I - A responsabilidade fixada pelo nº. 1 do art. 503º do Código Civil, só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
II - A culpa afasta o risco, nos termos do preceito, quando o facto do próprio lesado tiver sido a causa exclusiva do acidente.
III -A interpretação atualista do art. 505º do Código Civil permite que se acolha a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, perante as circunstâncias de cada caso concreto.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
6ª. Secção
1-Relatório:
O autor, AA intentou a presente ação declarativa de condenação com processo comum contra a ré, Companhia de Seguros Allianz Portugal SA., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia global de € 920.000,00, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.
Invocou como fundamento a responsabilidade civil objetiva ou pelo risco, decorrente do atropelamento de que foi vítima, pelo semi-reboque do veículo pesado de mercadorias de matrícula ..-..-GV, que alegou ter começado a circular, sem intervenção humana, devido a avaria mecânica no sistema de travagem, sem que lograsse travar a marcha do mesmo, do que resultaram para si, danos patrimoniais e não patrimoniais dos quais pretende ser indemnizado.
Citada, contestou a ré, invocando a exclusão da garantia do seguro obrigatório, dos danos corporais sofridos pelo autor, enquanto condutor do veículo seguro responsável pelo acidente, assim como dos danos decorrentes daqueles e subsidiariamente, invocando, ainda, a culpa do autor e defendendo-se, também, por impugnação.
Prosseguiram os autos para julgamento, vindo a ser proferida sentença a julgar a ação improcedente e a absolver a ré do pedido.
Inconformado interpôs o autor recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, onde foi proferido acórdão, com um voto de vencido e com o seguinte teor na sua parte decisória:
«Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em negar, total, provimento à apelação, em função do que se confirma a decisão recorrida nos segmentos impugnados».
Uma vez mais inconformado interpôs o autor recurso de revista, concluindo as suas alegações:
1-Salvo o devido respeito por entendimento diverso, a decisão proferida, ainda que doutamente tenha feito uma correta fixação dos factos dados como provados, aliás diga-se em abono da verdade, corretíssima, em face da prova produzida dos autos, o mesmo não se pode dizer da aplicação do direito aos factos dados como provados, isto sempre com o devido respeito por opinião contrária.
2- O Autor veio interpor a presente ação, pedindo a condenação da Ré – Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., no pagamento da quantia global de 920.000,00 €, com fundamento na responsabilidade civil objetiva ou pelo risco, em virtude de ter sido atropelado pelo veículo pesado de mercadorias, que conduziu até ao local do acidente.
3- Que aí estacionou, devidamente travado e do qual saiu, quando passado cerca de 30/40 minutos após o estacionamento, em virtude de uma avaria no sistema de travagem e sem qualquer intervenção do Autor, começou a circular desgovernado, tendo embatido num outro veículo estacionado no local e depois atropelado o Autor.
4- Ora, em face dos factos dados como provados e que são incontestáveis, outra não poderia ter sido a decisão do Tribunal “a quo” que não fosse a condenação da Ré, no pagamento da indemnização peticionada, face à gravidade das consequências do acidente para o Autor.
5- Mais ainda admitindo o concurso de responsabilidades, entre o risco próprio do veículo e a atuação do Autor, que, repita-se, atuou perante um estado de necessidade desculpante, sempre a Ré teria que ser condenada ao abrigo do artigo 505º do CC.
6- Nestes últimos anos tem vindo a surgir jurisprudência que privilegia uma interpretação progressista e atualista do artigo 505º do CC, no sentido de nele se acolher a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo.
7- A decisão recorrida, partindo da conclusão de que o lesado teve culpa na produção do acidente afastou desde logo a hipótese de este poder ser responsabilizado pelo risco.
8- A sentença recorrida ao não ter equacionado nem apreciado a responsabilidade com base no risco, mesmo a existir culpa do lesado, encontra-se em contradição com outros acórdãos do STJ, já transitados em julgado no domínio da mesma legislação – artº 503º, 505º e 570º do CC- e sobre a mesma questão fundamental de direito – a concorrência de culpa e risco em ação emergente de acidente de viação, designadamente o acórdão proferido em 28-03-2019 no processo nº 954/13.7TBPMS.C1.S1 e o acórdão proferido em 22-06-2021 no processo nº 2992/18.4T8AVR.P1.S1.
