. A circunstância de as Recorrentes terem sido titulares de contas bancárias junto de um Banco português e de, nesse âmbito, terem dado uma suposta ordem de transferência reporta-se a uma relação comercial cessada há anos, não existindo qualquer situação equivalente deste então, sendo por isso irrelevante para efeitos de identificação de um vínculo à ordem jurídica portuguesa. AA. Por outro lado, não pode ser esquecida a exigência legal de que o elemento de conexão em causa seja ponderoso, sendo que a própria decisão recorrida revela ostensivamente que esta qualificação não está preenchida, não sendo indiferente a importância que os sobreditos factos têm na alegação do direito pelo Recorrido, os quais têm de ser importantes, atendíveis ou convincentes na demonstração da pretendida conexão entre o objeto do litígio e a ordem jurídica. BB. No caso em presença, torna-se evidente que factos circunstanciais como os atendidos na decisão recorrida, para mais ocorridos no passado, além de não terem qualquer relação com o objeto do litígio, não se revestem da importância necessária para constituir, sequer em abstrato, um elemento de conexão ponderoso com a ordem jurídica portuguesa. CC. Por outro lado, no segmento final da decisão recorrida, o Tribunal a quo afirma ainda vislumbrar um fator de conexão pessoal na “vontade das Rés em celebrar contratos de depósito bancário com um Banco sediado em Portugal”. DD. Não se alcança em que termos a vontade negocial de uma parte pode ser tida como um elemento de conexão pessoal, visto que não é caracterizadora da parte como sujeito, e, na lógica própria das normas de conflito, um elemento de conexão pessoal tem de ser um fator relativo à própria pessoa jurídica suficientemente relevante para estabelecer uma ligação ou um vínculo a uma determinada ordem jurídica. EE. Acresce que, mesmo que se entendesse que tal vontade “em celebrar contratos de depósito bancário com um Banco sediado em Portugal” consubstancia um elemento de conexão com a nossa ordem jurídica, parece evidente estar longe de poder ser qualificado como ponderoso, sendo esta uma condição sine qua non para a atribuição de competência para dirimir o litígio aos tribunais portugueses. FF. O entendimento do Tribunal a quo contrariaria, na verdade, a ratio subjacente ao critério legal em análise, de que a competência assim atribuída se justifica porque a jurisdição portuguesa constitui a solução de “último recurso” para uma situação de denegação de justiça GG. Se se adotasse o entendimento propugnado pelo Tribunal a quo, estariam reunidas as condições para que os tribunais portugueses tivessem competência para decidir qualquer querela entre entidades estrangeiras, desde que a demandada tivesse sido titular de uma conta bancária em Portugal. O absurdo de tal enunciação conduz necessariamente à correta ponderação deste critério excecionalíssimo de atribuição de competência aos tribunais portugueses. HH. Ao contrário do que considerou o Tribunal a quo, não se identifica qualquer elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real, entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa que justifique a atribuição de competência internacional a um tribunal português para julgar a presente ação à luz do critério da necessidade. II. Devendo concluir-se que os factos considerados pelo Tribunal a quo como elementos de conexão com a ordem jurídica portuguesa são irrelevantes para justificar a atribuição de competência internacional aos tribunais nacionais com base no critério da necessidade, seja porque já não se verificavam no momento da propositura da ação, seja por ser a própria ordem jurídica portuguesa que demonstra que não os considera relevantes para justificar a competência internacional dos tribunais nacionais. JJ. Em síntese, o Recorrido não logrou demonstrar, nem a decisão recorrida justificou corretamente a existência de qualquer elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real, entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa que justifique a atribuição de competência internacional a um tribunal português para julgar a presente ação à luz do critério da necessidade. KK. O critério da necessidade não é assim aplicável, tanto por não estarem preenchidos os seus pressupostos – porquanto a ação proposta não é o único meio de tornar efetivo o direito invocado, nem se verifica para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação nos tribunais estrangeiros competentes – como por não se verificar a condição de existência de um elemento ponderoso de conexão entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa. LL. É, portanto, inequívoco que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para apreciar o caso sub judice, pelo que andou mal o Tribunal a quo ao julgar-se competente para decidir a presente ação. MM. A decisão proferida pelo Tribunal a quo viola flagrantemente as regras de competência internacional em vigor, designadamente o disposto na al. c) do artigo 62.º do CPC, tendo dela feito uma interpretação errada e desvirtuado o seu sentido. NN. Nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a decisão recorrida é ainda nula por falta de fundamentação, designadamente quanto ao entendimento do Tribunal a quo de que o direito do Recorrido teria mais garantias de se tornar efetivo sendo a ação proposta num tribunal português e ainda quanto à pretensa perda da natureza excecional e subsidiária da norma legal aplicada em relação aos demais citérios legais, a qual é consensual entre as Partes e pacífico na Jurisprudência e Doutrina.
