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ARRENDAMENTO
RESTITUIÇÃO DO LOCADO
RESPONSABILIDADE DO FIADOR
Sumário
I – A partir do momento em que a restituição do locado seja exigível e tenha sido efectivamente exigida, através de interpelação, será devida pelo locatário, por cada mês de atraso na restituição, indemnização de valor equivalente ao dobro da renda mensal (art. 1045.º, n.º 2, do Cód. Civil). II – A responsabilidade do fiador perante o senhorio pela indemnização da responsabilidade do locatário correspondente ao valor da renda em dobro por cada mês de atraso na restituição do locado (art. 1045º, n.º 2, do Cód. Civil) integra-se no âmbito do art. 634.º do Cód. Civil, podendo, no entanto, ser afastada pelas partes
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
I. Relatório
EMP01..., LDA intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra EMP02..., LDA., AA, e BB, formulando os seguintes pedidos:
«I. Serem os Réus solidariamente condenados a pagar à Autora a quantia de € 272 863,56 (duzentos e setenta e dois mil oitocentos e sessenta e três euros e cinquenta e seis cêntimos), assim discriminada: a. € 240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros), referentes às prestações fixas mensais vencidas entre Novembro de 2013 e Novembro de 2015; b. € 32 863,56, referentes juros de mora vencidos, à taxa comercial, contabilizados entre o período de 10-12-2018 e a entrada da presente em 25.09.2020; II. Serem os Réus solidariamente condenados no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal para transações comerciais, até efetivo e integral pagamento».
Para tanto, e em síntese, invoca a celebração com a 1.ª ré de um contrato de locação de estabelecimento comercial, o qual se encontra actualmente resolvido, peticionando a condenação dos réus (os 2.º e 3.ª na qualidade de fiadores) no pagamento das prestações mensais vencidas entre Novembro de 2013 e Novembro de 2015, data da entrega do estabelecimento, acrescida de juros de mora vencidos, à taxa comercial, contabilizados entre o período de 10.12.2018 e a entrada em juízo da petição inicial, e ainda dos vincendos até efectivo e integral pagamento.
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Citados, os réus apresentaram contestação, invocando a prescrição do direito da autora, do caso julgado e a excepção de não cumprimento do contrato, pugnando pela procedência da contestação e consequente absolvição dos RR. do pedido, (ref.ª ...52).
Resumidamente, a 1ª ré invocou prejuízos decorrentes de defeitos do prédio/estabelecimento que alega terem impedido o gozo, fruição e exploração, na sua totalidade e sem quaisquer vícios ou condicionantes, do objecto do contrato, e que lhe provocaram prejuízos.
Deduziu, a final, reconvenção peticionando a condenação da autora no pagamento da quantia de € 605.070,00, acrescida de juros à taxa legal desde a citação e até integral efectivo pagamento, pelos prejuízos alegadamente sofridos, decorrentes do invocado incumprimento contratual da autora.
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A Autora (A.) apresentou réplica (ref.ª ...18), para resposta às exceções e impugnação da factualidade que funda o pedido reconvencional e formulou ampliação do pedido, nos termos seguintes:
“Nestes termos e nos demais de direito, como certamente V.ª Ex.ª doutamente suprirá, deve a presente ser julgada totalmente procedente, por provada, e em consequência: I. Serem os Réus solidariamente condenados a pagar à Autora a quantia de 1 661 409,87 € (um milhão, seiscentos e sessenta e um mil quatrocentos e nove euros e oitenta e sete cêntimos), assim discriminada: a. € 1.476.000,00 (um milhão e quatrocentos e setenta e seis mil euros), referentes às prestações fixas mensais vencidas entre Novembro de 2013 e Novembro de 2015; b. € 185 409,87referentes juros de mora vencidos, à taxa comercial, contabilizados entre o período de 10-12-2018 e a entrada da presente em 25.09.2020; II. Serem os Réus solidariamente condenados no pagamento de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal para transações comerciais, até efetivo e integral pagamento”.
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Os RR. opuseram-se à ampliação do pedido por não se tratar de desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo (ref.ª ...31).
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Por despacho de 14/09/2021, o Juízo Central Cível do ... do Tribunal Judicial da Comarca do ... declarou-se territorialmente incompetente, tendo os autos sido remetidos para o Juízo Central Cível e Criminal de ... (ref.ª ...54).
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Foi designada data para realização de audiência prévia, tendo-se frustrado a tentativa de conciliação (ref.ª ...40).
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Por despacho de 27/09/2022, a A. foi convidada a completar o seu articulado da petição inicial; foi igualmente dado prazo aos RR. para se pronunciarem quanto à ampliação do pedido realizada na réplica (ref.ª ...91).
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Responderam os RR., reiterando que pugnavam pela não admissibilidade da ampliação do pedido (ref.ª ...92).
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A A. apresentou petição inicial corrigida, tendo os R.R. exercido o contraditório; depois exerceu novamente o contraditório a A. face às exceções invocadas, mantendo o já inicialmente alegado; foi ainda dado aos R.R. contraditório relativamente à exceção de caso julgado apontado pela A. à reconvenção, o que estes exerceram, pugnando pela improcedência (ref.ªs. ...26, ...92 e ...10).
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Por despacho de 24/10/2023 (ref.ª ...15), foi admitida a ampliação do pedido, fixado o valor da causa e admitida a reconvenção; de seguida, foi elaborado despacho saneador, no qual, entre o mais, se declarou que a sentença proferida nos autos n.º 1559/13.8TBBRG, que correram termos no Juízo Central Cível de ... - Juiz ... -, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., constitui caso julgado quanto à materialidade relativa ao contrato celebrado entre as partes, suas vicissitudes e sua resolução.
Mais se declarou que a matéria que enforma a excepção de não cumprimento invocada igualmente não podia ser apreciada, apenas se podendo impor nos presentes autos por via da autoridade de caso julgado, e julgou procedente a excepção dilatória de caso julgado relativa à reconvenção deduzida pela 1.ª ré e, em consequência, absolveu a autora da instância reconvencional.
Por fim, julgou totalmente improcedente a excepção peremptória de prescrição invocada.
Foi concedida às partes a faculdade de apresentarem alegações, o que estas fizeram.
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Interposto recurso do despacho saneador, que subiu em separado, foi o mesmo julgado improcedente por acórdão desta Relação de 18 de janeiro de 2024.
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Posteriormente, a Mmª. Julgadora “a quo” proferiu sentença (ref.ª ...73), nos termos da qual decidiu:
Julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou «os réus, solidariamente, a pagar à autora o montante correspondente ao valor do dobro das rendas vencidas desde Novembro de 2013 a 5 de Novembro de 2015, num total de € 480.000,00 (quatrocentos e oitenta mil euros), valor acrescido de juros vencidos desde 10.12.2018, e vincendos, à taxa comercial em vigor, até efectivo e integral pagamento».