9- Tendo assim entendido a Meritíssima Juíza Desembargadora Isabel Silva, que votou vencida no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de que ora se recorre, com a seguinte declaração de voto de vencida:
10- “Considerando que a conduta do autor foi um “ato absolutamente inconsciente e irrefletido” e que os atos inconscientes não podem ser apelidados de culposos, na medida em que estes exigem consciência, ainda que negligente, considero que seria de perspetivar a decisão em termos de concorrência de risco”.
11- O comportamento do recorrente, foi fruto de um acto reflexivo e irrefletido, o lesado ao ver o camião a deslocar-se, correu de forma repentina para tentar travar a sua marcha.
12- Vem a propósito a consideração feita por Brandão Proença a este respeito quando refere que “ a posição tradicional,(de interpretação do artº 505º do CC) porventura justificada em certo momento, esquece, hoje, que, por exemplo, o peão e o ciclista são vitimas de danos, resultantes, muitas vezes de reações defeituosas ou pequenos descuidos, inerentes ao seu contacto permanente e habitual com perigos da circulação, de comportamentos reflexivos ou necessitados ou de condutas sem consciência do perigo e a cuja danosidade não é alheio o próprio risco da condução, de tal modo que bem pode dizer-se que esse risco de condução compreende ainda esses outros riscos-comportamentos que estes não lhe são, em princípio estranhos.”
13- Não pode entender-se o comportamento do lesado, aqui recorrente, como outro que não seja um comportamento irrefletido, repentino, que não pesou sequer a possibilidade das consequências do seu ato.
14- E nesta medida é um comportamento sem raciocínio, sem juízo crítico, e que como refere a Meritíssima Desembargadora “atos inconscientes não podem ser apelidados de culposos, na medida em que estes exigem consciência, ainda que negligente”.
15- Ora de acordo com a interpretação atualista do preceituado no artº 505º do C.C reclama a subsunção desta situação concursal de causas de dano à norma da repartição do dano que é o artigo 570º do CC, repartição que deve ser efetuada pelo menos em igual proporção de 50% para o lesado e 50% para o risco do veículo.
16- Salvo o devido respeito, o Recorrente entende que a sentença, violou por errada interpretação e aplicação o disposto nos artºs 503º, 505º e 570º do CC.
17- A decisão proferida, acolheu a tese de que sendo o Autor o condutor do veículo, estaria excluído da garantia do seguro obrigatório.
18- Ainda que se considere que o conceito de “condutor” é um conceito amplo que abrange a pessoa que, encontrando-se a dirigir o veículo, o imobiliza para abastecer ou retirar um obstáculo da estrada – ainda assim discutível- tal amplitude não pode, de modo algum, abranger alguém que conduziu o veículo o estacionou devidamente, saiu do mesmo por mais de 30/40 minutos e sem entrar no veículo e assumir a sua direção efetiva, seja atropelado pelo mesmo.
19- Considerar que a qualidade de condutor acompanha a pessoa que dirigiu o veículo e o estacionou nas horas seguintes a tais atos, é abusivo e inadmissível à luz da legislação portuguesa e das diretivas europeias, violando os direitos e garantias das vítimas de acidentes de viação.
20- Fundamenta o Tribunal “a quo” a sua decisão com o preceituado no nº 1 do art.º 14º do DL nº 291/2007:
“Excluem-se da garantia do seguro os danos sofridos pelo condutor do veículo seguro responsável pelo acidente assim como os danos decorrentes daqueles”
21- O Autor, no momento em que é colhido pelo veículo, não tem a sua direção efetiva, não está a conduzi-lo, nem sequer está no seu interior.
22- O Autor, perante a marcha do veículo sem condutor, mais não fez, do que o que qualquer cidadão faria, como de resto foi referido por todas as testemunhas ouvidas, tentou por todos os meios ao seu alcance evitar a entrada do pesado com cerca 30 toneladas numa via de trânsito sinuosa com tráfego intenso nos dois sentidos, quer de pesados, quer de veículos ligeiros.
23- Com a sua conduta pretendeu evitar a lesão de bens ou interesses de terceiros, nomeadamente dos utilizadores da estrada em que o veículo entrou completamente desgovernado.
