O n.º 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial, que estabelece um limite de 100.000 Euros para a remuneração variável do administrador da insolvência em caso de liquidação da massa insolvente, aplica-se ao cálculo dessa remuneração no seu todo, por interpretação conjugada do n.º 4, alínea b), n.º 6 e n.º 7 desse artigo, ou seja, incluindo tanto a parcela que resulta da aplicação do nº 6, como a majoração (prevista no n.º 7).
Recorrente: AA
1. AA foi nomeada administradora da insolvência da “L..., S.A.” (tendo esta sociedade sido declarada insolvente em 30.06.2017).
Após a apresentação do relatório a que alude o artigo 155º do CIRE, os autos prosseguiram para liquidação, procedendo-se à apreensão dos bens da insolvente.
Foram reclamados créditos e, no respetivo apenso, foi proferida sentença que considerou verificados créditos no valor de € 25.269.749,65.
Em 10.07.2023 foi proferida sentença (já transitada em julgado) que julgou validamente prestadas as contas apresentadas pela administradora da insolvência.
Da conta corrente apresentada pela administradora da insolvência consta que foram obtidas receitas no valor € 17.958.976,49, sendo as despesas de € 381.847,54.
Foi elaborada a conta nos autos, quantificando as custas no valor de € 3.261,48.
2. Em 26.03.2024, a Administradora da Insolvência apresentou proposta de remuneração variável no valor de € 246.000,00.
Por despacho de 08.04.2024, o tribunal fixou a remuneração variável devida à administradora da insolvência nos seguintes termos:
“A Sra. Administradora de Insolvência veio juntar aos autos proposta de remuneração variável. Importa, efetivamente, que seja fixado judicialmente o montante da sua remuneração variável, o que se fará por reporte ao regime decorrente do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial com as alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro.
Para efeito do cálculo em referência importa considerar que o resultado da liquidação foi de € 17.958.976,49, sendo de € 17.573.867,47, após dedução do montante correspondente às despesas e dívidas da massa elegíveis, correspondente a € 385.109,02.
O valor da remuneração variável corresponde, assim, a € 878.693,37, nos termos da al. b) do n.º 4 e do n.º 6 do aludido artigo 23.º.
Sendo este montante superior a €100.000,00 (cem mil euros), deve considerar-se reduzido a tal valor, conforme resulta do nº 10 do artigo 23º, aplicável aos processos, como é o caso dos autos, em que a remuneração variável seja calculada sobre o resultado da liquidação da massa insolvente, funcionando como limite da remuneração variável total, compreendendo a majoração, e não apenas da parcela achada com a operação de cálculo prevista na alínea b) do nº 4 e no nº 6 do mesmo artigo (cfr. neste sentido Ac. Tribunal Relação de Lisboa datado de 20-12-2022 proferido no processo 22770/19.2T8LSB-F.L1-1, in www.direitoemdia.pt).
Sendo este montante superior a € 50.000,00 poderia ainda ponderar-se a sua redução, porém, não contendo os autos elementos que autorizem a redução da remuneração encontrada, até porque o montante encontrado sofreu já redução legalmente imposta, entende-se não sujeitar a mesma a nova redução.
Notifique a todos os intervenientes, sendo a Sra. Administradora de Insolvência para proceder, oportunamente, ao pagamento da conta de custas e levantar o montante da sua remuneração variável (€123.000,00, com IVA incluído), juntando o competente recibo e, após, prestar informação sobre o montante existente na conta da massa na sequência dessas operações e juntar aos autos mapa de rateio final, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 182.º do CIRE, na sua atual redação.”
3. Inconformada, a administradora da insolvência interpôs recurso de apelação. Porém, o TRL decidiu julgar a apelação improcedente, mantendo a decisão da primeira instância.
4. A apelante interpôs recurso de revista, com base no artigo 14.º do CIRE, invocando a existência de oposição de acórdãos.
Nas suas alegações formulou as seguintes conclusões:
«1. No dia 12.07.2023, os Venerandos Juízes Desembargadores decidiram por douto Acórdão proferido em 11.07.2024 (Ref.ª 21840144) pela improcedência da Apelação, confirmando a decisão proferida pela 1.ª instância, considerando que: “(…) o limite de € 100.000 (cem mil euros) previsto no art. 23º, nº 10, do Estatuto do Administrador Judicial, na redacção introduzida pela Lei nº 9/2022, de 11/01, é aplicável à remuneração variável total e funciona como limite da mesma, pelo que, sendo o valor que resulta da operação de cálculo prevista na al. b) do nº 4 e no nº 6 desse artigo superior a esse montante, deve a remuneração ser reduzida em conformidade e já não havendo lugar à aplicação da majoração estabelecida no nº 7 do artigo em referência.”.