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Inconformados, os RR. interpuseram recurso da sentença (ref.ª ...52) e, a terminar as respectivas alegações, formularam as seguintes conclusões (que se transcrevem): «1.ª- A sentença de que agora se recorre condenou os ora Apelantes, solidariamente, a pagar à Apelada o montante correspondente ao valor do dobro das rendas vencidas desde Novembro de 2013 a5 de Novembro de 2015, num total de € 480.000,00 (quatrocentos e oitenta mil euros), valor acrescido de juros vencidos desde 10.12.2018, e vincendos, à taxa comercial em vigor, até efectivo e integral pagamento. 2.ª- Tal condenação assenta em dois fundamentos: por um lado, considerou a sentença recorrida que a Apelante EMP02..., Lda. deveria ter entregue o estabelecimento no dia 30 de Janeiro de 2013, dia imediatamente seguinte à data em que se verificou a cessação do contrato, pelo que a indemnização é correspondente ao dobro «das rendas vencidas desde Novembro de 2013 a 5 de Novembro de 2015, data em que procedeu à restituição do imóvel»; por outro lado, considerou que a fiança prestada pelos Apelantes pessoas singulares abrange «o pagamento de qualquer indemnização que a autora tenha a haver». 3.ª- Porém, com o devido respeito, os Apelantes não se podem conformar com tal decisão – como não se conformam – por entenderem que a mesma enferma de erros na aplicação do direito, que tentarão, nestas singelas alegações de recurso, evidenciar. 4.ª- Entendeu o tribunal a quo que o valor justo e equitativamente equilibrado da renda é de € 10.000,00, tendo em conta os prejuízos sofridos pela Apelante EMP02..., Lda. 5.ª- Considerando ainda o referido aresto que não tendo a Cessionária restituído o imóvel à aqui Apelada no dia imediatamente a seguir à recepção da comunicação de resolução do contrato, constituiu-se em mora no cumprimento da obrigação de restituição, bem como não efectuou o pagamento das rendas devidas por força do preceituado no artigo 1045.º, n.º 1, do CC.. 6.ª- A falta de entrega do estabelecimento no dia imediatamente a seguir à resolução do contrato por parte da Apelada não implica necessariamente a existência de mora na entrega do estabelecimento, para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 1045.º do Código Civil. 7.ª- Se tal assim fosse, não faria sentido a redacção do n.º 1 do referido artigo 1045.º do Código Civil, pois, se a mera não entrega do locado logo que finde o 15 contrato importa a mora do arrendatário – no caso dos autos, da cessionária – dispensava-se a previsão do pagamento da indemnização igual ao valor da renda, como o faz o n.º 1 do artigo 1045.º do Código Civil. 8.ª- Importa, pois, perceber qual o momento da constituição em mora, para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 1045,º do Código Civil, sendo que, no caso dos autos, para estarmos perante mora na restituição do locado, tem que existir uma interpelação para a sua efectiva entrega. 9.ª- A sentença recorrida não dá como provado– nem tal parece ter sido sequer alegado – que, em algum momento, a aqui Apelada exigiu a entrega do locado. 10.ª- Pelo que não existe mora da Apelante EMP02..., Lda., para efeitos do disposto no artigo 1045.º n.º 2 do Código Civil, logo, a indemnização a pagar pela não entrega do locado será a de valor igual ao da renda mensal, ou seja, € 10.000,00 (dez mil euros), por cada mês, o que totaliza o montante de € 240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros). 11.ª- Acresce que o tribunal recorrido entendeu no despacho saneador proferido, a propósito da invocada – pelos aqui Apelantes – prescrição do direito da Apelada de vir cobrar a indemnização, que não seria exigível que a Autora, aqui Apelada, diligenciasse pela cobrança das quantias devidas pelo atraso na entrega do imóvel, enquanto estivesse pendente a acção a que se alude no Ponto 1 dos Factos Provados. 12.ª- Por outras palavras, entendeu o tribunal recorrido que não é legítimo que se exigisse à aqui Apelada que viesse cobrar a indemnização pelo atraso na restituição da coisa locada enquanto aquela acção estivesse pendente, mas que já é absolutamente legítimo que se exija à Apelante EMP02..., Lda. que procedesse à entrega do locado durante a referida pendência. 13.ª- O tribunal de primeira instância entende que, relativamente a uma realidade igual, qual seja, a pendência de uma acção onde se discutia a natureza da relação negocial estabelecida entre as partes aqui envolvidas, bem assim como o montante da contrapartida a pagar pela cessionária, as partes tenham obrigações absolutamente díspares; a cessionária tem obrigação de entregado estabelecimento, mas a cedente não tem obrigação de vir cobrar a indemnização pela não restituição do referido estabelecimento, devida a partir do momento da cessação do contrato, por tal não ser razoável, não sendo despiciendo que esse Venerando Tribunal da Relação de Guimarães tenha revogado a decisão que decretou o despejo imediato, no âmbito dos já mencionados autos, que correram termos no Juízo Central Cível de ... sob o n.º 1559/13.8TBBRG. 14.ª- Dispõe o artigo 13.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 15.ª- Estamos perante a consagração máxima do princípio da Igualdade, que impõe aos poderes públicos um tratamento igual de todos os seres humanos perante a lei e uma proibição de discriminações infundadas, princípio esse que não se encontra expressamente consagrado na Constituição para o processo e lei substantiva civis, mas que não pode deixar de ser aplicado também nesses domínios, atenta a hierarquia das fontes de direito. 16.ª- Acresce ainda que, por força do disposto no artigo 12.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, o direito a um tratamento igual é extensível às pessoas colectivas, pelo que situações da mesma categoria essencial, relativas às pessoas colectivas, têm de ser alvo de um procedimento idêntico, não podendo ser tratadas de forma desigual. 17.ª- O que a decisão recorrida não faz, violando, ostensivamente, o direito da Apelante EMP02..., Lda. a um tratamento igual ao da Apelada. 18.ª- Pelo que, mesmo que se considere existir mora da Apelante EMP02..., Lda. na restituição do locado, a mesma não lhe pode ser imputável a título de culpa, pelas razões supra aludidas, devendo, pois, ser a Apelante condenada ao pagamento da indemnização a que se reporta o n.º 1 do artigo 1045.º do Código Civil – ver, por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 12 de Dezembro de 2023, no âmbito do processo n.º 7895/20.0T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt . 19.ª- A fiança constitui uma garantia pessoal das obrigações, através da qual um terceiro assegura com o seu património uma obrigação de outrem, ficando assim pessoalmente obrigado perante o credor, e encontra-se regulada nos artigos 627.º a 654.º do Código Civil. 20.ª- Considerou a sentença recorrida que os fiadores, aqui também Apelantes, são responsáveis, conjuntamente com a cessionária, pelo pagamento à ora Apelada das quantias devidas a título de indemnização pelo atraso na restituição da coisa. 21.ª- Isto por considerar que os fiadores se obrigaram pessoalmente, perante a aqui Apelada, pelo cumprimento de todas as obrigações decorrentes do contrato. 22.ª- Acontece que, os fiadores não garantiram «o pagamento de qualquer indemnização que a autora tenha a haver», mas antes, «(…) quaisquer indemnização que a Primeira Outorgante tenha a haver por força do presente contrato, incluindo pelas eventuais prorrogações e alterações do mesmo, que venham a ocorrer(…)» - o que é bem diferente. 23.ª- No despacho saneador proferido no âmbito dos presentes autos o tribunal recorrido considera – e bem, diga-se – que, no período temporal a que respeita a indemnização a cujo pagamento os Apelantes foram condenados, o contrato já não estava em vigor, 24.ª- Ora, a fiança prestada tem como objecto, para além das rendas, as indemnizações que a aqui Apelada tenha a haver por força do contrato, que é como quem diz, decorrentes do contrato, incluindo pelas eventuais prorrogações e alterações do mesmo, sem incluir indemnizações devidas após a cessação do contrato. 25.ª- Nos termos do disposto no artigo 628.º n.º 1 do Código Civil, a vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal, devendo tal declaração revestir uma forma clara, de modo que não possam subsistir dúvidas na interpretação de tal declaração. 26.ª- Ressalta da cláusula inserta no contrato outorgado entre as partes que a fiadores garantiram pessoalmente o cumprimento de todas as obrigações decorrentes do contrato, incluindo eventuais indemnizações que a ora Apelada pudesse ter a haver por força do contrato, ou seja, na vigência do mesmo. 27.ª- Não se encontram incluídas nesta declaração indemnizações que a aqui Apelada tivesse a haver após a cessação do contrato, uma vez que, se as partes quisessem que assim fosse, teriam estipulado isso mesmo, o que não aconteceu. 28.ª- A fiança é tida como um negócio de risco, e tal facto implica que a declaração do garante tenha de ser interpretada de forma estrita. 29.ª- Isto posto, tendo os aqui Apelantes pessoas singulares assumido a sua obrigação por qualquer obrigação emergente do contrato, deverá ser decretado que é condição para a manutenção de tal obrigação que o contrato não tivesse terminado, pelo que a fiança não abarca a indemnização pelo atraso na restituição do locado. 30.ª- Mesmo que V. Exas., Venerandos Desembargadores, entendam que a fiança abarca a indemnização pelo atraso na restituição da coisa locada, o que por mera hipótese académica e cautela de patrocínio se vislumbra, nos termos do disposto no artigo 1041.º n.º 6 do Código Civil, na redacção dada 19 pela Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro, o senhorio apenas pode exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito após efectuar a notificação prevista no número anterior. 31.ª- Por sua vez, verte o n.º 5 do referido artigo 1041.º que, caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora, o senhorio deve, nos noventa dias seguintes, notificar o fiador da mora e das quantias em dívida. 32.ª- No caso de se considerar que os fiadores garantiram o pagamento da indemnização pelo atraso na restituição do locado, não poderá deixar também de se entender que estas normas se aplicam ao caso. 33.ª- A presente acção deu entrada em juízo no dia 05 de Novembro de 2020, ou seja, posteriormente à entrada em vigor da mencionada Lein.º13/2019, pelo que as alterações produzidas por esta Lei são aplicáveis à satisfação do direito de crédito da aqui Apelada. 34.ª- Significa isto que quando a ora Apelada exigiu dos fiadores a satisfação dos seus direitos de crédito já pendia sobre si a obrigação de notificar os fiadores dos montantes em dívida, o que nunca fez. 35.ª- Não tendo a aqui Apelada cumprido a obrigação de notificação dos fiadores, imposta pelos n.ºs 5 e 6 do artigo 1041.º do Código Civil, não pode exigir dos fiadores a satisfação do seu crédito. 36.ª- Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 1045.º n.º 1 e n.º 2, este a contrariu sensu, 628.º, 236.º, 1041. º n.º 5 e 6, todos do Código Civil e artigos 12.º n.º 2 e 13.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão proferida, em conformidade com as conclusões formuladas. Com o que se fará, tão-só JUSTIÇA!»