24- Mais ainda, admitindo o concurso de responsabilidades, entre o risco próprio do veículo e a atuação do Autor, sempre a Ré teria que ser condenada ao abrigo do artigo 505º do CC.
25- Uma vez que o pressuposto da exclusão prevista no nº 1 do artº. 14º do DL nº 291/2007, é que o condutor seja responsável pelo acidente.
Tal como decidido no Acórdão do STJ 2078/12.5TBPBL.C1.S1. da 7ª secção, de 03-28-2019:
26- “Sendo o acidente em causa enquadrado na responsabilidade objetiva, atento o disposto no artº 504º nº 1 do CC, tal aproveita ao próprio condutor do veículo interveniente”
“Assentando, pois, a responsabilidade pelo acidente numa situação de aplicação da responsabilidade objetiva, ou pelo risco, nos termos do artº 503º nº 1 do CC, não existem fundamentos para excluir da cobertura do contrato de seguro obrigatório os danos em causa na presente acção (danos do condutor) não sendo, pois, caso de aplicação do artº 14º do DL 291/2007”.
A recorrida contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.
Foram colhidos os vistos.
2- Cumpre apreciar e decidir:
As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil.
Da admissibilidade do recurso
O recurso de revista nos termos do nº. 1 do art. 671º do CPC., cabe do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1ª. instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos e tem como fundamento, nos termos do nº. 1 do art. 674º do mesmo normativo, a violação de lei substantiva, nas modalidades de erro de interpretação, de aplicação, da determinação da norma aplicável, ou a violação da lei processual, incluindo aquela de que possa resultar alguma nulidade de decisão prevista no art.º 615, ex vi art.º 666, n. º1.
Apesar de ter sido mantida pela Relação a decisão da 1ª. Instância, não poderemos admitir a verificação de dupla conforme, pois, foi lavrado voto de vencido.
Assim sendo, será o recurso de revista admissível.
As questões a dirimir consistem em aquilatar:
- Sobre o concurso de responsabilidade entre o risco do veículo e a culpa do autor.
- Da exclusão da garantia do seguro, relativamente aos danos sofridos pelo condutor do veículo.
A matéria de facto delineada nas instâncias foi a seguinte:
1- O veículo pesado de mercadorias com matrícula ..-..-GV tinha a responsabilidade civil inerente à sua circulação transferida para a Ré, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...20, válido e eficaz à data de 04/12/2017, conforme doc. 2 junto com a contestação.
2- No dia 04/12/2017, o Autor tinha estacionado o veículo “GV”, o qual trazia a si atrelado a galera com matrícula L- ...54, no parque de estacionamento do Restaurante ..., sito à E.N. ..., Concelho de ..., do lado direito da via atento o sentido M...- F... e direcionado nesse sentido.
3- Ao estacionar o veículo no referido parque de estacionamento, o Autor travou devidamente o veículo.
4- O local, atento o sentido em que o veículo se encontrava direcionado, é de acentuado declive descendente e inclinação para a esquerda, atento o sentido supra referido.
5- O Autor, ao sair do referido estabelecimento de restauração, reparou que o seu veículo estava a deslocar-se sozinho, pelo que correu em direção ao mesmo.
6- Entre o estacionamento e a saída do restaurante mediaram, pelo menos, 30 minutos, durante os quais o veículo permaneceu imóvel.
7- Durante o lapso de tempo em que o veículo ficou estacionado verificou-se uma avaria mecânica no sistema de travagem, a qual foi a causa do início da marcha do veículo.
8- O Autor subiu à cabine, agarrando-se à porta do lado do condutor, com o intuito de a tentar abrir de forma a aceder ao interior do trator, comportamento este destinado a tentar parar a circulação do veículo.
9- O “GV”, com o Autor agarrado à porta do condutor, apesar de ter embatido na lateral esquerda do veículo pesado de mercadorias com matrícula ..-IE-.., que se encontrava também ele estacionado no parque do Restaurante ..., continuou a sua marcha, fletindo à esquerda e invadindo a E.N. ..., com o Autor agarrado ao exterior da porta esquerda, em flexão para a esquerda, face à inclinação da via nesse sentido.
