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INOFICIOSIDADE
INVENTÁRIO
AÇÃO COMUM
Sumário
A inoficiosidade de legado ou doação é uma questão que deve ser suscitada e julgada no processo de inventário por estar incluída nas finalidades deste, pelo que estando pendente esse processo o interessado não pode instaurar uma acção com processo comum contra o legatário ou donatário pedindo a declaração judicial da inoficiosidade daquela disposição.
Texto Integral
RECURSO DE APELAÇÃO ECLI:PT:TRP:2024:3733.22.7T8PNF.P1
ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
I. Relatório: AA, contribuinte fiscal n.º ...53, residente em ..., ..., instaurou acção judicial contra BB, contribuinte fiscal n.º ...96, residente em ..., ..., ..., pedindo a declaração da inoficiosidade das doações feitas por CC à ré e a sua redução para salvaguarda da legítima dos herdeiros legitimários, o autor e os seus irmãos.
Para fundamentar o seu pedido alegou em súmula, que é cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu pai, CC, que dessa herança faz parte um imóvel que foi património comum daquele e da mãe do autor e de que por morte desta o autor adquiriu já uma parte, que o pai do autor, por testamento, constituiu a favor da ré usufruto desse imóvel com a condição de a mesma coabitar com ele até à morte, que o testador não era o único titular da propriedade do imóvel e por isso essa disposição testamentária excede a quota disponível e ofende a legítima dos herdeiros legitimários.
A ré foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção e alegando para o efeito que não estão alegados os valores dos bens da herança para que se pudesse concluir que a disposição testamentária é inoficiosa, que viveu em união de facto com o falecido pai do autor durante mais de 11 anos tendo por isso direito de uso e habitação do imóvel.
Em reconvenção, na hipótese de se concluir que a disposição é inoficiosa, pede a condenação do autor “a reconhecer o direito real da Ré … ao uso e habitação do imóvel durante 11 anos, … número de anos que coabitou com o falecido CC no imóvel, nos termos do artigo 5.º n.º 2 e 3 da Lei 7/2001 de 11 de Maio”.
Findos os articulados, foi proferida decisão na qual, considerando que o autor “carece de interesse em agir para a presente acção”, se absolveu a ré da instância e consequentemente prejudicado o conhecimento da reconvenção.
Do assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
a) O A. é cabeça de casal por óbito de seu pai CC, ocorrido a ../../2020.
b) Do acervo hereditário consta um prédio urbano composto de casa do R/c e andar, quinteiro e quintal no lugar de ..., freguesia ..., concelho ..., descrito sob o n.º ...22, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...24 que é também da propriedade do A., por lhe ter sido adjudicado no processo de inventário por óbito da sua mãe DD ocorrida a 01/07/1995.
c) Por testamento de 21 de Outubro de 2010, o falecido CC, deu de usufruto à R., o referido imóvel com a condição de a mesma com ele coabitasse até à morte.
d) Doação essa que preencheu integralmente a sua quota disponível, mas esquecendo-se que não era titular único do direito de propriedade do referido bem.
e) Sendo por isso uma doação manifestamente excessiva, e lesiva do direito dos demais herdeiros seus filhos.
f) Dizem-se inoficiosas as liberalidades, entre vivos, como neste caso, ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários, desta forma, foi a legítima do A. e dos seus irmãos absolutamente ofendida.
g) Por legítima entende-se a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários, dizem-se inoficiosas as liberalidades as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários, no caso, o Autor, pelo que, devem as liberalidades feitas em vida pelos primeiros réus aos demais ser reduzida, por forma a que seja tutelada a posição hereditária do autor.
h) Daqui decorre, não se conceber onde é que se pode encontrar a falta de interesse em agir por parte do cabeça de casal, quando é o próprio quem tem o dever de zelar pelos bens da herança por si, e em representação dos demais herdeiros.
i) No âmbito dos autos de inventário a que alude a douta sentença, a R. BB veio requerer, para além do mais, a apensação aos presentes autos de inventário por óbito de CC das acções comuns que correm termos por este juízo local cível com os n.ºs 3739/22.6T8PNF (acção de anulação de doação) e 3733/22.7T8PNF (acção para redução de liberalidades) que o cabeça de casal instaurou contra a ora requerente.
j) Já a acção n.º 3739/22.6T8PNF, a qual se mostra pendente e em fase de saneamento, verifica-se que o aqui cabeça de casal demandou a ré BB pedindo a nulidade da doação que o falecido CC lhe efectuou do usufruto do imóvel relacionado como verba n.º 2 na relação de bens apresentada nestes autos.
