PETIÇÃO DEFICIENTE
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Sumário


I – A falta de causa de pedir consiste na omissão de factos essenciais (apenas estes) que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido.
II - A petição inepta por falta de causa de pedir ou pedido, enquanto vício formal, distingue-se da petição deficiente, que é uma questão de mérito ou substancial que conduz à inviabilidade ou improcedência.
III – Existe incompatibilidade de pedidos quando as pretensões se excluem mutuamente, sejam contrárias entre si de tal forma que uma impede o exercício da outra, colocando o juiz na impossibilidade de decidir face à ininteligibilidade do pensamento do autor.
IV - Actualmente, diversamente do que acontecia na vigência do Código de Processo Civil de 1961, agora, face ao que se dispõe no artigo 590.º, n.s 2, al. b), e 4, do CPC, o poder do juiz de convidar as partes a aperfeiçoar os seus articulados quando estes revelem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada não é um poder discricionário, mas antes um poder-dever.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

AA, contribuinte fiscal número ...04, residente em Montinhos ..., ... Luz, ..., veio propor acção de condenação com processo comum contra, EMP01..., UNIPESSOAL LDA, NIPC ...73, com sede em Travessa ..., ... ..., ..., e EMP02..., S.A, NIPC ...68, com sede na ... ..., pedindo:

- A resolução do contrato de compra e venda celebrado com a 1.ª R., com consequente devolução da viatura objecto mediato desse contrato e resolução do contrato de crédito automóvel n.º ...61 celebrado entre ele, demandante, e a 2.ª R.;
- A condenação da 1.ª R. no pagamento, a seu favor, da quantia de €1.342,77, correspondente às 11 prestações que ele, A., pagou à 2.ª demandada em cumprimento do contrato de crédito até à “citação” e demais prestações que se vierem a vencer;
- A condenação da 1.ª R. no pagamento, a seu favor, da quantia de €3.473,32 a título de danos patrimoniais;
- A condenação da 1.ª R. no pagamento, a seu favor, da quantia de €3.000 a título de danos não patrimoniais.
Alegou, em suma, que comprou à 1.ª R. o veículo automóvel de marca ..., modelo ..., matrícula ..-LC-.., no valor de €7000,00 (sete mil euros), tendo, para pagamento, celebrado um contrato de crédito com a 2.ª Ré, no dia 21 de Junho de 2022, no montante de crédito de €7000,00, correspondente a um total financiado de €7.123,20, bem como a um valor total do custo do crédito de € 3.073,28, sendo o montante imputado ao cliente de € 10.073,28.
Após várias diligências para entrega da viatura, no dia 4 de Julho, constatou a existência de várias anomalias no seu exterior (o espelho retrovisor do lado direito e o friso metálico no teto do carro partidos, o guarda-lamas batido e consequentemente, a pintura raspada e riscada), bem como no seu interior (falta do triângulo luminoso, de tapetes e o vidro da porta da frente, no lado direito não fechava devidamente), para além da falta de entrega do Certificado de Matrícula e selo de Inspeção Técnica Periódica, que só veio a verificar-se após ../../...., com validade até ../../2022, aí se apercebendo também de duas deficiências na chapa do construtor e luzes de nevoeiro.
Invocou, ainda, que tal situação o impossibilitou de fazer uso do veículo durante os meses de Julho, Agosto e Setembro, o que lhe causou graves transtornos na sua vida pessoal e profissional, ficando, ainda, impedido de transportar o seu filho menor, para o infantário em ... e de se deslocar da sua casa para o seu local de trabalho e efectuar todas as deslocações respeitantes à sua vida pessoal.
Aduziu também que, a 12 de Dezembro de 2022, reportou igualmente à 1ª Ré que o motor de arranque do carro estava partido e que o iria levar à oficina, sem que tivesse obtido, mais uma vez, resposta da 1º Ré, pelo que procedeu à sua reparação, tendo pago o valor de €233,07.
Acrescentou que, tendo, em Janeiro de 2023, detectado mais avarias, nomeadamente o alternador e o tubo da água, teve de pagar também o valor de €584,58 e, não tendo o veículo a chapa de fabricante da ..., ficou impedido de realizar o registo do veículo, pelo que teve de requerer junto do IMT a referida chapa, que o onerou com um custo total de €230,20.
Referiu que, após a colocação da chapa de fabricante, levou o veículo à inspeção técnica periódica tendo o veículo sido reprovado pela verificação de anomalias na chapa de construtor, luzes de nevoeiro, luz de chapa de matrícula, pneus, fuga de combustível, cintos de segurança, airbag e fuga de fluido, que implicava um custo total de €2.389,28, o que reportou à 1.ªRé.
Mencionou que, após a reprovação da inspeção periódica, está impedido de usar o veículo, sem que a 1ª Ré alguma vez tenha respondido às suas interpelações ou reparações, bem sabendo que vendeu o veículo com os defeitos na carroçaria do veículo e no motor.
Tal situação, concluiu, causou-lhe prejuízos patrimoniais e não patrimoniais no Autor.