Terminaram as Apelantes pugnando pela revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que julgue a exceção dilatória deduzida procedente, declare a incompetência absoluta do Tribunal a quo e determine a absolvição daquelas da instância,
Foi apresentada alegação de resposta, em que a Autora-Apelada concluiu nos seguintes termos (inserimos entre parenteses retos as notas de rodapé): A) A decisão recorrida não padece de nulidade por falta de fundamentação, sendo os respetivos fundamentos perfeitamente claros e aptos a produzir a decisão que sustentam. B) As RECORRENTES jamais cumpriram o ónus de demonstrar, ao abrigo do disposto no artigo 342.º, n.º 2, do CPC, a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses que invocaram na sua contestação, antes se limitando a impugnar, por simples oposição e mera transcrição de parecer por si junto aos autos, os fundamentos aduzidos pelo RECORRIDO. C) O RECORRIDO produziu prova extensa e indiscutível de que o sistema judicial venezuelano está subordinado ao poder político, decidindo os tribunais sem independência e em função daqueles que são os interesses do Estado. D) Considerando que as RECORRENTES são subsidiárias da A …, S.A., que por seu turno é integralmente detida pelo Estado Venezuelano e controlada pelo respetivo Governo, o interesse do Estado é, evidentemente, que as RECORRENTES não sejam condenadas no pagamento da dívida da A …, S.A. nos termos requeridos pelo RECORRIDO. E) Assim, a propositura da presente ação junto dos tribunais venezuelanos traduzir-se-ia numa situação objetiva de denegação de justiça, sendo manifesto que o RECORRIDO não teria acesso a um processo justo e equitativo. F) Somente por absurdo se poderá considerar, como defendem as RECORRENTES, que estava o RECORRIDO obrigado a mostrar a dificuldade de propositura da ação no estrangeiro quanto a cada uma das jurisdições com as quais apresenta, remotamente ou em abstrato, um qualquer elemento de conexão (sendo que as RECORRENTES nem sequer identificaram que jurisdições seriam essas), G) Sob pena de, no limite, se ver o RECORRIDO onerado, para além dos ditames dos princípios da proporcionalidade e da boa-fé, com a impossível tarefa de proceder a tal demonstração em relação a cada uma das jurisdições que, por meio do princípio da necessidade ora em análise, potencialmente se tornariam um forum conveniens. H) Caso o presente litígio fosse discutido perante os tribunais venezuelanos (aqueles que seriam, em abstrato, internacionalmente competentes), o arresto decretado pelos tribunais portugueses seria de nenhuma utilidade, pois que a ação principal de que o mesmo depende estaria ab initio destinada a improceder, sem que o mérito da pretensão do RECORRIDO fosse apreciado por um tribunal justo e imparcial. I) Bem andou o Tribunal a quo ao tomar em consideração, para efeitos da aferição de elementos ponderosos de conexão, pessoais e reais, aqueles invocados pelo RECORRIDO, independentemente da sua contemporaneidade com a propositura da presente ação. J) Corretamente se concluiu na decisão recorrida que consubstancia um elemento de conexão, real e ponderoso, o facto de «[o] património conhecido das Rés - objeto mediato da ação» ter sido «depositado num Banco português», e bem assim, «ordenada a sua transferência, alegadamente, em benefício da A …, S.A..», K) Pois é inequívoco que «a ação principal de condenação está ligada, no seu objeto mediato, de modo significativo (não de modo ocasional, circunstancial ou supérfulo) aos bens das rés situados em Portugal, porque é através desses bens que o autor pretende (e pode) satisfazer o seu crédito ou, numa palavra, a sorte da satisfação material do seu pedido está dependente do acesso aos bens das rés, que estão situados em território nacional» [Cfr. p. 49 do parecer jurídico da autoria da Prof. Rita Lynce de Faria e do Dr. Tiago Macieirinha, junto aos autos por requerimento do Recorrido de 04.12.2023, com a ref.ª Citius n.