k) Dispõe o n.º 1 do artigo 267.º do CPC que “se forem propostas separadamente acções que, por se verificarem os pressupostos de admissibilidade do litisconsórcio, da coligação, da oposição ou da reconvenção, pudessem ser reunidas num só processo, é ordenada a junção delas, a requerimento de qualquer das partes com interesse atendível na junção, ainda que pendam em tribunais diferentes, a não ser que o estado do processo ou outra razão especial torne inconveniente a apensação”.
l) Ora, atenta a natureza dos autos de inventário e a natureza da acção comum entendemos que não se mostram preenchidos os mencionados requisitos legais para que pudesse proceder o pedido de apensação.
m) Todavia, o objecto em litígio da acção que corre termos sob o n.º 3739/22.6T8PNF diz respeito à definição de direitos dos interessados nesta partilha, pelo que, nos termos do disposto no artigo 1092.º, n.º 1, alínea a) do CPC, configurará uma causa de suspensão desta instância de processo de inventário até decisão definitiva daquela.
n) Assim, no limite poderíamos estar perante uma suspensão da presente instância, por pendência de causa prejudicial, jamais uma absolvição da instância.
Nestes termos e nos que V. Exas doutamente suprirão: … deverá ser … revogada a douta sentença recorrida e ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos ou, no limite, a suspensão por existência de causa prejudicial.
A recorrida não respondeu a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se estando pendente processo de inventário para partilha dos bens deixados por uma pessoa, os respectivos herdeiros legitimários podem instaurar uma acção declarativa autónoma pedindo que se declare que o inventariado fez uma disposição mortis causa inoficiosa.
III. Fundamentação de facto:
O estado dos autos permite considerar provados os seguintes factos que relevam para a decisão:
1. No dia 21 de Outubro de 2010, CC, viúvo, outorgou testamento no qual instituiu «herdeira da totalidade da sua quota disponível, a sua companheira BB, … consigo residente, e que é sua vontade que o preenchimento da quota disponível comece pelo usufruto da casa onde habitam, sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., com a condição da referida BB continuar a coabitar com ele testador até à data da sua morte».
2. CC faleceu no dia ../../2020, no estado de viúvo de DD.
3. O autor é filho de CC, exercendo as funções de cabeça-de-casal.
4. O imóvel referido no testamento integrava o património comum de CC e da sua mulher DD, já falecida.
5. Antes da instauração da presente acção, o autor instaurou processo de inventário para partilha dos bens deixados por seu pai, o qual se encontra pendente sob o n.º 3723/22.0T8PN.
6. Existem outros filhos do inventariado para além do autor.
IV. Matéria de Direito:
Como vimos a questão que urge decidir consiste em saber se na pendência de um processo de inventário o herdeiro pode instaurar uma acção declarativa comum para discutir, de forma autónoma em relação ao inventário, a inoficiosidade das disposições mortis causa realizadas pelo inventariado.
Salvo melhor opinião, a resposta é claramente negativa, embora não propriamente pelo fundamento usado na decisão recorrida da falta de interesse em agir do autor.
O interesse em agir afere-se pela utilidade do meio processual para assegurar a tutela eficaz do direito subjectivo. Desde que o meio processual usado pelo autor tenha utilidade jurídica para tutelar eficazmente o direito subjectivo o autor tem interesse em agir. Questão diferente é a de saber se o meio processual que usa é o adequado ou aquele que a lei processual consagrou para essa finalidade específica.
O autor tem claro interesse jurídico em discutir a inoficiosidade da disposição mortis causa do seu falecido pai uma vez que, na qualidade de filho do inventariando, é herdeiro legitimário e a sua legítima será afectada pelo excesso da disposição. Esse interesse em agir não significa, contudo, que ele possa instaurar a acção que entender para discutir essa inoficiosidade.
O seu interesse tem de ser exercido através da acção que a lei processual prevê para esse fim, não por só ter interesse em agir dessa forma, mas porque no nosso sistema jurídico-processual civil vigora o princípio da legalidade das formas de processo (artigo 546.º do Código de Processo Civil), nos termos do qual o autor não goza do direito potestativo de escolher a forma de processo para formular a sua pretensão e é obrigado a recorrer à forma de processo que a lei prevê para esse caso.
O Código de Processo Civil consagra no título XVI a forma do processo especial de inventário (artigos 1082.º e seguintes). Entre as suas disposições conta-se a secção V intitulada precisamente «incidente de inoficiosidade».
