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PROCEDIMENTO CAUTELAR
PRESERVAÇÃO DA PROVA A REALIZAR NUM PROCESSO
Sumário
I - Pode instaurar-se um procedimento cautelar para obter o decretamento de uma providência cautelar cujo objecto e finalidade seja preservar o estado de coisas que vai ser objecto da prova a realizar oportunamente num processo. II - Mesmo quando a colaboração exigida pelo tribunal ao abrigo do artigo 417.º do Código de Processo Civil vise a preservação das condições para a produção da prova a realizar, a providência cautelar e a ordem proferida ao abrigo daquele preceito possuem regimes de decretamento, consequências e tutelas distintas, podendo existir uma sem a outra.
Texto Integral
RECURSO DE APELAÇÃO ECLI:PT:TRP:2024:4452.23.2T8VNG.C.P1
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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
I. Relatório: AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., instaurou acção declarativa sob a forma comum contra Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de BB, CC, contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., DD, EE, FF e GG, todos residentes em Albergaria-A-Velha, formulando contra estes os seguintes pedidos: (i) seja declarado que BB não é o pai biológico do Autor; (ii) seja investigada a paternidade do Autor, relativamente ao 3º Réu DD, investigando-se se este é efectivamente o seu pai biológico e em caso afirmativo ser este condenado a reconhecer a paternidade do Autor; (iii) se reconheça e declare que o Autor é filho de DD e que este é pai biológico daquele; (iv) seja ordenada a rectificação do registo de paternidade declarada/presumida do Autor, constante do assento de nascimento deste último, sendo eliminado do assento de nascimento do Autor as referências, como pai, a BB e, como avós paternos a HH e II e ordenada a inscrição no seu assento de nascimento do Réu DD, como pai do biológico do Autor, e JJ e KK, como avós paternos.
Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que não é filho da pessoa que na qualidade de presumido pai consta do respectivo assento de nascimento, mas sim do réu DD, pretendendo ver a sua paternidade real reconhecida.
A terminar a petição inicial requereu a realização de exame hematológico ou da colheita de ADN ao Autor e ao 3º Réu, para realização de teste de paternidade pelo Instituto Nacional de Medicina Legal.
Requereu ainda o seguinte: «atenta a idade do 3º Réu, o qual tem já 89 anos de idade, e ao facto de, se este falecer na pendencia da presente acção, os seus filhos legítimos poderem fazer a sua cremação, solicita a realização desta perícia com a máxima urgência, nos termos do disposto no artigo 419º do C.P.C., devendo realizando-se antecipadamente o teste de ADN, antes da citação, dado haver justo receio de vir a tornar-se difícil e/ou impossível a realização da requerida perícia».
Em 25 de Setembro de 2023, antes de se ter procedido à citação dos réus, foi «nos termos do artigo 419º do C.P.C.» ordenada «a realização de exame hematológico ou da colheita de ADN para realização de teste de paternidade, com vista a aferir se o 3º Réu DD é pai do autor».
Desde despacho foi interposto recurso, o qual obteve provimento, tendo a Relação revogado o despacho e ordenando a sua substituição «por outro que determine a notificação dos réus para se pronunciarem sobre a requerida antecipação de prova».
Ainda antes de a Relação do Porto ter julgado o recurso mencionado, foi proferido nos autos despacho com o seguinte conteúdo:
«Notifique os réus que o réu DD se falecer não pode ser cremado sem antes ter havido a recolha de ADN por parte do IML para ser efectuada a perícia.
Se tal acontecer, os réus serão condenados numa multa por falta de colaboração com o Tribunal e será apreciado o valor da recusa de cumprimento desta decisão para efeitos probatórios nos termos do artigo 417º, nº3, do C.P.C.
Oficie à junta de Freguesia da área de residência do réu DD, com a informação de que este não pode ser cremado sem antes ser feita a recolha de ADN pelo IML para se efectuar o exame ordenado nestes autos.»
Deste despacho, vieram os réus JJ e FF interpor recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1.ª – Por despacho datado de 17/01/2024, com a Ref.ª 131022929, o Tribunal a quo proibiu a cremação do Réu DD previamente à recolha de ADN por parte do IML para ser efectuada a perícia, no caso de falecimento deste.
