EXCESSO DE PRONÚNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
CONTABILIDADE ORGANIZADA
FALECIMENTO
SÓCIO GERENTE
INDEMNIZAÇÃO
Sumário

I. Não enferma do vício de nulidade por excesso de pronúncia a sentença que qualifica a insolvência como culposa com fundamento em qualificativas distintas das que haviam sido invocadas nos pareceres apresentados pelo Administrador da Insolvência e pelo Ministério Público.
II. Não obstante poder estar preenchido algum dos factos elencados no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, o mesmo não poderá constituir fundamento para qualificar a insolvência como culposa caso fique inequivocamente demonstrado que a pessoa afetada não o praticou.
III. Preenche a qualificativa da al. h) do mesmo n.º 2 a ausência de contabilidade organizada, omissão que, para além mais, no caso, foi reconhecida pela gerente afectada pela qualificação.
IV. Para que se mostrem preenchidas as qualificativas previstas nas als. a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE necessário é que, para além das condutas omissivas aí descritas (com relação às quais se presume a culpa grave), se demonstre igualmente terem as mesmas, pelo menos, contribuído para o agravamento da situação de insolvência.  
V. Em face do regime previsto pelo artigo 253.º do CSComerciais, no caso de a sociedade ter dois sócios e um deles – único gerente - falecer, o outro fica automaticamente investido nos poderes de gerência.
VI. Apenas pode ser afectado pela qualificação quem tenha sido citado nos termos e para os efeitos previstos no artigo 188.º, n.º 9, do CIRE, sem prejuízo do estatuído no n.º 12 do mesmo preceito.
VII. No computo do montante a fixar para efeitos da al. e) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, importa atender ao montante dos créditos reconhecidos e verificados e que não tenham logrado obter satisfação através da massa insolvente (o qual constituirá o limite máximo da indemnização), mas também à conduta da pessoa afetada pela qualificação e à medida em que a mesma contribuiu para a verificação dos danos causados (o que poderá determinar que a indemnização fique aquém do valor correspondente aos créditos não satisfeitos).

Texto Integral

Acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.

I - RELATÓRIO
Em 01/06/2023 veio a sociedade J… Lda. apresentar-se à insolvência, a qual foi declarada por sentença proferida em 05/06/2023, já transitada em julgado.
Foram apreendidos bens móveis – cfr. apenso A.
Em 12/07/2023, o Administrador da Insolvência (AI) juntou o relatório para efeitos do artigo 155.º do CIRE[1].
No relatório apresentado pode ler-se:
 “(…) “2.º - Da contabilidade da Insolvente: // Da análise do sistema contabilístico implementado, verifica-se que aquele assenta na preparação dos documentos e elementos de suporte, sendo a classificação e introdução no sistema informático processada por um Contabilista Certificado, o qual elabora e prepara os documentos fiscais para entrega na Repartição de Finanças e, no final do ano, as Demonstrações Financeiras. // A contabilidade parece cumprir os normativos legais, estando nesse sentido elaborada até dezembro de 2021.
Apesar de solicitados por diversas vezes, até à data não foram entregues ao AI os seguintes documentos: // Relatório de gestão de 2022; // Balancete analítico de 31/12/2020 e 31/12/2022; // - Último balancete analítico disponível de 2023; // Mapa de amortizações de 2022; // Extrato da conta de sócios; // Modelo 22 e IES de 2022. // Pelo que o AI não teve acesso aos elementos contabilísticos de 2022 e 2023, uma vez que, atento a informação do Contabilista Certificado da empresa, "os dados de 2022 e 2023 não estão tratados."
Da análise aos documentos a que teve acesso, verifica-se o seguinte: // •Em 2021, a faturação decresceu cerca de 26% em relação a 2020 e 49% em relação a 2019; // • Em 2020 e 2021 apresentou prejuízos elevados (-58.642,53€ em 2020 e -46.679,95€ em 2021), não conseguindo, nesses anos, libertar fundos suficientes para fazer face às responsabilidades do passivo e aos encargos mensais; // • Desde 2020 que o EBITDA é negativo; // • O fundo de maneio e a tesouraria líquida apresentavam-se negativos, o que tornava muito difícil a existência de meios financeiros disponíveis para assegurar os respetivos fornecimentos e permitir honrar todos os outros compromissos; // • Encontrava-se muito dependente de terceiros (situação de falência técnica desde 2020), apresentando, igualmente, fracos níveis de liquidez, o que demonstra grandes dificuldades para cumprir os seus compromissos para com aqueles; // • Relativamente ao Passivo, o mesmo aumentou cerca de 89% de 2019 para 2021 e cerca de 9% de 2020 para 2021, situando-se em 31/12/2021 em 160.504,66€; // • Em relação ao ativo imobilizado, em 2021 apresentava um valor liquido de 117.483,25€, assim discriminado: - Edifícios e outras construções — 94.498,88€ // - Equipamento básico — 22.984,37€ // • Em Edifícios e outras construções encontra-se contabilizado o seguinte: - Reparação e despesas do Edifício (1998 a 2013) — 32.094,80€ // - Obras remodelação restaurante (2019) — 7.510,88€ // - Obras remodelação esplanada (2020) — 51.320,95€ // - Obras remodelação esplanada (2021) — 3.572,23€ // •Faz-se notar que a empresa não é proprietária do imóvel no qual realizou as obras cujos montantes estão discriminados acima; // • Porém, a sociedade também nunca pagou qualquer valor pela utilização do imóvel; // • Os ativos totais foram subutilizados, ou seja, a empresa não gerou um volume de negócios suficiente para a dimensão dos seus ativos (com esses ativos, a faturação deveria ser bastante superior); // • Apresentou em todos os anos um ciclo de caixa negativo, ou seja, o crédito de fornecedores financiou o ciclo de exploração da empresa; // • A empresa cessou a atividade em IVA à data de 05/06/2023. // 3.º — Pessoal ao serviço da empresa: // À data da declaração da insolvência, a sociedade tinha, ainda, um funcionário: MF….
(…) 7.º - Da qualificação da Insolvência: // Atento os elementos colhidos e a análise efetuada até ao momento, entende o AI não se encontrar, para já, habilitado a pronunciar-se acerca da natureza fortuita ou culposa da Insolvência, nem quais as pessoas a serem afetadas pela qualificação, conforme disposto nos artigos 185.º e seguintes do CIRE.
No dia 20 do mesmo mês realizou-se assembleia de credores para apreciação do relatório, no âmbito da qual, para além do mais, foi deliberado o encerramento definitivo do estabelecimento da insolvente e o prosseguimento dos autos para liquidação.