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Contra-alegou a Autora (ref.ª ...48), pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida, tendo ainda deduzido ampliação do objeto do recurso nos termos seguintes. «I. O contrato celebrado entre as partes é um contrato de locação de estabelecimento, previsto no artigo 1109.º do Código Civil. II. Embora não qualifique a locação de estabelecimento como arrendamento, a lei sujeita ao mesmo regime, com as necessárias adaptações (cfr. artigo 1109.º, n.º 1, do CC), assim, na falta de norma especial, deve, por isso, aplicar-se o regime da locação. III. A propósito da locação, o artigo 1045.º do CC prevê a indemnização devida pela não entrega do locado aquando da cessação do contrato. IV. A alegada falta de interpelação cai de imediato, sem delongas, veja-se a certidão judicial junta como doc.1, onde se lê, em suma, que consta do pedido aí formulado a condenação dos a entregar, de imediato, o objeto do mesmo à Autora, livre e desembaraçado de pessoas e bens, relembrando-se que esse pedido apenas não foi apreciado porque já tinha ido proferido ordem de despejo e entrega do imóvel. V. Temos pois que, pelo menos desde a entrada do dito processo judicial, que a entrega foi requerida! VI. A partir da resolução, passou a Recorrente a ocupar sem título o estabelecimento comercial, tendo a obrigação de o entregar, o que não fez. Sujeitou-se, pois, voluntariamente, ao pagamento da indemnização pela mora. VII. Falecem, pois, os argumentos dos recorrentes. VIII. Vêm os Réus Recorrentes colocar em causa a fiança prestada, afirmando que a condenação nos presentes autos se encontra fora do âmbito da fiança prestada. IX. Trata-se de matéria nova, não alegada pelos Réus na sua contestação, nunca foi colocada em causa a indeterminabilidade ou nulidade da fiança, pelo que a mesma não pode ser apreciada, o que se requer. X. Os Réus aceitaram nos presentes autos a plenitude da fiança, nunca colocando em causa a sua indeterminabilidade ou nulidade. XI. E inda, a indemnização arbitrada é por força da existência do contrato de cessão do estabelecimento e falta de entrega do mesmo – mora essa que foi decidida pelos próprios fiadores. XII. A cláusula da fiança é perfeitamente determinável e percetível e os valores da condenação fazem parte da fiança prestada. XIII. As partes quiseram, manifestamente, garantir através da fiança, o pagamento de todas as quantias devidas pela afiançada à Recorrida, no âmbito do contrato em causa, sem qualquer limitação temporal, tudo conforme deixaram expressamente consignado na cláusula 11.ª do contrato. XIV. Quanto à notificação dos fiadores, recorda-se que os mesmos foram parte no processo judicial anterior – cfr. doc.1 junto com a petição. XV. Assim, desde 2013 que têm conhecimento do processo, valores envolvidos e responsabilidades, nunca tendo, até hoje, alegado qualquer inaplicabilidade ou indeterminabilidade da fiança prestada. XVI. E ainda, for via da fiança foram já condenados na sentença de primeira instância, mantendo-se inalterado o seguinte segmento decisório da alínea b), pelo que fará caso julgado. XVII. Falecem pois, integralmente, todas as argumentações dos Réus. XVIII. E ainda, quanto à ampliação requerida: XIX. A apelação revela um manifesto abuso de direito na modalidade venire contra factum proprium. XX. Analisado o pedido formulado na contestação, não só os réus aceitam a fiança, como pedem que seja todos os eles condenados a pagar (embora quantias diferentes).
Termos em que, negando integral provimento à apelação dos Recorrentes e conhecendo do abuso de direito dos mesmos, e fará, J U S T I Ç A !!».
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (ref.ª ...48).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho].
No caso, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:
i) – Da indemnização por falta de restituição do locado nos termos do art. 1045.º do CC;
ii) – Da fiança;
ii) – Da ampliação do objeto do recurso deduzida pela Autora (do abuso de direito dos RR.).
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III. Fundamentos
IV. Fundamentação de facto
A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
Com relevo para a presente decisão, resulta assente a seguinte factualidade:
1. Correu termos no Juízo Central Cível de ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., acção declarativa de condenação sob o processo n.º 1559/13.8TBBRG, na qual a aqui autora peticionou a condenação dos aqui réus a reconhecer e declarar como válida a resolução do Contrato de Cessão de Exploração com efeitos a partir de 29.1.2013, por incumprimento definitivo e culposo por parte da 1.ª ré das respectivas obrigações; a condenação da 1.ª ré a reconhecer essa resolução do contrato e a entregar, de imediato, o objecto do mesmo à autora, livre e desembaraçado de pessoas e bens; a condenação da 1.ª ré e dos 2.ºs réus a, solidariamente, pagar à autora a quantia de € 111.299,20; a condenação da 1.ª ré a comunicar aos autos a facturação mensal bruta da exploração que fez do estabelecimento comercial entre ../../2011 e ../../2013 e a condenação da 1.ª ré e dos 2.ºs réus a, solidariamente, pagar à autora o saldo entretanto resultante da diferença entre a prestação mensal fixa de cada um desses meses e 25% da facturação mensal bruta de cada um dos mesmos meses.
2. Por sentença proferida no âmbito desses autos em 23.01.2017, decidiu-se:
“1- Julgar parcialmente procedente por provada a ação e, em consequência:
a) Condenar solidariamente os Réus a pagar à Autora a quantia de 111.299,20 € (cento e onze mil duzentos e noventa e nove euros e vinte cêntimos);
b) No prazo de trinta dias após o trânsito da decisão, deverá a Ré comunicar à Autora a faturação mensal bruta da exploração que fez do estabelecimento comercial entre ../../2011 e ../../2015 acompanhada dos elementos contabilísticos e, caso haja saldo positivo, condenar os Réus solidariamente a pagar à Autora o saldo resultante da diferença entre a prestação mensal fixa de cada um desses meses e 25% da facturação mensal bruta de cada um dos mesmos meses.
2- Julgar improcedente a reconvenção e, em consequência, absolver a Autora do pedido reconvencional”.
3. Em 26.10.2017, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães, que decidiu:
“1 – Conceder parcial provimento ao recurso dos RR. e, consequentemente:
a) Revoga-se a decisão, proferida no dia 30.10.2015, que decretou o despejo imediato;
b) Revoga-se também a sentença recorrida, na parte em que condenou os RR. a pagarem, solidariamente, à A. a quantia de 111.299,20€.
2 – Quanto ao mais impugnado, nega-se provimento ao mesmo recurso e, nessa medida, confirma-se a sentença recorrida.
3 – Em relação ao recurso subordinado da A., acorda-se em julga-lo improcedente”.
4. Em 22.11.2018, foi proferido acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça, que negou provimento aos recursos, confirmando o acórdão que havia sido proferido.