2.ª – Ao determinar a realização de recolha de ADN para ser efectuada a perícia, no caso de falecimento do Sr. DD no decurso do processo, o Tribunal a quo está, implicitamente e desde logo, a admitir aquele concreto meio de prova.
3.ª – Sobre a admissão deste meio de prova (ou o seu objecto) os Recorrentes não tiverem oportunidade de se pronunciarem, razão pela qual o despacho de que ora se recorre viola o princípio do contraditório, ao abrigo das disposições dos artigos 415.º e 3.º do CPC, bem assim como do artigo 476.º, n.º 1 do mesmo diploma no concreto caso da prova pericial.
4.ª – Assim, o despacho de que ora se recorre consubstanciou uma decisão surpresa para os Recorrentes, a qual não é admitida no nosso ordenamento jurídico, como resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06/07/2023, proferido no âmbito do processo n.º 248/19.4T8FNC.L1-6: “1. – Cabe ao juiz, por imposição do art.º 3º, do CPC, respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa”, “2. – Por decisão- surpresa deve entender-se aquela que envereda por solução dada a questão relevante para a decisão da causa e que, embora naturalmente previsível, não foi em todo o caso configurada pela parte, e sem que a mesma tivesse obrigação de a prever”, é o caso.
5.ª – Conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02/12/2019, “VII – A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar”, nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC.
6.ª – Por isto, deverá o despacho de que ora se recorre ser anulado na parte em que determina a recolha de ADN ao Sr. DD após o seu falecimento para ser efectuada a perícia e, em consequência, também na parte em que determina a proibição da cremação do mesmo para esse efeito, bem assim como todos os termos subsequentes que dele dependam absolutamente, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 195.º do CPC, caso contrário a prova produzida não poderá ser admitida, nos termos do artigo 415.º, n.º 1 do CPC.
7.ª – Sem prescindir, trata-se de despacho que ordena a realização de perícia, no qual o Tribunal a quo não indicou o objecto e âmbito da diligência, em desrespeito pelo exigido nos artigos 476.º, n.º 2 e 477.º do CPC.
8.ª – Resulta do artigo 195.º, n.º 1 do CPC que a omissão de uma formalidade que a lei prescreva produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa, como é o caso.
9.ª – Também por isto, deverá o despacho de que ora se recorre ser anulado na parte em que determina a recolha de ADN ao Sr. DD após o seu falecimento para ser efectuada a perícia e, em consequência, também na parte em que determina a proibição da cremação do mesmo para esse efeito, bem assim como todos os termos subsequentes que dele dependam absolutamente, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 195.º do CPC.
10.ª – Sem prescindir, não houve ainda lugar no processo a audiência prévia e não foi proferido despacho saneador e, como tal, o Tribunal a quo ainda não conheceu das excepções dilatórias suscitadas pelos Recorrentes em sede de contestação, nomeadamente, da ilegitimidade passiva da “herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de BB” e da falta de personalidade judiciária da mesma, nem das excepções peremptórias da caducidade do direito de intentar acção de impugnação da paternidade presumida e da caducidade do direito de intentar acção de investigação de paternidade.
11.ª – Como se sabe, a procedência de uma das excepções dilatórias invocadas obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância (artigos 1842.º, n.º 1, alínea c), 1873.º, 1817.º, n.º 1 e 576.º, n.º 3 do CPC) e a procedência das excepções peremptórias invocadas importam a absolvição de todos os Réus do pedido (artigos 1842.º, n.º 1, alínea c), 1873.º, 1817.º, n.º 1 e 576.º, n.º 3 do CPC).
12.ª – Portanto, a realização da colheita de ADN por forma a efectuar a perícia se o Sr. DD falecer em momento anterior à apreciação das excepções invocadas consubstanciará um acto inócuo ou inútil e, nos termos do artigo 130.º do CPC “Não é lícito realizar no processo actos inúteis”.
13.ª – Por tratar-se de um acto inútil e ilícito, deverá o despacho de que ora se recorre ser revogado na parte em que determina a recolha de ADN ao Sr. DD após o seu falecimento para ser efectuada a perícia e, em consequência, também na parte em que determina a proibição da cremação do mesmo para esse efeito.
