I. Ao recurso do acórdão que decidiu não homologar o plano de insolvência é aplicável o regime específico do artigo 14º do CIRE.
II. Apenas se está perante oposição/contradição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito, quando a mesma disposição legal, se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade da situação de facto subjacente a essa aplicação.
III. A contradição deve ser frontal e não implícita, não bastando que se tenha abordado o mesmo instituto, pressupondo que a subsunção jurídica realizada em quaisquer das decisões tenha operado sobre o mesmo núcleo factual, sem ser atribuída relevância a elementos de natureza acessória, e assim ser idêntica a ratio decidendi.
IV. No caso, não há contradição jurisprudencial para efeitos do disposto no artigo 14º n.º 1 do CIRE, dado que o acórdão recorrido decidiu que o plano de insolvência não apresentava qualquer fundamentação objetiva que justifique o tratamento diferenciado do crédito garantido de que era titular um determinado credor, ou seja, apenas, por razões formais, decidiu que tinha sido violado o princípio da igualdade e o acórdão Fundamento decidiu manter a homologação do plano de recuperação, por não existir violação do princípio da igualdade, no pressuposto que o referido princípio não afasta a possibilidade de diferenciações entre credores em idênticas circunstâncias, desde que justificadas por razões objetivas, tendo em vista uma adequada e necessária ponderação de todos os interesses em confronto.
Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça
Declarada a insolvência de AJI - INDÚSTRIA DE MADEIRAS, S.A., a devedora apresentou proposta de plano de insolvência.
Por despacho de 09.10.2023, foi considerado aprovado o plano de insolvência.
As credoras LC ASSET 2, S.A.R.L e XYQ LUXCO S.A.R.L requereram a não homologação do plano de insolvência.
Por sentença de 09.11.2023, foi homologado o plano de insolvência aprovado.
As credoras LC ASSET 2, S.A.R.L. e XYQ LUXCO S.A.R.L. interpuseram, separadamente, recurso desta decisão.
Por acórdão proferido em 20.02.2024, foi julgada procedente a apelação e, em consequência, recusada oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado e revogada a decisão recorrida.
A Insolvente AJI – INDÚSTRIA DE MADEIRAS, SA interpôs recurso de revista, nos termos do artigo 14º n.º 1 do CIRE, defendendo haver contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão “fundamento” proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 15/09/2015 no processo n.º 5570/14.3T8CBR.C1.
Recorrente e Recorrida limitaram-se a reafirmar as suas posições constantes nas alegações, tendo a Recorrente apresentado certidão do acórdão fundamento com nota de trânsito.
Os autos foram devolvidos ao Tribunal da Relação para decisão da homologação ou não dessa desistência.
Por despacho de 02.07.2024, transitado em julgado, atento o disposto no artigo 632.º, n.º 5, do CPC, não foram homologadas as desistências dos recursos apresentadas pelas credoras XYQ LUXCO S.A.R.L. e LC ASSET 2, S.A.R.L..
Ao acórdão recorrido aplica-se o regime especial, que resulta do art. 14.º n.º 1 do CIRE, segundo o qual só haverá revista para o STJ caso se verifique a contradição jurisprudencial que em tal preceito se identifica, ou seja, para aferir da admissibilidade da revista, tem de se apurar se o acórdão recorrido está em contradição com o acórdão indicado pela recorrente como acórdão “fundamento”.
Para estarmos perante uma “contradição jurisprudencial” que permita a admissibilidade do recurso de revista, têm de se verificar os seguintes pressupostos :
- deve verificar-se uma relação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão da Relação que é objeto de recurso e a questão de direito apreciada no acórdão (da Relação ou do STJ) que serve de contraponto e de fundamento à admissibilidade da revista;
- deve existir uma efetiva contradição de acórdãos, ou seja, deve estar-se perante uma oposição frontal (e não apenas implícita ou pressuposta) e tal oposição frontal deve apresentar-se com natureza essencial para o resultado (oposto) que foi alcançado em ambos os acórdãos (sendo irrelevante a divergência que respeitar apenas a alguns argumentos sem valor decisivo);
- deve a contradição dos acórdãos verificar-se num quadro normativo substancialmente idêntico;
- deve o recorrente, no requerimento de interposição da revista, invocar a contradição jurisprudencial motivadora do recurso de revista, nos termos do art. 637.º n.º 2, juntando cópia do acórdão-fundamento (da Relação ou STJ) anteriormente transitado em julgado; e
- não deve o acórdão da Relação sob revista ter acatado, na sua decisão, solução fixada em acórdão de uniformização de jurisprudência (AUJ). ( cf. Neste sentido do acórdão do STJ de 31.01.2023, processo n.º 19477/16.6T8SNT-F.L1.S1, relator António Barateiro Martins):
A questão em causa limita-se à apreciação dos dois primeiros pressupostos.
Importa, pois, apreciar se existe ou não uma efetiva contradição entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão Fundamento.
Em primeiro lugar importa referir que quando a oposição jurisprudencial invocada se situa, como é o caso, na aplicação dos artigos 215º do CIRE, por violação do 194.º do mesmo diploma não é suficiente (é necessário, mas não suficiente) que os acórdãos em questão hajam decidido em sentido diverso.
É sabido que toda a disciplina insolvencial e de recuperação de empresas constante do CIRE tem como um dos princípios fundamentais o princípio par conditio creditorum ou da igualdade dos credores; e que, em função disso, o plano de insolvência e também os planos de recuperação e pagamento devem obedecer ao princípio da igualdade, “sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas” (como se refere no art. 194.º do CIRE, sobre o princípio da igualdade).
O princípio da igualdade tem uma dimensão material, o que significa que devem ser tratadas igualmente situações iguais e distintamente situações distintas, sendo que, perante situações distintas, o tratamento distinto pode estar em conformidade com o princípio da igualdade, ou seja, pode ser uma desigualdade justificada.
Isto significa que apesar de num concreto acórdão se ter considerado que há razões objetivas para conceder o tratamento diferenciado dado a um credor e decidido noutro que não há razões objetivas que justifiquem tratamento diferenciado dado a um credor, que existe necessariamente contradição jurisprudencial.
Por isso, pode não haver efetiva contradição – quando o acórdão recorrido considera violado o princípio da igualdade e o acórdão fundamento considera o oposto (ou vice-versa).
No entanto, no caso em apreço, não está sequer em causa saber se as situações de facto nos dois acórdãos são análogas ou equiparáveis, para se considerar haver efetiva divergência quanto à questão fundamental de direito.
Comparando as fundamentações dos dois acórdãos constatamos que no Acórdão Fundamento se decidiu manter a homologação do plano de recuperação, por não existir violação do princípio da igualdade, no pressuposto que o referido princípio não afasta a possibilidade de diferenciações entre credores em idênticas circunstâncias, desde que justificadas por razões objetivas, tendo em vista uma adequada e necessária ponderação de todos os interesses em confronto.
De seguida, passou a uma análise detalhada da factualidade relevante e decidiu justificar-se a diferenciação de tratamento aos credores em confronto, considerando, que:
“(…) relativamente ao ora recorrente, o plano prevê uma carência de capital durante 24 meses, sendo amortizado em 126 prestações mensais de capital e juros e os restantes 50% numa prestação bullet.
Os juros vincendos serão pagos mensalmente à taxa euribor a 6 meses, acrescida de um spread de 2.5%, actualizado para 3.5% após o período de carência e os vencidos desde a reclamação de créditos até à data da sentença de homologação, calculados nas condições em vigor, serão capitalizados naquela data.
Perde as garantias (hipotecas) de que beneficiava.
Relativamente à CGD, consta que lhe será paga a quantia de 157.500 €, no prazo de 4 meses contados da data do trânsito em julgado da sentença de homologação, para amortização parcial do crédito, através da venda a terceiros da garantia hipotecária de que goza sobre a supra descrita fracção “Q” ou, se tal não acontecer, através da entrega da referida fracção.
No que respeita ao BCP, consta que a sociedade assume o pagamento de 1.000.000,00 €, mantendo-se as garantias prestadas a seu favor, designadamente a supra referida hipoteca.
Carência de capital e juros de 24 meses e pagamento dos juros vencidos, desde a reclamação de créditos até ao período de carência, calculados à taxa euribor a 6 meses, acrescidos de um spread de 1.5%, capitalizados no final daquele período.
Celebração de um contrato de locação financeira imobiliária entre o banco e a nova sociedade, nas condições supra descritas.
Consta do plano que o tratamento dado à CGD resulta do facto de a mesma deter 8,28% do valor total dos créditos e constituir o único meio de ser aprovada a proposta apresentada e, ao mesmo tempo, permitir reduzir as responsabilidades da devedora.
Por outro lado, convém não esquecer que a CGD é a beneficiária da hipoteca registada em 1.º lugar, relativamente à supra mencionada fracção “Q”, o que equivale a dizer que, em condições normais, o seu crédito seria o primeiro a ser pago pelo produto da respectiva venda – cf. artigo 686.º, n.º 1, do CC.
Por comparação com o BCP, o recorrente tem o mesmo período de carência e beneficia de uma maior taxa de juros, sendo que perde as garantias, que o BCP mantém.
Todavia, também, o BCP goza de uma hipoteca sobre o imóvel em causa, registada previamente à do recorrente, pelo que este goza de prioridade quanto à satisfação do seu crédito, nos mesmos moldes do da CGD.
Aliás, como consta dos factos provados, o recorrente beneficia de hipotecas registadas em último lugar, relativamente a cada um dos prédios, como ali descrito, o que tornaria, em condições normais, muito difícil a satisfação do seu crédito, com base nas mesmas, atentos os valores envolvidos (relativamente às demais hipotecas, anteriormente registadas).
E sempre, valendo, relativamente a todos os imóveis e, consequentemente, para todos estes credores, a existência do privilégio imobiliário especial de que gozam os inúmeros trabalhadores da devedora, nos termos do artigo 333.º do Código do Trabalho, o que dificultaria a satisfação dos respectivos créditos.
Tudo ponderado e atento os fins do PER, acima já referidos, bem como a ampla autonomia concedida aos credores (sua maioria) para a aprovação do plano de recuperação, parece-nos que as razões invocadas para o tratamento dado à CGD e BCP, se mostram justificadas, dado que têm relevância para a aprovação do plano e estes credores já eram beneficiários de hipotecas sobre os bens em causa, registadas em primeiro lugar, relativamente ao ora recorrente, pelo que não lhes é atribuído com o plano aprovado, um benefício de que já não fossem titulares/beneficiários.”
Ora, no Acórdão Recorrido a não homologação do plano de insolvência, não teve o seu fundamento na análise da diferença de tratamento dos créditos.
Como consta da fundamentação e se concretiza nas conclusões do Acórdão Recorrido as premissas em que se baseou foram as seguintes:
- Na ausência da apresentação no plano de insolvência de qualquer razão objetiva que justifique o tratamento diferenciado de determinado credor, não compete ao tribunal suprir tal omissão, designadamente através da explicitação de eventuais fundamentos justificativos da diferenciação detetada;
- Não sendo apresentada no plano de insolvência fundamentação objetiva que justifique o tratamento diferenciado do crédito garantido de que é titular determinado credor, é de concluir que a diferenciação operada, relativamente aos demais titulares de créditos garantidos, se mostra arbitrária e, como tal, violadora do princípio da igualdade dos credores da insolvência, o que configura violação não negligenciável de norma aplicável ao conteúdo do plano e impõe a não homologação oficiosa do mesmo.
Por outro lado, relativamente à interpretação do artigo 194º n.º 1 do CIRE há coincidência entre os dois acórdãos, ambos entendem que o princípio da igualdade dos credores da insolvência admite que o plano de insolvência/recuperação estabeleça diferenciações, desde que justificadas por razões objetivas.
Assim sendo, no plano da interpretação do artigo 194º do CIRE, não há contradição entre os dois acórdãos em confronto.
As diferenças de fundamentação entre os dois acórdãos não se colocam no mesmo nível de argumentação jurídica.
O Acórdão Recorrido decidiu que o plano de insolvência não apresentava qualquer fundamentação objetiva que justifique o tratamento diferenciado do crédito garantido de que era titular um determinado credor, ou seja, apenas, por razões formais, decidiu que tinha sido violado o princípio da igualdade.