Em 27/09/2023[2], o AI juntou aos autos o parecer relativo à qualificação da insolvência – artigo 188.º, n.º 3 – pugnando no sentido de ser a mesma culposa, nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 2, als. d), h) e i), e n.º 3, al. b).
Mais referiu que pela qualificação deverá ser afectada a sua gerente PM….
Para além do mais, alegou: “(…) o AI notificou o atual gerente e o contabilista certificado da devedora, tendo solicitado as devidas informações e o envio dos elementos previstos no artigo 24.º do C.I.R.E., uma vez que eram necessários não só para a elaboração do relatório nos termos do artigo 155.º do mesmo diploma legal, como para proceder à análise económico-financeira da sociedade; // 5. O AI voltou a solicitar aos representantes legais da insolvente o envio dos elementos contabilísticos de 2022 e 2023, assim como cópia das faturas contabilizadas em edifícios e outras construções a partir de 1/1/2019; // 6. Tudo cfr. Docs. 1 a 5 que se juntam; // 7. O Contabilista Certificado da Empresa veio informar o AI que não consegue ter a informação solicitada antes de meados de outubro de 2023, cfr. Doc. nº 6 que se junta; // 8. Analisados os documentos contabilísticos disponibilizados poderão retirar-se algumas conclusões: // i. O Passivo aumentou cerca de 89% de 2019 para 2021 e cerca de 9% de 2020 para 2021, situando-se em 31/12/2021 em 160.504,66€; // ii. Em relação ao ativo imobilizado, em 2021 apresentava um valor líquido de 117.483,25€, assim discriminado: // - Edifícios e outras construções – 94.498,88€ // - Equipamento básico – 22.984,37€ // iii. Em Edifícios e outras construções encontra-se contabilizado o seguinte: // - Reparação e despesas do Edifício (1998 a 2013) – 32.094,80€ // - Obras remodelação restaurante (2019) – 7.510,88€ // - Obras remodelação esplanada (2020) – 51.320,95€ // - Obras remodelação esplanada (2021) – 3.572,23€ // 9. Sendo que, não se pode deixar de estranhar os montantes em obras de remodelação nos últimos três anos, quando a sociedade não é proprietária do imóvel no qual realizou as obras cujos montantes estão discriminados acima; // 10. Não podendo deixar de salientar o facto de não lhe ter sido disponibilizado qualquer elemento contabilístico de 2022 (de qualquer período); // 11. Sendo certo que o AI não teve acesso às cópias das faturas que foram contabilizadas na rúbrica edifícios e outras construções a partir de 1/1/2019; // 12. As quais, conforme se poderá perceber pelos valores supramencionados, têm um peso muito grande na rúbrica edifícios e outras construções; // 13. Não obstante, o contabilista certificado ter informado que até iria solicitar segunda via das mesmas; // 14. Ora o facto de terem sido realizados investimentos avultados (obras de recuperação e requalificação) pela sociedade insolvente num imóvel que não era propriedade sua, mas sim do gerente da insolvente, parece indiciar a utilização de meios da sociedade para valorizar um imóvel seu; // 15. O que significa, na verdade, que o imóvel que era do gerente da insolvente ficou recuperado e requalificado sem que para tal, o mesmo tenha despendido qualquer quantia sua, beneficiando assim dessas obras pagas pela insolvente; // 16. De realçar a inexistência (ou ausência de disponibilidade) de faturas relativas às obras realizadas no edifício desde 01/01/2019, constatando o AI que tais obras poderão consubstanciar um enriquecimento sem causa dos proprietários do imóvel (…).”
Bem como: “(…) 25. Ora, // i. quando se verifique que administradores (ou gerentes), de direito ou de facto, tenham “desviado”, no todo ou em parte, o património do devedor, tal conduta consubstancia critério bastante para a insolvência ser caracterizada como culposa; Se uma empresa não é detentora de imoveis, como se pode justificar a existência de obras de remodelação nos últimos três anos? Salvo melhor entendimento, o silogismo é simples: utilização de capital em obras de remodelação de imoveis que não pertencem ao ativo da empresa. Logo, estamos perante a utilização de “bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros” (art.º 186 nº 2 a) do CIRE); // ii. na verdade, o gerente da sociedade utilizou meios financeiros da sociedade em proveito próprio, para reparar e recuperar um imóvel que era seu; // (…) viii. a gerente da insolvente não manteve a contabilidade organizada, na medida, em que estamos em setembro de 2023 e ainda não foram há elementos contabilísticos de 2022; // ix. as contas de 2022 não foram elaboradas e depositadas na Conservatória do Registo Comercial dentro do prazo legal; // x. Também não existiu a colaboração da gerente, prevista no artigo 88º do CIRE, até ao presente; (…)”.[3]