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A 2.ª Ré contestou, arguindo a ilegitimidade do A. e alegando ter cumprido integralmente as suas obrigações por força do contrato de crédito celebrado com o A., no mais impugnando os factos
Deduziu ainda pedido reconvencional subsidiário, peticionando, no caso de procedência da acção, a condenação da 1.ª R. no pagamento, a seu favor, “do capital mutuado”, acrescido de juros moratórios contados desde a sentença condenatória até efectivo e integral pagamento.
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Ao abrigo do disposto no art. 590.º/2/al. b) e 4 CPC, o tribunal a quo convidou o A. a aperfeiçoar a p.i. apresentada, nos seguintes termos:
− explicitando, por um lado, a que se refere a ”chapa de fabricante” a que alude nos arts. 28.º e 29.º da p.i. e qual a sua essencialidade para a circulação da viatura;
− justificando quais as anomalias dos componentes elencados no art. 30.º da p.i. que levaram à não aprovação do veículo na inspecção a que foi sujeito.
No mesmo prazo deverá ainda:
− justificar o valor atribuído à presente acção;
− pronunciar-se sobre a excepção deduzida na contestação.
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O A. veio pronunciar-se sobre a excepção arguida, pugnando pela sua improcedência e apresentar requerimento ao convite feito pelo tribunal.
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 Mais uma vez  o tribunal a quo notificou o A. para esclarecer qual foi o preço de venda do LC, uma vez que da redacção dada ao art. 8.º da p.i. parece resultar que esse preço foi de €7.000 mas no doc. n.º 2 junto com o petitório é indicado o valor de €6.500.
O A. veio responder, em cumprimento do determinado.
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 Posteriormente, foi o A. novamente notificado para se pronunciar sobre a falta de causa de pedir e a contradição entre pedidos fundamentos de ineptidão da petição inicial (cfr. art. 186.º/2/als. a) e c) CPC) que o tribunal a quo considerava verificar-se, o que o A. fez, no sentido de considerar não ser inepta a petição inicial, pugnando, assim, pela procedência da acção.
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Em sede de despacho saneador, o tribunal a quo, quanto à excepção de ilegitimidade arguida, entendeu que, tendo o contrato de mútuo sido celebrado entre o A. e BB e a 2.ª demandada, se afigurava que aquela não poderia deixar de ser parte na acção, pelo que se tornava necessário o chamamento à demanda, julgado, no entanto, a realização de tal acto inútil.