Por outro lado, o Acórdão Fundamento não se pronunciou sobre qual o nível de fundamentação necessário que devia constar do plano para justificar a diferenciação, incidiu sobre a questão de fundo, saber se havia ou não justificação para o tratamento diferenciado, com base na factualidade julgada provada.
Apenas se está perante oposição/contradição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito, quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade da situação de facto subjacente a essa aplicação.
A contradição deve ser frontal, e não implícita, não bastando que se tenha abordado o mesmo instituto, pressupondo que a subsunção jurídica realizada em quaisquer das decisões tenha operado sobre o mesmo núcleo factual, ou factualidade como tal considerada, sem ser atribuída relevância a elementos de natureza acessória, e assim ser idêntica a ratio decidendi.
No caso, como supra se referiu, o artigo 194º do CIRE não foi interpretado ou aplicado em termos opostos.
Note-se que no momento processual em que nos encontramos (de admissibilidade ou não dum recurso), não está em causa apurar se estão corretos os pressupostos em que se baseou o acórdão recorrido para não homologar o plano, designadamente, se o plano de insolvência em causa apresentava ou não razão objetiva que justificasse o tratamento diferenciado a um credor e na hipótese de existir essa omissão se o tribunal a podia suprir.
Essas questões apenas podiam ser objeto da revista, se fosse admitida, sendo que agora apenas está em causa, apurar se há a invocada contradição jurisprudencial, tendo em vista admitir ou não a revista.
Em conclusão entendo, que não se verifica entre o Acórdão Fundamento e o Acórdão Recorrido a “contradição jurisprudencial” a que se refere o artigo 14.º n.º 1 do CIRE e, por isso, não se admite o presente recurso de revista.
A Recorrente reclamou para a conferência deste despacho, nos termos do artigo 652º n.º 3 ex vi 679º ambos do CPC, com extensa argumentação, que, no essencial, se transcreve:
“ (…)O Acórdão fundamento junto aos autos teve em consideração a vontade da maioria dos credores, bem como uma noção mais ampla do que podem ser atendidas como razões objetivas, dando maior relevo às consequências da não aprovação do plano e consequente liquidação do património da empresa, ao contrário do que ocorreu com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, daí que a mesma questão de direito tenha sido decidida de forma diferente.
O presente Acórdão fundamento teve em consideração o teor das medidas concretamente previstas para avaliar se existe ou não diferenciação de tratamento, tendo procedido a essa avaliação, independentemente de no plano aquelas não constarem expressamente identificadas por formula sacramental VG: “as razoes justificativas da diferenciação são:..” ao contrário o acórdão recorrido que se furtou à apreciação da existência ou não de razões justificativas do tratamento diferenciado pelo facto de estas não constarem expressamente indicadas/identificadas.
Isto é,
O Tribunal da Relação de Évora no Acórdão Recorrido limitou-se a referiu que foi por razões formais, que não identificou minimamente, é que decidiu que tinha sido violado o princípio da igualdade.
Ora,
O princípio da igualdade a que alude o artigo 194.º do CIRE dispõe que:
«1 - O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas.
2 - O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afetado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.
3 - É nulo qualquer acordo em que o administrador da insolvência, o devedor ou outrem confira vantagens a um credor não incluídas no plano de insolvência em contrapartida de determinado comportamento no âmbito do processo de insolvência, nomeadamente quanto ao exercício do direito de voto.”
Expendem, a propósito, Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., pp. 712 e 713) que o princípio da igualdade dos credores configura-se como uma trave basilar e estruturante na regulação do plano de insolvência, sendo que a sua afetação traduz, por isso, seja qual for a perspetiva, uma violação grave - não negligenciável – das regras aplicáveis. Todavia, mais acrescentam, a letra da lei procurou acolher de uma forma evidente as duas facetas em que se desdobra o princípio da igualdade, traduzidas na necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto. Observam ainda os mesmos autores que a razão objetiva porventura mais clara que fundamenta a legalidade da diferença de tratamento dos credores será a que assenta na distinta classificação dos créditos, mas, para além disso, dentro da mesma categoria pode haver motivos para destrinçar em função do grau hierárquico dos créditos, e, inclusivamente, a ponderação das circunstâncias de cada situação pode justificar outros alinhamentos.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Março de 2014, processo nº 6148/12.1TBBRG.G1.S1, relatado por Fonseca Ramos, disponível em www.dgsi.pt, e subscrevemos este ponto de vista, que «A parte final do art. 194º, nº 1, do CIRE foi ditada por razões de ordem pública convocando o princípio constitucional da proporcionalidade. Como ensina “Jorge Reis Novais, in “Os Princípios Estruturantes da República Portuguesa”, pág. 171: “… Por sua vez, a observância ou a violação do princípio da proporcionalidade dependerão da verificação da medida em que essa relação é avaliada como sendo justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspetiva, e dependendo da intensidade e sentido atribuídos ao controlo, da medida em que ela não é excessiva, desproporcionada, desrazoável. Nesta aproximação de definição podem intuir-se, em primeiro lugar, a relativa imprecisão e fungibilidade dos critérios de avaliação; em segundo lugar, o permanente apelo que eles fazem a uma referência axiológica que funcione como terceiro termo na relação e onde está sempre presente um sentido de justa medida, de adequação material ou de razoabilidade, por último, a importância que nesta avaliação assumem as questões competenciais, mormente o problema da margem de livre decisão ou os limites funcionais que vinculam legislador,
Administração e juiz.”»
Sucede que,
No caso sub judice, em concreto dos créditos garantidos e da diferenciação de tratamento no plano quanto às condições propostas para a Recorrente XYQ LUXCO S.Á.R.L e para a Credora A..., S.A., o Acórdão do Tribunal da Relação sustenta a sua análise nas seguintes premissas:
“A 1.ª instância considerou não verificada a invocada violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano, concluindo inexistir qualquer motivo de recusa oficiosa da homologação do plano, nos termos seguintes:
(…)
No que respeita aos credores garantidos prevê-se o perdão total de juros vencidos, comissões, despesas e quaisquer outros encargos incluídos na dívida reclamada, assim como de 50% do capital em dívida à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do Plano de Insolvência, carência de capital por 24 meses, contados a partir do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano e reembolso da dívida consolidada de capital, apurada com base no ponto anterior, em 180 prestações mensais, iguais e sucessivas, em relação ao crédito consolidado à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do Plano, com pagamento de juros vincendos com indexação à Euribor a 12 meses, com acréscimo de spread de 0,5% a 1%.
Quanto aos credores comuns prevê-se um perdão total de juros vencidos, comissões, despesas e quaisquer outros encargos incluídos na dívida reclamada, assim como de 75% do capital em dívida à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do Plano de Insolvência, carência de capital por 24 meses, contados a partir do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano e reembolso da dívida consolidada de capital, apurada com base no ponto anterior, em 180 prestações mensais, iguais e sucessivas, em relação ao crédito consolidado à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do Plano, com pagamento de juros vincendos com indexação à Euribor a 12 meses, com acréscimo de spread de 0,5% a 1%.
(…)
Relativamente à credora XYQ LUXCO S.Á.R.L. o Sr. AI reconheceu créditos no montante global de 1.667.305,15€, créditos garantidos por hipoteca registada mediante a AP. ...51 de 17/06/2011 sobre o prédio urbano descrito na CRP de ... com o n.º ...79 da freguesia de ..., com um valor patrimonial de 1.217.279,10€. De acordo com o plano, esta credora receberá 50% de capital, ou seja, metade de 959.316,33€ até 2040.
(…)
Prevê ainda o plano, dentro da categoria dos créditos garantidos, a dação à credora A..., S.A. do prédio descrito na CRP de ... sob o n.º ...50, com hipoteca registada a favor desta credora como forma de pagamento integral da dívida. Foi reconhecido a esta credora um crédito de 1.868.108,34€ (correspondendo 1.417.046,82€ a capital) e o valor patrimonial tributário do prédio ascende a 330.541,20€, o que corresponde a satisfação de 23,33% do capital em dívida.
Assim sendo, ainda que entregue o prédio a curto prazo, o grau de satisfação do capital em dívida à credora A..., S.A. é manifestamente inferior ao grau de satisfação do capital da credora XYQ Luxco (50%).
Acresce que o plano apresenta como justificação para a dação o seu efeito positivo nos capitais próprios da recuperanda, na conta de outras variações patrimoniais resultantes da aplicação do plano e numa prova de confiança junto dos demais credores. Face a todo o exposto, entende-se que se mostra justificado o tratamento diferenciado à credora A..., S.A., sendo ainda de considerar que esta credora já era beneficiária de hipoteca sobre o bem em causa.” [sublinhado nosso].
Ora foi com base nesta afirmação do Tribunal de 1ª instância que o Tribunal da Relação de Évora formou a sua convicção no que respeita à justificação objetiva da diferenciação entre as duas credoras.
Todavia…
Olvidou o essencial, pois o plano aprovado, refere expressamente, na sua página 10, o seguinte:
“3.3. Património
A Aji-Indústria da Madeira desenvolve a sua atividade em instalações industriais próprias, localizadas em ..., freguesia de ..., zona tradicionalmente ligada ao setor da madeira, perfeitamente adequadas à sua atividade e capazes de suportar a atividade prevista.
No presente plano está prevista a dação em pagamento integral da dívida e do aval de um dos edifícios da Aji-Indústria de Madeiras, localizado no ..., freguesia de ..., que não é utilizado pela empresa atualmente e que não é necessário à sua atividade, nem para a sua recuperação.
Este edifício encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de ... sob o registo n.º ...50 e inscrito na matriz predial da União das Freguesias de ..., ... e ... sob o artigo ...18.
Para além destes imóveis, a empresa possui ainda:
- Um armazém composto por três pisos e nove divisões localizado no ..., freguesia de ..., com uma área de implementação de 8.000 m² e um valor patrimonial tributário de € 1.167.150,00;
e - Três terrenos para construção, localizados no ..., freguesia de ..., com um valor patrimonial tributário total de 164.940€.
O equipamento afeto à sua atividade encontra-se em perfeitas condições de laboração e com uma capacidade instalada capaz de suportar a atividade prevista para o presente plano.” [sublinhado nosso].
Ora, da conjugação desses elementos, facilmente se concluiu, sem necessidade de interpretação alguma, que o que diferencia as credoras XYQ LUXCO S.A.R.L. e A..., S.A. prende-se com a característica das hipotecas de que cada uma beneficia, incidirem sobre prédios distintos, que não têm a mesma utilização por parte da empresa.
Bastando uma leitura atenta do plano para chegar a esta conclusão, pois enquanto que a garantia constituída a favor da XYQ LUXCO SARL incide sobre um prédio essencial à continuidade da empresa, sem as quais esta deixaria de ter instalações para laborar, a garantia hipotecária da A..., S.A. foi constituída sobre um prédio que não é utilizado pela empresa atualmente, não é necessário à sua atividade, nem para a sua recuperação.
E está aqui o cerne desta diferenciação, apreciada objetivamente.
Acresce que este tratamento diferenciado está plasmado no plano com a clareza e o rigor necessário, devidamente concretizado, identificado e explicado como o exige o artigo 195.º do CIRE, maxime que do plano resulta a ratio que justifica, exige e aconselha (em razão sobretudo do objetivo último pretendido de, no final, se conseguir uma efetiva revitalização do devedor) o tratamento diferenciado conferido.
A assim não suceder, legítimo seria então concluir estar-se na presença de uma diferença de tratamento que, porque não explicada, seria em última análise arbitrária, discricionária ou discriminatória.
Chegados aqui e confrontando o Acórdão em crise com o que foi proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, resulta que a mesma questão – a da violação não negligenciável das regras, mormente pela violação do princípio da igualdade – foi analisada de prismas distintos, com ponderação de interesses diversos.