O Ministério Público subscreveu o parecer apresentado pelo AI, invocando para tanto: “O insolvente apresentou a contabilidade até ao ano 2021 (…). // Recusou-se a entregar ao AIU os documentos relacionados com o relatório de gestão de 2022, balancete de Dez. 2020 a 2022 e 2023, mapa de amortizasses, extracto de conta de sócios e modelo de IRC de 2022; // Como resulta do relatório elaborado pelo S.º AI nos termos do disposto no art.º 155º do CIRE, o insolvente encontrava-se em falência técnica desde 2020. // Não obstante a situação económica apresentar um saldo passivo que aumentou em 89% entre 2019 e 2021, efectuou obras de remodelação no valor de cerca 55.643, euros num edifício que é pertença de um dos sócios gerentes, sendo certo que não se vislumbra a existência de qualquer contrapartida (financeira, económica, a curto ou médio prazo), para além do facto de não pagar renda sobre a utilização do espaço. // Isto, enquanto apresentou todos os anos um ciclo de caixa negativa (a empresa não gerou um volume de negócios suficiente para a dimensão dos seus activos). // Nestas circunstâncias, concordamos com a proposta do Sr. AI em qualificar a insolvência como culposa, nos precisos termos considerados no seu relatório e aditamento de fls. 15, em virtude de tais obras poderem constituir um enriquecimento sem causa opara os beneficiários das mesmas, com grave prejuízo para os credores, sendo certo que o insolvente não facultou os documentos contabilísticos necessários e indispensáveis para se poder apurar o impacto financeiro que essas obras provocaram na firma ao longo dos últimos três anos em que o passivo aumentou em mais de 89%.”

Em 04/10/2023, foi proferido despacho a declarar aberto o incidente de qualificação, ordenando a publicação do mesmo, bem como a notificação da devedora e a citação da proposta afectada (acompanhadas dos pareceres do AI e do MP) para, querendo, deduzirem oposição.
 
A credora “R… SA” pronunciou-se no sentido de ser a insolvência qualificada como culposa (Ref.ª/Citius 5382945).
No essencial alegou: “a insolvente há muito mais de 6 meses que não ignorava que estava em situação de insolvência, bem sabendo que face ao movimento gerado, à inabilidade da gerência para prosseguir a atividade, ao avolumar dos prejuízos e das dívidas junto dos fornecedores estava impossibilitada de satisfazer os compromissos assumidos com os credores que nela confiaram e confiavam.”