Seguidamente, foi fixada à acção o valor de €13.973,32 e ao pedido reconvenconal o valor de €9.033,18, consequentemente, se fixando à causa o valor de €21.096,52.
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Após, considerando, em suma, que o pedido reconvencional não foi deduzido contra o A. mas sim contra o co-réu, o que a lei não permite (cfr. art. 266.º/1 CPC), não foi admitido o pedido reconvencional deduzido.
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Já quanto à ineptidão da petição inicial, levando em conta o pedido formulado e o alegado, o tribunal a quo entendeu ser de concluir que o A. terá despendido a quantia de €1.047,85 para reparar algumas anomalias da viatura e que as desconformidades detectadas na inspecção técnica periódica cuja eliminação ascenderá a €2.389,38 não foram eliminadas.
Assim, referiu que ‘a pretensão indemnizatória quanto ao pagamento da quantia de €2.389,28 pressupõe a manutenção do contrato de compra e venda celebrado entre o A. e a 1.ª R., uma vez que sendo reclamada a resolução do contrato, as partes são obrigadas a restituir tudo o que tiver sido prestado (art. 289.º/1 ex vi art. 433.º, ambos do CC) e, consequentemente, o demandante terá de restituir o automóvel.
Os pedidos formulados são, assim, incompatíveis.
É certo que, em sede de exercício do contraditório, o A. vem arguir tratar-se de manifesto lapso a indicação, na alínea c) do seu petitório, da quantia de €3.473,32, já que quereria dizer somente €1.047,85.
Resulta de todo o processado que essa indicação não se deveu a lapso. Aliás, o A. foi notificado para justificar o valor atribuído à acção e voltou a repetir, nessa sede, nos seus precisos termos, o teor da pretensão constante da alinea c).
Foi apenas quando confrontado com a ineptidão da p.i. suscitada oficiosamente pelo Tribunal que veio tentar “emendar a mão.”
Também quanto ao pedido formulado em d) (pagamento de uma indemnização a título de danos não patrimoniais) não poderá deixar de se entender ser a p.i. inepta, por falta de causa de pedir.
Com efeito, o A. limita-se, neste particular, a invocar a existência de transtornos pela impossibilidade de utilização da viatura.
A ineptidão da petição inicial acarreta a nulidade de todo o processado a ela subsequente (art. 186.º/1 CPC), o que consubstancia uma excepção dilatória (art. 577.º/al. b) CPC), de conhecimento oficioso (art. 200.º/2 CPC) e determina a absolvição dos RR. da instância (art. 278.º/1/al. b) CPC), o que se declara ao abrigo dos referidos normativos’.
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II- Objecto do recurso