14.ª – Sem prescindir, o vertido no despacho de que ora se recorre (na parte em que determina a proibição da cremação do Sr. DD previamente à recolha de ADN para realização de perícia no caso do seu falecimento) não consubstancia decisão de produção antecipada de prova, na verdade parece que o Tribunal a quo está a decretar uma providência cautelar não requerida, pois em nenhum momento foi requerida tal proibição.
15.ª – Precisamente por nunca ter sido requerida e pelo facto dos Recorrentes não terem tido oportunidade de se pronunciarem sobre tal questão, também por isto o despacho de que ora se recorre consubstanciou uma ‘decisão’ surpresa para os Recorrentes em violação do princípio do contraditório (artigo 3.º, n.º 3 do CPC), a qual não é admitida no nosso ordenamento jurídico.
16.ª – Uma vez que a inobservância do contraditório traduz-se, in casu, numa omissão susceptível de influir no exame ou na decisão da causa, está-se perante uma nulidade processual, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada a possibilidade de se pronunciar.
17.º – Como tal, ao abrigo do disposto no artigo 195.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, deverá o despacho de que ora se recorre ser anulado na parte em que determina proibição de cremação do Sr. DD previamente à recolha de ADN para ser efectuada a perícia no caso do seu falecimento, bem assim como todos os termos subsequentes que dele dependam absolutamente, com as devidas consequências legais.
18.ª – Sem prescindir, desde sempre o Sr. DD manifestou de forma clara e persistente a vontade de, aquando a sua morte, ser cremado e ter uma cerimónia fúnebre restrita, simples e célere.
19.ª – Ora, por via do artigo 71.º do CC, a lei consagra a protecção dos direitos de personalidade depois da morte do respectivo titular, continuando a proteger, desta forma, a honra, o bom nome e a reputação das pessoas já falecidas.
20.ª – Ao proibir que se concretize a vontade sempre manifestada do Sr. DD, em ordem a ser realizada colheita de ADN para ser efectuada perícia, o Tribunal a quo está antecipadamente a violar os seus direitos de personalidade, em total desprotecção dos interesses do mesmo afirmados e potenciados em vida, sem qualquer tipo de ponderação dos interesses em conflito e em desconsideração da existência de paternidade já estabelecida relativamente ao Autor.
21.ª – Por isto, deverá o despacho de que ora se recorre ser revogado na parte em que proíbe a cremação do Sr. DD sem a prévia recolha de ADN por parte do IML para ser efectuada a perícia, no caso do seu falecimento.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser anulado/revogado o despacho proferido pelo Tribunal a quo datado de 17 de Janeiro de 2024, com a ref.ª 131022929, na parte em que determina a recolha de ADN ao Sr. DD após o seu falecimento para ser efectuada a perícia e, em consequência, também na parte em que determina a proibição da cremação do mesmo para esse efeito.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se o despacho recorrido é ilegal e deve ser revogado.
III. Fundamentação de facto:
Os factos que interessam para a decisão são os que constam do relatório.
IV. Matéria de Direito:
A apreciação da legalidade e do mérito do despacho recorrido exige a prévia interpretação e qualificação do mesmo.
No despacho recorrido o tribunal a quo ordenou a notificação dos réus de que se «o réu DD … falecer não pode ser cremado sem antes ter havido a recolha de ADN por parte do IML para ser efectuada a perícia» e ordenou que se informasse a Junta de Freguesia de que o réu DD, naturalmente se e quando falecer, «não pode ser cremado sem antes ser feita a recolha de ADN pelo IML para se efectuar o exame ordenado nestes autos».
Se o despacho em causa for interpretado como um despacho que ordena diligências de execução da prova pericial de investigação da paternidade com recurso ao ADN antes determinada pelo tribunal a quo, o recurso carece neste momento de objecto.
Com efeito, conforme consta do relatório, o despacho que determinou a realização desse meio de prova foi revogado por esta Relação que ordenou que antes de o tribunal recorrido decidir a produção antecipada desse meio de prova requerido pelo autor terá de ouvir a parte contrária, o que ainda não teve lugar.