2. Ora, a Recorrente entende que tal douta Decisão se mantém ilegal por violação do n.º 7 do artigo 23.º do EAJ e art. 60.º, n.º 1 do CIRE,
3. O Acórdão recorrido incorre igualmente num erro de interpretação quanto à fórmula adotada para o cálculo do valor global da remuneração variável devido ao Administrador Judicial, previsto no artigo 23.º do EAJ, atribuindo-lhe um sentido diverso daquele que resulta expressamente da norma.
4. Por outro lado, o entendimento de que o limite previsto no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ se aplica à globalidade da remuneração variável é, salvo melhor entendimento, inconstitucional por violação do princípio da igualdade (formal na sua vertente negativa) previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.
5. Mas também do princípio da confiança previsto no artigo 2.º da CRP.
6. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 13/2023, de 21 de novembro uniformizou a jurisprudência no seguinte sentido: «A regra prevista no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, restringe o acesso geral de recurso ao STJ às decisões proferidas no processo principal de insolvência, nos incidentes nele processado e aos embargos à sentença de declaração de insolvência».
7. No caso dos presentes autos estamos perante um incidente processual,
8. Pelo que, para além das regras gerais de admissibilidade de recurso previstas nos artigos 627.º e seguintes do Código de Processo Civil,
9. De acordo com o conteúdo e teor do referido Aresto, é aplicável ao presente recurso a limitação prevista no n.º 1 do artigo 14.º do CIRE.
10. A decisão recorrida implica um prejuízo efetivo no valor de 100.000,00€, pelo que dúvidas não parecem existir de que se trata de uma decisão desfavorável à Apelante em valor superior a metade da alçada deste Venerando Tribunal (artigo 629.º do Código de Processo Civil).
11. O n.º 1 artigo 14.º do CIRE estabelece a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça se ficar demonstrado que o acórdão de que se pretende recorrer se encontra em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.
12. A decisão recorrida encontra-se em oposição com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, com o n.º de processo 2898/14.6...datado de 07.12.2023 no qual se entendeu fixar a remuneração variável do Administrador Judicial em 170.000,00 (cento e setenta mil) euros, a que acresce IVA à taxa legal.
13. No referido Acórdão-fundamento ponderou-se a faculdade prevista no n.º 8 do artigo 23.º do EAJ, tomando-se em consideração para efeitos de fixação da remuneração variável determinados fatores, designadamente, “(...) os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.”
14. E não se aplicou, nem se admitiu a existência de qualquer limite legal à globalidade da remuneração variável, nomeadamente, o constante no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ.
15. As decisões abordam a mesma questão fundamental de Direito - cálculo da remuneração variável do Administrador de Insolvência prevista no artigo 23º da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro (Estatuto do Administrador Judicial).
16. E foram proferidas no âmbito de um quadro normativo legal não divergente, isto é, tanto na fundamentação do Acórdão-fundamento como do Acórdão recorrido foi ponderado e aplicado o artigo 23.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro, na redação dada pela Lei n.º 9/2022, de 11/01 (Estatuto do Administrador Judicial).
17. Também não foi proferida qualquer decisão em sede de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência sobre a matéria sub judice,
18. Pelo que a presente decisão é suscetível de recurso para o Supremo Tribunal da Justiça, ao abrigo do n.º 1 do artigo 14.º do CIRE in fine.
19. Nos termos do n.º 4 do referido artigo 23.º do EAJ, em caso de liquidação da Massa Insolvente, os Administradores Judiciais têm direito a uma remuneração variável calculada nos termos da al. b) e n.º 6 do referido normativo.
20. Ao montante que resulta da operações supra referidas é aplicado o limite
legalmente previsto no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ, nomeadamente que “10 - A
remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000
(euro).”.
21. No entanto, ao valor calculado pela Recorrente foi aplicado o limite legalmente previsto no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ, nomeadamente por esta ter sido calculada nos termos da alínea b) do n.º 4.
22. Pelo que dúvidas não existem que a componente inicial da remuneração variável se encontra limitada ao valor de 100.000,00€, acrescidos de IVA à taxa legal de 23%.
23. Contudo, o n.º 7 do artigo 23.º do EAJ prevê um montante adicional a ser entregue ao Administrador Judicial e que faz parte integrante da remuneração variável: “O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.”.
24. Ou seja, para além da primeira parte da remuneração variável, o legislador prevê que seja calculada uma majoração por referência ao resultado da liquidação da massa insolvente.
25. Essa majoração é calculada por aplicação de um coeficiente de 5% sobre o resultado da liquidação
26. Da letra da norma prevista no nº 10 que faz referência expressa à alínea b) do nº 4 do mesmo artigo não só se conclui que o limite previsto no n.º 10 do referido artigo se aplica apenas à primeira parte da remuneração variável,
27. Como se apresenta como bizarro o entendimento segundo a qual é necessário socorrer-se a operações de interpretação jurídico-hermenêuticas, nomeadamente, considerando a manifesta simplicidade, clareza e exatidão da norma prevista no n.º 10 do artigo 23.º segundo a qual “A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro).”.