Não se conformando com a decisão proferida veio o A. interpor recurso, juntando, para o efeito, as suas alegações, e apresentando, a final, as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto do douto despacho (refª ...29) que declara a ineptidão da petição inicial, com a consequente nulidade de todo o processo a ela subsequente nos termos do art.º 186º, nº1 do CPC, o qual consubstancia uma exceção dilatória nos termos do art.º 577º, al. b) do CPC, de conhecimento oficioso conforme art.º 200º nº 2 do CPC e determina a absolvição dos RR da instância nos termos do art.º 278º, nº 1, al. b) do CPC, argumentando que os pedidos, a) e c) são incompatíveis entre si e quanto ao pedido formulado em d), o mesmo carece de causa de pedir suficiente.
B. O tribunal a quo, por despacho em 31-01-2024 (ref.ª ...97) pede ao autor que se pronuncie relativamente à contradição entre o pedido formulado em a) e aquele formulado em c) na parte relativa aos €2.389,28 e ainda, quanto ao pedido formulado em d) no que respeita à condenação da 1ª Ré no pagamento de uma indemnização a título de danos não patrimoniais.
C. O aqui recorrente, pronuncia-se e penitencia-se pelo lapso cometido no pedido formulado em c) (indemnização pelos danos patrimoniais), apercebe-se que, em vez de escrever €1.047,85 pelo montante despendido na eliminação das anomalias, escreveu o montante de €3 473,32.
D. O Tribunal a quo, não obstante, pedir ao Autor que se pronuncie relativamente à contraditoriedade, não aceita a resposta justificativa do lapso, conforme declara no douto despacho, ora recorrido, que se transcreve “Resulta de todo o processado que essa indicação não se deveu a lapso. Aliás, o A. foi notificado para justificar o valor atribuído à acção e voltou a repetir, nessa sede, nos seus precisos termos, o teor da pretensão constante da alínea c). Foi apenas quando confrontado com a ineptidão da p.i. suscitada oficiosamente pelo Tribunal que veio tentar “emendar a mão.”
E. Ora, resulta de todo o processado e dos factos articulados na p.i dos artigos 15º ao 41º, que a causa de pedir fundamenta os pedidos formulados em a), b) e c), pois o autor, aqui recorrente, não só elenca as anomalias que impedem a utilização do veículo, como no art.º 21º alega que pretende resolver o contrato “Em 13 de Julho, o Autor quer resolver o contrato de financiamento com a 2ª Ré” e reforça no art.º 39º a pretensão da resolução do contrato, “O Autor pretende ver resolvido o contrato de compra e venda do veículo, com a 1ª Ré…”.
F. No que concerne à falta de causa de pedir, no pedido formulado em d) (Pagamento de uma indemnização a título de danos não patrimoniais), o autor, aqui recorrente, nos artigos 23º, 24º e 32º, da p.i alega os graves transtornos causados pela impossibilidade de usar o veículo, aliás que melhor esclareceu na resposta ao despacho (ref.ª ...97) e que transcrevemos “Quanto ao pedido formulado em d) (condenação da 1ª Ré no pagamento de uma indemnização a título de danos não patrimoniais), no entender do aqui expoente são suficientes os factos constantes da p.i, no artigo 23º e 24º e ainda, tudo o que se infere na matéria alegada. Pois, os graves transtornos elencados na p.i, referem-se, ao impedimento, de o Autor, usar e usufruir do veículo, objeto mediato do contrato de compra e venda, devido às anomalias e, consequente reprovação, na inspeção técnica periódica. Tais transtornos, traduzem-se na não utilização do veículo por vícios, que estorvaram o Autor de transportar o seu filho menor, de casa (...) para a escola (...), cuja distância é 12 quilómetros, e vice-versa, e de o Autor se deslocar de casa (...) para o seu local de trabalho (Luz), cuja distância é 5 quilómetros, e vice-versa, para além de todas as outras deslocações que necessitou de fazer no âmbito da sua vida pessoal. Ora, estes transtornos serão tidos como danos não patrimoniais e deverão ter a devida tutela jurídica.”
G. Os artigos 23º, 24º e 32º da petição inicial, complementados pela pronúncia ao despacho, expõem suficientemente os graves transtornos sofridos pelo autor, aqui recorrente, devido à impossibilidade de utilizar o veículo, constituindo causa de pedir para os danos não patrimoniais reclamados no pedido d).
H. A petição inicial contém todos os elementos necessários para fundamentar a causa de pedir quanto aos danos não patrimoniais, não havendo verdadeira falta de indicação da causa de pedir.

