I – A figura da venda ad corpus prevista no artigo 888º do Código Civil (por contraposição à venda ad mensuram a que alude o artigo 887º) pressupõe que o preço acordado entre as partes para a transferência da titularidade sobre o bem (o qual era susceptível de contagem, pesagem ou medição) não tenha sido, por vontade dos celebrantes, fixado por unidade ou em metros quadrados, tratando-se, ao invés, de um preço global ou conjunto, que é independente desses factores de referência.
II – Ou seja, na venda ad corpus, em contraposição com a venda ad mensuram, o preço da coisa é determinado em função da totalidade ou globalidade da coisa, considerada em si própria, em corpo, não relevando, para efeito de validade do preço declarado e consensualmente fixado, eventuais discrepâncias relativas à área do prédio rústico vendido (entre o que consta da escritura e o real).
III – O que significa que o valor em concreto declarado (€ 40.000,00) para a transmissão de um prédio rústico, fruto do encontro de vontades entre os contraentes ao abrigo da sua autonomia privada, vale e, nessa medida, vincula reciprocamente os outorgantes, ainda que a medida do bem (área do terreno) não corresponda porventura à realidade.
IV – O funcionamento do mecanismo de ajustamento por redução do preço consignado no nº 2 do artigo 888º do Código Civil pressupõe, como condito sine qua non, que no contrato de compra e venda se faça menção, clara e expressa, à medida (área) do prédio rústico a vender, o que não se satisfaz com a simples referência à sua inscrição na matriz, na medida em o teor de certidões registrais e cadernetas prediais constituem meros elementos identificadores dos prédios, não servindo para a demonstração segura e fiável da área real dos prédios, bem como das suas delimitações/confrontações físicas, nenhuma relevância revestindo assim para a atribuição do direito à redução proporcional do preço.
Revista nº 427/21.4T8TVR.E1.S1
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção-Cível):
I - RELATÓRIO.
Instaurou AA acção declarativa de condenação, a seguir a forma única do processo comum, contra BB; CC e marido, DD; EE e mulher, FF; e I..., Lda.
Essencialmente alegou:
Celebrou com os 1.ºs RR, intervindo a demandada I..., Lda. na qualidade de mediadora, contrato de compra e venda titulado por escritura pública outorgada em 24 de Março de 2021, tendo por objecto o prédio rústico que identifica, tendo o preço sido fixado em € 40 000,00, que pagou.
Sucede, porém, que não obstante constar da documentação que lhe foi entregue - cópia da caderneta predial rústica e certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial - que o prédio tinha a área de 32.000 m2, motivo pelo qual ficou convencido de que era essa a área efectiva do terreno, tendo procedido, após a compra, a um levantamento topográfico, apurou-se que a área é de apenas 24 857,90 m2.
A situação descrita configura, diz, significativo erro sobre o objecto do negócio, o que lhe confere o direito à redução proporcional do preço como resulta do disposto no n.º 2 do art.º 888.º do CC, disposição legal que expressamente invocou.
Citados os RR, apresentaram contestação,
A demandada I..., Lda., apresentou defesa por excepção mediante arguição da sua ilegitimidade para a causa, uma vez que não foi parte no contrato de compra e venda nem celebrou qualquer acordo de mediação com o autor.
Em sede de impugnação alegou que o A. adquiriu o terreno que viu, sem qualquer referência à área, sendo certo, que não compete à contestante verificar a conformidade da mesma aos elementos constantes dos documentos oficiais.
Também os RR vendedores apresentaram contestação conjunta, peça na qual arguiram a excepção da ilegitimidade da ré FF, cujo regime de casamento é o da separação de bens, não tendo intervindo na escritura.
Mais impugnaram que a área do prédio fosse elemento considerado na fixação do preço, nem tão pouco essencial à decisão do autor em celebrar o contrato, tendo este adquirido a área devidamente demarcada que viu e quis adquirir, não tendo por isso direito à pedida redução do preço pago, sendo para além do mais pressuposto de aplicação do invocado art.º 888.º que no contrato seja indicada a medida da coisa vendida, o que no caso não se verifica.
Acrescentaram que se mostraram, desde o início, disponíveis para anular o negócio, o que o ora demandante recusou.
Subsidiariamente, prevenindo para o caso de procedência da acção, formularam pedido reconvencional de anulação do negócio “com base em erro próprio quanto à área do prédio que alienaram, com todas as legais consequências”.
O autor respondeu, reiterando ter confiado nos elementos que constavam dos documentos oficiais de identificação do prédio que lhe foram entregues e dos quais não tinha motivo para duvidar, sublinhando ser inusitada a diferença de área entre o que daqueles consta e a realidade, o que lhe confere o direito à redução do preço, conforme peticionado.
Teve lugar a audiência prévia e foi admitido o pedido reconvencional formulado e proferido despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as excepções dilatórias da ilegitimidade passiva das demandadas I..., Lda. e FF.
Realizou-se a audiência final e foi proferida sentença que decretou a total improcedência da acção, com a consequente absolvição de todos os RR do pedido formulado, tendo sido considerado prejudicado o conhecimento do pedido reconvencional.
Inconformado com a decisão, o A. apelou.
Foi proferido acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 7 de Março de 2024, julgando parcialmente procedente o recurso interposto pelo autor e condenando, por consequência, os RR vendedores BB; CC e marido, DD; e EE e mulher, FF, a restituírem ao autor a quantia de €8 952,62 (oito mil, novecentos e cinquenta e dois euros e sessenta e dois cêntimos), acrescida dos juros vencido desde a data da propositura da acção e vincendos até integral pagamento, computados à taxa supletiva legal para as dívidas de natureza civil, mantendo a absolvição da 2.ª Ré;
Vieram os Réus interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objeto o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora nos autos supra referenciados, o qual julgou, mal, parcialmente procedente o recurso interposto pelo Autor, assim como improcedente o pedido reconvencional apresentado pelos Réus, aqui Recorrentes.