º …]. L) Também andou bem o Tribunal a quo ao considerar como um ponderoso elemento pessoal «a vontade das Rés em celebrar contratos de depósito bancário com um Banco sediado em Portugal». M) Com efeito, «[e]xiste um fator pessoal não despiciendo que deve ser convocado no contexto próprio do princípio da necessidade e que é revelado, no caso de espécie, pela iniciativa de abertura de contas das sociedades rés junto de instituição de crédito portuguesa, o que só pode ser demonstrativo da prossecução de uma atividade comercial (real ou potencial) em território nacional, ligada, naturalmente, ao desenvolvimento do seu objeto social» [Cfr. p. 39 do parecer jurídico da autoria da Prof. Rita Lynce de Faria e do Dr. Tiago Macieirinha] N) Ao que acrescem os demais fatores que, como foi alegado e demonstrado pelo RECORRIDO nos autos, igualmente atestam tal conexão, para efeitos da verificação do critério de competência ora em análise, nomeadamente, os seguintes factos: i) Até março de 2019, o escritório europeu da A …, S.A. – reitera-se, a sociedade-mãe das RECORRENTES – situou-se em Lisboa - o que evidencia que a atividade do grupo A …, S.A. tem uma forte conexão pessoal com a ordem jurídica portuguesa -, tendo o mesmo sido realocado para Moscovo somente por forma de a A …, S.A. ocultar bens dos seus credores; ii) As RECORRENTES gozaram dos privilégios e responsabilidades de serem sujeitos passivos contribuintes em Portugal, sendo titulares de número único de pessoa coletiva português (“NIPC”), cuja finalidade é identificar em Portugal uma entidade fiscal para efeitos de impostos ou transações financeiras; iii) É na ordem jurídica portuguesa que: a. estão a ser efetuadas penhoras e arrestos para garantia dos créditos sobre as RECORRENTES; b. em sede de ação executiva, se vão graduar os créditos dos vários credores das RECORRENTES; c. os credores das RECORRENTES vão obter pagamento; e iv) As RECORRENTES conhecem e estão familiarizadas com a ordem jurídica portuguesa, sendo parte em diversas ações que nesta correm, nomeadamente, o procedimento de arresto que precedeu os presentes autos, mais tendo, no âmbito dos sobreditos contratos de abertura de conta celebrados com o BES, manifestado a sua vontade de submeter qualquer litígio relacionado com o mesmo à jurisdição dos tribunais portugueses, bem como acordado que a lei aplicável a esse contrato seria a lei portuguesa. O) A aplicação do princípio da necessidade não depende da verificação de um elemento de conexão qualificada, mas, tão somente, de uma conexão do litígio com a ordem jurídica portuguesa que seja atendível ou razoável [Cfr. artigos 80.º a 80.º da Resposta do Recorrido às exceções invocadas; pp. 14 a 19 do parecer jurídico da autoria da Prof. Rita Lynce de Faria e do Dr. Tiago Macieirinha]. P) Tem-se, pois, por verificado o critério da necessidade previsto no artigo 62.º, alínea c), do CPC, conforme bem decidiu o Tribunal a quo, motivo pelo qual se deve manter integralmente a decisão recorrida. Q) O Tribunal a quo não se pronunciou sobre o critério da causalidade, previsto no artigo 62.º, alínea b), do CPC, e cuja aplicação igualmente o RECORRIDO alegou e demonstrou nos presentes autos, tratando-se de um caso «em que o tribunal nem sequer se pronuncia sobre determinadas questões suscitadas, julgando-as prejudicadas pela solução dada a outras» [Cfr. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição Atualizada, Almedina, 2020, pp. 152 e 153]. R) Apela-se, pois, à aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 665.º do CPC, levando o Tribunal ad quem a apreciar, a título subsidiário, o critério da causalidade invocado pelo RECORRIDO. S) Considerando que alguns dos factos constitutivos do direito do RECORRIDO a desconsiderar a personalidade coletiva das RECORRENTES, ao abrigo de duas das teses plausíveis de direito em discussão nos autos, ocorreram em Portugal, tem-se igualmente por verificado o requisito de que depende a aplicação do critério da causalidade, previsto no artigo 62.º, alínea b), do CPC. T) Assim, caso o Tribunal ad quem entenda, ao contrário da decisão recorrida, que não estão reunidos os requisitos do critério da necessidade – o que apenas por elevada cautela de patrocínio se admite, sem conceder – sempre deverá julgar verificado, ao abrigo do artigo 665.º, n.º 2, do CPC, o critério da causalidade, nos termos do preceituado no artigo 62.º, alínea b), do CPC.