Efetivamente, o Acórdão proferido pelo Tribunal Recorrido com tendência mais formalista, seguiu uma interpretação estrita da análise das referências objectivas ao tratamento diferenciado dos credores em igualdade com a mesma posição, enquanto que o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra teve em consideração a expressão de vontade da maioria dos credores, uma noção mais ampla do que podem ser atendidas como razões objectivas, bem como deu um maior relevo às consequências que a não aprovação de um Plano e consequente liquidação podem ter para a economia de uma determinada região, trabalhadores e até para os demais credores que aprovaram o Plano.
Entendendo a ora Reclamante / Recorrente, que tal perspetiva é a que melhor satisfaz os interesses que aqui se encontram em confronto.
Dado que, não só existem razões objectivas para o tratamento diferenciado, tal como supra descrito, como estamos perante uma situação em que uma maioria de credores votou favoravelmente um Plano de Insolvência, em que caso o mesmo não seja homologado corre-se o risco de atirar para o desemprego dezenas de trabalhadores e encerrar uma das poucas empresas que ainda labora no Município de ..., concelho com pouca expressividade industrial e económica.
Por outro lado, o credor que aqui verdadeiramente tem um tratamento diferenciado é a A..., S.A., que apesar de receber em pagamento um imóvel, dos elementos constantes no processo de insolvência e do Plano, resulta, tal como bem concluiu o Tribunal de 1ª instância, que irá receber bastante menos de 50% do valor dos seus créditos.
E, tal credor deu o seu consentimento ao Plano, mediante voto favorável.
Por outro lado, como já se referiu esse credor já era beneficiário de hipoteca registada sob o referido bem, motivo pelo qual não lhe foi atribuído com o plano um benefício de que já não fosse titular.
Ora, a par de tudo que já se referiu, deve ter-se em conta que são desconsideráveis as infracções que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido. (AC. TRC de 29/10/2013, processo 5697/12.6TBLRA.C1.
Por outro lado,
o Tribunal Recorrido desconsiderou o conhecimento que o Tribunal de 1ª instância tinha do processo, porque não só o recurso seguiu em separado, como em sede das várias Assembleias realizadas e documentos juntos ao longo da tramitação o Juiz de 1ª Instância teve acesso a um conjunto de elementos e documentos que lhe permitiu fundamentar a sentença de homologação daquele modo, não criando justificações que a devedora omitiu, mas simplesmente tirando as suas ilações de todos os elementos de que dispunha.
Remetendo-se, a esse nível, para o disposto no artigo 11º do CIRE, de acordo com o qual:
“No processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes.”
Assim,
No caso concreto, estamos perante razões de tratamento diferencial objectivas que decorrem do Plano, mas também dos elementos juntos ao processo, tais como avaliação de imóveis, créditos reconhecidos, que permitiram ao Tribunal verificar pela inexistência de razão atendível para a não homologação do Plano, considerando a diferenciação proporcional e adequada.
Sendo que,
Conforme se lê no já referido Acórdão proferido pelo TRC no processo 5697/12.6TBLRA.C1:
“O princípio do inquisitório, quando confere ao juiz a faculdade de fundar a sua decisão em factos não alegados pelas partes, ou quando lhe permite proceder oficiosamente à realização e recolha de provas, não conduz a que o juiz tenha que se substituir às partes, no que se refere à alegação da factualidade essencial, integradora da causa de pedir, ou no que se refere à recolha de prova pela qual as partes não curaram de diligenciar - visando tal princípio obstar a que razões meramente formais impeçam a realização dos direitos materiais.”
No caso em apreço, seguindo-se a razão de direito do Acórdão fundamento do presente recurso, do Plano decorrem razões objectivas para o tratamento diferencial, na medida em que do mesmo resulta que a dação em pagamento ocorrerá não só por “O efeito positivo desta dação será considerado nos capitais próprios da recuperanda, na conta de outras variações patrimoniais resultantes da aplicação do plano, numa prova de confiança junto dos demais credores”, mas principalmente porque no plano está previsto que o pagamento integral da dívida e do aval é efetuado pela dação de um dos edifícios da AJI – Industria de Madeiras, localizado no ..., freguesia de ..., que não é utilizado pela empresa atualmente e que não é necessário à sua atividade, nem para a sua recuperação.
Este edifício encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de ... sob o registo nº ...50 e inscrito na matriz predial da União das Freguesias de ..., ... e ..., sob o artigo ...18.” (conforme resulta do Plano).
Para além disso,
Conforme bem analisou a Meritíssima Juíza de 1ª instância, à semelhança do que sucedeu no Acórdão Fundamento, do processo resultam elementos que permitem concluir pela razoabilidade do tratamento diferencial, bem como da proporcionalidade e vantagem em confronto com um cenário de liquidação, dado que Prevê ainda o plano, dentro da categoria dos créditos garantidos, a dação à credora A..., S.A. do prédio descrito na CRP de ... sob o n.º ...50, com hipoteca registada a favor desta credora como forma de pagamento integral da dívida. Foi reconhecido a esta credora um crédito de 1.868.108,34€ (correspondendo 1.417.046,82€ a capital) e o valor patrimonial tributário do prédio ascende a 330.541,20€, o que corresponde a satisfação de 23,33% do capital em dívida. Assim sendo, ainda que entregue o prédio a curto prazo, o grau de satisfação do capital em dívida à credora A..., S.A. é manifestamente inferior ao grau de satisfação do capital da credora XYQ Luxco (50%).
Rematando o seu entendimento com base no mesmo raciocínio que o Tribunal da Relação de Coimbra adoptou no Acórdão fundamento, isto é, “seria desproporcional que a oposição de apenas dois credores inviabilizasse a recuperação da empresa, contrariando a aprovação do plano apresentado e que foi aprovado por larga maioria dos votos emitidos e capital representado, relegando a empresa para uma situação de liquidação do seu património e lançando para o desemprego 24 trabalhadores, com todas as nefastas consequências daí decorrentes”
Posição essa que se mostra justa e adequada e tem acolhimento nas normas legais aplicáveis, dado que o espírito da legislação em causa é a garantia do tratamento igual dos credores, mas sem criar formalismos impeditivos da aprovação de Planos de Revitalização/Insolvência, que permitam evitar uma liquidação.
Efetivamente,
O acordo extrajudicial de recuperação apenas pode deixar de ser homologado, se oficiosamente, nos termos do artº 215º do CIRE; e se a requerimento dos interessados, apenas nas duas hipóteses do nº1 do artº 216º – cfr. artº 17ºI nº4.
A recusa de homologação de plano de insolvência, e, por maioria de razão, de acordo extrajudicial de recuperação – artº 216º nº1 al. a) do CIRE, neste caso aplicável ex vi do artº 17º-I nº4 – apenas tem lugar quando o credor prove que a sua situação ficou desfavoravelmente regulada, por comparação prognóstica com a aplicação das regras gerais supletivas, em termos desproporcionados, excessivos, e, assim, claramente injustos.
O próprio Tribunal da Relação de Évora, no processo 2114/20.1T8STR.E1 fez uma aplicação da lei distante do formalismo com que analisou a sentença do Tribunal de 1ª instância no presente processo, dado que com base em elementos que não constavam do Plano se considerou justificado o tratamento diferenciado, lendo-se nesse aresto que:
“Por outro lado, e admitindo que, conforme se assinala no aresto do TRC de 17 de Março de 2015[9], o carácter estratégico de alguns credores é insuficiente para, por si só, justificar o tratamento mais favorável que lhes é dispensado, em detrimento de outros da mesma classe sobre quem passa a recair, de forma desproporcionada, o essencial do sacrifício necessário à revitalização da devedora, não se vê que tal ocorra no caso em apreço, porquanto, também a credora (…), titular do crédito mais expressivo, prescinde dos juros, sendo paga de forma faseada, à semelhança do que ocorre com a (…), sendo ainda de assinalar que se trata de prestações mensais de montantes não muito elevados.
Conclui-se, assim, que, ao invés do que se considerou na sentença recorrida, estão contempladas no plano aprovado razões objectivas idóneas a justificar a discriminação positiva de que foram alvo as identificadas credoras, diferenciação que, além do mais, não fere o princípio da proporcionalidade.
Acresce que tendo ambos os credores que deduziram oposição ao plano invocado ainda como fundamento o agravamento da sua situação, quando confrontada com aquela que resultaria da liquidação imediata do património do devedor, também aqui se entende não haver razão para recusar a homologação.”
Chama-se a atenção que, no caso em apreço, nem sequer o Tribunal ponderou a possibilidade de se notificar a devedora para justificar o tratamento diferencial, ao abrigo do princípio da gestão processual e dever de colaboração com as partes.
O que ocorreu, por exemplo, no processo 16/22.6T8LRA.C1, em que conforme se lê nesse Acórdão “Na verdade, apesar do plano constar que a sua finalidade é apresentar um conjunto de medidas e que o objectivo é a continuidade da exploração da actividade e da afectação de meio libertos, de modo reajustado à evolução dos negócios, e resultados obtidos e previstos obter pela empresa, não se refere depois quais as medidas a implementar ou já implementadas para alcançar esse objectivo. E a devedora notificada para exercer o contraditório também não foi capaz de as identificar.”
Situação que não tem paralelismo com o dos autos no que concerne ao conteúdo do Plano, dado que o Plano apresentado pela Recorrente tem todos aqueles elementos, bem como as já referidas razões objectivas de tratamento diferenciado, mas caso se entendesse que eram insuficientes, antes de se tomar uma decisão de recusa, devia ser dado o contraditório à Devedora, o que não se verificou.
De facto,
Entende ainda a Reclamante / Recorrente que, se o Tribunal pretende recusar a homologação do Plano por considerar a justificação de tratamento diferente de credores em igual posição insuficiente, antes de o fazer devia convidar a devedora a suprir essa insuficiência, sendo de relembrar que os Planos de Revitalização/Insolvência são elaborados por Técnicos de Economia e de Gestão e não por Juristas.
Note-se que, o Plano de Insolvência é expressão da autonomia da vontade dos credores quanto ao destino dos bens da massa insolvente.
As razões para o tratamento diferencial em causa constam do Plano e resultam de factos notórios existentes no processo, mormente, a posição desvantajosa em que o credor A..., S.A. fica, que aceitou ser ressarcido em apenas 23,3% do seu crédito, enquanto que os demais credores na mesma posição irão sê-lo em 50%.
Por fim,
Chama-se à colação teor do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no processo 1006/15.0T8LRA-D.C1, de acordo com o qual:
“1.- Não é suficiente para fundamentar o pedido de recusa da homologação do plano de insolvência o voto em contrário na deliberação de aprovação.
2.- O voto em contrário na deliberação de aprovação e a oposição à aprovação do plano de insolvência consubstanciam, duas realidades distintas, impondo o pedido de recusa de homologação do plano a alegação (atempada) e a demonstração “em termos plausíveis” de um qualquer dos fundamentos consagrados nas alíneas a) e b) do art. 216º do CIRE.
3.- Uma vez aprovado pelos credores, o plano de insolvência é sujeito a um segundo controlo jurisdicional [o “primeiro” ou “inicial” controlo jurisdicional é o a que alude o art. 207º do mesmo CIRE ), necessitando de ser homologado por sentença judicial, para que seja plenamente eficaz (cfr. arts. 214º a 216º do CIRE)
4.- A formulação da al. a) do nº1 do art. 216º CIRE. implica que se proceda a um exercício intelectual de prognose, por vezes complexo, que se traduz em comparar o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele.
5. - Só releva a violação que seja susceptível de influir no exame e na decisão da causa, que comprometa, irremediavelmente, o fim que a lei se propunha atingir; quando a ofensa da lei não tenha este efeito patológico, a violação é negligenciável ou desprezável, e o juiz fica autorizado a declarar irrelevante a nulidade correspondente.
6.- Nos termos do artº 215º do CIRE, o juiz pode recusar, oficiosamente, a homologação do plano aprovado na assembleia de credores, no caso em que ocorrer violação não negligenciável de regras procedimentais, ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza.
7. - Entende-se por regras procedimentais as que visam regular a forma como deverá desenrolar-se o processo, enquanto as segundas se reportarão ao dispositivo do plano de revitalização, bem como aos princípios que lhe devam estar subjacentes.