2. O Acórdão Recorrido padece de nulidades, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, pelo disposto no artigo 674.º, n.º 1, alínea c) do CPC, uma vez que os seus fundamentos estão em evidente oposição com a decisão.
3. Não existindo qualquer alteração da matéria de facto, difícil é entrever como podem semelhantes fundamentos conduzir à decisão de direito da qual se recorre.
4. O Tribunal a quo decidiu-se pela aplicação do artigo 888.º, n.º 2 do Código Civil,com o fundamento de que a área, não tendo sido elemento essencial à tomada de decisão de comprar o prédio, foi relevante para o Autor apelante para a fixação do preço que aceitou pagar.
5. Com esta decisão, o Tribunal a quo ignorou toda a prova carreada aos autos e que demonstra de forma manifesta e indubitável, que a área nunca foi um elemento relevante para a formação da vontade de contratar do Autor, pelo valor inicialmente estabelecido.
6. Nomeadamente, a visita do Autor ao prédio rústico, na qual viu onde se encontravam os marcos que o delimitavam, sem essa visita o ter motivado a pedir um levantamento topográfico prévio à celebração do contrato, assim como a sua motivação na celebração do contrato estar diretamente relacionada com a localização do prédio rústico e a própria área do prédio rústico não constar referida na escritura do contrato de compra e venda, existindo apenas uma remissão para o registo predial.
7. Foi entendimento do Tribunal de 1ª Instância considerar relevante para efeitos de não aplicação do artigo 888.º, n.º 2 do Código Civil, o facto da indicação da área do prédio rústico não constar na escritura do contrato de compra e venda.
8. Esta orientação, na visão dos Recorrentes correta, do Tribunal de 1ª Instância, tem como base o artigo 7.º do Código Registo Predial, de acordo com o qual o Registo Predial apenas estabelece uma presunção relativa à titularidade do direito inscrito.
9. Tendo favorecido o Tribunal a quo uma posição diversa, mediante interpretação distinta das declarações negociais, não tomando em consideração os factos acima descritos.
10. Fosse a área do prédio rústico um aspeto com tanta relevância para o Autor, ora Recorrido, e do qual fazia depender o preço a pagar pelo prédio rústico, mesmo não tendo o cuidado de pedir o já referido levantamento topográfico, teria exigido a menção expressa na escritura da área do prédio rústico que adquiria.
11. A ausência de referência expressa à área do prédio rústico na escritura, assim como toda a factualidade descrita, dificilmente poderá resultar noutro entendimento que não na falta de essencialidade, para o Autor, da área para fixação do preço, ao contrário do que afirma, e, consequentemente, pela não aplicação do artigo 888.º, n.º 2 do Código Civil.
12. Admitindo, apenas por dever de patrocínio, a tese do Tribunal a quo, ao considerar aplicável in casu o referido artigo 888.º, n.º 2 do Código Civil, a aplicação que foi feita do referido artigo não pode deixar de sofrer crítica pelos aqui recorrentes.
13. O raciocínio do qual resultou o cálculo realizado pelo tribunal a quo assenta no erro, uma vez que a proporcionalidade estabelecida deve ter como base não a área do prédio rústico inicialmente considerada, mas sim a subtração entre o valor dessa área e o seu vigésimo.
14. A considerar-se a aplicação deste artigo, o cálculo a efetuar para obter o valor que os ora Recorrentes teriam que restituir – cenário em que não se concede e ora se coloca por mero dever de raciocínio – seria €7.318,55 (sete mil trezentos e dezoito euros e cinquenta e cinco cêntimos).
15. Se assim não se entender, o que só por dever de patrocínio se concede, deve considerar-se procedente o pedido reconvencional formulado pelos Réus, de anulação do contrato de compra e venda, com base no artigo 247.º e 251.º do Código Civil.
16. Não partilhou deste entendimento o Tribunal a quo, considerando que cabia aos Réus provar que o preço estipulado seria o preço mínimo pelo qual estariam dispostos a alienar o prédio rústico, independentemente da área do mesmo, concluindo, dessa forma, pelo não preenchimento do pressuposto da essencialidade, exigido pelo artigo 247.º do Código Civil.
17. Sendo certo que o conhecimento da essencialidade do valor mínimo pelos quais os Réus aceitariam transmitir a propriedade do imóvel dos presentes autos resulta da factualidade assenta e dada como provada pelas instâncias inferiores.
18. É certo que o preço mínimo que os Réus estabeleceram como sendo o valor abaixo do qual não estariam disponíveis para vender o Imóvel foi estabelecido, à semelhança do que aconteceu com o Autor, com base nos documentos do Imóvel, nomeadamente a certidão permanente e a caderneta matricial e, consequentemente, olhando à área que dali resultava e que os Réus tinham como verdadeira.
19. Não pode o racional encontrado para a solução valer apenas para uma das Partes, numa decisão que resulta injusta e desequilibrada em termos que vão muito além daquilo que é admissível num Estado de Direito democrático à luz das regras da proporcionalidade.
20. Dificilmente semelhante posição pode ser considerada como correspondente à justiça material para os ora recorrentes, que, estando inicialmente em patamar de igualdade com o Autor, ora recorrido, por também se encontrarem em erro, vêm agora a alegada situação de desequilíbrio em desfavor do comprador “corrigida” para uma em seu claro prejuízo.
21. A anulação do contrato de compra e venda que os Réus, ora recorrentes, peticionaram no pedido reconvencional visa repor o equilíbrio entre as partes, uma vez que aplicar solução distinta resultaria numa redundante violação da autonomia privada, prevista no artigo 405.º do Código Civil, tanto na vertente da liberdade de celebração, como na de liberdade estipulação.