28. Sendo certo que o n.º 1 do artigo 9.º do Código Civil dispõe que a “(...) interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo (…)".
29. A interpretação extensiva através da reconstrução do referido pensamento supõe que, quando o legislador diz, na letra da lei, menos do que objetivamente quereria ter dito, o intérprete deve corretivamente alargar o sentido da disposição legislativa de modo a abranger outras situações que permitam garantir fidelidade ao referido pensamento.
30. Não é o que sucede no presente caso.
31. A norma é clara, objetiva e conclusiva,
32. Quer no que respeita à sua previsão ou hipótese,
33. Mas também quanto à sua consequência ou estatuição,
34. Isto é: a remuneração calculada nos termos da referida alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100.000,00€ (cem mil euros).
35. Caso se pretende atribuir um significado alternativo a uma norma cujos elementos não se colhem, incorre-se num processo ilógico de obtenção de uma nova regra a partir de uma que já se encontra apurada pela mera letra da lei,
36. O que se traduz numa interpretação ilegal.
37. Sem prejuízo do caráter discricionário e lesivo dos interesses patrimoniais que resulta uma eventual interpretação que considere que o limite previsto n.º 10 do artigo 23.º do EAJ seja aplicado à totalidade da remuneração variável (majoração incluída).
38. Pelo que, salvo o devido respeito discordamos da argumentação apresentada para justificar a necessidade de interpretação da referida norma.
39. Alias, segundo JOÃO BAPTISTA MACHADO em Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, reimpressão de 2022, págs 181 e 182]: “Convém salientar, porém, que o elemento gramatical (“letra da lei”) e o elemento lógico (“espírito da lei”) têm sempre que ser utilizados conjuntamente. Não pode haver, pois, uma modalidade de interpretação gramatical e uma outra lógica: pois é evidente que o enunciado linguístico que é a “letra da lei” é apenas um significante, portador de um sentido (“espírito”) para que nos remete. Por isso, quando se fala em “interpretação literal” quer-se apenas referir aquela modalidade de interpretação muito cingida ao texto e que extrai das palavras deste o sentido que elas mais naturalmente comportam, fazendo porventura descaso doutros elementos interpretativos.”.
40. Ora, de acordo com aquelas sábias palavras, a Recorrente entende que da norma prevista no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ resulta apenas um elemento: a remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4, ou seja, a componente inicial da remuneração variável.
41. Elemento esse que remete apenas para a componente inicial da remuneração variável, subtraída da componente de majoração,
42. Ora, a leitura da norma tal como é feita no Acórdão recorrido incorre, salvo o devido respeito, num lapso/erro fazendo uma interpretação de uma norma que per si, já transmite o seu significado, composto pelo elemento gramatical e lógico.
43. Por outro lado, não existe, na referida norma, qualquer referência ou elemento que permita concluir que o limite aí previsto é igualmente aplicável à majoração prevista no n.º 7 do artigo 23.º.
44. Como o próprio significado transmite, majorar significa premiar, ora se integrarmos tal sentido no contexto remuneratório do Administrador de Insolvência entendemos que tal significado foi criado como um incentivo à obtenção de proveitos financeiros para a Massa Insolvente.
45. Isto é, quanto maior é a receita para a Massa Insolvente, maior será a compensação financeira para o Administrador Judicial.
46. Caso o legislador pretendesse aplicar o limite previsto no n.º 10 do artigo 23.º do referido EAJ à totalidade da remuneração variável., certamente que o diria de forma expressa nos mesmos termos em que o refere n.º 8 do referido artigo.
47. No entanto, optou por não o fazer.
48. E não o fez porque, salvo melhor entendimento, não quis limitar, através de uma norma legal imperativa, o incentivo a atribuir aos Administradores por conta do exercício diligente das suas funções.
49. Nem tal significado é o que resulta da Diretiva [UE] 2019/1023 – que serviu de base legislativa para a recente reforma operada – segundo o qual um dos objetivos que países da U.E. tem de alcançar é a “(…) resolução eficiente dos processos”.
50. Sendo que também em sede de jurisprudência nacional se afirma necessidade de “(…) estimular a sua diligência no sentido de obter para os bens da massa insolvente o valor mais alto possível”. (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.10.2022 no âmbito do processo n.º 2631/20.3T8OAZ-E.P1),
51. Limitar a majoração é negar o próprio conceito de incentivo remuneratório atribuível aos Administradores Judiciais.
52. Por outro lado, é a própria lei prevê a existência de uma majoração,
53. Pelo que, salvo melhor opinião, a imposição do limite previsto no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ reconduz, na prática, à sua eliminação.