8.- A lei não define o que são vícios não negligenciáveis, e tem-se entendido que revestem tal natureza todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza, diversamente se verificando quanto às infracções que afectem, tão só as regras de tutela particular, que podem ser afastadas com o consentimento do protegido, sem deixar de atender, por razoável, o critério geral utilizado pela própria lei processual no art.º 195, do CPC.
9.- Em função do disposto no nº 1 do artº 216º do CIRE, a homologação deve ser recusada também quando, a pedido de algum credor, se demonstre em ternos plausíveis, que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência dele ou que o plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.
10.- Dentro da mesma categoria há motivos para destrinçar, conforme o grau hierárquico que couber aos vários créditos e que a ponderação das circunstâncias de cada situação pode justificar outros alinhamentos, nomeadamente tendo em conta as fontes do crédito. O plano deve, pois, tratar de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual. O princípio da igualdade dos credores supõe, assim, uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. O Tribunal deve limitar-se a analisar se a regulação desigual da situação dos credores é manifestamente desadequada, por inexistência de fundamento razoável e relevante.
11.- O princípio da igualdade dos credores “par conditio creditorum” não confere, aos que deles beneficiam, um direito absoluto. Esse direito de crédito pode sofrer afrouxamento ou restrição como decorre do texto constitucional que contempla, a par do princípio da igualdade, o princípio da proporcionalidade e da proibição do arbítrio coenvolvidos na legalidade do exercício de direitos e deveres.”
É evidente e inquestionável que a justificação para o tratamento diferenciado entre as duas credoras assenta em razões objetivas, não estando assim em causa violação alguma do princípio de igualdade. Consequentemente, desde logo, também não se verifica a violação não negligenciável de norma aplicável ao conteúdo do plano conducente a uma não homologação deste mesmo plano.
São estas as razões pela qual não se pode deixar de discordar em absoluto com o disposto no Acórdão da Relação de Évora, na medida em que existe uma justificação concreta, objetiva e plausível – e não arbitrária – para o diferente tratamento operado entre o crédito garantido da A..., S.A. e os demais créditos pertencentes à mesma classe.
Ora,
A decisão singular de que ora se reclama para conferência entende assim que não se verifica uma efetiva contradição entre o Acórdão recorrido e o acórdão fundamento, posição esta com a qual como já se referiu não se concorda.
Na realidade, conforme já se demonstrou as dimensões constantes dos acórdãos em confronto são consequência duma interpretação divergente da mesma questão de direito (violação do princípio da igualdade) na vigência da mesma legislação e que conduziu a que a mesma questão fosse decidida em termos opostos pelo acórdão fundamento e pelo acórdão recorrido.
No caso dos autos as situações versadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido analisadas e confrontadas no plano fatual e material são equiparáveis quanto ao seu núcleo essencial e conduziram em cada um deles à aplicação do mesmo regime legal em termos conflituantes levando a que no acórdão recorrido o plano não fosse homologado em contradição com a posição vertida no acórdão fundamento que conduziu a homologação do plano apresentado.
Na decisão reclamada refere-se expressamente que não sendo apresentada no plano de insolvência fundamentação objetiva que justifique o tratamento diferenciado do crédito garantido de que é titular determinado credor, é de concluir que a diferenciação operada relativamente aos demais titulares de créditos garantidos, se mostra arbitrária e como tal, violadora do princípio da igualdade dos credores da insolvência, o que configura violação não negligenciável de normas aplicável ao conteúdo do plano e impõe a não homologação oficiosa do mesmo.
Mais se refere que relativamente à interpretação do artigo 194º n.º 1 do CIRE há coincidência entre os dois acórdãos.
Porém,
Tal decisão olvida o alegado pela Recorrente e ora Reclamante nas suas alegações de recurso, nomeadamente o que consta da página 10 do plano apresentado onde está explicita a diferenciação apresentada, pelo que por não existir coincidência entre os dois acórdãos deve a presente reclamação ser diferida e o recurso apreciado em conferência.
Por outro lado,
O artigo 14º do CIRE ao admitir a possibilidade de recurso por oposição de acórdãos no âmbito do processo de insolvência refere-se apenas à sentença de declaração de insolvência e à oposição que vier a ser deduzida em relação à declaração de insolvência.
Ora,
No caso concreto o recurso que foi interposto não versa sobre a sentença que decretou a insolvência a qual transitou em julgado, mas sim sobre a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Évora que decidiu não homologar o plano de insolvência apresentado, votado e amplamente aprovado em assembleia de credores.
Assim,
Tal decisão encontra-se assim excluída daquele regime específico, o que significa que a mesma é passível de recurso nos termos gerais, sendo aplicáveis no caso concreto as regras gerais de verificação das condições de admissibilidade de recurso ex vi do normativo inserto no artigo 17º n.º 1 do CIRE.
Por fim,
Existe contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, na medida em que a apreciação dos critérios referentes às diferenciações objectivas, à sua justificação, à densificação dessa justificação e a correlação com o princípio da igualdade e do voto da maioria dos credores é consideravelmente distinto, quando confrontado com a situação fáctica dos dois acórdãos em causa.
Na realidade,
O Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento ambos incidem sobre a problemática do tratamento diferenciado dos credores no âmbito da aprovação de um Plano de Insolvência, sendo que ao contrário do que foi decidido na decisão ora em crise, o Acórdão fundamento não se limita a determinar se havia ou não justificação para o tratamento diferenciado, incidindo igualmente acerca do nível de fundamentação necessário, e é nesse preciso ponto que reside a contradição.
Mais concretamente, opostamente ao Acórdão recorrido, no Acórdão fundamento considerou-se o seguinte:
“Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., de pág.s 826 a 828, devem considerar-se “não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza.
Diversamente, são desconsideráveis as infracções que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido.
(…)
O que importa é, pois, sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente, no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta.
(…)
Apenas cabe uma nota complementar para alertar não poder deixar de se ponderar o facto de a lei propender a pôr nas mãos dos credores a decisão sobre o destino do processo, e, nessa medida, o tribunal deve mostrar generosidade na sindicação da bondade do por ele deliberado, na ponderação de que ninguém melhor do que os credores saberá o modo de mais adequadamente defender os seus próprios interesses.”.
Traçado o quadro legal e doutrinário da questão em dissídio, importa, agora, analisar o que consta do plano de recuperação aprovado a fim de averiguar se o tratamento que nele foi dado ao credor B... , ora recorrente, é de considerar desadequado, arbitrário ou injustificado, por comparação com o que foi dado aos credores C... e D... .
Ou se, pelo contrário, tal diferente tratamento se encontra justificado por razões objectivas, tendo em vista uma adequada e necessária, ponderação de todos os interesses em confronto e não apenas os do recorrente.
Como acima referido, relativamente ao ora recorrente, o plano prevê uma carência de capital durante 24 meses, sendo amortizado em 126 prestações mensais de capital e juros e os restantes 50% numa prestação bullet.
Os juros vincendos serão pagos mensalmente à taxa euribor a 6 meses, acrescida de um spread de 2.5%, actualizado para 3.5% após o período de carência e os vencidos desde a reclamação de créditos até à data da sentença de homologação, calculados nas condições em vigor, serão capitalizados naquela data.
Perde as garantias (hipotecas) de que beneficiava.
Relativamente à C... , consta que lhe será paga a quantia de 157.500 €, no prazo de 4 meses contados da data do trânsito em julgado da sentença de homologação, para amortização parcial do crédito, através da venda a terceiros da garantia hipotecária de que goza sobre a supra descrita fracção “Q” ou, se tal não acontecer, através da entrega da referida fracção.
No que respeita ao D... , consta que a sociedade assume o pagamento de 1.000.000,00 €, mantendo-se as garantias prestadas a seu favor, designadamente a supra referida hipoteca.
Carência de capital e juros de 24 meses e pagamento dos juros vencidos, desde a reclamação de créditos até ao período de carência, calculados à taxa Euribor a 6 meses, acrescidos de um spread de 1.5%, capitalizados no final daquele período.
Celebração de um contrato de locação financeira imobiliária entre o banco e a nova sociedade, nas condições supra descritas.
Consta do plano que o tratamento dado à C... resulta do facto de a mesma deter 8,28% do valor total dos créditos e constituir o único meio de ser aprovada a proposta apresentada e, ao mesmo tempo, permitir reduzir as responsabilidades da devedora.
Por outro lado, convém não esquecer que a C... é a beneficiária da hipoteca registada em 1.º lugar, relativamente à supra mencionada fracção “Q”, o que equivale a dizer que, em condições normais, o seu crédito seria o primeiro a ser pago pelo produto da respectiva venda – cf. artigo 686.º, n.º 1, do CC.
Por comparação com o D... , o recorrente tem o mesmo período de carência e beneficia de uma maior taxa de juros, sendo que perde as garantias, que o D.. mantém.
Todavia, também, o D... goza de uma hipoteca sobre o imóvel em causa, registada previamente à do recorrente, pelo que este goza de prioridade quanto à satisfação do seu crédito, nos mesmos moldes do da C... .
Aliás, como consta dos factos provados, o recorrente beneficia de hipotecas registadas em último lugar, relativamente a cada um dos prédios, como ali descrito, o que tornaria, em condições normais, muito difícil a satisfação do seu crédito, com base nas mesmas, atentos os valores envolvidos (relativamente às demais hipotecas, anteriormente registadas).
E sempre, valendo, relativamente a todos os imóveis e, consequentemente, para todos estes credores, a existência do privilégio imobiliário especial de que gozam os inúmeros trabalhadores da devedora, nos termos do artigo 333.º do Código do Trabalho, o que dificultaria a satisfação dos respectivos créditos.
Tudo ponderado e atento os fins do PER, acima já referidos, bem como a ampla autonomia concedida aos credores (sua maioria) para a aprovação do plano de recuperação, parece-nos que as razões invocadas para o tratamento dado à C... e D... , se mostram justificadas, dado que têm relevância para a aprovação do plano e estes credores já eram beneficiários de hipotecas sobre os bens em causa, registadas em primeiro lugar, relativamente ao ora recorrente, pelo que não lhes é atribuído com o plano aprovado, um benefício de que já não fossem titulares/beneficiários.
Por outro lado seria desproporcional que a oposição de um só credor inviabilizasse a revitalização da devedora, contrariando a aprovação do plano apresentado e que foi aceite (aprovado) por larga maioria dos votos emitidos e capital representado, relegando a empresa para uma situação de liquidação do seu património e lançando para o desemprego mais umas centenas de trabalhadores, com todas as nefastas consequências daí decorrentes, quer para a região onde a mesma se insere (e onde escasseiam as oportunidades de emprego) quer para o erário público.
Assim, entendemos, ser de dar prevalência ao interesse da larga maioria dos credores, em detrimento do interesse isolado do ora recorrente, sem esquecer, reitera-se, as nefastas consequências que o encerramento da empresa acarretaria.”
A factualidade é idêntica à que se coloca no processo em recurso, contudo a apreciação jurídica foi distinta, não tendo o Acórdão recorrido valorado o facto de ser desproporcional que a oposição de um só credor inviabilizasse a revitalização da devedora, contrariando a aprovação do plano apresentado e que foi aceite (aprovado) por larga maioria dos votos emitidos e capital representado, relegando a empresa para uma situação de liquidação do seu património e lançando para o desemprego mais umas centenas de trabalhadores, com todas as nefastas consequências daí decorrentes, quer para a região onde a mesma se insere (e onde escasseiam as oportunidades de emprego) quer para o erário público, bem como ser de dar prevalência ao interesse da larga maioria dos credores, em detrimento do interesse isolado do ora recorrente, sem esquecer, reitera-se, as nefastas consequências que o encerramento da empresa acarretaria.”
Considerando-se igualmente que “Como se refere no Acórdão deste Tribunal da Relação, de 17/03/2015, Processo 338/13.7TBOFR-A.C1, disponível no respectivo sítio do itij, como corolário do princípio da igualdade entre credores, ora em análise, “O plano deve, pois, tratar de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual. O princípio da igualdade dos credores supõe, assim, uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade e, consequentemente, a justificação para o tratamento desigual que não podem ser arbitrárias. Antes tem de se poder considerar tal justificação para o distinguo entre credores como razoável e relevante: perante o espaço de conformação do plano, o tribunal deve limitar-se a analisar se a regulação desigual da situação dos credores é manifestamente desadequada, por inexistência de fundamento razoável e relevante.”.