Em consequência dessa decisão desta Relação, o despacho que ordenou a realização desse meio de prova foi revogado, isto é, deixou de vigorar ou de produzir efeitos no processo, o que implica a destruição ou revogação igualmente de quaisquer actos de execução do meio de prova e, consequentemente, priva qualquer recurso cujo objecto sejam despachos que ordenem actos que ficaram sem efeito de utilidade processual.
Nessa perspectiva, portanto, podia decretar-se a inutilidade superveniente do recurso.
Todavia, sem bem virmos, o despacho em causa não ordenou de facto qualquer acto de execução do meio de prova.
O despacho em causa apenas avalia uma situação futura (a morte da parte e subsequente cremação do respectivo corpo) que pode impedir ou dificultar especialmente a realização da prova pericial (o desaparecimento do corpo da pessoa onde deverão ser feitas as colheitas biológicas para a realização do exame) e ordena aos réus uma actuação destinada a obstar que esse impedimento ou dificuldade especial se venha a colocar (que se abstenham de proceder à cremação antes de ser feita a colheita).
O despacho em causa não ordena qualquer diligência preparatória ou de execução do meio de prova, contrariamente ao que sucederia se ordenasse que de imediato fosse feita a colheita biológica para obstar àquele cenário. O que o despacho faz é acautelar a produção do meio de prova pericial precavendo uma determinada situação futura que a poria em risco.
Nessa medida, o despacho em causa pode ser qualificado como a adopção de uma medida cautelar destinada a assegurar a efectividade do direito do autor à produção da prova.
Afigura-se-nos que é possível instaurar um procedimento cautelar para obter o decretamento de uma providência cautelar cujo objecto e finalidade seja preservar o estado de coisas que vai ser objecto da prova a realizar oportunamente no processo, conforme bem se decidiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 10/3/2022, proc. n.º 22031/21.7T8LSB-A.L1-2, in www.dgsi.pt, e o nosso ordenamento jurídico já consagra expressamente em algumas situações (v.g. artigo 210.º-B do Código dos Direitos do Autor e Direitos Conexos, artigo 340.º do Código da Propriedade Industrial, artigo 20.º, n.º 2, al. d), e 21.º, n.º 3, da Lei da Arbitragem Voluntária e artigo 134.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).
O artigo 362.º do Código de Processo Civil não impede essa possibilidade, bastando considerar abrangido pelo conceito de «direito ameaçado» o direito à prova enquanto dimensão do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva.
Também não impede essa possibilidade a previsão no nosso sistema jurídico-processual civil da produção antecipada da prova (artigo 419.º do Código de Processo Civil) como meio de impedir que se torne impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de perícia ou inspecção.
Basta para o efeito que se leve em consideração que a produção antecipada da prova é já a fase de produção de um meio de prova (daí que tenha de ser realizada com respeito pelo contraditório) enquanto os procedimentos cautelares para decretamento de medidas de preservação da prova são prévios e exteriores à fase da produção do meio de prova e destinam-se apenas a assegurar a manutenção das condições que hão-de permitir a realização daquele (v.g., no caso, a colheita biológica que pode estar em risco e que permitirá a realização prova pericial de exame ao ADN se e quando esta for determinada).
Todavia, com essa qualificação o despacho é ilegal.
Com efeito, o juiz não tem o poder de decretar oficiosamente providências cautelares, qualquer que seja a sua natureza ou objecto. As medidas cautelares só podem ser decretadas no âmbito de um procedimento cautelar requerido pela parte com legitimidade para o fazer e uma vez cumpridas na respectiva instância as regras processuais definidas para a tramitação e decisão do procedimento. Como no caso nada disso ocorreu, a decisão, vista naquele enquadramento, é ilegal e não pode subsistir porque foi proferida totalmente à margem do enquadramento processual no âmbito do qual o juiz teria jurisdição para a proferir.
Existe, contudo, outra leitura possível do despacho.
O artigo 417.º do Código de Processo Civil consagra o dever de cooperação para a descoberta da verdade, impondo esse dever a todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, e especificando que desse dever advém a obrigação de responder ao que lhes for perguntado, submeter-se às inspecções necessárias, facultar o que for requisitado e praticar os actos que forem determinados.