5. Entre outros, consideraram-se aí provados os seguintes factos:
a. A Autora é dona e legítima proprietária do edifício composto por duas caves, rés-do-chão e 4 pisos, destinado a serviços (Unidade Hoteleira), sito na Travessa ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na C.R.P. sob os nºs 2097, 2098, 5048 e 5218 e inscrito na respectiva matriz sob os artigos ...63, ...14, ...15 e ...18, a que foi concedido o alvará de utilização nº ...18 no processo nº 33059/10....
b. Em ../../2011, a Autora e a 1ª Ré celebraram o acordo que denominaram de Contrato de Exploração e Pacto de Preferência, incidente sobre o estabelecimento comercial (Unidade Hoteleira) sito na Travessa ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na C.R.P. sob os nºs 2097, 2098, 5048 e 5218 e inscrito na respectiva matriz sob os artigos ...63, ...14, ...15 e ...18.
c. Nesse acordo os 2ºs Réus intervieram como fiadores da 1ª Ré (Cláusula Décima Primeira).
d. Acordaram as partes, nos termos da cláusula quarta, que a 1ª Ré pagaria à Autora, pela exploração do estabelecimento “uma prestação mensal composta por uma parte fixa e por uma parte variável, nos termos a seguir descriminados:
“a) De 1 de Outubro de 2011 a 30 de Setembro de 2012 será de 20.000,00 € (vinte mil euros), que deverá ser paga até ao 8º dia do mês anterior aquele que disser respeito, na sede da Primeira Outorgante ou onde esta vier a indicar.
b) A partir de 1 de Outubro de 2012, a parte fixa da renda mensal será de 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros) paga até ao dia 8 do mês anterior aquele a que disser respeito, na sede da Primeira Outorgante ou onde esta vier a indicar.
c) A partir de 01 de outubro de 2013, a parte fixa da prestação mensal, será anualmente actualizada de acordo com os índices que vierem a ser fixados por Portaria Governamental para as rendas comerciais.
d) A partir de 1 de Outubro de 2011, ao montante da prestação fixa, deve acrescer mensalmente o valor que resultar da diferença entre a prestação fixa e o montante correspondente a vinte e cinco por cento da faturação mensal bruta da exploração que a Segunda Outorgante vier a fazer no estabelecimento comercial identificado, constituindo este acréscimo mensal de prestação, condição essencial e indispensável à celebração do presente contrato.
2. A prestação mensal paga pela segunda outorgante à primeira outorgante pela cessão de exploração, acresce o IVA à taxa legal em vigor no momento do respectivo vencimento.
3. A Segunda Outorgante declara e reconhece à primeira outorgante, EMP03..., Lda, e/ou empresa de auditoria por esta contratada, o direito de fiscalizar como entender a contabilidade ou facturação mensal para se apurar o montante variável da prestação que a Segunda Outorgante tem a pagar à Primeira Outorgante, o qual será pago até ao dia 30 do mês seguinte a que disser respeito.”
e. Desde outubro de 2013 que a 1ª Ré não paga qualquer quantia à Autora.
f. Em consequência do decretamento do despejo imediato, o imóvel foi entregue à Autora em 5 de novembro de 2015.
6. A autora resolveu o contrato referido em 5., alínea b), por falta de pagamento das prestações, com efeitos a 29.01.2013.
7. A sociedade ré reduziu a prestação fixa mensal devida pela cessão do estabelecimento comercial ao valor mensal de € 10.000,00, que pagou de Novembro de 2012 e até Outubro de 2013.
8. Nos autos referidos em 1., foi julgado que a redução da prestação mensal fixa para € 10.00,00 (dez mil euros) mensais se apresenta “equitativamente justa e equilibrada, no confronto com os prejuízos sofridos pela Ré”.
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B – Factualidade não provada
Com relevo para a decisão da causa, inexiste factualidade não provada.
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V. Fundamentação de direito.
1. Da indemnização por falta de restituição do locado nos termos do art. 1045.º do Código Civil.
Mostra-se desde logo incontrovertida a natureza jurídica do contrato celebrado entre a autora e a 1.ª ré, o qual foi qualificado como contrato de cedência de exploração de estabelecimento comercial (ou contrato de locação de estabelecimento, como designado pelo Código Civil no artigo 1109.º), bem assim como, entre o mais, a validade da resolução desse contrato operada pela autora.
A consolidação dessa qualificação jurídica advém já da acção n.º 1559/13.8TBBRG, que, tendo como intervenientes as mesmas partes (e nas mesmas posições processuais), correu termos no Juízo Central Cível de ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ...[1].
Quanto a tal materialidade somos reconduzidos à verificação da autoridade de caso julgado[2].
A sentença impugnada condenou os RR./apelantes, solidariamente, a pagar à Autora/apelada o montante correspondente ao valor do dobro das rendas vencidas desde Novembro de 2013 a 5 de Novembro de 2015, num total de € 480.000,00, valor acrescido de juros vencidos desde 10.12.2018, e vincendos, à taxa comercial em vigor, até efectivo e integral pagamento.
A fim de alcançar o referido valor indemnizatórioa Mm.ª Juíza “a quo” entendeu que a 1ª Ré, EMP02..., Lda, estava obrigada a restituir o estabelecimento no dia 30 de Janeiro de 2013, dia imediatamente seguinte à data em que se verificou a cessação do contrato, pelo que, tendo-se constituído em mora no cumprimento da obrigação de restituição, a indemnização, nos termos do art. 1045º, n.º 2, do Código Civil (doravante, abreviadamente CC), é correspondente ao dobro «das rendas vencidas desde Novembro de 2013 a 5 de Novembro de 2015, data em que procedeu à restituição do imóvel».
Do assim decidido discordam os recorrentes, aduzindo para o efeito que a falta de entrega do estabelecimento no dia imediatamente a seguir à resolução do contrato por parte da apelada não implica necessariamente a existência de mora na entrega do estabelecimento, para efeitos do disposto no n.º 2 do art. 1045.º do CC.
Para haver mora na restituição do locado teria de ter existido uma interpelação para a sua efectiva entrega, não tendo sido dado como provado que a Apelada exigiu a entrega do locado.
Consequentemente, defendem, na falta de mora, a indemnização a pagar pela não entrega do locado será a de valor igual ao da renda mensal, ou seja, € 10.000,00, por cada mês, o que totaliza o montante de € 240.000,00.
Mais advogam que a solução consagrada na sentença recorrida comporta a violação do princípio da igualdade, posto que o tribunal de primeira instância entendeu que, relativamente a uma realidade igual, qual seja, a pendência de uma acção onde se discutia a natureza da relação negocial estabelecida entre as partes aqui envolvidas, bem como o montante da contrapartida a pagar pela cessionária, foi decidido que esta última tinha a obrigação de entrega do estabelecimento, mas a cedente não tinha a obrigação de vir cobrar a indemnização pela não restituição do referido estabelecimento, devida a partir do momento da cessação do contrato, por tal não ser razoável.
Vejamos como decidir.
Cessando o contrato, o locatário deve restituir imediatamente a coisa locada ao locador (art. 1045º, n.º 1, do CC). Sobre o locatário impende a obrigação de restituir a coisa locada no termo do contrato no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato (arts. 1038.º, al. i) e 1043º do CC). Trata-se de uma obrigação do locatário que se vence com a extinção do vínculo, sendo, em princípio, um dever de execução pós-contratual[3].
Estabelecendo para o locatário o dever de indemnização (pagamento da renda em singelo e, porventura, em dobro) em caso de atraso na restituição do locado, o art. 1045.º do CC, sob a epígrafe “indemnização pelo atraso na restituição da coisa”, dispõe: «1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida. 2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro».
Deste modo, e no caso de não restituição do locado, o referido normativo prevê duas situações diversas[4]:
- Uma, a do n.º 1, em que não existindo mora na entrega da coisa por parte do locatário, o locador tem o direito a receber daquele (que continua a fruir do locado) uma indemnização correspondente ao valor da renda convencionada até ao momento da entrega da coisa;
- Outra, a do n.º 2, em que existindo mora do locatário na entrega do locado, o locador tem o direito a receber daquele o dobro do valor das rendas convencionadas, desde a constituição da mora e até efetiva entrega do locado. Isto independentemente dos prejuízos efetivos que sofra.
Mediante o disposto do n.º 1 visa-se compensar o senhorio pela privação do uso do locado; através do determinado no n.º 2 pretende-se retribuir o locador pela não restituição do bem locado em devido tempo por culpa do locatário.
A conjugação dos dois números de norma em apreço tem colocado questões interpretativas, na medida em que a situação do n.º 1 já contempla as hipóteses de haver atraso, mesmo respeitante à pessoa do locatário, no cumprimento da obrigação de entrega/restituição da coisa, pelo que se pode questionar quais são as situações de “constituição em mora” do locatário que determinam a aplicação da previsão do n.º 2.