54. O que para além de ilegal, por contrariar o n.º 7 do artigo 23.º do EAJ,
55. Contraria a intenção do legislador prevista na Diretiva n.º 2019/1023,
56. Nem foi essa a intenção do legislador quando redigiu a norma da forma mais clara e linear possível.
57 Assim, salvo o devido respeito não se concebe, por constituir uma clara violação do n.º 7 do artigo 23.º do EAJ, que se suprima o pagamento de uma componente de majoração da remuneração variável mediante o recurso a uma alegada interpretação “extensiva” de uma norma cuja redação é clara e precisa.
58. Para além de se consubstanciar uma supressão ilegal e infundada, a interpretação que resulta do Decisão em crise constituiu um retrocesso do ponto de vista histórico porquanto da referida Portaria n.º 51/2005 aplicável antes da alteração legislativa operada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de janeiro, constituía a base de cálculo para a majoração da remuneração variável do administrador de insolvência, que não estabelecia qualquer limite ao seu pagamento, independentemente do valor.
59. À semelhança do regime em vigor para a determinação da remuneração dos senhores Agentes de Execução.
60. Caso se admita, por mera hipótese académica que a componente de majoração se encontra limitado pelo n.º 10 do artigo 23.º do EAJ,
61. Sempre se dirá que tal limite é aplicável a cada uma das componentes da remuneração variável individualmente considerada (componente inicial e majoração)
62. E nunca à globalidade da remuneração variável.
63. Porquanto estamos perante duas componentes de remuneração distintas e independentes entre si,
64. Sujeitas a métodos de calculo dissemelhantes,
65. Previstas em normas legais alternativas (al. b) do n.º 4 e n.º 7 do artigo 23.º do EAJ)
66. Com divergentes fatores de ponderação,
67. Pelo que, caso se considere a existência de uma lacuna da lei esta deve ser sempre integrada, nos termos do artigo 10.º do Código Civil, por recurso a analogia,
68. Aplicando-se a cada uma das componentes da remuneração variável, o limite previsto no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ.
69. O que resulta numa remuneração variável global limitada a 200.000,00€ (duzentos mil euros).
70. Nos termos do n.º 8 do artigo 23.º do EAJ “8 - Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50 000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.”.
71. Esta norma estabelece que, quando por aplicação dos n.ºs anteriores, a remuneração variável global – componente inicial (al. b) do n.º 4) e majoração (n.º 7) – exceda o montante de 50.000,00€, o juiz pode (e não, deve) determinar que a remuneração seja inferior à que resulta da aplicação dos critérios legais.
72. Constitui uma faculdade atribuída ao julgador,
73. E não um limite legalmente imposto pelo legislador.
74. A Recorrente entende que o n.º 8 do referido artigo 23.º do EAJ é a única norma aplicável à globalidade da remuneração variável e que atribui ao julgador a faculdade para tomando em consideração determinados elementos e circunstâncias concretas justificar uma diminuição do valor a entregar.
75. Circunstâncias e elementos necessariamente sujeitos ao dever de fundamentação previsto no artigo 154.º do Código de Processo Civil.
76. Assim, no entender da Recorrente, bem andou o douto Acórdão-fundamento ao decidir não ser aplicável a “norma-travão” prevista no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ à globalidade da remuneração variável.
77. Ao invés, entendeu, ao abrigo do n.º 8 do referido realizar uma ponderação considerando determinados elementos cognoscíveis no próprio processo de insolvência, como são, a título não taxativo,
78. O hiato temporal em que as funções do Administrador de Insolvência foram exercidas no próprio processo de insolvência,
79. Os conhecimentos técnicos demonstrados nos autos,
80. As responsabilidades profissionais inerentes à função de Administrador Judicial,
81. A estrutura (pessoal e material) necessária ao bom desempenho das funções para o qual é nomeado,
82. O caráter não pontual da remuneração a auferir,
83. O nível de diligência exercida,
84. E o grau de complexidade do processo;
85. E tomando em consideração todas as referidas circunstâncias entendeu fixar a remuneração variável num valor superior a 100.000,00€
86. O que diverge do entendimento segundo o qual existe um limite legal imperativo (n.º 10) para a globalidade da remuneração variável.
87. Entendimento segundo entendemos ter sido demonstrado, não é o que resulta da lei,
88. E que, no entendimento da Recorrente, faz incorrer numa interpretação inconstitucional da norma.
89. O princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa visa, no fundo, assegurar o tratamento de modo idêntico daquilo que é idêntico e de modo desigual daquilo que é diferente ou que não é idêntico.
90. Uma das suas modalidades (vertente negativa) impede que se estabeleça uma diferenciação de tratamento para a qual, à luz do objetivo visado, não existe justificação material suficiente.
91. É o que sucede com o referido artigo 23.º da Lei nº 22/2013 de 26 de fevereiro e o artigo 50.º da Portaria n.º 282/2013 de 29 de agosto que regulamenta vários aspetos das ações executivas cíveis.
92. Da referida norma conclui-se que os senhores Agentes de Execução auferem dois tipos de remuneração: a remuneração propriamente dita (e que inclui, por ex., a fase de adiantamento de honorários, etc.)