10- O “GV” conseguiu passar por uma curva que se desenrolava para a esquerda atento o seu sentido de marcha, aproximando-se cada vez mais da berma esquerda.
11- O Autor não largou a porta a que estava agarrado, facto que implicou que, quando o “GV” invadiu a berma esquerda, atento o seu sentido de marcha, passados que foram mais de 136 metros desde o início da sua circulação, veio a lateral esquerda do trator e consequentemente também o Autor a embater num sinal vertical existente no terreno adjacente à berma.
12- Embate que provocou a queda do Autor.
13- Os rodados do pesado, o qual só se imobilizou a 25 metros daquele ponto de embate, passaram por cima/colheram ambas as pernas do Autor.
14- Em consequência do acidente, o Autor sofreu graves lesões, que determinaram a amputação de ambas as pernas.
15- Ficou a padecer de uma IPG de 54 pontos.
16- Ficou absolutamente incapaz para a sua profissão habitual, como para qualquer outra na sua área de preparação escolar, estando incapaz para toda e qualquer profissão.
17- Além da amputação das duas pernas, o Autor sofreu outras lesões, na medida em que ficou com um dano estético permanente fixável no grau 5/7 e com uma repercussão permanente na Atividade Sexual fixável no grau 3/7.
18- Está a ser acompanhado pelos serviços clínicos da Ré ao abrigo de apólice de acidentes de trabalho que a entidade patronal do Autor celebrou com a aqui Ré.
19- No âmbito do processo de trabalho que corre termos pelo Juízo de Trabalho de ..., Proc. 3654/18.8..., ainda não foi determinada a pensão final a que o Autor terá direito, dado ainda não se ter verificado a cura clínica.
20- A aqui Ré, enquanto seguradora da entidade patronal do Autor na área de acidentes de trabalho, tem suportado todas as despesas a que, naquela vertente, está obrigada nomeadamente tratamentos, despesas médicas, medicamentosas, salariais, etc.
21- À data do acidente, o Autor tinha 56 anos de idade.
22- Era motorista, auferindo o salário mensal de € 726,41.
23- O Autor foi socorrido pelo INEM no local do acidente e imediatamente transferido para o H..., onde ficou internado nos cuidados intensivos.
24- Já foi submetido a 12 intervenções cirúrgicas.
25- Desde a data do acidente que o Autor esteve sempre internado, ora no H..., ora nos serviços clínicos da Ré.
26- O Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total é fixável num período total de 747 dias.
27- As lesões e sequelas causam ao Autor grande sofrimento e desgosto.
28- Até 31/12/2020, foi liquidada ao Autor, a título de pensão provisória arbitrada no Tribunal de Trabalho, a quantia de € 21.651,60 sendo que tal pensão provisória se encontra presentemente fixada em € 651,60 mensais.
Factos não provados:
1- Aquando do estacionamento, o Autor não acionou corretamente os sistemas de travagem do veículo que impediam que o mesmo não descaísse, o que causou o início da marcha deste;
2- O Autor estava ciente de que, dada a altura do camião e o facto de a porta se encontrar fechada, não lograria entrar na cabine antes do veículo atingir uma velocidade elevada, optando por ainda assim subir e ficar pendurado do lado de fora, enquanto o camião se deslocava;
3- Foi a atuação do Autor que impossibilitou que outras pessoas fossem colhidas pelo veículo, que acabou por desfazer a curva sob o lado esquerdo da estrada, face ao peso do Autor sob esse mesmo lado, e por se imobilizar alguns metros à frente, sem fazer mais vítimas;
4- O Autor terá de ser submetido a novas cirurgias e, em consequência, novos internamentos hospitalares e outros períodos de incapacidade temporária.
Vejamos:
Pretende o recorrente a condenação da ré, no pagamento da quantia global de 920.000,00 €, com fundamento em responsabilidade civil pelo risco, em virtude de ter sido atropelado pelo veículo pesado de mercadorias.
A primeira instância julgou improcedente a ação, atenta a existência de culpa do lesado.
O autor inconformado interpôs recurso de apelação, invocando que em sede de responsabilidade civil extracontratual, por factos ilícitos, é caso de concorrência de culpa do autor com o risco da circulação do veículo acidentado e que atuou em absoluto estado de necessidade desculpante.