Terminou a Autora-Apelada defendendo que:
A) deverá o recurso interposto pelas Rés ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, confirmar-se a decisão recorrida;
subsidiariamente,
b) deverá a decisão recorrida ser substituída, em conformidade com o disposto no artigo 665.º, n.º 2, do CPC, por aresto que julgue verificado o critério da causalidade previsto na alínea b) do art. 62.º do mesmo Código.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
As questões a decidir são as seguintes:
1.ª) Se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação;
2.ª) Se procede a exceção de incompetência absoluta, por infração das regras de competência internacional.
Os factos relevantes para o conhecimento do objeto do recurso são os que constam do relatório supra.
No despacho saneador recorrido teceram-se, a propósito da questão que nos ocupa, as seguintes considerações: «Está em causa um pressuposto processual, a apreciar em função dos termos em que a ação foi intentada e a determinar pela forma como o autor estrutura o pedido e a causa de pedir (cfr. Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, p. 91), independentemente do (de)mérito da causa. É pacífico que, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º do Cód. Proc. Civil ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º do mesmo Código. É manifesto que não está em causa a aplicação de qualquer regulamento ou outro instrumento de direito internacional, que as partes não acordaram na atribuição de competência aos Tribunais portugueses e que não tem aplicação aos autos qualquer uma das hipóteses enumeradas no art. 63º do Cód. Proc. Civil, sendo os fatores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses delimitados pelo art. 62º do Cód. Proc. Civil. A alínea a) do citado normativo remete para as regras de competência territorial, de sorte que, cabendo esta competência a um tribunal português, seja este dotado, consequentemente, de competência internacional. A competência territorial para a ação em que se exija o cumprimento de obrigações está regulada no nº 1 do art. 71º do Cód. Proc. Civil. Assim, pelos critérios legais aplicáveis, esta ação, por opção do credor, poderia ser interposta: - ou no tribunal do domicílio das Rés, o que nos indica Venezuela; - ou no tribunal do lugar onde a obrigação deveria ser cumprida, sendo as Rés pessoas coletivas e não havendo coincidência dos domicílios do credor e do devedor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto; Ora, nos termos do Direito português, tratando-se de obrigação pecuniária, rege o art. 774º do Cód. Civil: “Se a obrigação tiver por objeto certa quantia em dinheiro, deve a prestação ser efetuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento.” Ou seja, em Porto Rico, onde se situa a sede da Autora. A alínea b) estabelece o chamado critério da causalidade. Implica que o facto que serve de causa de pedir, ou algum dos factos que integram uma causa de pedir complexa, tenham sido praticados em território português. A alínea c) concretiza o princípio da necessidade e prevê a competência dos tribunais portugueses quando o direito não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português, ou se verifique dificuldade considerável para o Autor na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um ponderoso elemento de conexão, pessoal ou real. Este fator de atribuição de competência deixou de assumir natureza excecional e subsidiária face aos demais, bastando a dificuldade apreciável para o autor na propositura da ação no estrangeiro (cfr. redação do art. 65º, nº 1, al. d), do Cód. Proc. Civil, anterior ao D.L. nº 38/2003, de 8/3). Em face do que o Autor alega e peticiona, não pode deixar de se conferir razão quando afirma queo seu direito tem mais garantias de se tornar efetivo se a ação for proposta num tribunal português, nomeadamente porque foi decretado o arresto de bens das Rés sitos em Portugal. O património conhecido das Rés - objeto mediato da ação - foi depositado num Banco português e foi ordenada a sua transferência, alegadamente, em benefício da A …, S.A.. Independentemente da sua maior ou menor importância no conjunto dos pressupostos do invocado direito do Autor, a verdade é que não pode deixar de se entender que tal circunstância pode e deve ser vista como um elemento de conexão real, objetiva, que confere aos tribunais portugueses competência internacional. Acresce que também não pode deixar de ser visto como um fator de conexão pessoal a vontade das Rés em celebrar contratos de depósito bancário com um Banco sediado em Portugal.» Da nulidade da decisão recorrida
Na conclusão NN (e só aí), as Apelantes vieram invocar a nulidade da decisão recorrida, por falta de fundamentação.