A resolução da questão depende, pois, do entendimento que se adote a propósito do modo como o locatário se constitui em mora na entrega da coisa.
A interpretação daquela disposição legal não é pacífica[5].
Assim, sobre esse tema, escreve Pedro Romano Martinez[6]: “O vencimento da obrigação de entrega da coisa dá-se, de imediato, no momento em que termina o contrato. Mas se o locatário não restituir imediatamente a coisa locada, nos termos do art. 1045º, n.º 1 CC, deve continuar a pagar a renda ou aluguer ajustados. Deste modo, prevê-se que, extinto o vínculo, se o locatário não restituir a coisa locada, subsiste uma relação contratual de facto que lhe impõe o dever de continuar a pagar a renda ou aluguer ajustado, como se o contrato continuasse em vigor. Do incumprimento do dever de restituição da coisa não decorre uma obrigação de indemnizar o locador, mas tão só de pagar o valor que havia sido ajustado para obstar ao enriquecimento do locatário. Contudo, se o locador interpelar o locatário para este proceder à entrega da coisa, não a restituindo, entra em mora. Assim, o locatário, extinto o contrato de locação, deve restituir a coisa, mas o incumprimento deste dever não é culposo e só entra e mora, relativamente à obrigação de restituir a coisa, depois de ter sido interpelado para a entregar. Extinto o contrato, decorre da lei a obrigação da devolução da coisa, mas torna-se necessário que o locador interpele o locatário para este ser responsável pelo incumprimento; se, após a interpelação, o locatário não restituir a coisa, entra em mora e tem de pagar o dobro da renda ou aluguer devido contratualmente (art. 1045º, n.º 2 CC). Trata-se de uma forma especial de indemnização para o caso de mora relativamente à restituição da cosia locada; constituindo um exemplo de responsabilidade com função punitiva e não meramente ressarcitória”.
Em sentido similar, Luís Menezes Leitão[7] defende que da formulação dos arts. 1038º, al. i) 1022º, 1081º, n.º 1, e 1087º, do CC, «resulta que a obrigação de restituição não se vence automaticamente no fim do contrato de arrendamento urbano (…), dado que o decurso desses prazos apenas torna exigível essa restituição, cujo vencimento depende, nos termos gerais, de interpelação à outra parte (art. 777.º n.º 1). Consequentemente, é apenas a partir dessa interpelação que o arrendatário entra em mora quanto à restituição (art. 805.º, n.º 1), com as respetivas consequências legais em termos de indemnização (art. 804.º, n.º 1) e inversão do risco pela perda ou deterioração da coisa (art. 807.º)».
A mora referida no n.º 2 do art. 1045º do CC, segundo Elsa Sequeira Santos[8], «deve ser, portanto, apenas a que é provocada pela interpelação do locador no sentido da restituição da coisa locada. Sendo o locatário interpelado, e continuando no gozo da coisa, fica obrigado ao pagamento do dobro da renda convencionada até à entrega da coisa».
Por seu turno, escrevem, a este propósito, Pires de Lima e Antunes Varela[9], “se, findo o contrato, não houver mora do locatário quanto à obrigação de restituição da coisa locada (…), o contrato prolonga-se até à entrega da coisa, devendo o locatário continuar a pagar, agora a título de indemnização, a renda ou aluguer convencionado. Indemnização justa, visto que ele continua a usar a coisa em prejuízo do locador – mas indemnização de natureza claramente contratual.”. “Se, porém, houver fundamento para a consignação em depósito deixa de se justificar a indemnização. O locatário não restituiu a coisa ou porque houve mora do locador, ou porque não pode fazê-lo, ou não pode fazê-lo com segurança, por motivo relativo à pessoa do credor (art. 841º, n.º 1) e pode não ter qualquer interesse em retê-la. Cessa, portanto, a obrigação de pagamento da renda (…) e, como tal, o depósito é facultativo, nenhuma outra responsabilidade lhe pode advir da falta de cumprimento da obrigação de restituir”.
Havendo mora do locatário, continuam os citados Autores, “a sua responsabilidade aumenta, fixando a lei como indemnização o dobro da que resultaria no caso previsto no número anterior”, ou seja, “o dobro da retribuição”.
Distingue-se entre a situação “de não-restituição simples” e a situação de “mora na restituição”: o n.º 1 do preceito reporta-se à não restituição simples, ou seja, àqueles casos em que a falta de restituição ocorre por causas não imputáveis ao locatário, o que poderá suceder: (a) quando o locatário ilida a presunção de culpa pela não-restituição, (b) caso o locador, a título de mera tolerância, admita a manutenção do gozo, na esfera do locatário, (c) quando exista uma situação controvertida (ação de nulidade ou de anulação, ação de resolução ou situação de caducidade), não provocada pelo locatário e enquanto ela não se solucionar, (d) quando a restituição não possa ter lugar por causa imputável ao locador e, não obstante, o locatário continue no gozo da coisa, sem recorrer à consignação em depósito; e o n.º 2 tem lugar quando a falta de restituição ocorra por culpa do locatário, configurando-se então a mora deste, independentemente de interpelação, por via do art. 805º, n.º 2, al. a) do CC, não sendo necessária qualquer interpelação uma vez que há prazo certo[10].
Por sua vez, Pereira Coelho[11], enuncia três hipóteses a considerar, conforme a causa da não restituição pontual do locado: (i) tratando-se de causa imputável ao inquilino, este constitui-se em mora, nos termos do art. 804º, n.º 2, do CC e fica obrigado a pagar o dobro da renda até ao momento da restituição: é a hipótese do citado n.º 2; (ii) tratando-se de causa imputável ao senhorio, há fundamento para a consignação em depósito do prédio, conforme o art. 841º, n.º 1, do CC: é a hipótese prevista na parte final do n.º 1 do citado art. 1045º do CC; o inquilino nada deve ao senhorio, neste caso, a título de indemnização pelo atraso na restituição do arrendado; (iii) devendo-se a não restituição do imóvel a qualquer outra causa, aplica-se a solução da 1ª parte do n.º 1 do art. 1045º: o locatário é obrigado a continuar a pagar a renda acordada, “a título de indemnização”, até ao momento da restituição do prédio.
Em suma, e como se sintetiza no Ac. da RP de 23/03/2023 (relatora Isabel Ferreira), in www.dgsi.pt: “Como quer que seja, convergem todas as interpretações quanto à circunstância de a “simples mora”, ou atraso, do locatário (distinta das situações de mora, quando se trate de uma falta voluntária e culposa) na entrega da coisa não ser sancionada nos termos do nº 2, mas apenas do nº 1 do art. 1045º do Código Civil”.
Revertendo ao caso em análise e seguindo a fundamentação explanada na sentença recorrida dir-se-á que:
A autora resolveu o contrato por falta de pagamento das prestações, com efeitos a 29.01.2013.
Consequentemente, por força da cessação do contrato, a 1.ª ré estava obrigada a restituir o imóvel à autora a 30.01.2013, dia imediatamente seguinte à data em que se verificou a cessação do contrato.
Contudo, o imóvel (só) foi entregue à Autora em 5 de novembro de 2015, em consequência do decretamento do despejo imediato.
Não tendo a 1.ª ré restituído o imóvel à autora na data supra referida (30.01.2013), concluiu a Mm.ª Julgadora “a quo” que aquela se constituiu em mora no cumprimento da obrigação de restituição, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 1045º do CC, além de que igualmente não efectuou o pagamento das rendas devidas por força do n.º 1 do citado normativo.
Insurgem-se os RR. contra o referido entendimento, sustentando que, para estar verificada uma situação de mora na restituição do locado para efeitos do disposto no n.º 2 do art. 1045º do CC, teria de ter existido uma interpelação para a sua efectiva entrega, o que não sucedeu.
Carecem, no entanto, de razão.
Com efeito, conforme se extrai da certidão judicial junta com a petição inicial como doc.1, respeitante à ação n.º 1559/13.8TBBRG, que correu termos entre as partes nos presentes autos (e nas mesmas posições processuais), no Juízo Central Cível de ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., dela consta que:
“EMP03..., Lda, com sede na Rua ..., ..., ..., intentou a presente ação declarativa com processo ordinário contra EMP04..., Lda, com sede na Avª ..., Urbanização ..., ..., e AA e mulher BB, residentes na mesma morada, pedindo que os Réus sejam condenados a reconhecer e declarar como válida a resolução do Contrato de Cessão de Exploração com efeitos a partir de ../../2013, por incumprimento definitivo e culposo por parte da 1ª Ré das respectivas obrigações; a 1ª Ré seja condenada a reconhecer essa resolução do contrato e a entregar, de imediato, o objeto do mesmo à Autora, livre e desembaraçado de pessoas e bens;” (sublinhado nosso).