O Tribunal da Relação do Porto entendeu que não é lícito invocar no recurso questões que não tenham sido suscitadas, nem resolvidas na decisão de que se recorre.
Donde, no confronto com a petição inicial, por um lado e, com a decisão recorrida, por outro, a questão da invocação da apontada causa de exclusão da ilicitude, do estado de necessidade desculpante, constitui, além do mais, uma questão nova – no sentido de não abordada nem decidida na decisão recorrida - estando, assim, vedado ao tribunal o seu conhecimento.
Com efeito, assiste efetivamente razão ao acórdão proferido na Relação, pelo que, não há que conhecer, ex novo, de tal questão.
Com o presente recurso de revista há que aquilatar, se através de uma interpretação progressista e atualista do art. 505º do Código Civil, se poderá acolher a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo.
Mais entende o autor, que o acórdão proferido se encontra em contradição com acórdãos do STJ sobre a matéria.
Ora, o Tribunal da Relação do Porto, bem como, já o havia decidido a 1ª. instância, determinou que o acidente dos autos foi exclusivamente imputável ao autor.
Aludiu aquele acórdão, nomeadamente, o seguinte: «O autor intentou a presente acção com base na responsabilidade pelo risco, como vimos. Tendo-se concluído ser de imputar o acidente a culpa sua, recorre agora pretendendo ver afirmada uma situação de concurso entre a cul pa e o risco.
Provado vem que,
- no dia 04/12/2017, o Autor tinha estacionado o veículo “GV”, o qual trazia a si atrelado a galera com matrícula L- ...54, no parque de estacionamento do Restaurante ..., sito à E.N. ..., Concelho de ..., do lado direito da via atento o sentido M...- F... e direcionado nesse sentido;
- ao estacionar o veículo no referido parque de estacionamento, o Autor travou devidamente o veículo;
- o local, atento o sentido em que o veículo se encontrava direcionado, é de acentuado declive descendente e inclinação para a esquerda, atento o sentido supra referido;
- o Autor, ao sair do referido estabelecimento de restauração, reparou que o seu veículo estava a deslocar-se sozinho, pelo que correu em direção ao mesmo;
- entre o estacionamento e a saída do restaurante mediaram, pelo menos, 30 minutos, durante os quais o veículo permaneceu imóvel;
- durante o lapso de tempo em que o veículo ficou estacionado verificou-se uma avaria mecânica no sistema de travagem, a qual foi a causa do início da marcha do veículo;
- o autor subiu à cabine, agarrando-se à porta do lado do condutor, com o intuito de a tentar abrir de forma a aceder ao interior do trator, comportamento este destinado a tentar parar a circulação do veículo;
- o “GV”, com o autor agarrado à porta do condutor, apesar de ter embatido na lateral esquerda do veículo pesado de mercadorias com matrícula ..-IE-.., que se encontrava também ele estacionado no parque do Restaurante ..., continuou a sua marcha, fletindo à esquerda e invadindo a E.N. ..., com o autor agarrado ao exterior da porta esquerda, em flexão para a esquerda, face à inclinação da via nesse sentido;
- o “GV” conseguiu passar por uma curva que se desenrolava para a esquerda atento o seu sentido de marcha, aproximando-se cada vez mais da berma esquerda;
- o autor não largou a porta a que estava agarrado, facto que implicou que, quando o “GV” invadiu a berma esquerda, atento o seu sentido de marcha, passados que foram mais de 136 metros desde o início da sua circulação, veio a lateral esquerda do trator e consequentemente também o autor a embater num sinal vertical existente no terreno adjacente à berma;
- embate que provocou a queda do autor;
- os rodados do pesado, o qual só se imobilizou a 25 metros daquele ponto de embate, passaram por cima/colheram ambas as pernas do autor.
São estes os factos com base nos quais há que apreciar a matéria atinente com a responsabilidade civil extra-contratual no âmbito do verificado acidente de viação.
A responsabilidade por factos ilícitos, com base na culpa, é a regra, na medida em que só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei, cfr. artigo 483.°/2.