93. E uma remuneração adicional calculada segundo a tabela prevista no Anexo VIII da referida Portaria.
94. No, entanto, e pese embora a existência do princípio constitucional da proporcionalidade (na vertente da proibição do excesso),
95. Do referido artigo 50.º articulado com o Anexo VIII para o qual remete aquele artigo
não existe nenhum quantum remuneratório como limite à remuneração adicional a
receber pelos Senhores Agentes de Execução,
96. Ou seja, da remuneração adicional a receber pelos Senhores Agentes de Execução calculado em função da venda de um determinado bem ou direito penhorado, pode resultar uma remuneração adicional que não se encontra legalmente limitada.
97. Mas que exige, tão-só a existência de um nexo de causalidade entre a atividade por estes exercida e os valores recuperados no âmbito de um processo executivo.
98. Esse é o entendimento pugnado pela jurisprudência dominante nomeadamente, nos Acs. 2127/14.2TBLRA-C.C1 (Tribunal da Relação de Coimbra), 223/14.5T8ACB-C.C1 (Tribunal da Relação de Coimbra), 335/14.5TBFUN-C.L1-2 (Tribunal da Relação de Lisboa), 11062/20.4T8PRT.G1 (Tribunal da Relação de Guimarães), 2300/22.0T8PDL.L1-7 (Tribunal da Relação de Lisboa).
99. Caso se adote a interpretação segundo a qual o limite previsto o n.º 10 do artigo 23.º do EAJ se aplica à globalidade da remuneração variável a receber pelos senhores Administradores Judiciais,
100. Então sempre se dirá que tal interpretação é inconstitucional porquanto viola do princípio da igualdade (formal) na medida em que se traduz na adoção de medidas legislativas que estabelecem distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável e sem qualquer justificação objetiva e racional entre a remuneração dos senhores Administradores Judiciais e Agentes de Execução.
101. O artigo 13.º da Lei Fundamental pugna pela adoção de igual ou idêntica solução legal para situações iguais ou idênticas,
102. Bem como a adoção de soluções diversas quando as situações a contemplar sejam elas mesma dissonantes.
103. Embora as funções de Agente de Execução e de Administrador Judicial se encontrem sujeitos a regimes legais de remuneração distintos, a verdade é que consubstanciam cargos idênticos,
104. Ambos considerados profissionais da justiça,
105. Que exercem diligências com recurso a meios coercivos,
106. Tudo realizado com o objetivo de ressarcir os credores.
107. Inexistem assim quaisquer outros interesses ou objetivos mais ponderosos ou de superior importância ou grau constitucional que possam justificar tal sacrifício remuneratório para os Administradores Judiciais afetados por tal interpretação discrepante.
108. Inexistindo fundamento material ou substantivo que justifique a diferença de regime remuneratório entre os senhores Agentes de Execução e Administradores Judiciais.
109. Pelo que a interpretação segundo a qual a remuneração variável na componente referente à majoração prevista no n.º 7 do artigo 23.º do EAJ encontra-se sujeita ao limite previsto no n.º 10 do artigo 23 do mesmo diploma viola, por um lado, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º, nºs 1 e 2, da Constituição,
110. E, por outro, o princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, este consagrado no artigo 2º da Lei Fundamental.
111. Porquanto, para além de inexistência de norma expressa que remeta aquele limite.
112. Não se vislumbra a existência de qualquer justificação material razoável para o
estabelecimento de tal limite máximo,
113. Para além de constituir uma quebra de direitos verificada com a introdução daquele limite máximo, e a consequente baixa daquela componente remuneratória dos profissionais por ele abrangidos,
114. O que se traduz uma violação intolerável do princípio da proteção da confiança, por se tratar de uma alteração irrazoável, com a qual se não poderia nem se deveria contra.
Termos em que, e nos melhores de direito que V.ªs Ex.ªs entendam suprir, deve o presente Recurso ser julgado totalmente procedente, determinando e, em consequência, o douto Despacho proferido em 08.04.2024 (Ref.ª ...22) pelo Juízo de Comércio de ... – Juiz ... ser revogado e substituído por outro que fixe o montante a receber pela Recorrente a título de Remuneração Variável no montante global de 200.000,00 € acrescido de IVA à taxa legal de 23%.»
Cabe apreciar.
1. A questão prévia da admissibilidade do recurso
O acórdão recorrido versa sobre uma decisão tomada em incidente processado nos autos da insolvência, pelo que tem aplicação o regime de recurso previsto no artigo 14º do CIRE, de acordo com a jurisprudência do AUJ n.º 13/2023 (publicado no DR, 1ª Série, em 21.11.2023).
Determina o art. 14º, n.º 1 do CIRE:
«No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme.»
A recorrente alega que o acórdão recorrido, ao decidir que o limite previsto no n.º 10 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial se aplica à totalidade da remuneração variável, está em oposição com o decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n.º 2898/14.6TBBRG-W.G1, de 07.12.2023, que junta como acórdão fundamento (já transitado em julgado).