Assim,
I. O douto despacho, aqui recorrido, padece de erro de interpretação e aplicação do direito, violando o pugnado no art.º 186º. do CPC.
J. Pelo que terá que ser anulado o despacho proferido e ordenado o prosseguimento dos trâmites legais do processo, por não se verificar a procedência da exceção de Ineptidão da Petição.
K. Ao contrário da douta opinião da Mmª. Juiz a quo, salvo mais douta opinião, a causa de pedir e os pedidos estão bem delineados e patentes, na petição inicial, sendo substancialmente compatíveis.
L. Conforme esclarecido pelo Dr. Abrantes Geraldes, a petição inicial deve ser inteligível e a causa de pedir deve ser exposta com clareza, o que é cumprido pela petição inicial, permitindo a apreensão segura da causa de pedir. Ora,
M. O autor pretende a indemnização quanto ao pagamento da quantia de €1.047,85 que despendeu na eliminação de algumas desconformidades apresentadas pelo automóvel, e a resolução do contrato de compra e venda celebrado com a 1ª Ré, com a consequente devolução da viatura, objeto mediato desse contrato e resolução do contrato de crédito automóvel celebrado entre ele e a 2ª Ré.
N. É certo que por lapso, quando o autor formula o pedido na alínea c) consta o valor da quantia orçamentada para a eliminação das desconformidades identificadas na inspeção técnica periódica, no total de €2.389,28, mas não é menos certo que na resposta, ao douto despacho, do tribunal a quo, o autor tendo-se dado conta dessa situação pronuncia-se, penitencia-se e esclarece, cabalmente, o pedido.
O. Não houve uma justa apreciação da resposta do autor à contradição entre os pedidos formulados, sendo que a indicação do valor no pedido c) resultou de um lapso e não de uma intenção contraditória.
P. Entende o recorrente que o tribunal a quo deveria ter convocado uma Audiência Prévia, a fim de serem discutidas as exceções, pois não estava obrigado a pronunciar-se antes desse momento, em obediência ao disposto no art.º 591º, nº 1, alínea b) do CPC, o que configura uma nulidade processual.
Q. Atente-se o que diz a jurisprudência sobre a não realização da Audiência Prévia no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo nº 974/20.5T8AGD-A.P1 “I-Quando se pretende conhecer (no todo ou em parte) do mérito da causa, a Audiência Prévia só pode ser dispensada se, por um lado, no despacho que ordenou a notificação das partes, para se pronunciarem quanto à dispensa de tal formalidade processual o T. a quo tivesse expressamente mencionado o sentido da sua posterior decisão, de modo a acautelar decisões surpresa (art.º 3º nº 3 do CPC) e, por outro, se ambas as partes estivessem de acordo quanto à prescindibilidade da mesma. II- A não realização da Audiência Prévia constitui uma irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa e se converte numa nulidade processual (art.º 195º nº1 do Código de Processo Civil), a qual podia ser arguida- como foi- em sede de recurso e conduz à anulação do despacho saneador-sentença.”
R. Resulta, assim, que a não realização da Audiência Prévia sem a prévia notificação das partes para se pronunciarem quanto à dispensa da mesma constitui uma nulidade processual.
S. Face ao exposto padece do vício de ilegalidade o douto despacho recorrido, por ter julgado procedente a exceção de ineptidão da petição inicial, quando a mesma não verifica.
T. Pelo que teremos que concluir que é exigível que se proceda a um controlo sobre a matéria de facto alegada, por forma a que a decisão recorrida seja reponderada, tendo em conta a causa de pedir e os pedidos formulados, assim como a prova documental que se encontra junta aos autos e que seja feita uma correta aplicação do direito ao caso sub judice.
U. Ainda como refere o Acórdão do STJ, no processo nº 417/08.9TVLSB.L1.S1, de 27-05/10, "Efectivamente, a petição inicial, embora imperfeita, é suficientemente explícita para permitir a qualquer declaratário normal colocado na posição do real declaratário (art° 2360 do Código Civil) ou a um diligente bom pai - e mãe - de família, compreender os contornos da relação material controvertida, mesmo que, como aqui acontece, esses contornos não se encontrem claramente definidos."
V. O recorrente apresentou os elementos essenciais ao prosseguimento da sua pretensão, uma vez que indicou os factos do direito ou da pretensão que pretende fazer valer, nomeadamente a referência à resolução do contrato de compra e venda do automóvel, o qual acarretará o contrato de crédito com ele coligado e consequentemente a restituição do automóvel.
W. Logo, inexiste fundamento para que o tribunal a quo declarasse a ineptidão da petição inicial do ora recorrente.
Termos, em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser o despacho julgado nulo pelo vício suprarreferido e ser considerada improcedente a exceção dilatória de ineptidão da petição inicial, com as demais legais consequências, pois que só assim se permitirá que se faça a imposta e devida JUSTIÇA!
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Não consta terem sido apresentadas contra-alegações.
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Recebido o recurso, foram colhidos os vistos legais.
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III. O Direito aplicável