(…)
Com efeito, como se demonstrou na decisão recorrida, os factos provados patenteiam um caso paradigmático de culpa do lesado.
E, cremos bem, que, no caso, se não verifica, desde logo, a violação ilícita de qualquer direito do autor. Isto porque, a ilicitude - que é sempre algo contrário ao Direito, traduzida em actos ou omissões, que violem disposições da lei, do interesse e ordens públicas, ou normativos destinados a proteger interesses de terceiros – aqui, reside na sua própria conduta.
Esta ilicitude emerge directamente da sua apurada conduta violadora das mais elementares e básicas regras de segurança, a que está obrigado e de que era capaz.
Ninguém duvidará que as normas que disciplinam a circulação rodoviária, designadamente as do Código da Estrada, visam prevenir, desde logo, o dano da vulneração da vida e da integridade física dos que circulam nas estradas, bem como os bens materiais inerentes.
Com efeito,
- depois de ter estacionado o veículo, que trazia a si atrelado a galera, depois de o ter, devidamente, travado, no parque de estacionamento de um restaurante, num local de acentuado declive descendente e inclinação para a esquerda,
- ao sair do restaurante, pelo menos, 30 minutos depois, reparou que o veículo estava a deslocar-se sozinho, pelo que correu na sua direcção ao mesmo,
- durante o lapso de tempo em que o veículo ficou estacionado verificou-se uma avaria mecânica no sistema de travagem, a qual foi a causa do início da marcha do veículo,
- subiu à cabine, agarrando-se à porta do lado do condutor, com o intuito de a tentar abrir de forma a aceder ao interior do tractor, comportamento este destinado a tentar parar a circulação do veículo,
- o veículo, com o autor agarrado à porta do condutor, apesar de ter embatido na lateral esquerda do veículo pesado de mercadorias com matrícula ..-IE-.., que se encontrava também ele estacionado no parque do Restaurante ..., continuou a sua marcha, flectindo à esquerda e invadindo a EN, com o autor agarrado ao exterior da porta esquerda, em flexão para a esquerda, face à inclinação da via nesse sentido,
- conseguiu passar por uma curva que se desenrolava para a esquerda atento o seu sentido de marcha, aproximando-se cada vez mais da berma esquerda,
- o autor não largou a porta a que estava agarrado, o que implicou que, quando o veículo invadiu a berma esquerda, atento o seu sentido de marcha, passados que foram mais de 136 metros desde o início da sua circulação, veio a lateral esquerda do tractor e consequentemente também o autor a embater num sinal vertical existente no terreno adjacente à berma, o que provocou a queda do autor, tendo os rodados do pesado, o qual só se imobilizou a 25 metros daquele ponto de embate, passado por cima/colheram ambas as pernas do autor.
Daqui resulta, manifesto, que os danos sofridos pelo autor devem ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto, por si, praticado.
A sua conduta é absolutamente censurável.
Os danos que sofreu com o acidente, a si próprio, se ficaram a dever.
O que o autor se predispôs a fazer foi tentar impedir a marcha do veículo, pesado com semi-reboque, em movimento, num plano com acentuada inclinação.
E, antes que tivesse acesso ao seu interior, quando estava agarrado à porta veio a cair e a ser atropelado pelo próprio veículo.
Passe a imagem, o que o autor fez, foi tentar parar o vento com as mãos. Trata-se de uma conduta violadora das mais elementares regras de cuidado e diligência, de uma conduta perfeitamente temerária e que foi, sem qualquer dúvida, causa adequada das lesões que sofreu.
Com efeito, não é conforme ao princípio de diligência, de boa prudência, às regras de segurança, impostas ao bom pai de família, a conduta de alguém que vê o veículo que conduzira até ali, a deslocar-se, sozinho e, num acto absolutamente inconsciente e irreflectido, interiorize que a ela deve tentar aceder, para evitar a marcha desgovernada e, e, agarrado à porta, com ele seja arrastado, pela estrada abaixo, até que caia e seja atropelado pelo próprio veículo.
Na verdade, não interessa a diligência que costuma ser usada. Interessa, sim, compará-la com a diligência do homem médio, do ponto de vista deontológico que é um padrão ideal, isento de defeitos de actuação tão frequentes no homem comum, neste sentido, entre outros, Oliveira Matos, in, Acidentes de Viação, 339.