22. Se é certo que,de acordo com o artigo891.ºdo Código Civil, a lei só ao comprador concede a possibilidade de resolução do contrato, caso o aumento de preço resultante do artigo 888.º, n.º 2 exceda o proporcional da quantidade declarada em mais de um vigésimo, a verdade é que, a justa composição do litígio não pode passar pela completa desproteção da posição do devedor na posição inversa.
23. Ainda para mais quando os Réus, ora Recorrentes, alicerçaram as suas expectativas de resolução da questão controvertida em jurisprudência pacífica deste insigne tribunal, jurisprudência essa mencionada na missiva ao Autor e desde o primeiro momento.
24. A decisão recorrida, mais do que provocar surpresa pela originalidade, causa mesmo estranheza pela disrupção em relação à jurisprudência de tribunal de instância superior, disrupção essa que atinge diretamente, além do princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, outro dos princípios basilares do Estado de Direito Democrático: a segurança jurídica, consagrada no artigo 2.º do mesmo diploma.
25. De destacar ainda que dado o facto de o pedido reconvencional ter sido apreciado pela primeira vez pelo digno tribunal a quo, o presente recurso constitui o primeiro grau para reapreciação da questão controvertida, nem se podendo considerar este insigne tribunal vinculado às alegações das partes no que toca à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nos termos do artigo 664.º do Código Processo Civil.
26. Destarte, padecendo o Acórdão em crise dos vícios já expostos, sendo a única solução compatível com estes mesmos princípios constitucionais invocados, com a mais elementar justiça material, a revogação do acórdão recorrido com a subsequente substituição por um Acórdão que, confirmando a decisão da 1ª Instância, absolva os Réus do pedido ou, caso assim não se entenda, julgue procedente o pedido reconvencional, anulando o contrato de compra e venda, nos termos dos artigos 247.º e 251.º do Código Civil e determinando a reposição na situação em que as Partes se encontravam em momento anterior com a restituição do preço ao Autor e restituição da propriedade aos Réus, aqui Recorrentes.
Contra-alegou o A. pugnado pela manutenção do acórdão recorrido.
II – FACTOS PROVADOS:
Foi dado como provado que:
1. Em 24 de Março de 2021, no Cartório Notarial de GG, em ..., entre o autor e os réus BB, CC e EE foi celebrado um contrato de compra e venda de prédio rústico.
2. Para celebração de tal negócio interveio a Ré, pessoa coletiva, na qualidade de mediadora imobiliária.
3. Da escritura referida consta que os Réus identificados em 1. venderam ao Autor, pelo preço de 17.500,00 euros, sem quaisquer ónus ou encargos, “o prédio rústico, composto por terra de cultura, vinha e pastagem, sito em ..., freguesia de ... e ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ... e setenta e oito, ainda da freguesia da .... […], inscrito na respetiva matriz sob o artigo...10, que teve origem no artigo ...34 da extinta freguesia de ..., com o valor patrimonial tributário de 2.095,33€.”
4. O autor procedeu ao pagamento da quantia de €40.000,00 aos réus vendedores para aquisição do prédio mencionado.
5. O valor de venda do prédio rústico foi acordado entre os Réus vendedores, correspondendo ao valor mínimo pelo qual estes aceitariam aliená-lo.
6. Tal prédio rústico era, até ao negócio de compra e venda celebrado entre Autor e Réus vendedores, um bem pertencente à herança aberta por óbito do cônjuge, pai e sogro dos mesmos.
7. À data, os Réus vendedores estavam convencidos que a descrição do prédio rústico, tal como registada junto da Conservatória do Registo Predial e da Autoridade Tributária, correspondia às reais características do prédio, já que nunca realizaram qualquer medição ao prédio rústico.
8. Antes da celebração do negócio o Autor foi pessoalmente ao terreno, acompanhado da comercial da mediadora imobiliária que intermediou o negócio, e percebeu os limites do prédio rústico em causa.
9. Nessa visita, o autor teve oportunidade de ver onde se encontravam e encontram colocados os marcos que delimitam as estremas do prédio rústico.
10. O autor, aquando da visita ao terreno, antes de realizar a supramencionada escritura, recebeu os documentos atinentes ao prédio que adquiriu, os quais lhe foram entregues pela Ré imobiliária que os recebera dos Réus vendedores, designadamente: cópia da descrição predial onde se menciona a área total de 32 000m2, cópia da caderneta predial rústica que menciona a área total do terreno em causa como sendo (ha) 3,20000, e uma planta de localização com mancha identificativa da área de terreno.
11. O pai da companheira e mãe dos filhos do Autor reside nas imediações do prédio rústico.
12. Foi essa proximidade o aspeto relevante na formação da sua decisão de contratar por parte do Autor.
13. Para todos os intervenientes, a informação constante dos documentos corresponderia fielmente à realidade do terreno objeto da transação.
14. Nunca foi posta em causa pelo Autor a realidade documentada.
15. O Autor nunca solicitou aos Réus vendedores que fosse feito um levantamento topográfico do prédio rústico em momento anterior à celebração do negócio.
16. O Autor nunca solicitou que fosse celebrado um contrato-promessa com base no qual o Autor, enquanto promitente comprador, pudesse requerer esse levantamento topográfico em momento anterior à celebração do contrato definitivo.
17. Após a compra do terreno, o Autor adquiriu documentos do prédio em questão, atinentes ao levantamento cadastral do local e contratou o levantamento topográfico do mesmo.
18. Constatando que o terreno em causa tem 24.837,90 m2 de área.
19. Nessa sequência o Autor interpelou cada um dos réus por escrito, conforme documentos 2 a 5 cujo teor se dá por integralmente reproduzido, pugnado pela redução do preço do prédio adquirido em 10.000,00 euros, por manter interesse no mesmo.
20. Os réus vendedores responderam através de correio postal, datado de 25 de Maio de 2021, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, referindo que não aceitam vender o prédio rústico por um valor inferior àquele que acordaram e que foi pago pelo A, mostrando-se disponíveis para formalizar a anulação do negócio com a restituição do prestado.