É certo que se mostra consagrado na lei o dever de fundamentar as decisões, designadamente no art. 205.º, n.º 1, da CRP, nos termos do qual “(A)s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. E também no art. 154.º do CPC, que preceitua: “1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
Nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, aplicável aos despachos, por via do art. 613.º, n.º 3, do mesmo Código, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Tem sido tradicionalmente defendido na jurisprudência que a nulidade a que se refere o art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC pressupõe a falta absoluta de fundamentação, não se bastando com a fundamentação escassa ou insuficiente. No entanto, a jurisprudência, incluindo do STJ, e a doutrina mais recentes vêm reconhecendo que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, ao ponto de não possibilitar às partes a compreensão cabal e análise crítica das razões (de facto e de direito) da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade dessa decisão. A título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 02-03-2011, proferido no processo n.º 161/05.2TBPRD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do ponto 1. do respetivo sumário: “À falta de fundamentação de facto e de direito deve ser equiparada a fundamentação que exponha as razões, de facto e de direito, para a decisão de modo incompleto, tornando deste modo a decisão incompreensível e não cumprindo o dever constitucional/legal de justificação”. Na mesma linha de pensamento, veja-se ainda o acórdão do STJ de 26-02-2019, proferido no processo n.º 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, disponível em www.dgsi.pt.
Atentando na decisão recorrida, é claro que a mesma se mostra suficientemente fundamentada, em termos que possibilitaram às Apelantes identificar o invocado erro de julgamento (de direito) e desenvolver a sua argumentação a esse respeito. Tanto assim que as Apelantes referem qual foi o entendimento do Tribunal a quo, “designadamente quanto ao entendimento do Tribunal a quo de que o direito do Recorrido teria mais garantias de se tornar efetivo sendo a ação proposta num tribunal português e ainda quanto à pretensa perda da natureza excecional e subsidiária da norma legal aplicada em relação aos demais citérios legais, a qual é consensual entre as Partes e pacífico na Jurisprudência e Doutrina”. A crítica dirigida pelas Apelantes a estes fundamentos da decisão recorrida evidencia bem que a mesma não é omissa na tocante à fundamentação.
Assim, impõe-se concluir que não se verifica a invocada causa de nulidade da decisão recorrida. Da competência internacional
As Apelantes discordam da posição sufragada pelo Tribunal recorrido, argumentando, em síntese, que não são aplicáveis à presente ação os critérios para atribuição de competência internacional concorrente, previstos no art. 62.º do CPC, designadamente o critério da coincidência [alínea a)], o critério da causalidade [alínea b)] e, em especial, o critério da necessidade [alínea c)], que o Tribunal recorrido entendeu ser aplicável ao caso.
A Apelada, por sua vez, sustenta que, conforme entendeu o Tribunal a quo, estão reunidos os requisitos do critério da necessidade, mas, se assim não se entender, deverá julgar-se verificado, ao abrigo do art. 665.º, n.º 2, do CPC, o critério da causalidade.
Apreciando.
A competência constitui, como é consabido, um pressuposto processual relativo ao Tribunal, a apreciar em função dos termos em que a ação foi posta e a determinar pela forma como o autor estrutura o pedido e a respetiva causa de pedir.
Na sua falta, verifica-se a exceção dilatória insuprível da incompetência absoluta - cf. artigos 96.º, 97.º, 98.º, 99.º e 577.º, al. a), do CPC.
Estabelece o art. 96.º do CPC que determinam a incompetência absoluta do tribunal:
a) A infração das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional;
b) A preterição de tribunal arbitral.
É fora de dúvida que, como resulta da decisão recorrida e as partes reconhecem, inexiste qualquer instrumento internacional que atribua competência aos tribunais portugueses para dirimir o presente litígio, nem um pacto de jurisdição entre as partes, tão pouco estando em causa as matérias indicadas no art. 63.º do CPC e que determinariam a atribuição de competência exclusiva a estes tribunais.
No caso, o que importa é saber se foram infringidas as regras de competência internacional consagradas no art. 62.º do CPC, mais precisamente se não se verifica na presente ação nenhum dos diferentes critérios de aferição da competência internacional aí previstos.
Estabelece o art. 62.º do CPC, sob a epígrafe, “Fatores de atribuição da competência internacional”, que: “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes: a) Quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa; b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram; c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.”