Efetivamente, essa oposição existe.
O acórdão fundamento (para além de outras questões que não relevam no âmbito dos presentes autos) fixou a remuneração variável do administrador da insolvência (nomeado pelo juiz e destituído pela assembleia de credores), em 170.000 Euros.
O acórdão fundamento (particularmente entre as suas páginas 34 a 39) fundamentou o cálculo da remuneração variável do administrador da insolvência distinguindo duas componentes: aquela a que se referem os números 4 e 6 do artigo 23º do EAJ; e aquela a que se refere o n.º 7, ou seja, a majoração. E aplicou o limite previsto no n.º 10 apenas à primeira destas parcelas, mas não ao valor da majoração. Nesse caso concreto, a soma das duas referidas parcelas ascendia a mais de 285 mil Euros. Porém, por aplicação dos critérios referidos no n.º 8 do artigo 23º, o tribunal decidiu reduzir o montante final para 170.000 Euros. É, assim, claro que, na parte em que o acórdão fundamento se pronuncia sobre a remuneração variável do administrador, e especificamente sobre o âmbito do n.º 10 do artigo 23º, faz uma interpretação deste regime distinta daquela que é feita no acórdão recorrido. Constatada esta divergência decisória, no âmbito do mesmo quadro legislativo, e numa questão sobre a qual não existe jurisprudência uniformizada, justifica-se a intervenção do STJ, nos termos previstos no artigo 14º do CIRE, pelo que se admite a revista.
2. O objeto da revista:
Sendo o objeto da revista delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (art.º 635.º, n.º 4 do CPC), é a seguinte a questão a decidir: saber se o acórdão recorrido fez errada aplicação do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial, e especificamente do n.º 10 deste artigo quando entendeu que esta norma estabelece um limite global de 100.000 Euros para a remuneração variável do administrador da insolvência.
3. Fundamentos de facto:
A factualidade relevante para o conhecimento do objeto do recurso é a que já consta do relatório supra exposto.
4. Fundamentos de direito
4.1. A questão que constitui o objeto desta revista é a de saber se o acórdão recorrido fez errada aplicação do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial, quando entendeu que o n.º 10 deste artigo estabelece um limite de 100.000 Euros para a remuneração variável do administrador da insolvência considerada no seu todo; ou se esse limite não vale para o montante correspondente à majoração da remuneração (como alega a recorrente).
Entendeu-se no acórdão recorrido que: «(…) o limite de € 100.000 (cem mil euros) previsto no art. 23º, nº 10, do Estatuto do Administrador Judicial, na redacção introduzida pela Lei nº 9/2022, de 11/01, é aplicável à remuneração variável total e funciona como limite da mesma, pelo que, sendo o valor que resulta da operação de cálculo prevista na al. b) do nº 4 e no nº 6 desse artigo superior a esse montante, deve a remuneração ser reduzida em conformidade e já não havendo lugar à aplicação da majoração estabelecida no nº 7 do artigo em referência.»
Nesta revista, o Supremo Tribunal de Justiça é chamado, pela primeira vez, a pronunciar-se especificamente sobre esta questão. E pode, desde já, afirmar-se que o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei, seguindo uma linha jurisprudencial que tem sido afirmada de modo reiterado pelos tribunais da relação, e de modo quantitativamente mais expressivo pelo TRL, como se encontra documentado pelas várias decisões referidas no acórdão recorrido (na sua página 24).
4.2. O artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial não é (em vários aspetos) uma norma isenta de dúvidas interpretativas. E também não o é no que respeita ao alcance normativo do seu n.º 10, como a existência de divergência jurisprudencial (ainda que minoritária) permite constatar1.
A vigente redação do artigo 23º do EAJ incorpora duas alterações legislativas à sua redação inicial (dada pela Lei n.º 22/2013). Alterações estas que foram operadas pelo DL n.º 52/2019 e pela Lei n.º 9/2022.
Como, não raro, acontece, as sucessivas alterações de determinada norma podem conduzir a dificuldades interpretativas, quando o seu teor normativo não é expresso por uma literalidade absolutamente clara e, consequentemente, isenta de dúvidas. Em tais hipóteses, há que atender à estruturação sistemática da norma, compreendendo-a (se for o caso) na sua evolução histórica, para se alcançar a sua dimensão teleológica.
É a seguinte a vigente redação do artigo 23º do EAJ (após a Lei n.º 9/2022):
«1 - O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de 2000 (euro).
2 - Caso o processo seja tramitado ao abrigo do disposto no artigo 39.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a remuneração referida no número anterior é reduzida para um quarto.
3 - Sem prejuízo do direito à remuneração variável, calculada nos termos dos números seguintes, no caso de o administrador judicial exercer as suas funções por menos de seis meses devido à sua substituição por outro administrador judicial, aquele apenas aufere a primeira das prestações mencionadas no n.º 2 do artigo 29.º
4 - Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
a) 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;
b) 5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.