Efectivamente, esta possibilidade de conformação do plano de recuperação aprovado pelos credores, limita, restringe, ou pode fazê-lo, a esfera dos direitos de cada um, ou alguns, dos credores da devedora, na medida em que o plano fixa em que medida se opera a redução ou o perdão dos créditos e juros, a constituição de garantias e validade e relevância das anteriormente constituídas, nos termos do disposto nos artigos 196.º e 197.º do CIRE.
Isto porque, como se refere, entre outros, nos Acórdãos do STJ, de 10/04/2014, Processo 83/13.3TBMCD-B.P1.S1 e de 25/03/14, Processo 6148/12.1TBBRG.G1.C1, disponíveis no respectivo sítio do itij, depois da reforma operada pela Lei 16/2102, de 20/4, o CIRE tem como objectivo principal, a recuperação, a revitalização da empresa em estado de pré-insolvência, relegando para segundo plano a respectiva liquidação.”
De modo que, no caso em apreço existe contradição de acórdãos relevante para efeitos de admissibilidade do recurso de revista, devendo a decisão singular ser revogada e substituída por outra que admita o recurso e determine a subida dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça.”
Não foram apresentadas respostas.
Colhidos os vistos legais, cumpre conhecer.
Fundamentação
A questão a decidir é a de saber se deve ser revogado ou mantido o despacho reclamado que não admitiu o recurso de revista.
A própria Recorrente como consta do relatório supra recorreu do acórdão da Relação de Évora que julgou procedente a apelação e recusou a homologação do plano de insolvência aprovado e revogou a decisão da 1ª instância que tinha aprovado o plano, com fundamento no artigo 14º n.º 1 do CIRE, alegando contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento que indicou.
Contudo, na reclamação sustenta que tendo o recurso sido interposto do acórdão que decidiu não homologar o plano de insolvência apresentado, votado e amplamente aprovado em assembleia de credores, essa decisão está excluída do regime específico do artigo 14º do CIRE, sendo passível de recurso nos termos gerais.
No entanto, a questão do âmbito de aplicação do artigo 14º n.º 1 do CIRE, em que havia divergências na jurisprudência, foi recentemente decidida pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 13/2023, de 21.11, publicado no DR nº 225/2023, Série I de 2023.11.21, que estabeleceu o seguinte entendimento: «A regra prevista no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, restringe o acesso geral de recurso ao STJ às decisões proferidas no processo principal de insolvência, nos incidentes nele processado e aos embargos à sentença de declaração de insolvência»
Assim sendo o acórdão recorrido proferido num plano de insolvência, processado no processo principal de insolvência ( artigos 192º a 216º do CIRE), o recurso em causa está sujeito ao regime específico do artigo 14º n.º 1 do CIRE e consequentemente só é admissível se a Recorrente demonstrar que o acórdão a impugnar está em oposição com outro proferido por algum dos tribunais da Relação ou pelo STJ, no âmbito da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito decidida de forma diversa e não houver jurisprudência fixada pelo Supremo.
Como se referiu no despacho reclamado, para estarmos perante uma “contradição jurisprudencial” que permita a admissibilidade do recurso de revista, deve verificar-se uma relação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão da Relação que é objeto de recurso e a questão de direito apreciada no acórdão (da Relação ou do STJ) que serve de contraponto e de fundamento à admissibilidade da revista, num quadro normativo substancialmente idêntico e deve estar-se perante uma oposição frontal (e não apenas implícita ou pressuposta) e tal oposição frontal deve apresentar-se com natureza essencial para o resultado (oposto) que foi alcançado em ambos os acórdãos (sendo irrelevante a divergência que respeitar apenas a alguns argumentos sem valor decisivo).
Neste sentido consta da fundamentação ao acórdão do STJ de 23.09.2021 proferido no processo n.º 09/19.0T8ALM-B.L1.S1, relator Vieira e Cunha:
“Nesta matéria de contradições entre acórdãos, e servindo-nos do desenvolvimento do Ac. S.T.J. 7/6/2018, pº 2877/11.5TBPDL-D.L2.S1 (Maria Rosa Oliveira Tching), a jurisprudência deste Supremo Tribunal vem afirmando que importa que a invocada oposição de acórdãos seja frontal e não apenas implícita ou pressuposta (cf. Acs. STJ 20.07.2017, pº 755/13.2TVLSB.L1.S1-A, 25.05.2017, pº 1738/04.PTBO.P1.S1-A, 28.01.2016, pº 291/1995.L1.S1, 13.10.2016, pº 2276/10.6TVLSB.L1.S1-A, 26.05.2015, pº 227/07.OTBOFR.C2-S1-A, 20.3.2014, pº 1933/09.4TBPFR.P1.S1, e 4.07.2013, pº 2625/09.0TVLSB.L1.S1-A).”
“De igual modo, não basta, para o efeito, uma qualquer contradição relativamente a questões laterais ou secundárias. A questão de direito deve apresentar-se com natureza essencial para o resultado que foi alcançado em ambas as decisões, sendo irrelevante a que respeitar apenas a alguns argumentos sem valor decisivo ou obiter dicta”.
“E essa oposição, na expressão do Ac. STJ 17/02/2009, pº 08A3761 (Salazar Casanova), “só é relevante quando se inscreva no plano das próprias decisões em confronto e não apenas entre uma decisão e a fundamentação de outra, ainda que as respetivas fundamentações sejam pertinentes para ajuizar sobre o alcance do julgado”.
“E, finalmente, que tal oposição incida sobre a mesma questão de direito fundamental, o que pressupõe que as decisões em confronto tenham subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas – cf. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, 9ª ed., pgs. 122 e 123.”
Como se referiu no despacho reclamado, em primeiro lugar importa referir que quando a oposição jurisprudencial invocada se situa, como é o caso, na aplicação dos artigos 215º do CIRE, por violação do 194.º do mesmo diploma não é suficiente (é necessário, mas não suficiente) que os acórdãos em questão hajam decidido em sentido diverso.
É sabido que toda a disciplina insolvencial e de recuperação de empresas constante do CIRE tem como um dos princípios fundamentais o princípio par conditio creditorum ou da igualdade dos credores; e que, em função disso, o plano de insolvência e também os planos de recuperação e pagamento devem obedecer ao princípio da igualdade, “sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas” (como se refere no art. 194.º do CIRE, sobre o princípio da igualdade).
O princípio da igualdade tem uma dimensão material, o que significa que devem ser tratadas igualmente situações iguais e distintamente situações distintas, sendo que, perante situações distintas, o tratamento distinto pode estar em conformidade com o princípio da igualdade, ou seja, pode ser uma desigualdade justificada.
Por isso, pode não haver efetiva contradição – quando o acórdão recorrido considera violado o princípio da igualdade e o acórdão fundamento considera o oposto (ou vice-versa).
No entanto, no caso em apreço, não está sequer em causa saber se as situações de facto nos dois acórdãos são análogas ou equiparáveis, para se considerar haver efetiva divergência quanto à questão fundamental de direito.
Passemos, pois, a transcrever o essencial das fundamentações dos acórdãos em confronto.
No Acórdão Recorrido a fundamentação para a não homologação, foi o seguinte (extratos relevantes):
“As credoras LC ASSET 2, S.A.R.L. e XYQ LUXCO S.A.R.L. põem em causa a decisão que homologou o plano de insolvência apresentado pela devedora, invocando, em síntese, a violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano, bem como que a respetiva homologação as coloca em situação previsivelmente menos favorável do que aquela em que estariam na ausência de qualquer plano.
Considerou a 1.ª instância que o plano de insolvência foi aprovado pelos credores, embora sem unanimidade, o que não vem questionado no presente recurso, em que as apelantes, que haviam solicitado ao Tribunal a não homologação do plano, impugnam a sentença homologatória proferida, ambas pugnando pela recusa de tal homologação com fundamento na previsão dos artigos 215.º e 216.º, n.º 1, al. a), do CIRE.
O artigo 215.º, com a epígrafe Não homologação oficiosa, dispõe o seguinte: (…)
O artigo 216.º, por seu turno, com a epígrafe Não homologação a solicitação dos interessados, dispõe no n.º 1, o seguinte: ( …)
Decorre destes preceitos que, aprovado o plano de recuperação, pode o juiz recusar a respetiva homologação, não apenas oficiosamente, com algum dos fundamentos previstos no artigo 215.º, mas também mediante solicitação dos interessados, nas situações indicadas no n.º 1 do artigo 216.º.
Cumpre apreciar se assiste razão às apelantes, aferindo se é de recusar a homologação do plano de insolvência.
Impõe-se verificar, desde logo, se ocorre a invocada violação não negligenciável das normas aplicáveis ao conteúdo do plano e as consequências daí decorrentes.
Está em causa a apreciação da verificação de uma das situações de recusa oficiosa da homologação do plano previstas no citado artigo 215.º, a violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza.
A apelante LC ASSET 2, S.A.R.L. sustenta que o plano de insolvência apresentado exige um sacrifício excessivo por parte dos credores, particularmente dos credores comuns, sem que sejam apontadas razões justificativas para o efeito, alegando que existe uma desproporção entre o esforço exigido aos credores e a recuperação da devedora, o que entende configurar violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano.
Invoca a apelante XYQ LUXCO S.A.R.L. que, no âmbito da categoria dos créditos garantidos, o plano prevê um tratamento diferenciado do crédito de que é titular a credora A..., S.A., ao propor o pagamento através da dação do prédio onerado com hipoteca a favor daquela credora, condição mais favorável do que a proposta à apelante, igualmente titular de um crédito garantido, e aos demais credores titulares de créditos garantidos, sem que tal diferenciação se mostre justificada por razões objetivas, desrespeitando o princípio da igualdade dos credores da insolvência, o que entende configurar violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano.
A 1.ª instância considerou não verificada a invocada violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do plano, concluindo inexistir qualquer motivo de recusa oficiosa da homologação do plano, nos termos seguintes:
(…)
No que respeita aos credores garantidos prevê-se o perdão total de juros vencidos, comissões, despesas e quaisquer outros encargos incluídos na dívida reclamada, assim como de 50% do capital em dívida à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do Plano de Insolvência, carência de capital por 24 meses, contados a partir do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano e reembolso da dívida consolidada de capital, apurada com base no ponto anterior, em 180 prestações mensais, iguais e sucessivas, em relação ao crédito consolidado à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do Plano, com pagamento de juros vincendos com indexação à Euribor a 12 meses, com acréscimo de spread de 0,5% a 1%.
Quanto aos credores comuns prevê-se um perdão total de juros vencidos, comissões, despesas e quaisquer outros encargos incluídos na dívida reclamada, assim como de 75% do capital em dívida à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do Plano de Insolvência, carência de capital por 24 meses, contados a partir do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano e reembolso da dívida consolidada de capital, apurada com base no ponto anterior, em 180 prestações mensais, iguais e sucessivas, em relação ao crédito consolidado à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do Plano, com pagamento de juros vincendos com indexação à Euribor a 12 meses, com acréscimo de spread de 0,5% a 1%.
(…)
Relativamente à credora XYQ LUXCO S.Á.R.L. o Sr. AI reconheceu créditos no montante global de 1.667.305,15€, créditos garantidos por hipoteca registada mediante a AP. ...51 de 17/06/2011 sobre o prédio urbano descrito na CRP de ... com o n.º ...79 da freguesia de ..., com um valor patrimonial de 1.217.279,10€.
De acordo com o plano, esta credora receberá 50% de capital, ou seja, metade de 959.316,33€ até 2040.
(…)
Prevê ainda o plano, dentro da categoria dos créditos garantidos, a dação à credora A..., S.A. do prédio descrito na CRP de ... sob o n.º ...50, com hipoteca registada a favor desta credora como forma de pagamento integral da dívida. Foi reconhecido a esta credora um crédito de 1.868.108,34€ (correspondendo 1.417.046,82€ a capital) e o valor patrimonial tributário do prédio ascende a 330.541,20€, o que corresponde a satisfação de 23,33% do capital em dívida.