Como ensinava Miguel Teixeira de Sousa, in “A Competência e a Incompetência nos Tribunais Comuns”, 2.ª edição, 1989, págs. 52-69, a respeito dos artigos 65.º e 65.º-A do Código de Processo Civil então vigente, a competência legal internacional dos tribunais portugueses era determinada, segundo uma “ordem decrescente de aplicação prática”, pelo princípio da coincidência, pelo princípio da causalidade, pelo princípio da reciprocidade e pelo princípio da necessidade.
No atual Código, estão também consagrados, segundo uma ordem decrescente de aplicação prática, os princípios da coincidência, causalidade e necessidade [respetivamente, nas alíneas, a), b) e c)], porquanto, se a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses já resultar, desde logo, do princípio da causalidade [sendo claro que o caso em apreço não se reconduz à previsão da alínea a)], não haverá, por definição, que recorrer ao princípio da necessidade.
Segundo o princípio da causalidade, a ação pode ser instaurada nos tribunais portugueses quando a causa de pedir (ainda que apenas parte dos factos que a integram) foi praticada em território português. Já pelo princípio da necessidade, nas palavras do referido autor (obra citada, pág. 59), a ação pode ser instaurada nos tribunais portugueses quando uma situação subjetiva com uma ponderosa conexão, pessoal ou real, com o território português só possa ser reconhecida em ação proposta nos tribunais nacionais, sendo que essa necessidade da propositura da ação em Portugal pode provir de uma impossibilidade jurídica ou prática.
A este respeito, destacamos ainda os ensinamentos de José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no seu “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 1.º, 4.ª edição, págs. 153-157, designadamente quando referem que: “Neste artigo, correspondente ao art. 65 do CPC de 1961, são enunciados três critérios de atribuição da competência internacional com origem legal aos tribunais portugueses, habitualmente designados por critérios da coincidência (alínea a)), da causalidade (alínea b)) e da necessidade (alínea c)). Estes critérios só são aplicáveis na determinação da competência internacional dos tribunais portugueses se, como resulta do art. 59, os regulamentos europeus e os instrumentos internacionais não deverem ter aplicação, quer quando estabelecem a competência exclusiva de tribunais supranacionais (caso em que, nas matérias a eles atribuídas, são internacionalmente incompetentes os tribunais portugueses), quer quando contêm regras de competência internacional dos tribunais nacionais. (…) O critério da causalidade, consagrado na alínea b), determina a competência internacional dos tribunais portugueses sempre que tenha sido praticado em território nacional o facto ou algum dos factos integradores da causa de pedir. A parte final desta disposição legal ("ou algum dos factos que a integram"), que remonta ao DL 329-A/95, em conformidade com o já proposto no art. 27-1-b do Anteprojeto e no art. 26-1-c do Projeto da comissão Varela, tem aplicação nos casos de causa de pedir complexa, constituída por uma pluralidade de atos ou factos jurídicos. Consagra orientação já antes daquele DL 329-A/95 dominante na doutrina e recebida no Assento 6/94, de 17.2.94, publicado em 30.3.94, em que estava em causa uma situação de responsabilidade civil extraobrigacional cuja conexão com o território nacional se limitava à celebração em Portugal dum contrato de seguro. Trata-se de situação frequente em ações destinadas à efetivação de responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação ocorridos no estrangeiro (…). A finalidade da lei é impedir "a denegação da competência dos nossos tribunais sempre que um só dos factos, por mínimo que fosse, tivesse ocorrido em território estrangeiro" (ANSELMO DE CASTRO, Direito processual civil cit., II, p. 29). (…) A alínea c) consagra o critério da necessidade, "caso excecional e subsidiário" de competência (ALBERTO DOS REIS, Comentário cit., 1, p. 139), que alarga a competência internacional dos tribunais portugueses às situações em que o direito invocado apenas se possa efetivar por meio de ação proposta em território português (como já anteriormente ao CPC de 1961 se dispunha) ou em que seja apreciavelmente difícil para o autor a sua propositura no estrangeiro (como resulta do DL 38/2003, que substituiu, no CPC de 1961, a expressão "não ser exigível ao autor a sua propositura no estrangeiro", introduzida pelo DL 329-A/95 e encerrando alguma ambiguidade). Referenciam-se, assim, com o fito de prevenir conflitos negativos de jurisdição e evitar situações com claro recorte objetivo de denegação de justiça, quer os casos de impossibilidade absoluta, quer os de impossibilidade relativa, ou dificuldade, em tornar efetivo o direito por meio de ação instaurada em tribunal estrangeiro. Esta relevância concedida aos casos de impossibilidade relativa, já antes preconizada (nomeadamente, por FERRER CORREIA-FERREIRA PINTO, Breve apreciação cit., ps. 25 e ss.), mas até ao DL 329-A/95 não consagrada na lei (ALBERTO DOS REIS, Comentário cit., I, p. 144; CASTRO MENDES, Direito processual civil cit., I, p. 422), tem aplicação privilegiada em caso de refúgio político. Tal dificuldade tem de ser manifesta: a oneração do autor com a propositura da ação no estrangeiro tem como limite a razoabilidade do sacrifício que lhe é exigido, à luz do princípio da boa fé. Em qualquer das duas categorias de situações, a impossibilidade (absoluta ou relativa) tanto pode ser jurídica como de facto ou material. Verifica-se a primeira hipótese quando nenhuma das jurisdições com as quais o caso se encontra conexo se considera competente para o conhecimento da ação ou quando a jurisdição estrangeira não reconhece, em abstrato, o direito carecido de tutela. (…) Na segunda hipótese incluem-se tradicionalmente as situações de guerra ou de ausência de relações diplomáticas (ALBERTO DOS REIS, Comentário cit., I, p. 144, e CASTRO MENDES, idem, 1, ps. 421-422). A afirmação da competência dos tribunais portugueses depende ainda da existência de algum ponderoso elemento de conexão, pessoal ou real, entre o objeto do litígio e a ordem jurídica nacional, nomeadamente a nacionalidade de uma ou de ambas as partes ou a situação dos bens em causa na ação, exigência que tem por desideratum evitar a conversão deste fator atributivo de competência numa "lição de altruísmo judiciário" (VARELA-BEZERRA-NORA, Manual cit., p. 206). O requisito, que só veio a ficar expresso no CPC de 1961, já era defendido na vigência do CPC de 1939 (ALBERTO DOS REIS, Comentário cit., I, ps. 140 e 143).”
Na presente ação, face ao alegado na Petição Inicial (e, complementarmente, no articulado de Resposta), o que a Autora pretende é o reconhecimento da responsabilidade solidária das Rés por uma dívida da A …, S.A. atinente a contratos de mútuo, dívida essa cujo pagamento esta última já foi condenada fazer (por decisões proferidas por tribunais do Reino Unido) e que está a ser exigido judicialmente no nosso país, em ação executiva intentada para o efeito. A Autora alegou um conjunto de factos que integram a causa de pedir complexa em que assenta a sua pretensão de condenação das Rés no pagamento à Autora do montante global de USD 96.625.527,33, (EUR 99.552.366,92) e juros vincendos, designadamente que:
- As Rés estão obrigadas a pagar-lhe a dívida da PETRÓLEOS DE VENEZUELA, S.A. (A …, S.A.), no referido valor de USD 96.625.527,33, que corresponde a EUR 99.552.366,921, e juros vincendos a título de capital e juros contratuais vencidos até à data (30-09-2022), cujo pagamento coercivo (a ora Autora) está a exigir na ação executiva intentada, em Portugal, contra esta sociedade (A …, S.A.) e cujo título executivo são as decisões judiciais condenatórias proferidas no Reino Unido, uma vez que, à luz da lei Venezuelana aplicável ao caso (ou mesmo à luz da lei portuguesa), há que desconsiderar a personalidade coletiva das Rés;
- A A …, S.A. é uma sociedade comercial de direito venezuelano que se dedica à exploração, produção, refinação, comercialização e transporte de petróleo da Venezuela, sendo detida a 100% pelo Estado Venezuelano e tendo a sua atividade controlada pelo Governo da Venezuela, formando, conjuntamente com as diversas sociedades, detidas direta ou indiretamente, total ou maioritariamente, pela A …, S.A., suas “Subsidiárias”, onde se incluem as Rés, o denominado Grupo A …, S.A., detido e controlado pelo Estado da República Bolivariana da Venezuela;
- Dada a situação deficitária da A …, S.A., neste momento, a única garantia de satisfação do crédito da Autora são as quantias arrestadas no âmbito do procedimento cautelar intentado emPortugal, pela ora Autora contra as ora Rés, no qual se apurou que os saldos que existiam nas referidas contas tituladas pelas ora Rés, em Portugal, foram, à data do seu encerramento, transferidos para duas Contas-Cliente abertas junto do F …, S.A., em Portugal, uma em euros e outra em dólares, sendo que, mais recentemente, os fundos titulados pelas entidades requeridas B …, S.A., C …, S.A. e D …, S.A. foram objeto de consignação judicial no âmbito de um processo que se encontra atualmente em curso, em Portugal;
- A Venezuela tem vindo a estar sujeita a medidas restritivas impostas pela Comissão Europeia e a diversas sanções económicas aplicadas pelos Estados Unidos, pelo reconhecimento internacional de que a Venezuela possui um elevado índice de corrupção ao nível do aparelho empresarial estatal, envolvendo a A …, S.A. e outras empresas do Grupo A …, S.A. em esquemas de branqueamento de capitais, suborno e desvio de dinheiro, em prejuízo do erário público venezuelano e, também, dos credores daquelas sociedades, sendo ainda internacionalmente reconhecida a falta de independência do sistema judicial venezuelano relativamente ao poder político.