5 - Para os efeitos do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.
6 - Para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
7 - O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.
8 - Se, por aplicação do disposto nos números anteriores relativamente a processos em que haja liquidação da massa insolvente, a remuneração exceder o montante de (euro) 50 000 por processo, o juiz pode determinar que a remuneração devida para além desse montante seja inferior à resultante da aplicação dos critérios legais, tendo em conta, designadamente, os serviços prestados, os resultados obtidos, a complexidade do processo e a diligência empregue pelo administrador judicial no exercício das suas funções.
9 - À remuneração devida ao administrador judicial comum para os devedores que se encontrem em situação de relação de domínio ou de grupo, nomeado nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 52.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplica-se o limite referido no número anterior acrescido de (euro) 10 000 por cada um dos devedores do mesmo grupo.
10 - A remuneração calculada nos termos da alínea b) do n.º 4 não pode ser superior a 100 000 (euro).
11- No caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data.»
O n.º 10 do artigo 23º foi introduzido pela Lei n.º 9/2022.
Porém, com este diploma, os critérios de composição da remuneração variável do administrador da insolvência, em caso de liquidação da massa insolvente, não sofreram alterações significativas (por confronto com as versões anteriores deste artigo)2.
Ao remeter para a alínea b) do n.º 4, é inequívoco que o legislador pretendeu que o limite previsto no n.º 10 se aplicasse aos casos em que há liquidação da massa insolvente [por contraposição à hipótese de recuperação, prevista na alínea a) do n.º 4].
Porém, a alínea b) do n.º 4 não encerra, em si mesma, um critério de cálculo definitivo, já que o critério nela previsto tem de ser completado pelo disposto no n.º 6 (que fornece a noção de resultado da liquidação). E o n.º 7 estabelece um complemento (uma majoração) do valor alcançado por aplicação do n.º 6.
Existe, assim, uma sequência articulada de disposições [n.º 4, alínea b), n.º 6 e n.º 7] que traçam o alcance normativo do que deve ser entendido por remuneração variável em caso de liquidação da massa insolvente.
Neste quadro, do ponto de vista da coerência teleológica da norma, não seria compreensível que o legislador fixasse um limite de 100.000 Euros para a primeira parcela da remuneração variável (a que é calculada nos termos do n.º 6), mas que tal limite já não valesse para a segunda parcela (a majoração prevista no n.º 7), que é um complemento da primeira. Efetivamente, a majoração (atualmente prevista no n.º 7) foi, desde a Lei n.º 22/2013 (então prevista no n.º 5 do artigo 23º), legalmente consagrada como um complemento remuneratório da parcela que correspondia a 5% do resultado da liquidação, permitindo, assim, ao administrador receber um valor mais elevado em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos3.
Assim, percebendo a relação entre as duas componentes da remuneração variável, seria incoerente e ilógico fixar um limite máximo à primeira parcela e, depois, continuar a complementar essa parcela com a majoração. E ainda mais ilógico seria entender que esta segunda parcela não teria qualquer limite.
Acresce que, como bem se refere no acórdão recorrido, faria pouco sentido que o legislador não tivesse pretendido aplicar o limite do n.º 10 à parcela da majoração quando, nos termos do n.º 8, o juiz tem o poder de reduzir (de forma justificada) toda a remuneração variável que exceda 50.000 Euros.
4.3. Numa análise intra-sistemática do regime remuneratório do administrador da insolvência, constata-se que o limite previsto no n.º 10 do art.º 23º não corresponde a uma hipótese isolada de limitação legal nesta matéria. Outras normas revelam um propósito legislativo de estabelecer alguma contenção remuneratória ao exercício das funções do administrador, como acontece no n.º 1 do artigo 23º, que estabelece o valor da remuneração fixa em 2.000 Euros. Por outro lado, confere ao juiz o poder de reduzir os valores remuneratórios que resultariam da aplicação dos critérios legais de cálculo da remuneração variável, quando seja excedido o valor de 50.000 Euros por processo, sendo esse limite elevado para 60.000 Euros por cada um dos devedores, na hipótese de insolvência de devedores que se encontrem em situação de relação de domínio ou de grupo (sendo o administrador nomeado nos termos do n.º 6 do artigo 52.º do CIRE), como previsto no n.º 9 do artigo 23º.
Acresce que também a remuneração das funções de fiduciário sofre limites.
Efetivamente, o artigo 28º do Estatuto do Administrador Judicial estabelece o seguinte:
«1 - A remuneração do fiduciário corresponde a 10 /prct. das quantias objeto de cessão, com o limite máximo de (euro) 5000 por ano.
2 - No caso de as quantias objeto de cessão serem inferiores a (euro) 3 000 por ano, a remuneração é fixada pelo juiz com o limite máximo de (euro) 300.»