O artigo 1118.º estabelece a este propósito que qualquer herdeiro legitimário pode requerer, no confronto do donatário ou legatário visado, até à abertura das licitações, a redução das doações ou legados que considere viciadas por inoficiosidade. Nesse requerimento, o interessado deve fundamentar a sua pretensão e especificar os valores dos bens da herança e dos bens doados ou legados, que justificam a redução pretendida. De seguida, são ouvidos, os restantes herdeiros legitimários e o donatário ou legatário requerido. Para apreciar o incidente o juiz pode proceder, mesmo oficiosamente, à avaliação dos bens, se a mesma já não tiver sido realizada no processo. A norma termina dizendo que a decisão incide sobre a existência ou inexistência de inoficiosidade e sobre a restituição dos bens, no todo ou em parte, ao património hereditário.
O subsequente artigo 1119.º, estabelece sobre as consequências da inoficiosidade, prescrevendo que quando se reconheça que a doação ou o legado são inoficiosos, o requerido é condenado a repor, em substância, a parte que afectar a legítima, embora possa escolher, de entre os bens doados ou legados, os necessários para preencher o valor que tenha direito a receber. A seguir a norma dispõe sobre os casos em que há lugar a licitação e quem pode intervir na mesma para definir o que há a restituir e como se faz a restituição.
Resulta daqui, portanto, que o processo de inventário também tem por finalidade especial a verificação da inoficiosidade de legados ou doações realizados pelo inventariado, possuindo regras processuais a definir o tempo, o modo e as consequências da decisão desta questão, as quais, aliás, contendem e condicionam os actos processuais a praticar no processo de inventário após a verificação da inoficiosidade.
Acresce que nos termos do artigo 91.º do Código de Processo Civil o tribunal competente para a acção é igualmente competente para conhecer de todos os incidentes que nela se levantem e que contendam com o direito objecto da acção.
Por fim, nos termos do artigo 1092.º do mesmo diploma, se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a definição de direitos de interessados directos na partilha o juiz só pode remeter as partes para os meios comuns caso a natureza das questões ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente justificar que elas não devam ser incidentalmente decididas. Por outras palavras, a remessa das partes para os meios comuns só ocorre se tal for decido pelo juiz do processo de inventário depois de a questão ter sido suscitada, decisão que depende de um circunstancialismo específico relacionado com a complexidade.
Daqui resulta, pois, que estando pendente processo de inventário a questão da inoficiosidade de legado ou doação feita pelo inventariado tem de ser suscitada no processo de inventário ao abrigo do disposto no artigo 1118.º do Código de Processo Civil e, em princípio, aí terá de ser decidida, sem prejuízo dos casos em que, por decisão judicial, os interessados sejam remetidos para os meios comuns.
Ao escolher a forma do processo comum para suscitar a decisão judicial desta questão à margem do processo de inventário pendente, o autor incorreu em erro na forma de processo e, em simultâneo, criou uma situação de litispendência uma vez que já se encontra pendente processo (o processo de inventário) em cuja finalidade está compreendida a suscitação e decisão da questão aqui formulada de modo autónomo.
Refira-se que não se coloca a hipótese de suspender a instância porque o vício é impeditivo da instauração da acção e a suspensão da instância por causa prejudicial pressupõe que ambas as causas sejam admissíveis e que haja entre elas apenas uma relação de dependência. Acresce que a questão não é prejudicial do inventário, é antes uma das questões essenciais do inventário (ainda que de dedução eventual: ela só se coloca se os interessados a suscitarem) na medida em que contende com a definição dos direitos dos herdeiros e esse é um dos passos necessários à justa partilha dos bens.
No sentido que aqui se professa, cf. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro, in O Novo Regime dos Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pág. 123, e Acórdão da Relação de Guimarães de 17-02-2022, proc. n.º 1242/20.8T8VCT.G1, in www.dgsi.pt.
Em conclusão, a decisão recorrida de absolver a ré da instância é correcta, ainda que por fundamento diferente, e deve ser confirmada. Improcede o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, ainda que fundamento diverso, confirmam a decisão de absolver a ré da instância.
Custas do recurso pelo recorrente, não havendo lugar ao pagamento de mais que a taxa de justiça paga por não ter sido apresentada resposta ao recurso.
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Porto, 26 de Setembro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 847) 1.º Adjunto: António Carneiro da Silva 2.º Adjunto: Francisca Micaela da Mota Vieira
[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]