Perante todas as alegações de facto e de direito feitas na Petição Inicial, em particular a alegação de que a única garantia de satisfação do crédito da Autora são as quantias arrestadas no âmbito de procedimento cautelar de arresto intentado em Portugal, procedimento que, como é sabido, caducará nos termos do art. 373.º do CPC, parece-nos que se impõe acompanhar a posição do Tribunal a quo.
Efetivamente, afigura-se-nos não ser razoável, à luz do princípio da boa fé, exigir à Autora que intente uma nova ação, num outro país (como a Venezuela), assim perdendo aquela garantia patrimonial, no que já vem sendo uma longa “batalha judicial” (basta ver as datas das decisões proferidas no Reino Unido), tudo indicando que o direito de crédito invocado pela Autora não poderá tornar-se efetivo a não ser por meio da presente ação, pois de nada adiantará vir a obter uma decisão condenatória num outro país se não existirem bens penhoráveis.
Parece-nos, pelo menos, que se verifica para a Autora uma dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, em particular na Venezuela, dada a situação política desse país e o objeto do litígio na presente ação - a condenação das Rés, empresas controladas, direta ou indiretamente, pelo Governo desse país, no pagamento da quantia em dívida com fundamento no instituto da desconsideração da personalidade jurídica -, existindo um ponderoso elemento de conexão real deste com a ordem jurídica portuguesa, já que a (única) garantia desse pagamento são precisamente as quantias depositadas, junto de instituição bancária portuguesa à ordem de um processo judicial pendente no nosso país, da titularidade das ora Rés B …, S.A., C …, S.A. e D …, S.A..
Ainda que assim não fosse, a verdade é que a Autora também alegou, embora numa linha de alegação subsidiária, para a hipótese de se considerar aplicável ao caso a lei portuguesa, um conjunto de factos atinentes a uma atuação concertada por parte da devedora A …, S.A. e das Rés no sentido de se valer do instituto da desconsideração da personalidade, invocando designadamente a abertura pelas Rés de contas bancárias numa instituição bancária nacional (F …, S.A.), em que foram depositados fundos que pertencem, materialmente, à A …, S.A., estando inclusivamente a ser exigida pelas Rés, em ação intentada no nosso país contra essa instituição bancária, a condenação da mesma no pagamento dos saldos existentes nas contas bancárias de cada uma das aí autoras (ora Rés), sendo nesse processo revelado, pelos documentos juntos, que as sociedades Rés PETRÓLEO, S.A., C …, S.A., S.A. e D …, S.A. pediram ao F …, S.A. que este transferisse os montantes depositados nas suas contas encerradas para contas das quais a beneficiária é a A …, S.A.. Estamos, pois, perante alguns factos, integrantes da causa de pedir, que foram praticados em território português, sendo assim caso para convocar igualmente o princípio da causalidade.
Tanto basta para que se imponha concluir pela improcedência da exceção de incompetência absoluta, improcedendo as conclusões da alegação de recurso, ao qual será negado provimento.
Vencidas as Apelantes, são responsáveis pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
Face ao valor e objeto do presente recurso, tendo as Apelantes exposto de forma clara a sua posição em peça de dimensão equilibrada dada a matéria em causa, não suscitando questões de complexidade assinalável, mostra-se adequado determinar, ao abrigo do art. 6.º, n.º 7, do RCP, a dispensa do pagamento do valor remanescente da taxa de justiça.
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III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
Mais se decide condenar as Rés-Apelantes no pagamento das custas do recurso, com dispensa do pagamento do valor remanescente da taxa de justiça.
D.N.