Assim sendo, ainda que entregue o prédio a curto prazo, o grau de satisfação do capital em dívida à credora A..., S.A. é manifestamente inferior ao grau de satisfação do capital da credora XYQ Luxco (50%).
Acresce que o plano apresenta como justificação para a dação o seu efeito positivo nos capitais próprios da recuperanda, na conta de outras variações patrimoniais resultantes da aplicação do plano e numa prova de confiança junto dos demais credores.
Face a todo o exposto, entende-se que se mostra justificado o tratamento diferenciado à credora A..., S.A., sendo ainda de considerar que esta credora já era beneficiária de hipoteca sobre o bem em causa.
Por outro lado, seria desproporcional que a oposição de apenas dois credores inviabilizasse a recuperação da empresa, contrariando a aprovação do plano apresentado e que foi aprovado por larga maioria dos votos emitidos e capital representado, relegando a empresa para uma situação de liquidação do seu património e lançando para o desemprego 24 trabalhadores, com todas as nefastas consequências daí decorrentes.
Face à discordância manifestada pelas apelantes, cumpre reapreciar a questão suscitada.
Em anotação ao citado artigo 215.º, explicam Luís A. Carvalho Fernandes/João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 3.ª edição, Lisboa, Quid Juris, 2015, p. 781) que «normas relativas ao conteúdo serão (…) todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar». Afirmando (loc. cit.) que a lei não define «o que deva considerar-se vício não negligenciável nem fornece objetivamente pistas que iluminem a descoberta da resposta», esclarecem os autores (ob. cit., p. 782) que «são não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza» e «são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido».
Sob a epígrafe Princípio da igualdade, o artigo 194.º do CIRE dispõe o seguinte: (…)
Em anotação a este preceito, afirmam Luís A. Carvalho Fernandes/João Labareda (ob. cit., p. 712-713) o seguinte: «A letra do n.º 1 procurou acolher de uma forma evidente as duas facetas em que se desdobra o princípio da igualdade, traduzidas na necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto, sem prejuízo do acordo dos credores atingidos, em contrário». Esclarecem os autores (ob. cit., p. 713) o seguinte: «o princípio da igualdade dos credores configura-se como uma trave basilar e estruturante na regulação do plano de insolvência. A sua afetação traduz, por isso, seja qual for a perspetiva, uma violação grave – não negligenciável – das regras aplicáveis. (…) O tribunal deve, por isso, se não for atempadamente recolhido o assentimento do lesado, recusar a homologação do plano».
A análise do conteúdo do plano importa sejam tidas em conta as diferentes classes de créditos sobre a insolvência definidas nas alíneas do n.º 4 do artigo 47.º do CIRE, com a redação seguinte:
4 - Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são: a) ‘Garantidos’ e ‘privilegiados’ os créditos que beneficiem, respetivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objeto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes; b) ‘Subordinados’ os créditos enumerados no artigo seguinte, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios,gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência; c) ‘Comuns’ os demais créditos.
Os créditos de que é titular a apelante LC ASSET 2, S.A.R.L., no valor total de € 866 953,73, configuram, maioritariamente, créditos comuns.
Os créditos de que é titular a apelante XYQ LUXCO S.A.R.L., no valor total de € 1 667 305,15, encontram-se garantidos, além do mais, por hipoteca sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...79, da freguesia de ....
Quanto aos créditos comuns, o plano de insolvência prevê:
i. relativamente a instituições financeiras e sociedades de garantia mútua:
- perdão total de juros vencidos, comissões, despesas e quaisquer outros encargos incluídos na dívida reclamada, assim como de 75% do capital em dívida à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de insolvência;
- carência de capital por 24 meses, contados a partir do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano;
- reembolso da dívida consolidada de capital, apurada com base no ponto anterior, em 180 prestações mensais, iguais e sucessivas, em relação ao crédito consolidado à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do plano;
- o vencimento da primeira prestação de juros ocorre 30 dias após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano e a primeira amortização de capital no 25.º mês após essa mesma data;
- isenção de comissões na implementação do presente plano e durante a sua vigência;
- manutenção de todas as garantias prestadas pela devedora e garantes;
ii. relativamente a fornecedores e outros credores comuns:
- perdão total de juros vencidos e vincendos, comissões, despesas e quaisquer outros encargos incluídos na dívida reclamada, assim como de 75% do capital em dívida à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do plano de insolvência;
- carência de capital por 24 meses, contados a partir do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano;
-reembolso da dívida consolidada de capital, apurada com base no ponto anterior, em 180 prestações mensais, iguais e sucessivas, em relação ao crédito consolidado à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do plano;
- o vencimento da primeira amortização de capital ocorre no 25.º mês decorridos 30 dias após o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano;
- isenção de comissões na implementação dos planos e durante a sua vigência;
- manutenção de todas as garantias associadas aos respetivos créditos prestadas pela devedora e garantes.
Sustenta a apelante LC ASSET 2, S.A.R.L. que o plano de insolvência apresentado exige um sacrifício excessivo aos credores comuns, sem que sejam apontadas razões justificativas para o efeito, defendendo que tal configura motivo de recusa oficiosa da respetiva homologação.
Porém, aprovado o plano pela assembleia de credores, não compete ao tribunal averiguar se o mesmo se mostra adequado aos interesses de determinada classe de credores, não cabendo apreciar se o sacrifício que lhes é exigido é ou não proporcional à pretendida recuperação da insolvente, o que não se integra no âmbito de aplicação do princípio da igualdade dos credores da insolvência ou de qualquer norma imperativa aplicável ao conteúdo do plano de insolvência.
Alertam Luís A. Carvalho Fernandes/João Labareda (ob. cit., p. 783) «não poder deixar de se ponderar o facto de a lei propender a pôr nas mãos dos credores a decisão sobre o destino do processo, e, nessa medida, o tribunal deve mostrar generosidade na sindicação da bondade do por eles deliberado, na ponderação de que ninguém melhor do que os credores saberá o modo de mais adequadamente defender os seus interesses».
Não estando em causa a violação de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza, improcede a apontada argumentação apresentada pela apelante LC ASSET 2, S.A.R.L., como fundamento da peticionada recusa oficiosa da homologação do plano.
Quanto aos créditos garantidos, o plano de insolvência prevê:
- perdão total de juros vencidos, comissões, despesas e quaisquer outros encargos incluídos na dívida reclamada, assim como de 50% do capital em dívida à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do plano;
- carência de capital por 24 meses, contados a partir do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano;
- reembolso da dívida consolidada de capital, apurada com base no ponto anterior, em 180 prestações mensais, iguais e sucessivas, em relação ao crédito consolidado à data do trânsito em julgado da sentença homologatória, implicando o não pagamento de qualquer uma das prestações o incumprimento definitivo do plano e a imediata liquidação judicial da sociedade e respetivos ativos para satisfação dos créditos reclamados.
Porém, quanto ao crédito garantido de que é titular a credora A..., S.A., o plano prevê a dação do imóvel hipotecado a esta entidade, art.º Matricial Urbano Nº ...18, sito em ..., Freguesia União das Freguesias de ..., ... e ..., registado sobre o prédio urbano descrito na CRP de ... com o n.º ...50 da freguesia de ..., para pagamento integral da dívida e do aval.
Comparando esta proposta, relativa ao pagamento do crédito garantido de que é titular a credora A..., S.A., com a proposta aplicável aos demais credores titulares de créditos garantidos, dúvidas não há de que é estabelecida uma diferenciação entre o indicado crédito e os demais créditos pertencentes à mesma classe, o que impõe se averigue se constam do plano razões objetivas que justifiquem tal diferenciação.
Afirma Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 8.ª edição, 2022, Coimbra, Almedina, p. 368) que o princípio da igualdade dos credores da insolvência corresponde «à fórmula clássica que impõe que se trate de modo igual o que é igual, e de modo desigual o que é desigual». Especificando «quais são os critérios objetivos de diferenciação de tratamento dos credores da insolvência», a autora afirma (ob. cit., p. 368-369) o seguinte: «Desde logo, o critério primordial que tem sido pacificamente apontado pela doutrina ou pela jurisprudência portuguesas nesta matéria consiste na classificação legal dos créditos sobre a insolvência prevista no artigo 47.º do CIRE, que distingue e classifica estes em créditos garantidos, créditos privilegiados, créditos comuns e créditos subordinados. (…) É possível ainda fazer diferenciações entre os créditos sobre a insolvência pertencentes a uma mesma classe, desde que observem o princípio da proporcionalidade, isto é, sejam necessárias, adequadas e razoáveis, assegurando assim que um tal tratamento diferenciado delas resultante é proporcional ao interesse público na recuperação do devedor e proscrevendo aquelas diferenciações que revistam natureza arbitrária».
Quanto à proposta relativa ao pagamento do crédito de que é titular a credora A..., S.A., consignou-se no plano apresentado o seguinte: O efeito positivo desta dação será considerado nos capitais próprios da recuperanda, na conta de outras variações patrimoniais resultantes da aplicação do plano, numa prova de confiança junto dos demais credores.
Porém, a análise desta expressão não permite descortinar qualquer motivo objetivo que constitua fundamento da diferenciação operada entre este crédito garantido e os demais créditos pertencentes à mesma classe, não se vislumbrando que o plano especifique concretas razões que justifiquem tal tratamento diferenciado.
Perante tal ausência de fundamentação, verifica-se que a 1.ª instância procurou justificar a diferenciação das propostas, procedendo a uma análise comparativa dos resultados decorrentes da respetiva aplicação, conforme decorre do excerto supra transcrito. Porém, impondo o citado artigo 194.º que as diferenciações entre os credores da insolvência sejam justificadas por razões objetivas, não compete ao tribunal, na ausência da apresentação de qualquer justificação objetiva, procurar fundamentar as diferenciações entre os credores da insolvência detetadas no plano, pelo que tal fundamentação, por não constar do plano de insolvência, não pode ser considerada.
Neste sentido, entendeu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-10-2015 (relator: Júlio Gomes), proferido na revista n.º 1898/13.8TYLSB.S1 - 6.ª Secção (cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt), o seguinte: «(…) II - Não sendo absoluto, o princípio da igualdade de tratamento dos credores admite diferenciações fundadas em razões objectivas, como as especiais necessidades de financiamento do devedor na fase em que se tenta a recuperação da empresa e o interesse público nessa recuperação. III - Necessário se torna, porém, sob pena de rejeição da homologação, justificar, no próprio plano de recuperação, o diferente tratamento, com a indicação das razões objectivas para essa diferença. (…)».
No mesmo sentido, cf. o acórdão desta Relação de 22-10-2020 (relatado pela ora 1.ª Adjunta), proferido no processo n.º 775/20.0T8STB.E1 (publicado em www.dgsi.pt).
Não sendo apresentada no plano de insolvência fundamentação objetiva que justifique o tratamento diferenciado do crédito de que é titular a credora A..., S.A., cumpre concluir que a diferenciação operada, relativamente aos demais titulares de créditos garantidos, se mostra arbitrária e, como tal, violadora do princípio da igualdade dos credores da insolvência.
Perante a posição assumida pela credora XYQ LUXCO S.A.R.L., titular de créditos garantidos, que se opôs à homologação do plano e impugnou a decisão homologatória, com fundamento na violação do princípio da igualdade entre os credores da insolvência, cumpre considerar verificada a violação não negligenciável de norma aplicável ao conteúdo do plano, o que impõe a não homologação oficiosa do plano, com a consequente revogação da decisão recorrida.
Esta solução determina se considere prejudicada a apreciação da questão da não homologação do plano por verificação de situação prevista no artigo 216.º, n.º 1, al. a), do CIRE, a qual se não apreciará.»
No Acórdão Fundamento consta, no essencial, o seguinte:
«1. Do Plano de Recuperação proposto e aprovado pela maioria dos credores, junto de fl.s 623 a 730, aqui dado por reproduzido, consta que:
(…)
c) Fornecedores e Outros Credores/Créditos Comuns.
Carência de capital e juros de 36 meses, iniciando-se a contagem no último dia útil do mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença de homologação do Plano de Recuperação.