Por outras palavras, é o nexo de imputação ético-jurídico que liga o facto jurídico ilícito à vontade do agente, ou seja, a actuação deficiente, censurável, reprovável, abstraindo da pessoa do destinatário do dever violado, neste sentido, Antunes Varela, in, RLJ, ano 102.º, 60.
Foi o autor que aderiu, entrou na dinâmica do que configurou como iminente acidente, de que veio a ser a principal vítima, ao sofrer as lesões que sofreu, sem que se possa atribuir aos riscos próprios do veículo, qualquer contribuição na respectiva produção, o que traduz circunstância excludente da responsabilidade objectiva da proprietária do veículo.
Não fora a sua temerária actuação e o atropelamento, seguramente, não teria ocorrido.
Com efeito, o risco inerente à circulação do veículo envolvido no acidente, não concorreu para a eclosão do acidente que vitimou o autor, em termos de causalidade adequada, na medida em que a potencialidade de perigo que envolve a sua circulação foi, completamente, estranha ao acidente.
O comportamento do lesado quebrou o nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e os danos, excluindo a responsabilidade objectiva da proprietária e, consequentemente, da ré, enquanto seguradora do veículo interveniente no sinistro.
Se estamos a falar da violação de direitos de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, no caso o que temos é que foi o próprio condutor e vítima quem agiu com culpa».
Ora, o acabado de expor é eloquente só por si.
Com efeito, não fora a conduta temerária do autor ora recorrente, jamais o mesmo teria sido alvo de qualquer acidente.
Efetivamente, não se compagina com o comportamento normal do homem médio, a representação da ideia, de se poder impedir um pesado que se começa a mover, depois de estacionado, sem qualquer condutor no seu interior.
Como alude Brandão Proença, A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, Almedina, pág. 105 «O dever de adotar a conduta adequada a prevenir o perigo, configura um ónus, pois tem em vista a autoproteção dos sujeitos, integrando-se no princípio intuitivo de autorresponsabilidade do lesado».
O recorrente com a sua atuação, originou ter sido o mesmo, o único e exclusivo causador do acidente, que lhe provocou as inerentes lesões, pois, estava ao seu alcance tê-lo evitado, bastando apenas não ter acedido por qualquer forma ao veículo.
E reiterando-se tal culpabilidade, não há que ponderar a almejada concorrência de culpas.
Como dispõe o art. 505º do Código Civil, sem prejuízo do disposto no art. 570º, a responsabilidade fixada pelo nº. 1 do art. 503º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
A culpa afasta o risco, nos termos do preceito, quando o facto do próprio lesado tiver sido a causa exclusiva do acidente.
Assiste razão ao recorrente, quando suscita a problemática em torno da orientação da interpretação progressista e atualista do art. 505º do Código Civil, levada a cabo pela jurisprudência e doutrina, mas já não lhe assiste fundamento quando pretende a sua aplicação ao caso sub judice.
Conforme escreveu Lopes do Rego, A Problemática da Concorrência da Responsabilidade Objetiva, Decorrente dos Riscos de Circulação do Veículo, com a Culpa do Lesado, Revista Julgar, nº. 46 «Na perspetiva tradicional acerca da articulação dos regimes contidos nos arts. 503º, 505º e 570º, nº.2 do CC, a imputação, em alguma medida, do acidente ao lesado – independentemente do grau e medida da culpa que caraterizava o facto cometido e mesmo da própria imputabilidade da vítima, sem qualquer margem para realizar uma valoração proporcional e adequada – sobrepunha-se automática e irremediavelmente à relevância dos riscos próprios da circulação do veículo, apagando ou precludindo, sem mais, a responsabilidade objetiva do respetivo detentor.
(…) Esta orientação jurisprudencial tradicional sofreu, porém, relevante inflexão com a prolação do Ac. do STJ de 4-10-2007 (P. 07B1710), em cujo sumário se concluiu que o texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo».
Este acórdão abandonou a tese clássica defendida por Antunes Varela, de acordo com a qual, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no mencionado art. 505º do CC, excluiria a responsabilidade objetiva do detentor do veículo, sendo a responsabilidade pelo risco automaticamente afastada pelo facto do lesado.