21. O Autor respondeu à mesma em 4 de Junho, por correio postal, conforme documento 7., cujo teor se dá por integralmente reproduzido, reiterando a posição vertida em 18.
22. Os Réus vendedores responderam mediante correio postal datado de 18 de Junho, junto como doc. 9, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, reiterando a posição referida em 19.
23. O Autor recebeu ainda resposta da Ré imobiliária, conforme documento 8 cujo teor se dá por integramente reproduzido.
24. Da avaliação mandada efetuar pelo Autor consta que o mesmo tem o valor de mercado de 25.000,00 euros.
III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.
1 – Arguição de nulidade do acórdão por contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil).
2 – Venda ad corpus e venda ad mensuram. Pressupostos e regime legal. Condicionalismo legal de que depende a atribuição do direito à redução proporcional do preço declarado nos termos do artigo 888º, nº 2, do Código Civil. Análise do caso concreto.
3 – Do pedido reconvencional. Conhecimento prejudicado.
Passemos à sua análise:
1 – Arguição de nulidade do acórdão por contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil).
Alegam os recorrentes que o acórdão recorrido padece de nulidade nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, ou seja, contradição entre os fundamentos e a decisão que com base neles foi extraída.
Para o efeito referem essencialmente que, com base no elenco dos factos provados em 1ª instância – e que não foram alterados pelo Tribunal da Relação –, não seria, de forma alguma, possível concluir não só pela aplicação do nº 2 do artigo 888º do Código Civil, como também pela não verificação do preenchimento do requisito da essencialidade e consequente improcedência do pedido reconvencional.
Apreciando:
Afigura-se-nos manifesto que o acórdão recorrido não enferma da nulidade que lhe foi concretamente imputada pelos recorrentes.
O artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, pressupõe a existência de uma contradição, do ponto de vista lógico, entre os fundamentos constantes do acórdão recorrido e a decisão (em termos conclusivos) que deles se extraiu, constituindo aliás uma situação de ininteligibilidade formal do próprio discurso decisório.
O mesmo é dizer que tal previsão abrange unicamente os casos em que os fundamentos apresentados na decisão judicial não comportam, por sua natureza, o indispensável nexo lógico relativamente à conclusão jurídica neles suportada, não podendo, em circunstância alguma, conduzir àquele desfecho, independentemente do erro de direito que possa ter sido eventualmente cometido (ou seja, se o juiz entende, ainda que indevidamente, por errada interpretação das disposições legais aplicáveis, que dos factos provados resulta determinada consequência jurídica não há oposição entre os fundamentos e a decisão para efeitos da alínea c) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, situação esta reservada unicamente para os casos em que o raciocínio desenvolvido na fundamentação obrigaria, por imperativo lógico, a retirar uma determinada conclusão, sendo, surpreendentemente e de forma contraditória, extraída a conclusão inversa).
Não se verifica manifestamente tal incompatibilidade lógica na situação sub judice.
As razões invocadas pelos recorrentes prendem-se, ao invés, com a sua legítima discordância quanto à apreciação do mérito do decidido, no plano substantivo, suportando e justificando por isso mesmo o presente recurso de revista, sem que se verifique qualquer vício de natureza estritamente formal na decisão ora impugnada.
(Sobre o âmbito e alcance da alínea c) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, vide, entre muitos outros:
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Setembro de 2024 (relator Aguiar Pereira), proferido no processo nº 3780/22.9T8OER.L1-A.S1., publicado in www.dgsi.pt.;
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Setembro de 2024 (relator António Magalhães), proferido no processo nº 29756/21.5T8LSB.L1.S1., publicado in www.dgsi.pt.;
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Maio de 2024 (relator Nelson Carneiro), proferido no processo nº 311/18.9T8PVZ.P1.S1., publicado in www.dgsi.pt.;
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Maio de 2024 (relator Fernando Batista), proferido no processo nº 20769/18.5T8PRT.P1.S1., publicado in www.dgsi.pt.;
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 2024 (relator Nuno Pinto de Oliveira), proferido no processo nº 83/21.0T8PDL-A.L1.S1., publicado in www.dgsi.pt.;
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Maio de 2023 (relator Sousa Pinto), proferido no processo nº 1864/21.0T8AGD.P1.S1., publicado in www.dgsi.pt.;
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Junho de 2023 (relatora Clara Sottomayor), proferido no processo nº 13006/20.4T8LSB.A.E1-B.S1., publicado in www.dgsi.pt.;
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 2024 (relator Oliveira Abreu), proferido no processo nº 420/21.7YHLSB.L1.S1., publicado in www.dgsi.pt.).
Pelo que improcede a referida arguição de nulidade do acórdão recorrido.
2 – Venda ad corpus e venda ad mensuram. Pressupostos e regime legal. Condicionalismo legal de que depende a atribuição do direito à redução proporcional do preço declarado nos termos do artigo 888º, nº 2, do Código Civil. Análise do caso concreto.
A situação em análise pode descrever-se da seguinte forma:
O A. e os RR., respectivamente na qualidade de comprador e vendedores, celebraram entre si um contrato de compra e venda de determinado prédio rústico, que o primeiro avisadamente visitou, passando a partir de então a conhecer as respectivas características e em especial as suas delimitações físicas, tendo oportunidade de ver onde se encontravam – e ainda se encontram - colocados os marcos que delimitam as estremas, o que fez em momento prévio à consumação do negócio.
Na escritura que veio a ser formalizada consta que os Réus venderam ao Autor pelo preço de 17.500,00 euros, sem quaisquer ónus ou encargos,“o prédio rústico, composto por terra de cultura, vinha e pastagem, sito em ..., freguesia de ... e ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ... e setenta e oito, ainda da freguesia da .... […], inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...10, que teve origem no artigo...34 da extinta freguesia de ..., com o valor patrimonial tributário de 2.095,33€.”