Pagamento de 50% do capital em dívida, em 180 prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia útil do mês seguinte àquele em que se verificar o término do referido período de carência.
d) Financiamentos Obtidos/Créditos Garantidos.
Os juros vencidos desde a reclamação de créditos até à data da sentença de homologação, calculados nas condições em vigor, serão capitalizados naquela data.
Os juros vincendos a partir da data da homologação serão pagos mensalmente à taxa euribor a 6 meses acrescida de um spread de 2.5%, que será actualizado para 3.5% após o término do período de carência, vencendo-se a primeira prestação no último dia útil do mês seguinte ao despacho da sentença de homologação do plano.
Carência de capital durante 24 meses iniciando-se a contagem no último dia útil do mês seguinte ao do despacho da sentença de homologação do plano.
Amortização de 50% do capital em dívida em 126 prestações mensais de capital e juros, sendo os restantes 50% de capital em dívida pagos no mês seguinte numa prestação bullet.
e) Relativamente ao Crédito da Caixa Geral de Depósitos, a devedora obriga-se ao pagamento da quantia de 157.500€, no prazo máximo de 4 meses, a contar da data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano, para amortização parcial do crédito garantido, designadamente, através da venda a terceiros da garantia hipotecária correspondente à fracção autónoma (Q), do prédio urbano descrito sob o n.º 714 da freguesia de Alvalade, comprometendo-se, neste caso, a Caixa à entrega de documento de cancelamento hipotecário.
Caso tal não venha a suceder, da entrega à Caixa do prédio urbano ora referido, mediante dação em pagamento ou transmissão a entidade a indicar, do grupo Caixa e por esta a designar, pelo preço de 157.500€, a formalizar no prazo de 60 dias a contar do termo do prazo referido em 1.
Ao pagamento do remanescente do crédito, após aplicação em capital da quantia recebida mencionada em 1., nas restantes condições previstas no “Plano de Regularização” para os créditos garantidos.
Este tratamento diferenciado ao credor CGD está devida e legalmente sustentado, em primeiro lugar por se tratar de um credor importante para a viabilização da empresa, que representa 8.28% do valor total dos créditos, e para se obter o desiderato de aprovar a presente proposta de plano de recuperação e assim, prosseguir e atingir a viabilização da devedora e em segundo lugar porque permitirá reduzir as responsabilidades da devedora.
(…)
Se o plano de revitalização da requerente não deve ser homologado, por conter violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo e ainda porque a sua aprovação é menos favorável do que resultaria sem a sua existência.
No que a esta questão respeita, alega, em súmula, a recorrente que lhe foi dado um tratamento desigual, sem qualquer justificação para tal, relativamente aos credores CGD e BCP. e ainda porque se verifica a situação prevista no artigo 216.º, n.º 1, al. a), do CIRE, porquanto extintas as garantias reais de que era titular, relativamente aos imóveis da devedora, fica numa situação menos favorável do que aquela em que estaria na ausência de qualquer plano.
(…)
No que se refere à alegada violação do princípio da igualdade, com base na, injustificada, invocada diferença de tratamento entre o ora recorrente e os credores CGD e BCP, refere o primeiro que estes credores se encontram numa situação idêntica à sua e não obstante isso, foi-lhe imposto um período de carência de 24 meses, seguida da amortização do capital em 126 prestações e o restante numa prestação “bullet” e perde duas hipotecas legais de que beneficiava sobre imóveis da devedora e, ao invés, a CGD, detentora de uma hipoteca legal sobre a supra referida fracção “Q”, será reembolsada da quantia de 157.500,00 €, no prazo de 4 meses, para amortização parcial do seu crédito através da venda a terceiros, transmissão ou dação em pagamento, do mencionado imóvel, pelo referido valor e ao BCP, prevê-se a venda das instalações fabris à sociedade investidora, pelo valor de 1.000.000,00 €, mantendo-se a sua garantia e outorgando-se posteriormente um contrato de locação financeira imobiliária entre o BCP e a sociedade investidora, o que afecta a hipoteca constituída a favor do ora recorrente.
Entendendo, este, que, assim, se mostra violado o referido princípio da igualdade entre credores, por lhe ser dado um tratamento diferente daqueles dois credores, quando se encontram, os três, numa situação semelhante e sem que se vislumbre justificação para tal.
(…)
É indubitável que, no âmbito de uma situação de insolvência ou pré-insolvência, nos termos do disposto no artigo 194.º do CIRE, se consagra o princípio da igualdade entre credores, ali se consagrando no seu n.º 1, a regra de que “O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas”, acrescentando-se no seu n.º 2 que o tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, que se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.
Por outro lado, nos termos do disposto no artigo 215.º do CIRE refere-se que “O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza…”.
Assim, impõe-se uma abordagem do que se deve entender como abrangido (e, ao invés, excluído) pelo referido princípio da igualdade entre credores, bem como o que deve entender-se por “violação não negligenciável” (e, no reverso da situação, o que se entende por violação negligenciável) dos procedimentos ou de normas substantivas aplicáveis ao plano de recuperação apresentado.
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit., a pág. 753, o n.º 1 do artigo 194.º do CIRE, traduz a necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto, estando vedado, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em circunstâncias idênticas.
Não obstante, como referido na parte final do preceito ora referido, o princípio em causa não afasta a possibilidade de diferenciações entre credores em idênticas circunstâncias, desde que justificadas por razões objectivas, apontando os autores e obra ora citados, na mesma página, como razões para fundamentar tal diferença de tratamento dos credores, a distinta classificação dos créditos e, dentro da mesma categoria de créditos o grau hierárquico que couber aos mesmos créditos, bem como as fontes do próprio crédito.
Como se refere no Acórdão deste Tribunal da Relação, de 17/03/2015, Processo 338/13.7TBOFR-A.C1, disponível no respectivo sítio do itij, como corolário do princípio da igualdade entre credores, ora em análise, “O plano deve, pois, tratar de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual. O princípio da igualdade dos credores supõe, assim, uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade e, consequentemente, a justificação para o tratamento desigual que não podem ser arbitrárias. Antes tem de se poder considerar tal justificação para o distinguo entre credores como razoável e relevante: perante o espaço de conformação do plano, o tribunal deve limitar-se a analisar se a regulação desigual da situação dos credores é manifestamente desadequada, por inexistência de fundamento razoável e relevante.”.
Efectivamente, esta possibilidade de conformação do plano de recuperação aprovado pelos credores, limita, restringe, ou pode fazê-lo, a esfera dos direitos de cada um, ou alguns, dos credores da devedora, na medida em que o plano fixa em que medida se opera a redução ou o perdão dos créditos e juros, a constituição de garantias e validade e relevância das anteriormente constituídas, nos termos do disposto nos artigos 196.º e 197.º do CIRE.
Isto porque, como se refere, entre outros, nos Acórdãos do STJ, de 10/04/2014, Processo 83/13.3TBMCD-B.P1.S1 e de 25/03/14, Processo 6148/12.1TBBRG.G1.C1, disponíveis no respectivo sítio do itij, depois da reforma operada pela Lei 16/2102, de 20/4, o CIRE tem como objectivo principal, a recuperação, a revitalização da empresa em estado de pré-insolvência, relegando para segundo plano a respectiva liquidação.
Dá-se relevância à recuperação da empresa, em detrimento do anterior objectivo primordial, que era o de, em primeira linha, obter a satisfação dos direitos dos credores, por sobreposição às possibilidades de recuperação da devedora.
(….)
Daqui resulta que os credores, melhor dito, da sua maioria, dispõem de uma ampla autonomia quanto à forma como podem recuperar os seus créditos, ponderando a possibilidade de liquidação da empresa ou a sua viabilidade/recuperação, de acordo com o plano aprovado, sem que, como é óbvio, possam violar o princípio da igualdade entre credores, consagrado no artigo 194.º do CIRE.
Princípio, este que, como já referido, não tem um carácter absoluto, uma vez que na parte final do n.º 1 do artigo 194.º do CIRE se estabelece a possibilidade de o mesmo poder ser derrogado por “razões objectivas”.
Derrogação esta que assenta em razões de proporcionalidade, princípio que, igualmente, goza de matriz constitucional, baseado em razões de adequação das medidas aos fins; necessidade ou exigibilidade das medidas e proporcionalidade em sentido estrito ou “justa medida”.
Como refere Jorge Reis Novais in “Princípios Estruturantes da República Portuguesa”, pág. 171, citado no Acórdão do STJ, em referência, “a observância ou a violação do princípio da proporcionalidade dependerão da verificação da medida em que essa relação é avaliada como justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspectiva, e dependendo da intensidade e sentido atribuídos ao controlo, da medida em que ela não é excessiva, desproporcionada, desrazoável.”.
Por último, nesta sede, de considerar que, como defende Gisela Fonseca in “Direito da Insolvência – Estudos”, Coordenação de Rui Pinto, Coimbra Editora, 2011, no texto “A Natureza do Plano de Insolvência”, o plano de insolvência tem uma natureza complexa, configurável como uma transacção, um verdadeiro contrato, que não exige, para ter eficácia, a concordância de todos os intervenientes, bastando para tal a aprovação ou consentimento de uma simples maioria deles.
Como ali se refere “A concretização do plano de insolvência permite aos credores a composição dos interesses emergentes do processo, de acordo com a sua própria vontade, revestindo-se, assim, de uma natureza negocial.”.
Esta ponderação de interesses, tendo em vista a salvaguarda do princípio da igualdade entre credores, violado este, no plano aprovado, deve conduzir a que o juiz recuse oficiosamente a aprovação do plano sempre que exista uma violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, conforme se disposto no artigo 215.º do CIRE, em que se enquadra a injustificada, desadequada, arbitrária ou injusta, violação do direito à igualdade entre credores, nos moldes em que este se encontra consagrado no artigo 194.º, n.º 1, do CIRE.
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., de pág.s 826 a 828, devem considerar-se “não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infracções que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido.
(…)
O que importa é, pois, sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente, no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta.
(…)
Apenas cabe uma nota complementar para alertar não poder deixar de se ponderar o facto de a lei propender a pôr nas mãos dos credores a decisão sobre o destino do processo, e, nessa medida, o tribunal deve mostrar generosidade na sindicação da bondade do por ele deliberado, na ponderação de que ninguém melhor do que os credores saberá o modo de mais adequadamente defender os seus próprios interesses.”.
Traçado o quadro legal e doutrinário da questão em dissídio, importa, agora, analisar o que consta do plano de recuperação aprovado a fim de averiguar se o tratamento que nele foi dado ao credor BIC, ora recorrente, é de considerar desadequado, arbitrário ou injustificado, por comparação com o que foi dado aos credores CGD e BCP.
Ou se, pelo contrário, tal diferente tratamento se encontra justificado por razões objectivas, tendo em vista uma adequada e necessária, ponderação de todos os interesses em confronto e não apenas os do recorrente.
Como acima referido, relativamente ao ora recorrente, o plano prevê uma carência de capital durante 24 meses, sendo amortizado em 126 prestações mensais de capital e juros e os restantes 50% numa prestação bullet.
Os juros vincendos serão pagos mensalmente à taxa euribor a 6 meses, acrescida de um spread de 2.5%, actualizado para 3.5% após o período de carência e os vencidos desde a reclamação de créditos até à data da sentença de homologação, calculados nas condições em vigor, serão capitalizados naquela data.
Perde as garantias (hipotecas) de que beneficiava.
Relativamente à CGD, consta que lhe será paga a quantia de 157.500 €, no prazo de 4 meses contados da data do trânsito em julgado da sentença de homologação, para amortização parcial do crédito, através da venda a terceiros da garantia hipotecária de que goza sobre a supra descrita fracção “Q” ou, se tal não acontecer, através da entrega da referida fracção.
No que respeita ao BCP, consta que a sociedade assume o pagamento de 1.000.000,00 €, mantendo-se as garantias prestadas a seu favor, designadamente a supra referida hipoteca.
Carência de capital e juros de 24 meses e pagamento dos juros vencidos, desde a reclamação de créditos até ao período de carência, calculados à taxa euribor a 6 meses, acrescidos de um spread de 1.5%, capitalizados no final daquele período.