E, como resulta do despacho de 07-02-2019 constante da referida certidão judicial, que apreciou o pedido de pagamento da taxa de justiça remanescente, a aludida acção n.º 1559/13.8TBBRG foi proposta a 6.03.2013[12].
Pois bem, tendo sido peticionada a condenação no reconhecimento da resolução do contrato “e a entregar, de imediato, o objeto do mesmo à Autora, livre e desembaraçado de pessoas e bens”, a interpelação para o cumprimento da obrigação de restituição do locado mostra-se efetivamente realizada (e demonstrada).
Carece, assim, de fundamento a alegada falta de interpelação da entrega do imóvel.
Assim, a partir do momento em que a restituição seja exigível e tenha sido efectivamente exigida, através de interpelação, será devida pelo locatário, por cada mês de atraso na restituição, indemnização de valor equivalente ao dobro da renda mensal (art. 1045.º, n.º 2, do CC)[13].
O referido montante indemnizatório, fixado por lei a forfait, evita litigiosidade acrescida na medida em que dispensa o credor de provar prejuízos efectivos, sendo, por isso, de igual modo irrelevante qualquer alegação, ou prova, tendente a demonstrar que o valor de uso é actualmente inferior ao valor pelo qual o bem foi locado[14].
No caso em apreço, por força dos arts. 1038º, al. i), 1045º e 1081.º, n.º 1, do CC, a 1ª ré/locatária constituiu-se na obrigação de desocupação e restituição do locado à autora no dia imediatamente seguinte à data em que se verificou a cessação do contrato (em 30.01.2013) e, por aplicação do disposto na al. a) do n.º 2 do art. 805º do CC, entrou em mora – mercê da interpelação judicial – com a citação operada no processo n.º 1559/13.8TBBRG (a acção foi instaurada a 6.03.2013 e a citação presume-se realizada no decurso desse mês).
Teve razão, por conseguinte, o Tribunal recorrido em condenar a ré no pagamento de uma indemnização no valor correspondente ao montante da renda em dobro por cada mês desde novembro de 2013[15] a 5 de novembro de 2015 (data da restituição do locado), nos termos do art. 1045.º, n.º 2, do CC, num total de € 480.000,00 (ou seja, € 20.000,00 por cada mês).
Vejamos, agora, os argumentos atinentes à violação do princípio geral da igualdade e da igualdade de tratamento.
Segundo o Ac. do TC n.º 395/2017, de 12/07/2017 (relator Gonçalo de Almeida Ribeiro), in www.dgsi.pt., o «princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio»
O princípio da igualdade apenas impõe o tratamento igual para situações iguais ou, dito de outro modo, a desigualdade de tratamento não viola o princípio da igualdade quando existe uma desigualdade de facto.
Na contestação os réus arguiram, em sede de contestação, a excepção peremptória de prescrição, pedindo a sua absolvição do pedido.
Alegaram para o efeito, em síntese, ter já decorrido o prazo de cinco anos previsto no art. 310.º do CC, aplicável, entre o mais, a rendas e alugueres devidos pelo locatário e quaisquer outras prestações periodicamente renováveis.
A referida exceção foi julgada improcedente no despacho saneador por se ter entendido não ter aplicação ao caso vertente o prazo de cinco anos previsto no art. 310.º do CC, aplicável, entre o mais, a rendas e alugueres devidos pelo locatário e quaisquer outras prestações periodicamente renováveis, sendo antes aplicável o prazo ordinário de vinte anos.
Subsidiariamente, a Mm.ª Julgadora entendeu que no tocante aos montantes devidos no período posterior à cessação do contrato os mesmos foram vencidos durante a pendência de uma acção na qual se encontrava a ser discutida a natureza da relação negocial estabelecida entre as partes aqui envolvidas, bem assim como o montante da contrapartida a cargo da 1.ª ré, pelo que não parece que, «à luz de elementares critérios de razoabilidade e justiça, e até de coerência entre decisões judiciais, que, não se encontrando ainda definida aquela relação jurídica e a validade da resolução do negócio - e pendente um pedido que envolvia a desocupação do imóvel onde se encontrava instalado o estabelecimento comercial em causa nos autos -, a autora diligenciasse pela cobrança de quaisquer outras quantias, designadamente, devidas pelo atraso na entrega do imóvel», pelo «que sempre seria de julgar interrompida a prescrição».
Por sua vez, o acórdão deste Tribunal da Relação de 18 de janeiro de 2024, prolatado na apelação interposta sobre essa concreta questão (proc. n.º 18597/20.7T8PRT-A.G1), manteve que «o prazo de prescrição é de vinte anos», e, nessa medida,julgou prejudicada «a restante argumentação recursiva a propósito desta questão».
Serve isto para dizer que, ao invés do propugnado pelos recorrentes, a argumentação a que estes fazem menção para alicerçar a violação do princípio da igualdade não foi erigida como decisiva ou principal para fundamentar a decisão de improcedência da excepção de prescrição indemnizatória, posto que, pura e simplesmente, ambas as instâncias sufragaram a posição de que a situação não era subsumível ao preceituado no art. 310º do CC.
De qualquer modo – e como refere a apelada – nas matérias em apreço não existe qualquer tratamento diferenciador, existindo, sim, situações diferentes.
Sendo, pois, diferenciadas as duas situações que foram objeto de apreciação, contemplando institutos jurídicos com requisitos distintos e autónomos, sendo também dissemelhantes as respetivas repercussões jurídicas, carece de fundamento a invocação da violação do princípio da igualdade e/ou da igualdade de tratamento.
Terá, pois, de improceder este fundamento da apelação.
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2. – Da fiança (se os RR. fiadores estão obrigados a pagar solidariamente a indemnização prevista no art. 1045.º do CC).
A sentença recorrida considerou que os segundos réus, enquanto fiadores, são solidariamente responsáveis com a 1.ª ré no pagamento das quantias devidas (entre o mais) a título de indemnização pelo atraso na restituição da coisa.
Os Réus sustentam que esse segmento da condenação exorbita ou encontra-se fora do âmbito da fiança prestada, posto esta não abarcar a indemnização pelo atraso na restituição do locado. Especificamente, dizem que a fiança tem por objecto, para além das rendas, as indemnizações que a Apelada tenha a haver por força (ou na decorrência) do contrato, incluindo pelas eventuais prorrogações e alterações do mesmo, sem incluir indemnizações devidas após a cessação do contrato.
Contrapõe a apelada dizendo que «tal alegação é matéria nova, não alegada pelos Réus na sua contestação, nunca foi colocada em causa a indeterminabilidade ou nulidade da fiança, pelo que a mesma não pode ser apreciada, devendo recusar-se a sua apreciação», o que requer.
Assiste integral razão à apelada.
Na verdade, em parte alguma, nomeadamente no articulado da contestação ou da resposta à ampliação do pedido, os RR. questionaram – expressa ou sequer de um modo implícito – o âmbito, a validade e a eficácia da fiança prestada; jamais colocaram em causa a indeterminabilidade ou nulidade da fiança.
Só agora, em sede de recurso, é que os RR. vêm suscitar essa questão.
Ora, como é sabido, os recursos – ordinários – visam permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida, o que tem direta repercussão na delimitação das questões que lhe podem ser dirigidas.
O ponto de partida do recurso é sempre uma decisão que recaiu sobre determinada questão, de facto e/ou de direito, visando-se com ele apreciar da manutenção, alteração ou revogação daquela
Sendo um meio de impugnação de uma decisão judicial, o recurso apenas pode incidir, em regra, sobre questões concretas, de facto ou de direito, que tenham sido anteriormente apreciadas pelo tribunal recorrido, não podendo o tribunal “ad quem” confrontar-se com questões novas (ou seja, sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida e sobre pedidos que nela não foram formulados), salvo quando estas sejam de conhecimento oficioso (como, por exemplo, o abuso do direito ou os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis e se não estiverem já resolvidas por decisão transitada em julgado) e o processo contenha os elementos imprescindíveis. É o que resulta da conjugação dos arts. 627º, n.º 1, 635º, n.º 2, 663º, n.º 2 e 608º, n.º 2, do CPC. Tal regra justifica-se quer em atenção ao princípio da preclusão, quer para impedir que seja desprezada a finalidade dos recursos (art. 676º, n.º 1 do CPC), quer para não possibilitar a supressão de graus de jurisdição[16].