Aquando da visita ao terreno, o A. recebeu os documentos atinentes ao prédio, os quais lhe foram entregues pela Ré imobiliária, designadamente: cópia da descrição predial onde se menciona a área total de 32 000m2, cópia da caderneta predial rústica que menciona a área total do terreno em causa como sendo (ha) 3,20000, e uma planta de localização com mancha identificativa da área de terreno.
O A. procedeu ao pagamento aos RR. da quantia (por eles exigida) de € 40.000,00 para aquisição do prédio mencionado, que havia sido acordada entre as partes, correspondendo ao valor mínimo pelo qual os RR. vendedores aceitariam aliená-lo.
O pai da companheira e mãe dos filhos do Autor reside nas imediações do prédio rústico, sendo esse o aspecto relevante na formação da sua decisão de contratar, adquirindo para si o terreno.
O Autor nunca solicitou aos Réus vendedores que fosse feito um levantamento topográfico do prédio rústico em momento anterior à celebração do negócio.
O Autor nunca solicitou que fosse celebrado um contrato-promessa com base no qual o Autor, enquanto promitente comprador, pudesse requerer esse levantamento topográfico em momento anterior à celebração do contrato definitivo.
Após a compra do terreno, o Autor adquiriu documentos do prédio em questão, atinentes ao levantamento cadastral do local e contratou o levantamento topográfico do mesmo.
Constatando que o terreno em causa tem 24.837,90 m2 de área.
Nessa sequência o Autor interpelou cada um dos réus por escrito, pugnando pela redução do preço do prédio adquirido em € 10.000,00, mantendo em qualquer circunstância interesse na subsistência dos efeitos do negócio.
Os réus vendedores responderam através de correio postal, referindo que não aceitavam vender o prédio rústico por um valor inferior àquele que acordaram e que foi pago pelo A, mostrando-se disponíveis para formalizar a anulação do negócio com a restituição do prestado.
O Autor respondeu negativamente, reiterando a sua posição anterior.
Apreciemos, então, o adequado e pertinente enquadramento jurídico dos factos assentes por provados.
Está essencialmente em discussão a aplicação, ou não, ao caso do disposto nº 2 do artigo 888º do Código Civil, que permitiria ao A., enquanto comprador, obter a restituição, por redução, de parte (proporcional) do preço de aquisição do imóvel, conforme, de resto, foi concretamente decidido pelo Tribunal da Relação de Évora.
Vejamos:
A figura da venda ad corpus prevista no artigo 888º do Código Civil (por contraposição à venda ad mensuram a que alude o artigo 887º do mesmo diploma legal) pressupõe essencialmente que o preço acordado entre as partes para a transferência da titularidade sobre o bem (o qual era susceptível de contagem, pesagem ou medição), não tivesse sido, por vontade dos celebrantes, fixado por unidade ou em metros quadrados, tratando-se, ao invés, de um preço global ou conjunto, independente desses factores de referência.
(Sobre a figura da venda de coisas sujeitas e contagem, pesagem ou medição – em particular sobre o regime dos artigos 887º e 888º do Código Civil -, vide Nuno Pinto de Oliveira, in “Contrato de Compra e Venda.Sujeitos e Objecto. Efeitos Essenciais da Compra e Venda”, Volume II, Gestlegal, a páginas 328 a 345; António Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil. XI. Contratos em Especial. Compra e Venda. Doação. Sociedade. Locação”, Almedina 2019, páginas 159 a 162; XI Pedro de Albuquerque, in “Direito das Obrigações. Contratos em Especial”, Volume I, 2ª edição, Almedina 2022, a páginas 250 a 258); Luís Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações. Contratos em Especial”, Volume III, Almedina 2022, 14ª edição, a páginas 77 a 82; Raul Ventura, in “Contrato de Compra e Venda no Código Civil. Proibições de compra e de venda. Venda bens futuros. Venda de bens de existência ou de titularidade incerta. Venda de coisas sujeitas a contagem, pesagem ou medida”, publicado na Revista da Ordem dos Advogados nº 43 (1983), páginas 261 a 318).
Na situação sub judice, os vendedores fixaram como valor a partir do qual estariam dispostos a vender o seu imóvel o de € 40.000 (não aceitando aliená-lo, em circunstância alguma, por montante inferior); o A., motivado pelo facto existir um familiar seu que era titular de um terreno próximo, anuiu voluntariamente à posição negocial dos RR. e aceitou comprar aquele prédio rústico – que conhecia pessoalmente – pelo exacto valor que lhe foi concretamente exigido.
O que significa que o valor declarado para a venda (€ 40.000,00), fruto do encontro de vontades entre os contraentes, vale e, nessa medida, vincula reciprocamente os outorgantes, ainda que a medida do bem (área do terreno) não correspondesse porventura à realidade (questão esta, aliás, que nenhuma das partes suscitou, não revelando na altura o menor interesse quanto ao apuramento da concreta dimensão do terreno).
Nestas circunstâncias, e seguindo a regra estipulada na mencionada disposição legal, se a quantidade, o peso ou a medida da coisa forem diversos daqueles que efectivamente lhe correspondem, o preço a considerar (sendo por isso o devido) é o declarado pelas partes celebrantes que, dessa forma, no domínio da sua autonomia privada (artigo 405º do Código Civil), livre e voluntariamente enformaram os contornos peculiares do seu (comum) negócio, considerando-o perfeitamente adequado à plena satisfação dos seus fins contratuais (seguindo os ditames do artigo 762º do Código Civil).
Ou seja, na venda ad corpus, em contraposição com a venda ad mensuram, o preço da coisa é determinado em função da totalidade ou globalidade da coisa, considerada em si própria, em corpo, não relevando, para o efeito de validade do preço fixado, eventuais discrepâncias relativas à medição da área do prédio rústico vendido (e em particular quanto à diferença que existisse entre o que constaria da escritura e a área real do imóvel).