A partir deste momento, foi tomando forma a tese da admissibilidade do concurso da culpa do lesado com o risco do veículo.
Na doutrina, o Professor Calvão da Silva sufragou também a interpretação atualista do art. 505º do Código Civil, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 134, nºs. 3924 e 3925.
O mesmo sucedendo com o professor Sinde Monteiro, também na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 142, nº. 3977.
Na jurisprudência do STJ, nomeadamente nos Acs. de 5-6-2012, 1-6-2017, ambos in http://www.dgsi.pt., predomina o entendimento no sentido de que a interpretação do art. 505º do Código Civil, não implica uma impossibilidade, absoluta e automática de concorrência entre a culpa do lesado e os riscos do veículo causador do acidente, de modo que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a imputação de responsabilidade pelo risco.
Com efeito, há que formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as vicissitudes concretas do caso.
Como se escreveu no Ac. do STJ. de 27-2-2024, in http://www.dgsi.pt «Deve seguir-se a orientação jurisprudencial do STJ quanto à interpretação actualista do art. 505º do CC, no sentido de acolher a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo automóvel.
Porém, a admissibilidade da concorrência não é automática só porque o interveniente no acidente tenha sido um veículo, exigindo-se um juízo de adequação sobre a imputação objetiva do acidente.
Provando-se a culpa exclusiva do lesado na produção do acidente e não se verificando qualquer contribuição causalmente adequada proveniente dos riscos próprios do veículo, fica afastada a possibilidade de ponderar a concorrência entre a culpa do lesado e o risco do veículo interveniente no acidente».
Neste sentido também o Ac. do STJ. de 13-4-2021, in www.dgsi.pt , onde se diz «Verificando-se um comportamento da vítima que, na conjugação da ilicitude decorrente da violação de regras estradais e da falta da diligência objetiva exigível na circulação automóvel, merecedor de juízo de censura a título de culpa, se revele a causa exclusiva do acidente/colisão e dos danos resultantes, por isso sendo-lhe unicamente imputável a produção do acidente, fica excluída a responsabilidade objetiva, acolhida no art. 503.º, n.º 1, por aplicação do art. 505.º do CC.».
De todo o explanado resulta que as instâncias não colocaram em causa qualquer interpretação atualista, mas simplesmente, não a puderam adotar, na medida em que o circunstancialismo do caso concreto, não permitiu afastar a culpa exclusiva do recorrente, no evento ocorrido.
Com efeito, no caso em apreço, o veículo terá sido um instrumento amorfo, no processo danoso, não fora a atuação, em concreto, censurável e reprovável do recorrente.
Como alude Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª. ed., pág. 585 «Do art. 505º do Código Civil, infere-se como causa de exclusão da responsabilidade objetiva, resultar o acidente de facto do próprio lesado, culposo ou não».
Para defesa da sua posição, veio o recorrente invocar dois acórdãos do STJ., concretamente, o Ac. de 28-3-2019, referente ao Processo nº. 954713.7TBPMS.C1.S1 e o Ac. de 22-6-2021, referente ao Processo nº. 2992/18.4T8AVR.P1.S1.
Porém, sem razão.
A factualidade apurada naqueles acórdãos, determinou que a subsunção jurídica conduzisse a uma repartição de culpas na dinâmica dos acidentes, contrariamente ao que sucedeu na situação concreta.
Ora, tendo ficado demonstrado que o acidente se deveu exclusivamente à conduta do recorrente, nos termos do disposto no nº.2 do art.608º do CPC., prejudicado fica o conhecimento das demais questões.
Destarte, improcedem na totalidade as conclusões do recurso apresentado.
Sumário:
- A responsabilidade fixada pelo nº. 1 do art. 503º do Código Civil, só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
- A culpa afasta o risco, nos termos do preceito, quando o facto do próprio lesado tiver sido a causa exclusiva do acidente.
-A interpretação atualista do art. 505º do Código Civil permite que se acolha a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, perante as circunstâncias de cada caso concreto.
3- Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.
Custas a cargo do recorrente, sem prejuízo de apoio judiciário de que beneficie.
Lisboa, 1-10-2024
Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)
Ricardo Costa
Luís Correia de Mendonça