Conclui-se, assim, que nas hipóteses de remuneração variável do administrador, o legislador não se limitou a fornecer um critério de cálculo aritmético, pois o resultado desse critério acaba por ser temperado pela introdução de limites, quer diretos quer de concretização judicial, que espelham uma procura de equilíbrio entre uma remuneração condigna e uma ideia de contenção na distribuição de recursos que, pela natureza insolvencial do processo, não serão, em regra, suficientes para a satisfação integral dos credores.
Pelas razões expostas, conclui-se que a tese da recorrente no sentido de o limite previsto no n.º 10 do artigo 23º só se aplicar a uma das parcelas da remuneração variável do administrador não tem fundamento legal, concluindo-se, portanto, que o acórdão recorrido fez a correta aplicação da lei.
Mas não lhe assiste razão.
Essa Diretiva, que foi transposta pela Lei n.º 9/2022, referindo-se à supervisão e remuneração do administrador, estabelece no n.º 4 do artigo 27º que:
«Os Estados-Membros asseguram que a remuneração dos profissionais se reja por regras que sejam compatíveis com o objetivo de uma resolução eficiente dos processos.»
Ora, desta disposição não resulta nenhum comando legislativo destinado a modelar diretamente as normas reguladoras da remuneração do administrado, nem daí se pode retirar a ideia de qua uma remuneração compatível com a resolução eficiente dos processos fosse uma remuneração sem limites.
Aliás, como supra referido, o limite de 50.000 Euros, previsto no n.º 8 do artigo 23º, a partir do qual o juiz pode reduzir a remuneração que resultaria da simples aplicação de critérios contabilísticos, já se encontrava legalmente consagrado desde a Lei n.º 22/2013, e continua em vigor, não sendo, portanto, o limite previsto no n.º 10 uma completa novidade legislativa.
Alega a recorrente que o entendimento segundo o qual o limite previsto no n.º 10 do artigo 23.º do EAJ se aplica à globalidade da remuneração variável é inconstitucional por violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, bem como do princípio da confiança previsto no artigo 2.º da CRP.
Dispõe o artigo 13º da CRP:
«1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»
Para concretizar a violação do princípio da igualdade, a recorrente invoca o regime remuneratório dos Agentes de Execução, que entende não conter limitação equiparável à do n.º 10 do artigo 23º do EAJ, sendo, por isso, mais favorável para esses profissionais.
Como é elementar (e até de senso comum) o que o artigo 13º da CRP proíbe não é o tratamento desigual de todo e qualquer sujeito em toda e qualquer circunstância, mas sim, essencialmente, em razão do tipo de fatores previstos no seu n.º 2. Ora, é manifesto que nenhuma dessas hipóteses se verifica no caso concreto, não se identificando também nenhuma dimensão de irrazoável desproporcionalidade da norma.
Como se entendeu no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 437/2006, de 12.07.2006:
«(…) o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda á lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (…).4»
Alude também a recorrente à existência de uma eventual violação do princípio da confiança, previsto no artigo 2.º da CRP, decorrente da consagração do limite previsto no n.º 10 do artigo 23º. Todavia, para além de não densificar de forma minimamente consistente em que medida o princípio da confiança teria sido intoleravelmente afetado, a recorrente apresenta uma pretensão incoerente, pois aceita a existência daquele limite para uma parcela da remuneração variável, só não o aceitando para o calcula da outra parcela. Seja como for, e independentemente da inconsistência argumentativa da recorrente, é manifesto que, pelas razões supra expostas quanto ao alcance e dimensão teleológica do referido n.º 10, nenhuma violação irrazoável do princípio da confiança se identifica na aplicação dessa norma. Acresce que o n. 8 de artigo 23º já permite a aplicação de um limite de 50.000 (desde a Lei n.º 22/2013), que a recorrente não põe em causa.
É, assim, manifestamente infundada e, por isso, improcedente a invocação da inconstitucionalidade da referida norma.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 01.10.2024
Maria Olinda Garcia (Relatora)
Ricardo Costa
Rosário Gonçalves
_____________________________________________
1. Também a nível do tratamento teórico da matéria a dificuldade interpretativa dessa norma é assinalada. Veja-se, por exemplo, Nuno Araújo, “A remuneração do Administrador Judicial depois da Lei n.º 9/2022, de 11.01” (Parte II – A Remuneração Variável), in Data Venia, n.º 14, 2023, página 65 e seguintes.↩︎
2. As principais alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022 nesta matéria situaram-se ao nível da densificação de fatores operativos do calculo da remuneração variável, que anteriormente se encontravam remetidos para Portaria.↩︎
3. O modo de determinação do montante da majoração tem o alcance que consta do Acórdão do STJ, de 18.04.2023, proferido no processo 3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1 e dos demais acórdãos que seguiram esse sentido jurisprudencial.↩︎
4. Publicado em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060437.html↩︎