Preceitua o 887º do Código Civil, que na venda de coisas determinadas, com preço fixado à razão de tanto por unidade, é devido o preço proporcional ao número, peso ou medida real das coisas vendidas, sem embargo de no contrato se declarar quantidade diferente.
Em contraponto, o artigo 888º, nº 1, do Código Civil estabelece que, se na venda de coisas determinadas o preço não for estabelecido à razão de tanto por unidade, o comprador deve o preço declarado para o negócio, mesmo que no contrato se indique o número, o peso ou a medida das coisas vendidas e a indicação não corresponda à realidade.
(Sobre os antecedentes da figura da venda ad corpus, directamente inspirado no Código Civil italiano – mais precisamente no seu artigo 1538º -, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Abril de 2005 (relator Lucas Coelho), com a referência 03B2741, publicado in www.dgsi.pt).
Contudo, - e esta é a questão jurídica essencial que se discute nos presentes autos -, o nº 2 da dita disposição legal consagra um mecanismo de ajustamento desse preço declarado (e válido), com a atribuição de um direito à sua redução ou aumento proporcionais, assente num presuntivo erro de cálculo, e que obedece à seguinte formulação:
“Se, porém, a quantidade efectiva diferir da declarada em mais de um vigésimo desta, o preço sofrerá redução ou aumento proporcional”.
(Curiosamente, o mencionado preceito do Código Civil italiano previa, de forma muito mais clara que o correspondente dispositivo da lei nacional que:
“(…) não há lugar nem à diminuição nem ao aumento do preço, a não ser que a medida real seja inferior ou superior em um vigésimo em relação àquilo que está indicado no contrato”).
Retornando ao caso concreto, o A., consumada a aquisição do terreno, veio a saber que a sua área não correspondia à constante na inscrição matricial.
Com esse fundamento pretende agora exercer o direito à redução do preço oportunamente pago, embaratecendo, a posteriori, de forma proveitosa e conveniente, o negócio, sem conceber a sua invalidade ou destruição jurídica (afastando, portanto e à partida, qualquer tipo de situação de erro-vício de que o mesmo enfermasse), e rejeitando liminar e categoricamente a proposta apresentada pelos RR que (cientes do valor mínimo de venda pressuposto para a finalização do percurso contratual - € 40.000,00) queriam então a revogação mútua e consensual do contrato de compra e venda, com a correspectiva devolução do imóvel em troca da restituição da totalidade do preço pago.
Importará, portanto, na situação sub judice, apurar se se encontram reunidas as legais condições de que depende a aplicação do ajustamento consignado no artigo 888º, nº 2, do Código Civil, sendo certo que da escritura de compra e venda do prédio rústico em apreço não consta a menção, directa e concreta, à área desse terreno.
Apreciando:
Afigura-se-nos que o funcionamento do mecanismo de ajustamento por redução ou aumento do preço devido, consignado no nº 2 do artigo 888º do Código Civil, pressupõe que no contrato que formaliza o negócio se faça menção clara e expressa à medida (área em metros quadrados) do bem em causa.
(Pronunciando-se claramente neste sentido vide Raul Ventura, in “Contrato de Compra e Venda no Código Civil. Proibições de compra e de venda. Venda bens futuros. Venda de bens de existência ou de titularidade incerta. Venda de coisas sujeitas a contagem, pesagem ou medida”, publicado na Revista da Ordem dos Advogados nº 43 (1983), páginas 261 a 318.
O insigne autor, após alertar para a necessidade de interpretação hábil do preceito, de modo a evitar “que as normas pareçam absurdas”, afirma claramente a páginas 303 e 310:
“Pressuposto da aplicação do nº 2 é haver uma quantidade declarada no contrato; havendo-a, calcula-se a diferença entre a quantidade efectiva ou real e a quantidade declarada e, verificando-se que esta diferença é superior a um vigésimo da quantia declarada, o preço será reduzido ou aumentado na mesma proporção”.
(…) apesar da sua letra, os artigos 887º e 888º não abrangem as hipóteses em que contratualmente não foi feita declaração alguma quanto à quantidade da coisa vendida.
Em tais hipóteses, é, pois, impensável uma divergência entre a quantidade declarada no contrato e a quantidade real da coisa vendida, mas é possível uma divergência entre a quantidade real e a quantidade prevista por uma ou outra das partes. Entrarão então em jogo outros preceitos legais designadamente os relativos ao erro-vício (…)”.
Perfilhando a mesma solução jurídica, vide Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Volume II, Coimbra Editora, Lda., 1986, a página 185, onde pode ler-se:
“O nº 2 atenua, porém, as consequências da aplicação do critério adoptado, atribuindo, quer ao vendedor, quer ao comprador, se a quantidade efectiva diferir da declarada em mais de um vigésimo desta, o direito a um aumento ou redução proporcional do preço. (…) Para que haja direito ao aumento ou à redução do preço é necessário, porém, que se tenha indicado ou declarado o número, peso ou medida das coisas vendidas”.
Ainda neste sentido vide Nuno Pinto de Oliveira, in “Contrato de Compra e Venda. Sujeitos e Objecto. Efeitos Essenciais da Compra e Venda”, Volume II, Gestlegal, a página 331 a 332, onde se enfatiza que:
“O texto dos artigos 887º e 888º, nº 1, do Código Civil carece de uma interpretação hábil (…) o regime do artigo 887º só deverá aplicar-se desde que no contrato se declare ou se indique quantidade diferente e o regime do artigo 888º, nº 1, só deverá aplicar-se desde que no contrato se indique o número, peso ou medida das coisas vendidas e a indicação não corresponda à realidade”.
Perfilhando esta mesma posição vide Fernando Oliveira e Sá, in “Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Contratos em especial”, UCP Editora, Abril 2023, a página 78.