Celebração de um contrato de locação financeira imobiliária entre o banco e a nova sociedade, nas condições supra descritas.
Consta do plano que o tratamento dado à CGD resulta do facto de a mesma deter 8,28% do valor total dos créditos e constituir o único meio de ser aprovada a proposta apresentada e, ao mesmo tempo, permitir reduzir as responsabilidades da devedora.
Por outro lado, convém não esquecer que a CGD é a beneficiária da hipoteca registada em 1.º lugar, relativamente à supra mencionada fracção “Q”, o que equivale a dizer que, em condições normais, o seu crédito seria o primeiro a ser pago pelo produto da respectiva venda – cf. artigo 686.º, n.º 1, do CC.
Por comparação com o BCP , o recorrente tem o mesmo período de carência e beneficia de uma maior taxa de juros, sendo que perde as garantias, que o BCP mantém.
Todavia, também, o BCP goza de uma hipoteca sobre o imóvel em causa, registada previamente à do recorrente, pelo que este goza de prioridade quanto à satisfação do seu crédito, nos mesmos moldes do da CGD.
Aliás, como consta dos factos provados, o recorrente beneficia de hipotecas registadas em último lugar, relativamente a cada um dos prédios, como ali descrito, o que tornaria, em condições normais, muito difícil a satisfação do seu crédito, com base nas mesmas, atentos os valores envolvidos (relativamente às demais hipotecas, anteriormente registadas).
E sempre, valendo, relativamente a todos os imóveis e, consequentemente, para todos estes credores, a existência do privilégio imobiliário especial de que gozam os inúmeros trabalhadores da devedora, nos termos do artigo 333.º do Código do Trabalho, o que dificultaria a satisfação dos respectivos créditos.
Tudo ponderado e atento os fins do PER, acima já referidos, bem como a ampla autonomia concedida aos credores (sua maioria) para a aprovação do plano de recuperação, parece-nos que as razões invocadas para o tratamento dado à CGD e BCP se mostram justificadas, dado que têm relevância para a aprovação do plano e estes credores já eram beneficiários de hipotecas sobre os bens em causa, registadas em primeiro lugar, relativamente ao ora recorrente, pelo que não lhes é atribuído com o plano aprovado, um benefício de que já não fossem titulares/beneficiários.
Por outro lado seria desproporcional que a oposição de um só credor inviabilizasse a revitalização da devedora, contrariando a aprovação do plano apresentado e que foi aceite (aprovado) por larga maioria dos votos emitidos e capital representado, relegando a empresa para uma situação de liquidação do seu património e lançando para o desemprego mais umas centenas de trabalhadores, com todas as nefastas consequências daí decorrentes, quer para a região onde a mesma se insere (e onde escasseiam as oportunidades de emprego) quer para o erário público.
Assim, entendemos, ser de dar prevalência ao interesse da larga maioria dos credores, em detrimento do interesse isolado do ora recorrente, sem esquecer, reitera-se, as nefastas consequências que o encerramento da empresa acarretaria.»
Passando a analisar a fundamentação dos acórdãos em confronto.
Comparando a fundamentação dos dois acórdãos constatamos que no Acórdão Fundamento se decidiu manter a homologação do plano de recuperação, por não existir violação do princípio da igualdade, no pressuposto que o referido princípio não afasta a possibilidade de diferenciações entre credores em idênticas circunstâncias, desde que justificadas por razões objetivas, tendo em vista uma adequada e necessária ponderação de todos os interesses em confronto.
De seguida, passou a uma análise detalhada da factualidade relevante e decidiu justificar-se a diferenciação de tratamento aos credores em confronto, considerando, que:
“(…) relativamente ao ora recorrente, o plano prevê uma carência de capital durante 24 meses, sendo amortizado em 126 prestações mensais de capital e juros e os restantes 50% numa prestação bullet.
Os juros vincendos serão pagos mensalmente à taxa euribor a 6 meses, acrescida de um spread de 2.5%, actualizado para 3.5% após o período de carência e os vencidos desde a reclamação de créditos até à data da sentença de homologação, calculados nas condições em vigor, serão capitalizados naquela data.
Perde as garantias (hipotecas) de que beneficiava.
Relativamente à CGD, consta que lhe será paga a quantia de 157.500 €, no prazo de 4 meses contados da data do trânsito em julgado da sentença de homologação, para amortização parcial do crédito, através da venda a terceiros da garantia hipotecária de que goza sobre a supra descrita fracção “Q” ou, se tal não acontecer, através da entrega da referida fracção.
No que respeita ao BCP, consta que a sociedade assume o pagamento de 1.000.000,00 €, mantendo-se as garantias prestadas a seu favor, designadamente a supra referida hipoteca.
Carência de capital e juros de 24 meses e pagamento dos juros vencidos, desde a reclamação de créditos até ao período de carência, calculados à taxa euribor a 6 meses, acrescidos de um spread de 1.5%, capitalizados no final daquele período.
Celebração de um contrato de locação financeira imobiliária entre o banco e a nova sociedade, nas condições supra descritas.
Consta do plano que o tratamento dado à CGD resulta do facto de a mesma deter 8,28% do valor total dos créditos e constituir o único meio de ser aprovada a proposta apresentada e, ao mesmo tempo, permitir reduzir as responsabilidades da devedora.
Por outro lado, convém não esquecer que a CGD é a beneficiária da hipoteca registada em 1.º lugar, relativamente à supra mencionada fracção “Q”, o que equivale a dizer que, em condições normais, o seu crédito seria o primeiro a ser pago pelo produto da respectiva venda – cf. artigo 686.º, n.º 1, do CC.
Por comparação com o BCP, o recorrente tem o mesmo período de carência e beneficia de uma maior taxa de juros, sendo que perde as garantias, que o BCP mantém.
Todavia, também, o BCP goza de uma hipoteca sobre o imóvel em causa, registada previamente à do recorrente, pelo que este goza de prioridade quanto à satisfação do seu crédito, nos mesmos moldes do da CGD.
Aliás, como consta dos factos provados, o recorrente beneficia de hipotecas registadas em último lugar, relativamente a cada um dos prédios, como ali descrito, o que tornaria, em condições normais, muito difícil a satisfação do seu crédito, com base nas mesmas, atentos os valores envolvidos (relativamente às demais hipotecas, anteriormente registadas).
E sempre, valendo, relativamente a todos os imóveis e, consequentemente, para todos estes credores, a existência do privilégio imobiliário especial de que gozam os inúmeros trabalhadores da devedora, nos termos do artigo 333.º do Código do Trabalho, o que dificultaria a satisfação dos respectivos créditos.
Tudo ponderado e atento os fins do PER, acima já referidos, bem como a ampla autonomia concedida aos credores (sua maioria) para a aprovação do plano de recuperação, parece-nos que as razões invocadas para o tratamento dado à CGD e BCP, se mostram justificadas, dado que têm relevância para a aprovação do plano e estes credores já eram beneficiários de hipotecas sobre os bens em causa, registadas em primeiro lugar, relativamente ao ora recorrente, pelo que não lhes é atribuído com o plano aprovado, um benefício de que já não fossem titulares/beneficiários.”
Ora, no Acórdão Recorrido, como se referiu no despacho reclamado e se reafirma, a não homologação do plano de insolvência, não teve o seu fundamento na análise da diferença de tratamento dos créditos.
Como consta da fundamentação supra transcrita e se concretiza nas conclusões do Acórdão Recorrido as premissas em que se baseou foram as seguintes:
- Na ausência da apresentação no plano de insolvência de qualquer razão objetiva que justifique o tratamento diferenciado de determinado credor, não compete ao tribunal suprir tal omissão, designadamente através da explicitação de eventuais fundamentos justificativos da diferenciação detetada;
- Não sendo apresentada no plano de insolvência fundamentação objetiva que justifique o tratamento diferenciado do crédito garantido de que é titular determinado credor, é de concluir que a diferenciação operada, relativamente aos demais titulares de créditos garantidos, se mostra arbitrária e, como tal, violadora do princípio da igualdade dos credores da insolvência, o que configura violação não negligenciável de norma aplicável ao conteúdo do plano e impõe a não homologação oficiosa do mesmo.
Por outro lado, relativamente à interpretação do artigo 194º n.º 1 do CIRE há coincidência entre os dois acórdãos, ambos entendem que o princípio da igualdade dos credores da insolvência admite que o plano de insolvência/recuperação estabeleça diferenciações, desde que justificadas por razões objetivas.
Assim sendo, no plano da interpretação do artigo 194º do CIRE, não há contradição entre os dois acórdãos em confronto.
As diferenças de fundamentação entre os dois acórdãos não se coloca no mesmo nível de argumentação jurídica.
O Acórdão Recorrido decidiu que o plano de insolvência não apresentava qualquer fundamentação objetiva que justifique o tratamento diferenciado do crédito garantido de que era titular um determinado credor, ou seja, apenas, por razões formais, decidiu que tinha sido violado o princípio da igualdade.
Por outro lado, o Acórdão Fundamento não se pronunciou sobre qual o nível de fundamentação necessário que devia constar do plano para justificar a diferenciação, incidiu sobre a questão de fundo, saber se havia ou não justificação para o tratamento diferenciado, com base na factualidade julgada provada.
Ora, apenas se está perante oposição/contradição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito, quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade da situação de facto subjacente a essa aplicação.
A contradição deve ser frontal e não implícita, não bastando que se tenha abordado o mesmo instituto, pressupondo que a subsunção jurídica realizada em quaisquer das decisões tenha operado sobre o mesmo núcleo factual, ou factualidade como tal considerada, sem ser atribuída relevância a elementos de natureza acessória, e assim ser idêntica a ratio decidendi.
Como é entendimento uniforme do STJ, só há uma verdadeira contradição entre os acórdãos quando a questão essencial, que constituiu a razão de ser e objeto da decisão, foi resolvida de forma frontalmente oposta nas decisões em confronto.
Como decidiu o Ac. STJ de 12.01.2021, processo n.º 817/16.4T8FLG.P1.SA-A (relatora Ana Paula Boularot), in www.dgsi.pt. apenas estamos perante oposição/contradição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito, quando “a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade da situação de facto subjacente a essa aplicação.”
No mesmo sentido o acórdão do STJ de 26.05.2021, processo n.º 2543/19.3T8VNF.G1.S1, relator Henrique Araújo, com o sumário: “ A oposição jurisprudencial que releva para efeitos da aplicação do regime de recursos especial do art. 14.º, n.º 1, do CIRE é a que se manifesta em decisões divergentes que tenham por base situações de facto análogas ou equiparáveis, subsumíveis a um mesmo quadro normativo, e em que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso.”
Não há, pois, divergência nos dois acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito, ou seja, o artigo 194º do CIRE ou qualquer outra norma deste diploma não foram interpretados ou aplicados em termos opostos.
Por outro lado, toda a argumentação da Reclamante/recorrente em que sustenta a violação da lei pelo acórdão recorrido é irrelevante.
Como se referiu no despacho reclamado, no momento processual em que nos encontramos (de admissibilidade ou não dum recurso), não está em causa apurar se estão corretos os pressupostos em que se baseou o acórdão recorrido para não homologar o plano, designadamente, se o plano de insolvência em causa apresentava ou não razão objetiva que justificasse o tratamento diferenciado a um credor e na hipótese de existir essa omissão se o tribunal a podia suprir.
Essas questões apenas podiam ser objeto da revista, se fosse admitida, sendo que agora apenas está em causa, apurar se há a invocada contradição jurisprudencial, tendo em vista admitir ou não a revista.
Em conclusão entendemos, que não se verifica entre o Acórdão Fundamento e o Acórdão Recorrido a “contradição jurisprudencial” a que se refere o artigo 14.º n.º 1 do CIRE e, por isso, não ser admissível o recurso de revista.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação e confirma-se o despacho reclamado que não admitiu o recurso de revista.
Custas pela massa insolvente.
Lisboa, 01.10. 2024
Leonel Serôdio ( Relator)
Luís Correia de Mendonça ( 1º adjunto)
Amélia Alves Ribeiro ( 2ª adjunta)