Pela proposta afectada foi deduzida oposição ao incidente, concluindo que a insolvência deverá ser qualificada como fortuita (requerimento de 12/10/2023).
Em síntese reconheceu que o AI solicitou, por mais do que uma vez, elementos contabilísticos da empresa e referentes à facturação das obras realizadas no imóvel onde a mesma funcionava, o que não foi facultado por não os possuir. Alegou sempre ter prestado toda a colaboração e, exercendo funções como professora, sempre ter sido o marido quem assumiu a gerência de facto até à data da sua morte (01/06/2022). Só então a opoente se viu confrontada com a necessidade de dar continuidade à exploração sendo que, em face das dificuldades existentes, decidiu apresentar a sociedade à insolvência. Entende que, com relação aos anos de 2019 a 2021, a responsabilidade pela falta de organização da contabilidade só poderia ser assacada ao seu falecido marido (tendo a opoente fornecido a documentação contabilística que dispunha pelo exercício de 01/06/2022 e Março de 2023). Quanto às obras, refere que a sociedade nunca pagou qualquer renda pelo espaço que usufruía e não terem os proprietários do imóvel retirado qualquer proveito/rendimento da actividade da primeira.  

O AI pronunciou-se quanto à oposição, reiterando o já constante do seu parecer (Ref.ª/Citius 5441854).

Por despacho de 06/12/2023 foi dispensada a realização de tentativa de conciliação e proferido despacho saneador, através do qual foi fixado o objecto do litígio e elaborados os temas da prova[4], mais tendo sido decidido os requerimentos probatórios e agendada audiência de julgamento.

Em 20/12/2023 foi junto pelo contabilista da insolvente (AC), requerimento pelo qual juntou 31 documentos (que refere terem sido obtidos através de contactos com os fornecedores da sociedade, mais alegando não lhe terem sido entregues os respectivos originais). No que respeita à documentação referente às obras realizadas no imóvel, referiu que as mesmas terão ficado na posse do falecido gerente (V…).

Após a realização do julgamento, por sentença proferida em 03/03/2024, o tribunal a quo decidiu:
“Face ao exposto, considerando as citadas disposições legais e nos termos do previsto no artigo 189.º do C.I.R.E., julgo procedente o presente incidente e, consequentemente, decido:
a) Qualificar como culposa a insolvência de J... Lda.;
b) Julgar afetada pela qualificação PM…, Contribuinte fiscal n.º …, Cartão de Cidadão n.º …;
c) Declarar PM… inibida o exercício do comércio durante um período de 2 (dois) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detido por PM… e condenar na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
e) Condenar PM… a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos até ao montante de €62.404,02 (sessenta e dois mil quatrocentos e quatro euros e seis cêntimos) e considerando as forças do respetivo património.”