Como resulta do disposto nos arts. 608.º, n.º 2, ex. vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n. os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex. officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Face às conclusões das alegações de recurso, cumpre apreciar e decidir sobre a ineptidão da petição inicial, apurando se tal excepção se verifica, ou não, em conformidade com o decidido.
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Fundamentação de facto

- a matéria vertida no relatório enunciado no ponto I, aqui dada por reproduzida.
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Fundamentação Jurídica

Como decorre do exposto, importa apurar se a petição inicial é inepta.

Dispõe o artigo 186.º, n.º 1 e 2, alíneas a) e c) do Código de Processo Civil, o seguinte:

“1 - É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2 - Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a ndicação do pedido ou da causa de pedir (…)
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.“
Como dispõe o artigo 552.º, n.º 1, al. d), do CPC, na petição inicial deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção.
Assim, na narração há que enunciar os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção, ou seja, a causa de pedir (467º, n.º 1, al. d)), que constitui o conjunto dos fundamentos de facto e de direito da pretensão alegada pelo autor.
O papel da petição inicial tem essencialmente três fins: dar início à instância, expor os fundamentos da pretensão do autor e designar o seu objecto (cfr. A. dos Reis, Cód. Proc. Civil Anot. VolI, Coimbra 1981, pág. 335).
E, como refere o mesmo autor na obra citada a páginas 337, o ‘autor, propondo a acção, submete à apreciação do tribunal um determinado conflito de interesses entre ele e o réu; mas não se limita a narrar os factos, deixando ao tribunal o encargo de os apreciar; cabe-lhe o risco e o ónus de formular a razão que se propõe fazer valer. Por outras palavras, o autor tem de expor o seu juízo, a sua apreciação a respeito do tratamento que a ordem jurídica dita para a situação concreta submetida ao tribunal.
O autor vem a juízo pedir determinada providência; há-de dizer a razão por que a pede. Diz a razão, expondo a situação de direito, tal como ele a concebe’.
Encarada na sua forma externa, a petição inicial é uma peça, um articulado, que tem de ter princípio, meio e fim.
Assim, a falta de causa de pedir consiste na omissão de factos essenciais (apenas estes) que servem de fundamento ao efeito jurídico pretendido.
A petição inepta por falta de causa de pedir ou pedido, que é um vício formal, distingue-se da petição deficiente, que é uma questão de mérito ou substancial que conduz à inviabilidade ou improcedência.
O autor pode deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação – art. 555º nº 1 do C.P.C.
Na cumulação de pedidos exige-se a compatibilidade substancial ocorrendo incompatibilidade quando as pretensões se excluem mutuamente, sejam contrárias entre si de tal forma que uma impede o exercício da outra, colocando o juiz na impossibilidade de decidir face à ininteligibilidade do pensamento do autor.
Como refere Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3º, Coimbra Ed., 1946, p. 154 e 156 “d[D]uas ou mais pretensões são legalmente incompatíveis quando produzam efeitos contraditórios ou sob o aspecto material, ou sob o aspecto processual. (…). Exemplo nítido de incompatibilidade substancial: o autor pede simultaneamente a anulação e o cumprimento de determinado contrato.”