Seguindo igualmente esta interpretação da norma legal em referência vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Abril de 2007 (relator Gil Roque), com a referência 07B698, publicado in www.dgsi.pt.; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Abril de 2011 (relator Salazar Casanova), proferido no processo nº 453/07.6TBAMR.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Maio de 2024 (relator António Barateiro Martins), proferido no processo nº 11/21.2T8FAR.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Julho de 2016 (relatora Fernanda Isabel Pereira), proferido no processo nº 1047/12.0TVPRT.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se salienta que: “Estes dois preceitos contemplam o regime da venda ad mensuram (artigo 887º) e o da venda ad corpus (artigo 888º), respectivamente, versando o primeiro sobre os casos em que o preço é fixado por unidade e regulando o segundo as situações em que o preço fixado é global, mas com indicação no contrato do número, peso ou medida da coisa vendida”.).
Tratando-se in casu da venda de um prédio rústico, a necessidade da indicação da área do imóvel, para efeitos da aplicação do disposto no nº 2 do artigo 888º do Código Civil, não se satisfaz com a simples referência na escritura de compra e venda à inscrição do mesmo imóvel na matriz predial.
Como é sabido, constitui entendimento aceite uniformemente, há muitos anos, pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que o teor de certidões registrais e cadernetas prediais, constituindo meros elementos identificadores dos prédios, não servem para demonstrar, de forma minimamente segura e fiável, a área real dos prédios em causa, bem como das suas delimitações/confrontações físicas.
(Vide, sobre esta matéria, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Abril de 2001 (relator Tomé de Carvalho) com a referência 01A3385, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 2002 (relator Sousa Inês) com a referência 02B940, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Novembro de 2004 (relator Lucas Coelho), processo com a referência 04B2972, sumariado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Janeiro de 2005 (relator Oliveira Barros) com a referência 04B4132, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2006 (relator Duarte Soares), com a referência 05B4095, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Fevereiro de 2008 (relator Sebastião Póvoas), com a referência 08A055, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Outubro de 2009 (relatora Prazeres Beleza), proferido no processo nº 839/04.8TBGRD.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2010 (relator Moreira Alves), proferido no processo nº 336/04.1TBVVC.C1.S1, cujo sumário se encontra publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Novembro de 2013 (relator Serra Batista), proferido no processo nº 74/07.3TCGMR.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Setembro de 2017 (relator Alexandre Reis), proferido no processo nº 120/14.4T8EPS.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Setembro de 2017 (relatora Fernanda Isabel Pereira), proferido no processo nº 809/10.7TBLMG.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Janeiro de 2018 (relator José Rainho), proferido no processo nº 668/15.3T8FAR.E1.S2, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Setembro de 2019 (relator Acácio das Neves), proferido no processo nº 272/17.1T8BGC.G1.S2, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 2022 (relator Vieira e Cunha), proferido no processo nº 1654/19.0T8VCD.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de Março de 2023 (relator Fernando Batista), proferido no processo nº 1091/20.3T8VCT.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Dezembro de 2023 (relator Luís Espírito Santo), proferido no processo nº 1929/20.5T8VRL.G1.S1, publicado in www.dgsi.pt).
O que significa que não podendo considerar-se como minimamente fidedigno – em termos da sua correspondência com a realidade – o valor da área dos prédios tal como figura na sua matriz predial, não pode logicamente entender-se que tal elemento constitui uma referência séria e aceitável no sentido de se poder concluir que na dita escritura consta devidamente indicada e discriminada a área do prédio rústico transmitido (ainda que, com alguma ingenuidade, as partes acreditassem piamente na fiel correspondência entre uma coisa e outra).
É incontornavelmente ilógico e contraditório reconhecer – como unanimemente se considera - que as inscrições matriciais não merecem qualquer fiabilidade para, através delas, se atestar, com o mínimo de segurança e seriedade, as áreas e as extremas de determinado prédio rústico e, simultaneamente, aceitar nesta situação particular que esse mesmo (duvidoso e, na maior parte das vezes, enganoso) registo afinal é para levar muito a sério e terá produzido o (solene e exigente) efeito de, por via dele, considerar-se devidamente indicada e discriminada, com toda a certeza, clareza e segurança, no âmbito da escritura de compra e venda e ainda que por via indirecta, a área do terreno transmitido.
Não faz naturalmente o menor sentido.
(Sobre a questão e neste sentido, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Setembro de 2019 (relator Acácio das Neves), proferido no processo nº 272/17.1T8BGC.G1.S2, publicado in www.dgsi.pt; aparentemente em sentido oposto (ou, pelo menos, não inteiramente convergente) vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Abril de 2021 (relator Pedro Lima Gonçalves), proferido no processo nº 1116/18.2T8.PRT.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se provou, não obstante que: “os AA. chegaram a esta compra através de um anúncio posto na Internet e tal processo de negociação foi intermediado pela E..., Lda., (artigo 2.º da petição inicial)”, não se mostrando provado que os Autores tivessem conhecimento da descrição do imóvel por outro meio que não com a entrega dos documentos atrás referidos” e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Junho de 2022 (relatora Maria João Vaz Tomé), proferido no processo nº 1116/18.2T8PRT.P1.S2, publicado in www.dgsi.pt, que concluiu no essencial pela caducidade do direito à redução do preço nos termos do artigo 888º, nº 2, do Código Civil, mas onde se afirmou que” segundo o art. 888.º, n.º 2, do CC, se a quantidade real ou efetiva diferir da declarada em mais de um vigésimo desta, o preço sofrerá redução ou aumento proporcional (na totalidade e não apenas na parte que excede um vigésimo). Tem-se em vista restaurar o equilíbrio das prestações contratuais. O remédio que a lei estabelece para essa discrepância entre a quantidade real e a quantidade declarada consiste, pois, na correção do preço estabelecido. Importa levar em linha de conta que, no caso sub judice, se indicou ou declarou a medida do prédio vendido, que é pressuposto do direito à redução do preço”, constando nesse caso da escritura apenas a inscrição do prédio na matriz, numa situação em que os compradores chegaram a esta compra através de um anúncio posto na Internet, sendo o processo de negociação intermediado por uma mediadora imobiliária – divergindo, em termos de matéria de facto, ambos os casos da situação sub judice pela circunstância dos aí compradores desconhecerem, directa e pessoalmente, a configuração física do imóvel.