Logo, trata-se de uma questão completamente nova que não foi invocada no momento próprio perante o Tribunal competente para a apreciar, não foi objeto da decisão recorrida e, por isso, não pode ser objecto deste recurso, já que nem sequer é de conhecimento oficioso[17].
De todo o modo, sempre se diria que a referida pretensão recursiva jamais poderia proceder.
Vejamos, sumariamente, o regime da fiança previsto nos arts. 627.º e ss. do CC, nos pontos mais relevantes para a decisão desta questão.
A fiança é o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor; é o contrato pelo qual uma pessoa se obriga para com o credor a cumprir a obrigação de outra pessoa, no caso de esta o não fazer.
Prescreve o art. 627º, n.º 1, do CC, que o fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor.
Trata-se de uma garantia pessoal das obrigações, por via da qual o fiador vincula todo o seu património à satisfação do direito do credor.
Ao contrário do que sucede com o terceiro que constitui uma hipoteca ou um penhor sobre os seus bens a favor do credor, o fiador é verdadeiro devedor do credor. A obrigação que ele assume é a obrigação do devedor. Após a constituição da fiança passa assim a haver uma obrigação principal, a que vincula o (principal) devedor, por cima dela, a cobri-la, tutelando o seu cumprimento, uma obrigação acessória, a que o fiador fica adstrito[18].
Deste modo, à garantia patrimonial que incide sobre os bens do devedor acresce uma outra garantia patrimonial sobre os bens do fiador; o credor passa a ter como garantia de cumprimento dois patrimónios: o do devedor e o do fiador.
São duas as características fundamentais deste instituto: a acessoriedade e a subsidiariedade.
Relativamente à primeira – sendo imprescindível, pois faz parte da sua própria natureza e não pode ser afastada por vontade das partes, sob pena de pôr em causa a essência do instituto[19] –, diz-nos o n.º 2 do art. 627º do CC que a “obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o principal devedor”.
Esta especificidade, em termos gerais, quer significar que a obrigação do fiador se molda sobre a obrigação do devedor principal, assim como a sua subsistência, desde o nascimento à extinção, dependendo igualmente da subsistência desta[20].
Por sua vez, a subsidiariedade da fiança concretiza-se no benefício da excussão (art. 638º do CC), com tradução processual, relativa à ação executiva,no art. 745º do CPC, que permite ao fiador/garante opor-se à penhora dos seus bens, enquanto não estiverem excutidos – esgotados em sede de execução – todos os bens do devedor com vista à satisfação do interesse do credor.
Porém, o fiador poderá renunciar ao benefício da excussão (art. 640º do CC), e, nesse caso, retirar à fiança a característica subsidiária (pelo que esta, ao contrário daqueloutra, não se trata duma característica essencial do instituto). Sempre que assim suceda, a obrigação assumida pelo fiador não é subsidiária da dívida principal, equiparando-se, do ponto de vista do credor, a um verdadeiro devedor solidário. Deste modo, o credor pode exigir a totalidade da dívida ao fiador ou ao devedor (art. 519º do CC).
Uma vez que, nos termos da cláusula 11.ª do contrato celebrado entre as partes e os fiadores, os fiadores responsabilizaram-se pessoalmente pelo pagamento de qualquer «(…) indemnização que a Primeira Outorgante tenha a haver por força do presente contrato, incluindo pelas eventuais prorrogações e alterações do mesmo, que venham a ocorrer renunciando expressamente ao benefício da excussão prévia», ficou arredada a caraterística da subsidiariedade que permite ao fiador obstar à execução do seu património enquanto não forem excutidos os bens do devedor ou o bem sobre que recaia garantia real, caso exista (cf. arts. 638.º e 639.º do CC).
Quanto ao seu âmbito, a fiança não pode exceder a dívida principal nem ser contraída em condições mais onerosas (art. 631º, n.º 1, do CC), sendo que a responsabilidade do fiador abrange tudo aquilo a que o devedor principal está obrigado, não só a prestação devida, mas também a reparação dos danos resultantes do incumprimento culposo (art. 798º do CC) ou a pena convencional que, porventura, se haja estabelecido (art. 810º do CC).
Com a epígrafe “obrigação do fiador”, o art.º 634.º do CC estabelece: “A fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor”.
Em anotação a esta norma, Pires de Lima e Antunes Varela ensinam que “o fiador é responsável não só pela prestação devida, como pela pena convencional (cf. art.º 810.º), ou pela reparação dos danos, havendo culpa do devedor (cf. art.º 798.º), salvo se outra coisa se tiver convencionado, já que, como resulta do art.º 631.º, n.º 1, a fiança pode ser contraída em menos onerosas condições”[21]. Acrescentam os citados autores, que “o fiador não tem de admitir só que venha a ter de entregar ao credor o equivalente pecuniário da prestação devida pelo devedor, mas (…) também a indemnização dos danos causados pelo não cumprimento do contrato, pela mora ou pelo cumprimento imperfeito da obrigação”.
No mesmo sentido, veja-se o comentário de Joana Farrajota à norma citada[22]: «Esta relação entre as duas obrigações significa que o fiador responde não só pela prestação principal, mas por quaisquer prestações que venham a surgir – por efeito da lei ou do contrato – na esfera jurídica do devedor em resultado do incumprimento – temporário, defeituoso ou definitivo – da obrigação. Donde, se, vencida a obrigação, o devedor não cumprir e forem devidos juros de mora, o fiador responderá igualmente por estes, sem necessidade de qualquer interpelação, da mesma forma que responderá por quaisquer danos sofridos pelo credor em resultado do incumprimento do devedor. Em síntese, dir-se-á que o fiador responde por tudo a que o devedor se encontre obrigado».
A identidade entre as duas obrigações apenas pode ser afastada nos termos do disposto no art. 631º, n.º 1, do CC, isto é, mediante a prestação de uma fiança parcial ou em condições menos onerosas.
Podemos, pois, concluir que a resposta à questão de saber se o fiador responde ou não perante o credor pela indemnização da responsabilidade do devedor resultante da mora na entrega do locado e já depois da resolução do contrato de arrendamento não é unívoca, não resultando do regime legal da fiança tal exclusão; pelo contrário, tudo dependendo daquilo que tenha sido expressamente acordado pelas partes.
É consensual entre nós que, regra geral, a fiança incluirá a quantia devida nos termos do art. 1045º do CC[23].
Lê-se no Ac. da RP de 5/03/2018 (relator Carlos Querido), in www.dgsi.pt., que “face à natureza e o âmbito de vinculação da garantia prestada por fiança no contrato de arrendamento, a responsabilidade do fiador molda-se, salvo estipulação em contrário, pela do devedor principal, abrangendo tudo aquilo a que este se encontra obrigado: não só a prestação devida mas também as consequências da mora, nomeadamente no que se refere à indemnização prevista no n.º 1 do art.º 1041.º do Código Civil”.
Como se explicitou no Ac. da RP de 28/09/2023 (relator Paulo Teixeira), in www.dgsi.pt., “podemos por isso concluir que a responsabilidade dos fiadores inclui as consequências legais do incumprimento contratual, sendo que algumas destas podem produzir efeitos (como a simples mora no pagamento das rendas), em data posterior à cessação do contrato e ao âmbito temporal inicial da fiança”.
Da cláusula contratual ajustada entre as partes não consta que as partes tenham pretendido excluir da fiança prestada as consequências legais do incumprimento contratual, designadamente os danos derivados da mora do devedor na restituição do locado.
Ora, garantindo os fiadores o cumprimento de todas as obrigações decorrentes do aludido contrato para a 1ª Ré, designadamente o pagamento das prestações pela cessão de exploração, e, bem assim de qualquer «indemnização que a Primeira Outorgante tenha a haver por força do presente contrato, incluindo pelas eventuais prorrogações e alterações do mesmo, que venham a ocorrer (…)», é de secundar o juízo formulado na sentença recorrida no sentido de os fiadores serem também responsáveis pelo pagamento à autora das quantias devidas pela 1.ª ré, referentes ao contrato objeto dos autos, designadamente a indemnização devida pelo atraso na restituição do locado, inexistindo dúvidas quanto à abrangência da obrigação assumida pelos 2.ºs réus.