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Inconformada com a sentença, dela interpôs RECURSO de apelação a proposta afectada, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
“I - Em função de douto parecer do Sr Administrador de Insolvência, secundado em douta promoção do Digníssimo MP, foi, com fundamento no disposto no artigo 186º nº 2 alíneas d), h) e i) e no artigo 186º nº 3 b), instaurado Incidente de Qualificação de Insolvência de J… Lda como NIPC … ( por lapso da sentença consta NIPC …) pedindo a afectação da Gerente aqui recorrente PM….
II - Citada esta, deduziu Oposição pugnando pelo carácter fortuito da insolvência.
III - Realizada audiência de julgamento, produzida a prova, determinou-se o tribunal a quo por julgar verificados os pressupostos vincados nas alíneas d) e h) do artigo 186º nº 2 do C.I.R.E, não se verificar o constante da alínea i) do citado preceito — vertendo a este propósito, na realidade dos factos, a Recorrente não teve intervenção na criação da situação de insolvência, não se extraindo qualquer contributo deliberado e reiterado da sua parte no dever de apresentação à insolvência, nem de falta de colaboração após a mesma — porém e ainda assim, contraditoriamente, sem que lhe fosse dado pronunciar sobre a questão — qualificou culposa a insolvência imputando à Recorrente violação do dever de apresentar-se à insolvência no prazo de 60 dias após o conhecimento da situação de insolvência — veio a considerar a insolvência culposa também por violação do disposto no artigo 18º e artigo 186º nº 3 a) do C.I.R.E.
IV - E, por manifesto lapso, acredita-se, julgou verificadas as alíneas a) e b) do artigo 186º do C.I.R.E, posto que nem conste da matéria de facto provada e nem da pronúncia qualquer facto indiciador de destruição, danificação, inutilização, ocultação ou perecimento, no todo ou em parte considerável, do património da devedora; E também, não resulta provado qualquer facto que a actuação de qualquer administrador da devedora haja criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzidos lucros, causando, nomeadamente, a celebração pela devedora de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas.
V - Ao qualificar a insolvência de culposa com fundamento na violação do disposto no artigo 18º do C.I.R.E e 186º nº 3 a) e julgados verificadas as alíneas a) e b) do artigo 186º do mesmo diploma, a douta sentença conhece de questão que lhe não era dado conhecer e toma decisão em que subsume a verificação de disposições legais sem factualidade que a fundamente, sendo por isso nula à luz do disposto no artigo 615º nº 1 alíneas b) e d) do CPC, violando mesmo o primado do contraditório uma vez não ter sido dada oportunidade á Recorrente de a tal se opor.
VI - Sem prejuízo de a factualidade exposta em 1, 2 e 3 ser contraditória no que concerne à qualidade e cargo de gerente da Recorrente, posto estar assente em 1 da FA que renunciou à gerência da insolvente em 2013, mas em 2 e 3 ser tida como gerente, desconhece-se se a afectação determinada com a qualificação emerge desta concreta função e cargo - e percebia‑se o fosse desde que demonstrado ficasse ser responsável pela criação e ou agravamento da situação de insolvência, o que em nenhum lado sucede, antes pelo contrário- ou se tal afectação decorre antes da circunstância de ser herdeira do sócio gerente efectivamente culpado.
VI - Mas nesse caso e porque justifica a afectação, designadamente na sua componente ressarcitória, prevenir e reparar o dano dos credores lesados, sendo este o princípio norteador do instituto falimentar, e na medida em que da actuação da gerência resulte potencial enriquecimento do seu património e correspondente empobrecimento dos credores, a afectar com a qualificação da insolvência deveria ser o património pessoal do gerente pré-falecido à situação de insolvência. Pelo que, em tal conformidade a afectar com a qualificação de insolvência deveriam ser todos os herdeiros do culpado na situação de insolvência e já não apenas a Recorrente.
VI - A realidade é a de que, a pronúncia (entenda-se Parecer do Sr Administrador e promoção do MP) considerou dever ser afectada pela insolvência a Recorrente em razão da sua qualidade de gerente. Porém não o era de direito e nem o foi de facto no período temporal em que se situam as causas para a insolvência e mesmo que se considere que passou a sê-lo de facto, com a morte do marido e gerente, a realidade é que não praticou qualquer acto ou facto integrador de qualquer das alíneas qualificadoras ou que, o mesmo é dizer, contribuísse para a criação da situação de insolvência e ou que a agravasse.
VII - E mesmo que se concedesse ter razão a sentença no juízo que faz de que a Recorrente compulsou a situação de insolvência da devedora à morte do marido e que só decorridos 8 meses é que a apresentou à insolvência, para que fosse possível qualificar a insolvência por tal motivo (art.18º e nº 3 do art.186º nº 3 do C.I.R.E) sempre seria necessário demonstrar haver um nexo de causalidade entre a demora na apresentação à insolvência e a situação dela e ou ao menos o agravamento do dano dos credores, o que decididamente não resulta demonstrado.
VIII - Sendo como é, ou seja, não sendo imputável qualquer culpa na criação da situação de insolvência ou no seu agravamento, à aqui Recorrente, enquanto gerente, afectado com a qualificação deveria ser o património do gerente pré-falecido à declaração de insolvência e determinados e julgados afectados por ela todos os herdeiros e não apenas a Recorrente, sob pena de violação do disposto nos artigos 2091º, 483º ambos do CC e 189º nº 2 a) do C.I.R.E.
IX - Não se provando ter a Recorrente a ver e contribuído, de qualquer modo, para a situação de insolvência ou mesmo para o agravamento de tal situação, e que esta se deve exclusivamente à actuação do gerente da insolvente, por circunstância seu marido, não faz sentido, conquanto a culpa morreu com ele, decretar sanções de carácter e cunho exclusivamente pessoal, designadamente a inibição para o exercício do comércio.
X- No que toca ao aspecto ressarcitório cominado sobre a Recorrente, ainda que devesse sê-lo sobre todos os herdeiros do falecido gerente, o tribunal deveria ter considerado a inexistência de qualquer acto e culpa (que aliás considerou mínima no decretamento do período de inibição) e por conseguinte na fixação do montante que fixou deveria atender tão só ao dano ocasionado no período de 3 anos anteriores à apresentação à insolvência, e bem assim considerar, se efectivamente à luz das regras e da experiência comum o património devedor na realidade resultou enriquecido (transformar dois apartamentos numa sala de restauração parece ser ruinoso) e também se a remodelação de esplanada no tempo em que o foi, em plena vigência do COVID, se configurava como negócio razoável na actividade de restauração dadas as restrições de uso de espaços fechados), e, por tudo isto, com base na equidade, fixar equitativamente como dano a ressarcir percentagem nunca superior a 1/6 do dano apurado 62.404,02€), a menos que, no estrito cumprimento na fixação das regras determinantes da obrigação de reparação, não se verificando os pressupostos da responsabilidade extra-contratual, o Venerando tribunal se decida pela absolvição da afectada, como é de superior JUSTIÇA
Em tais termos e nos melhores de direito, uma vez admitido, deve o presente ser julgado procedente e por via disso revogada a sentença recorrida, sendo substituída por outra, que ainda que qualifique culposa a insolvência com fundamento na inilidível presunção da alínea h) do nº 2 do artigo 186º do C.I.R.E se determine por revogar o mais sentenciado.”