Naturalmente que a ineptidão só ocorre quando nos encontramos perante uma cumulação simultânea, i.e., quando se pede que sejam julgados procedentes por igual todos os pedidos, e não no caso de cumulação alternativa (art. 553º do C.P.C.) ou subsidiária (art. 554º do C.P.C.).
Acontece que, mesmo no caso de pedidos substancialmente incompatíveis, no âmbito da reforma do C.P.C. de 2013, designadamente José Lebre de Freitas, in A Ação Declarativa Comum, 3ª ed., Coimbra Ed., p. 49-50, veio defender que “(…) o disposto no art. 6-2 leva a que o tribunal deva convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que tenha deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende que seja apreciado na acção ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade. Fora destes casos, a ineptidão da petição dificilmente deixará de constituir nulidade insanável (…)”.
A jurisprudência, alicerçada nestes ensinamentos, vem defendendo o convite ao aperfeiçoamento nestas situações – entre outros Ac. da R.P. de 03/03/2016 (Filipe Caroço), da R.C. de 31/05/2016 (Maria João Areias), in www.dgsi.pt.
Na verdade, actualmente, diversamente do que acontecia na vigência do Código de Processo Civil de 1961, agora, face ao que se dispõe no artigo 590.º, n.os 2, al. b), e 4, do CPC, o poder do juiz de convidar as partes a aperfeiçoar os seus articulados quando estes revelem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada não é um poder discricionário, mas antes um poder-dever, um poder vinculado (“Incumbe ainda ao juiz convidar as partes…”). cfr neste CPC Anotado, Lebre de Feitas e Isabel Alexandre, Vol.II,p. 635).
Como também fazem notar A.S. Abrantes Geraldes, Pires de Sousa e Pimenta (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2019, pág. 678), «m[M]anifesta-se aqui um verdadeiro dever legal do juiz (despacho de aperfeiçoamento vinculado), no sentido de identificar os aspectos merecedores de correcção».
Mas o convite ao aperfeiçoamento (como o próprio termo inculca) supõe que os articulados revelem um conteúdo fáctico mínimo, ainda que deficientemente expresso.

Conforme salienta A.S. Abrantes Geraldes e outros (CPC anotado, 679), «o[O] convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é perceptível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos».

Ora, in casu, o A. invoca que, em consequência das iniciais anomalias que detectou, tal situação o impossibilitou de fazer uso do veículo durante os meses de Julho, Agosto e Setembro, o que lhe causou graves transtornos na sua vida pessoal e profissional, ficando, ainda, impedido de transportar o seu filho menor, para o infantário em ... e de se deslocar da sua casa para o seu local de trabalho e efectuar todas as deslocações respeitantes à sua vida pessoal.
Aduziu também que, tendo, em Janeiro de 2023, detectado mais avarias, por si especificadas, e após a reprovação ocorrida com a inspeção técnica periódica, ficou novamente impedido de usar o veículo.
Daqui decorre que o A., não especificou os ‘graves transtornos´ por si genericamente sofridos, de forma tão precisa, detalhada, concreta e minuciosa quanto seria desejável, mas também não se pode concluir que ocorra falta de causa de pedir como o faz o tribunal a quo.
Estar-se-á, quando muito, em face de uma peça processual deficiente, imprecisa, a ser alvo de uma correcção, por forma a serem especificados todos os elementos fácticos que a integram, por via de um convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos.
Isto relativamente ao pedido da al. d).
Quanto ao pedido da al. c), após os anteriores despachos do tribunal a quo, como se reconhece, o A. veio esclarecer ter-se tratado de um manifesto lapso a indicação da quantia de €3.473,32, já que pretendia indicar apenas o valor de €1.047,85.
E se, apesar de se concordar com o tribunal a quo, quanto ao facto de ao peticionar o A. a resolução do contrato, não poder depois pretender receber uma quantia por si não suportada, por essa pretensão indemnizatória pressupor a manutenção do contrato, tal implicaria tão só a redução do pedido à quantia restante, a demonstrarem-se os factos alegados nesse sentido, ou seja, ao valor de €1.047, 85.
De qualquer das formas, tendo o A. vindo declarar nos autos ter-se tratado de um lapso, sempre se teria de aceitar a correcção do mesmo, com a inerente alteração do respectivo valor da acção.
Como tal, ao abrigo do disposto nos arts. 590.º, n.º 2, al. b), n.º 4, do Cód. Proc. Civil, teria o tribunal recorrido o poder-dever de convidar o autor a aperfeiçoar a petição.
Nestes termos, tem, pois, o recurso de proceder, devendo o tribunal a quo convidar o autor a aperfeiçoar a petição, nos termos expostos, agora a título definitivo, aí fazendo constar todas as especificações e correcções.
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IV. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se nesta 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso, revogando, consequentemente a decisão recorrida, a qual deve ser substituída por outra que convide o autor a aperfeiçoar a petição inicial nos termos determinados.
Sem custas.
Notifique.