Com efeito, como se aduziu no supra citado Ac. da RP de 28/09/2023 (relator Paulo Teixeira), in www.dgsi.pt., os fiadores que renunciaram ao benefício de excusão prévia são também responsabilizados pela mora na entrega do locado, porque desde logo essa responsabilidade resulta de uma previsão normativa cuja aplicação não foi excluída nos termos contratuais, sendo que a fiança abarca não só a prestação devida mas também as consequências da mora (art. 634º do CC).
Mais defendem os recorrentes que, na hipótese de se considerar que os fiadores garantiram o pagamento da indemnização pelo atraso na restituição do locado – o que é o caso, como vimos –, não tendo a apelada cumprido a obrigação de notificação dos fiadores, imposta pelos n.ºs 5 e 6 do art. 1041.º do CC, não poderá exigir dos fiadores a satisfação do seu crédito.
Trata-se também aqui de uma questão nova, insuscetível de ser conhecida em sede de recurso por não ser de conhecimento oficioso.
Sem embargo, sempre a mesma seria de julgar improcedente.
Na verdade, à data da resolução do contrato (29.01.2013) não existiam ainda os n.ºs 5 e 6 do art. 1041.º do CC, introduzidos pela Lei n.º 13/2019, de 12 fevereiro, que agora vêm estabelecer, caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora, que o senhorio deve notificar o fiador da mora e das quantias em dívida nos 90 dias seguintes, apenas podendo exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito após efetuar tal notificação.
Como salienta o Ac. do STJ de 30/11/2021 (relator Vieira e Cunha), in www.dgsi.pt., a “necessária notificação prévia ao fiador quanto ao montante das quantias em dívida, prevista hoje no disposto no n.º 5 do art.º 1041.º C.Civil (introduzido na redacção do art.º 2.º da Lei n.º 13/2019, em vigor a partir de 13/2/2019) não assume natureza de norma interpretativa, nos termos do art.º 13.º n.º 1 C.Civil, posto que o anterior regime geral da fiança, aplicado ao arrendamento, não suscitava anteriormente qualquer controvérsia, fosse doutrinal, fosse jurisprudencial, pelo que a ponderação da norma é de afastar ao caso dos autos, ocorrido na vigência da norma proveniente da reforma de 1977 do Código Civil”.
Refira-se ainda e finalmente, que a circunstância da extinção da obrigação principal determinar a extinção da fiança, como previsto no art. 651.º do CC, não exclui a responsabilidade dos fiadores pelas consequências da mora ou culpa do devedor em resultado da fiança anteriormente prestada, como expressamente salvaguardado pelo já mencionado art. 634.º do CC[24].
Resta concluir que, neste caso e atento o âmbito e o teor do contrato de fiança celebrado, não merece censura a sentença proferida na parte em que considera que os 2ºs RR. devem ser, pessoal e solidariamente, responsabilizados enquanto fiadores pela indemnização resultante da mora na entrega do locado, correspondente ao dobro da renda por cada mês de atraso na sua restituição.
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3. Da ampliação do objecto do recurso deduzida nas contra-alegações (arts. 636º, n.ºs 1 e 2, e 640º, n.º 3, do CPC).
Mercê da total improcedência da apelação, considero prejudicada a apreciação da ampliação do âmbito do recurso deduzida pela A./recorrida[25].
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4. Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do art. 527º do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que lhes tiver dado causa, presumindo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção.
Como a apelação foi julgada improcedente, mercê do princípio da causalidade, as custas da apelação serão da responsabilidade dos recorrentes (art. 527º do CPC).
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V. DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo dos Réus/recorrentes (art. 527.º do CPC).
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Guimarães, 26 de setembro de 2024
Alcides Rodrigues (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Afonso Cabral de Andrade (2º adjunto)
[1] Cuja certidão judicial foi junta com a petição inicial como doc.1, [2] Como, aliás, reconhecido no despacho saneador. [3] Cfr. Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 2017 - 3ª Ed., Almedina, p. 329. [4] Cfr. Acs. da RP de 6/02/2023 (relatora Eugénia Cunha) e de 20/05/2024 (relatora Teresa Fonseca), in www.dgsi.pt. [5] Cfr. na jurisprudência, entre outros, os Acs. do STJ de 12/06/2012 (relator Nuno Cameira), de 20/11/2012 (relator Garcia Calejo), de 11/05/2023 (relatora Catarina Serra (Relatora), de 12/12/2023 (relator Ricardo Costa); Acs. da RP de 23/03/2023 (relatora Isabel Ferreira), de 28/09/2023 (relator Paulo Teixeira) e de 20/05/2024 (relatora Teresa Fonseca); Acs. da RL de 10/05/2018 (relator Luís Mendonça), de 13/10/2022 (relatora Inês Moura) e de 6/02/2024 (relator Carlos Oliveira), todos disponíveis in www.dgsi.pt. [6] Cfr. Da Cessação do Contrato (…), p. 330 e Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos, 2000, Almedina, pp. 183/184. [7] Cfr. Arrendamento Urbano, 8.ª ed., Almedina, 2018, pp. 102/103. [8] Cfr. Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 1250.), coord. Ana Prata, Almedina, 2017, anotação ao art. 1045º, p. 1272. [9] Cfr. Código Civil Anotado, vol. II, 3ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, 1986, p. 406. [10] Cfr. Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, coordenação de António Menezes Cordeiro, 2014, Almedina, pp. 81-82- [11] Cfr. Arrendamento – Lições ao Curso do 5º ano de ciências jurídicas de 1988/88, 1988, pp. 201/202. [12] Desconhece-se a data da efetiva citação dos RR., inexistindo nos presentes autos elementos que nos atestem o dia da verificação dessa incidência processual.
De todo o modo, a não ter sido feita dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias (art. 323º, n.º 5 do CC). [13] Cfr. Laurinda Gemas, Albertina Pedroso, João Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano, Quid Juris, Lisboa 2009, p. 258 e o Ac. da RL de 10/05/2018 (relator Luís Correia de Mendonça), in www.dgsi.pt. [14] Cfr. Ac. da RL de 4/05/2006 (relator Salazar Casanova), in www.dgsi.pt. [15] O período decorrido até outubro de 2013, como bem se ressalva na sentença recorrida, encontra-se abrangido pelo caso julgado formado nos autos n.º 1559/13.8TBBRG, não podendo ser objecto de nova decisão. [16] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª ed., Almedina, pp.28, 29, 109 e 110, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2º ed., 1997, Lex, p. 395, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª Ed., Almedina, p. 566; Acs. STJ 3-02-2011 (relatora Maria dos Prazeres Beleza), de 12-5-2011 (relator Sérgio Poças), de 5/05/2016 (relator Oliveira Vasconcelos), Ac. da RC de 22.10.2013 (relator Barateiro Martins) e Ac. da RG de 23/11/2017 (relator Beça Pereira), todos disponíveis in www.dgsi.pt. [17] Cfr. Ac. do STJ de 7/07/2016 (relator Gonçalves Rocha) e Ac. da RG de 24/11/2022 (relator Joaquim Boavida), in www.dgsi.pt. [18] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª ed., Almedina, p. 467. [19] Cfr. Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 2ª ed., Almedina, p. 45. [20] Cfr. L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito Das Garantias, 2017, 2ª Ed., Almedina, p. 87. [21] Cfr. Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, 1987, p. 651. [22] Cfr. Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 1250.), coord. Ana Prata, Almedina, 2017, anotação ao art. 634º, p. 818. [23] Cfr., para além dos arestos expressamente mencionados, no mesmo sentido e a título exemplificativo, os Acs. da RP de 15/09/22 (relator Carlos Portela), de 11/10/22 (relator Fernando Vilares), Ac da RL de 27/09/22 (relator Maria da Conceição Saavedra, in www.dgsi.pt. [24] Cfr. Ac. da RL de 13/10/2022 (relatora Inês Moura), in www.dgsi.pt. [25] Como refere António Santos Abrantes Geraldes, “apenas fará sentido apreciar as questões suscitadas em sede de ampliação do objeto do recurso se, porventura, forem acolhidos os argumentos arrolados pelo recorrente (ou de que oficiosamente forem conhecidos) com repercussão na modificação da decisão recorrida” (cfr. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª ed., Almedina, p. 118).