Este dever processual abrange, como vimos, todas as partes na acção, e é independente das regras do ónus da prova recaindo não apenas sobre a parte sobre a qual recai o ónus da prova do facto que demanda a colaboração, como igualmente sobre a parte que não tem esse ónus e à qual não interessa a demonstração do facto (e que por isso tudo fará para impedir a produção do meio de prova em causa).
As consequências da violação desse dever são duas: a condenação em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis, se o recusante for parte; a livre apreciação do valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.
Este dever processual é um dever no processo, no sentido de que os seus limites são apenas as necessidades práticas que se colocam à realização da justiça no processo. Logo, desde que a colaboração esteja relacionada com o objecto do processo e as diligências a realizar no seu âmbito para alcançar a justa composição do processo, o juiz pode impor a colaboração guiado apenas pelos princípios da proporcionalidade, da adequação e da necessidade.
Esta possibilidade não se confunde nem é prejudicada pela providência cautelar ou pela ausência dela, podendo existir sem esta ou à margem desta, na medida em que mesmo quando a colaboração exigida vise a preservação das condições para a produção da prova a realizar, a providência cautelar e a ordem proferida ao abrigo do artigo 417.º do Código de Processo Civil possuem regimes de decretamento, consequências e tutelas distintas (no primeiro caso, veja-se o artigo 375.º, em particular a parte final, no segundo caso o n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Civil).
Esta parece, aliás, ser a qualificação que a Mma. Juíza a quo tinha em mente quando proferiu o despacho em crise. Neste, depois de mandar notificar os réus filhos do pretenso pai biológico, DD, de que, em caso de falecimento deste, a respectiva cremação tem de ser antecedida da colheita pelo INML de vestígios biológicos com ADN para a realização da perícia, a Mma. Juíza a quo afirma que se esse cuidado não for observado «os réus serão condenados numa multa por falta de colaboração com o Tribunal e será apreciado o valor da recusa de cumprimento desta decisão para efeitos probatórios nos termos do artigo 417º, nº3, do C.P.C.».
Parece, portanto, que a Mma. Juíza a quo só tinha em mente este preceito legal e, portanto, apenas estava a impor aos réus um dever de cooperação para a descoberta da verdade, mais concretamente impor-lhes o dever de em caso de falecimento do seu pai, se decidirem proceder à cremação do corpo, informarem o INML para este proceder previamente às colheitas biológicas de ADN de forma a que, posteriormente,se vier a ordenada a realização daquele meio de prova (como tudo aponta que sucederá e está absolutamente justificado pelo objecto do processo), o material biológico colhido permita a sua realização.
Por outras palavras, a Mma. Juíza a quonão proibiu a cremação na eventualidade de se verificar o decesso do pretenso pai, nem ordenou ainda a realização da prova pericial de exame de investigação da paternidade, nem ordenou já a recolha de qualquer vestígio biológico.
A Mma. Juíza a quo apenas sopesou o objecto e a finalidade do processo, anteviu e bem a importância e o valor da referida prova pericial no processo e impôs aos réus o dever de, numa determinada eventualidade, adoptarem um comportamento que tem inequívoco relevo para a descoberta da verdade e que, além disso, se mostra adequado, proporcional e necessário, conforme entenderá quem pretenda que no processo se apure a verdade.
O artigo 417.º do Código de Processo Civil permite-lhe fazê-lo em qualquer estado do processo e desde que se verifiquem, como manifestamente verificam, estes pressupostos da adequação, necessidade e proporcionalidade.
Por isso, nessa medida e com esse enquadramento jurídico, o despacho recorrido é legal e válido e tem as consequências que tem (designadamente, fique bem sublinhado, ao nível probatório), não outras que o curso do processo e os actos já praticados pelos réus permitem antever como indispensáveis e que bom seria que já tivessem sido precavidas no processo.
Improcede assim o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação confirmam o despacho recorrido, assinalando, no entanto, que o mesmo deve ser qualificado e possui as consequências que foram assinaladas.
Custas do recurso pelos recorrentes, com aplicação do disposto no n.º 7 do artigo 26.º do Regulamento das Custas Processuais.
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Porto, 26 de Setembro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 849)
António Carneiro da Silva
Ana Luísa Loureiro
[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]