De referir, ainda, sobre esta temática, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Fevereiro de 2029 (relator Emídio Santos) proferido no processo nº 595/22.8T8VRF.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se realça que “a aplicação do regime previsto no n.º 2 não é independente do erro das partes quanto à discrepância entre a quantidade efectiva e a declarada. Se, aquando da venda ambas as partes, têm conhecimento da discrepância não há lugar à aplicação do regime. Na verdade, se ambas tinham conhecimento da discrepância e se ainda assim aceitaram celebrar a venda pelo preço declarado, tal significa que aceitaram o contrato nas condições dele constantes. O mesmo se diga se o conhecimento for da parte que depois da venda pretende prevalecer-se dele. A solução é semelhante à que ocorre quando o comprador conhece o vício da coisa quando a comprou”.
Centrando outrossim a relevância da figura da venda ad corpus, bem como a aplicação do disposto no artigo 888º do Código de Processo Civil, no âmbito da figura do erro sobre os motivos determinantes da decisão de contratar vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Setembro de 2008 (relator Fonseca Ramos), com a referência 22656, publicado in www.dgsi.pt., onde se concluiu que: “I -Se o comprador de dois prédios que conhecia os adquire em conjunto por certo preço negociado com o vendedor, sem voluntariamente atender à área, nem ao preço/m2, celebrou um contrato de compra e venda “ad corpus” e não “ad mensuram”, sendo aplicável o normativo do art. 888º do Código Civil; II) – O facto de posteriormente ter verificado que os terrenos tinham área inferior à que supunha não evidencia defeito intrínseco da coisa, nem erro essencial, porquanto não foi determinante da decisão de comprar o facto dos terrenos terem uma certa área; III) – Nem todo o erro na declaração é juridicamente relevante, são requisitos de relevância do erro na declaração: a essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual o erro incidiu e a cognoscibilidade da essencialidade pelo declaratário; IV) – A essencialidade do erro, ou a essencialidade do elemento sobre que incidiu, não significa outra coisa senão que o declarante não teria emitido a declaração de vontade negocial com o sentido que veio a ser exteriorizada” ).
Logo, pelos motivos enunciados supra, não constando da escritura de compra e venda a menção, clara, segura e inequívoca, à área do prédio rústico em causa, não há lugar ao funcionamento do mecanismo de ajustamento previsto no nº 2 do artigo 888º do Código Civil.
(Sempre se dirá que, a ter lugar a aplicação desse normativo, o cálculo da redução do preço não poderia ser realizado nos termos em que o fez o acórdão recorrido, na medida em que até ao diferencial expresso na vigésima parte do preço declarado não há que atender à discrepância apontada na disposição legal, tratando-se aliás, em qualquer caso, de uma redução proporcional.
Com efeito, através da dita utilização de uma “regra de três simples”, o acórdão recorrido limitou-se a subtrair do valor do preço declarado (€ 40.000,00) o montante correspondente à área real do prédio – 24.837,90 m2 – encontrando o valor de € 31.047,38, calculando deste modo o direito à redução do preço em € 8.952,62.
O que significa que na decisão judicial não foi devidamente ponderado que, conforme refere Raul Ventura, em obra citada supra, a página 303 “a estabilidade do preço resultante do nº 1 é, pois, limitada nos termos do nº 2. A diferença superior a um vigésimo (a diferença igual a um vigésimo cabe no nº 1) da quantidade declarada importa uma redução ou aumento proporcional do preço”.
Ou, conforme certeiramente explica Nuno Pinto de Oliveira, in “Contrato de Compra e Venda.Sujeitos e Objecto. Efeitos Essenciais da Compra e Venda”, Volume II, Gestlegal, a página 337:
“O texto do artigo 888º, nº 1, do Código Civil sugere que a diferença até 5% (até um vigésimo) do preço é “uma espécie de carência imposta, supletivamente às partes pela lei - e que, em consequência, o aumento ou redução proporcional deverá cobrir, tão só, a parte da diferença que exceda 5% (que exceda um vigésimo)”.
Neste mesmo sentido, vide Pires de Lima e Antunes Varela, in obra citada supra, a página 185, onde se refere: “(…) considerando a diferença até ao vigésimo da quantidade declarada como uma espécie de carência imposta supletivamente às partes pela lei”; Fernando Oliveira e Sá, in “Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Contratos em especial”, UCP Editora, Abril 2023, a página 78, Luís Menezes Leitão, in obra citada supra, a página 79, e Pedro de Albuquerque, in obra citada supra, a página 255)
Abordando a forma correcta de cálculo desta redução do preço, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Maio de 2024 (relator António Barateiro Martins), proferido no processo nº 11/21.2T8FAR.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Junho de 2014 (relator Távora Victor), proferido no processo nº 3005/04.9TVLSB.L1.S1).
Assim sendo, valerá o preço declarado na escritura, sem qualquer tipo de redução, a qual neste caso concreto não tem, como se viu, o necessário respaldo legal, sendo inaplicável o disposto no nº 2 do artigo 888º do Código Civil.
Pelo se concede a revista, improcedendo a acção tal como foi – e bem – decidido em 1ª instância.
3 – Do pedido reconvencional. Conhecimento prejudicado.
Face ao decidido supra, encontra-se obviamente prejudicado o conhecimento do pedido reconvencional.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) em conceder a revista, revogando o acórdão recorrido e repristinando-se o decidido em 1ª instância (improcedência da acção e absolvição dos RR. do pedido).
Custas pelo recorrido.
Lisboa, 1 de Outubro de 2024.
Luís Espírito Santo (Relator)
Maria Olinda Garcia
Rosário Gonçalves
V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.