O MP apresentou Resposta, concluindo estarem verificados os pressupostos para a qualficação da insolvência como culposa, devendo ser confirmada a sentença recorrida.
 
O recurso foi admitido pelo tribunal a quo por despacho proferido em 24/04/2024. 

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II – DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões no mesmo formuladas, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando estejam em causa questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado - artigos 5.º, n.º 3, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC. Não está, porém, este tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, desde que prejudicados pela solução dada ao litígio.
Assim, as questões a decidir traduzem-se em aferir:
1. Aferir da putativa nulidade da sentença, com fundamento no artigo 615.º, n.º 1, als. b) e d) do CPC;
2. Aferir da eventual alteração da matéria de facto provada;
3. Aferir da qualificação da insolvência – preenchimento das qualificativas valoradas e constantes do artigo 186.º, n.ºs 2 e 3;
4. Aferir da qualidade da recorrente enquanto gerente e da sua afectação pela qualificação culposa da insolvência;
5. Na afirmativa, aferir do grau de contribuição da mesma para a insolvência, designadamente para efeitos do disposto na al. e) do n.º 2 do artigo 189.º.

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III – FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença recorrida foi considerada provada a seguinte factualidade:
1. Pela Ap. 40/19971217 foi registada na Conservatória do Registo Comercial de Ponta Delgada a constituição da sociedade J… Lda, cabendo a sua gerência a V…, e à sua esposa, PM…, tendo esta renunciado ao cargo no dia 01.06.2013.
2. Tinha por objeto social: exploração da atividade de comércio de líquidos, artigos de consumo, venda e confeção de refeições, comercialização de artigos de vestuário desportivo e de artesanato bem como exploração de atividade hoteleira, similares e jogos lúdicos, e de capital social €78.819,68 integrado por duas quotas, uma a favor do gerente V… pelo valor de €72.824,49 e uma a favor da gerente PM… pelo valor de €1.995,19.
3. V… faleceu em 1 de junho de 2022 no estado de casado, sob o regime de comunhão de adquiridos, com a gerente PM….
4. J… Lda, apresentou-se à insolvência no dia 02.06.2023 e assim foi declarada no dia 05.06.2023, por sentença transitada em julgado.
5. O Administrador da Insolvência notificou a atual gerente PM…, através  do seu Mandatário Constituído nos presentes autos, Dr. X, e através do contabilista da Insolvente, tendo solicitado as devidas informações e o envio dos elementos previstos no artigo 24.º do C.I.R.E., nos termos das comunicações eletrónicas de 7.06.2023 20.06.2023, de 15.06.2023, 13.06.2023, 20.06.2023, 22.06.2023, 30.06.2023 de fls. 19 verso a 21verso.
5- A. No dia 9 de julho de 2023 e 10 de julho de 2023 foi enviada resposta ao Sr. Administrador da Insolvência pelo contabilista da Insolvente, AC, passando a trocar correspondência entre os dias 10.07.2023, 9.07.2023, 4.07.2023, 3.07.2023, nos termos das comunicações eletrónicas de fls. 19verso a 30, com este e o Mandatário Constituído, Dr. X.[5]
6. Dos documentos contabilísticos disponibilizados resulta:
a. Em 2021 a faturação decresceu cerca de 26% em relação a 2020 e 49% em relação a 2019;
b. Em 2020 e 2021 apresentou prejuízos, em concreto - 58.642,53€ em 2020 e - 46.679,95€ em 2021, não conseguindo, nestes anos, libertar fundos suficientes para fazer faze às responsabilidades do passivo e aos encargos mensais;
c. Desde 2020 que o EBDITA é negativo;
d. O fundo de maneio e a tesouraria líquida apresentavam-se negativos;
e. O Passivo aumentou cerca de 89% de 2019 para 2021 e cerca de 9% de 2020 para 2021, situando-se em 31/12/2021 em 160.504,66€;
f. Em relação ao ativo imobilizado, em 2021 apresentava um valor líquido de 117.483,25€, assim discriminado:
- Edifícios e outras construções – 94.498,88€
- Equipamento básico – 22.984,37€
g. Em Edifícios e outras construções encontra-se contabilizado o seguinte:
- Reparação e despesas do Edifício (1998 a 2013) – 32.094,80€
- Obras remodelação restaurante (2019) – 7.510,88€
- Obras remodelação esplanada (2020) – 51.320,95€
- Obras remodelação esplanada (2021) – 3.572,23€.
7. O prédio urbano onde foram realizadas as obras cujos montantes estão discriminados no facto anterior no ponto g., encontra-se registada a favor de V… e PM…, sito na Rua …, com a área total de 2353,4m2, sendo 200m2 de área coberta e 2153.4m2 de área descobertas, constituída por rés-do-chão, destinada a comércio e 1.º andar destinada a moradia, com quintal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada sob o n.º 1082/19920410, freguesia de Arrifes, inscrito na matriz ….
8. Não foram facultadas, ao Administrador da Insolvência, cópias das faturas que foram contabilizadas na rúbrica edifícios e outras construções a partir de 1/1/2019, discriminadas no ponto g do facto 6, nem foram apresentadas.
9. A empresa cessou a atividade em IVA à data de 05/06/2023.
10. A Insolvente não manteve a contabilidade organizada.
11. As contas de 2022 não foram elaboradas e depositadas na Conservatória de Registo comercial dentro do prazo legal.
- Da oposição da legal representante da Insolvente, PM…
12. O Contabilista AC solicitou ao gerente V… e desde que declarada a insolvência faturação respeitante a obras levadas a cabo no imóvel onde funcionava a sociedade, juntando aos autos a faturação de fls. 69 a 99, num total de €16.940,35, estando justificados os valores de €1.346,00€ no ano de 2019, €5.058,52 no ano de 2020 e €3.572,23.
13. Pelo facto de a Opoente desconhecer o paradeiro de tal faturação, convicta que a mesma se encontrasse nos serviços de contabilidade, pois tais obras haviam sido executadas já no ano de 2019, veio a apurar que alguma dessa faturação poderia encontrar-se na posse do Sr. Y, atualmente Presidente da Assembleia Geral da Junta de Freguesia dos Arrifes, mas que mercê de ser técnico na Secretaria Regional da Economia, o então Gerente, marido da Opoente, lhe havia entregue para apreciação de viabilidade de candidatura a apoio governamental à empresa em virtude de obras realizadas.
14. Contactado, Y confirma a existência de contactos naquele sentido com o anterior Gerente da Insolvente, aliás de quem era amigo, mas que este não lhe terá entregue qualquer documentação/faturação.
15. Frustrada por esta via propôs-se ao Contabilista a tentar obter segundas vias de tal faturação, conseguindo as indicadas no ponto 12 e juntas aos autos.
16. PM… é professora do ensino básico e secundário, exercendo unicamente essa atividade.
17. Quem exercia a gerência de facto da sociedade sempre foi o seu marido o referido V….
18. Sempre foi ele a estar à frente da atividade da empresa.
19. Era ele que admitia pessoal para trabalhar.
20. Era ele que contactava e contratava com fornecedores.
21. Era ele que realizava e controlava todas as atividades que possam equacionar-se respeitantes ao estabelecimento de restauração.
22. Era ele que apresentava ao contabilista da empresa toda a documentação necessária a assegurar e a realizar a contabilidade.
23. Era ele que procedia à aquisição de bens e equipamentos indispensáveis ao exercício da atividade.
24. Era ele que tratava de obtenção na atribuição de subsídios à atividade e mesmo contratava eventuais financiamentos junto de instituições bancárias.
25. Tudo isto até ao dia 01 de junho de 2022, data em que faleceu – cfr. facto 3.
26. Com a morte do marido, PM… deu continuidade à exploração que vinha sendo desenvolvida.
27. Viu-se confrontada com a pressão de fornecedores com exigências de pagamento, eles que já só forneciam a pronto, com a instabilidade na manutenção de cozinheiro para assegurar o fornecimento de refeições, com demissões de pessoal (cozinheira e 2 funcionários), em agosto de 2022.
28. O prédio identificado no facto 7, no primeiro andar é zona residencial e no rés-do-chão estava estabelecido desde 2019 o estabelecimento denominado restaurante e esplanada J… Lda.
29. Até 2019 no espaço de rés-do-chão do imóvel existiam dois apartamentos.

Em complemento da factualidade descrita (designadamente sob os pontos 5 e 5-A), e ao abrigo do disposto nos artigos 662.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, ambos do CPC, adita-se a seguinte factualidade (assente em documentação junta e não impugnada):
30. As mensagens electrónicas trocadas entre o AI e o mandatário da proposta afectada (P …) têm o seguinte teor:
a) Em 07/06/2023 (do AI para o advogado): “Venho, na qualidade de Administrador da insolvência da sociedade “J… Lda”, solicitar a V. Exa., os seguintes documentos/informações: // a) Documentos referidos na Petição e que não foram juntas aos autos: // a. Relatório gestão 2020 e 2021 e IES de 2020 e 2021 (Doc 5) // b. Listagem de credores, moradas e correspondente crédito (Doc 7) // c. Relação de ativo móvel (Doc 8) // b) Senha das declarações eletrónicas. // c) Balancete analítico de 31/12/2020, 31/12/2021 e 31/12/2022 (antes e após o encerramento). // d) Último balancete analítico disponível de 2023. // e) Paradeiro dos bens da insolvente. // f) Mapa da Amortizações de 2020, 2021 e 2022. // g) Inventário de 2021 e 2022. // h) Cópia das faturas de venda de bens imobilizados em 2021, 2022 e 2023, comprovativo do pagamento e do depósito na conta da insolvente. // i) Lista e extratos de contas dos devedores da empresa (Nome, NIF, morada e montante em dívida). // j) Extrato da conta de sócios. // k) Contratos de arrendamento. // l) Contactos do Contabilista Certificado. // m) Contactos da representante legal da sociedade. // n) Trabalhadores da empresa – Nome, Morada, Data de nascimento e NIF”;
b) Em 13/06/2023 (do AI para advogado): “Venho pelo presente reiterar o meu e-mail infra, uma vez que, até à data, apenas obtive informação dos contactos da representante legal da sociedade e o nome, morada, data de nascimentos e nif do trabalhador da empresa.” (anexou o email de 07/06/2023);
c) Em 15/06/2023 (do AI para advogado): “Acuso a receção de parte dos elementos enviado no dia de ontem, que desde já agradeço. // Ficam em falta os seguintes: // a) Documentos referidos na Petição e que não foram juntas aos autos: // a. Relatório gestão 2020 e 2021 (Doc 5) // b. Listagem de credores, moradas e correspondente crédito (Doc 7) // c. Relação de ativo móvel (Doc 8) // b) Senha das declarações eletrónicas. // c) Balancete analítico de 31/12/2020, 31/12/2021 e 31/12/2022 (antes e após o encerramento). // d) Último balancete analítico disponível de 2023. // e) Paradeiro dos bens da insolvente. // f) Mapa da Amortizações de 2020, 2021 e 2022. // g) Inventário de 2021 e 2022. // h) Cópia das faturas de venda de bens imobilizados em 2021, 2022 e 2023, comprovativo do pagamento e do depósito na conta da insolvente. // i) Lista e extratos de contas dos devedores da empresa (Nome, NIF, morada e montante em dívida). // j) Extrato da conta de sócios. // k) Contratos de arrendamento. // l) Contactos do Contabilista Certificado. // Uma vez que o prazo para entrega do Mod 22 de 2022 já terminou, solicito o envio de cópia do mesmo. // Solicito, ainda, a cessação da atividade para efeitos de IVA à data da insolvência (5/6/2023) e o envio do comprovativo. (…)”;
d) Em 15/06/2023 (do advogado para o AI): “Acuso a recepção do seu email, lamentando desde já não ter satisfeito por completo a pretensão exigida. // Assim já dei instruções para efectivo cumprimento do solicitado em b. e c. da alínea a) documentos que tenho em meu poder e de resto pensava se encontra junto com a petição; // Creio também lhe haver sido remetido os IES da Empresa referentes a 2020,2021 e 2022. Ao propósito falei com a cliente que me assegurou que a sua contabilidade estava em condições de fornecer outros elementos contabilísticos que considere em falta. // Quanto às senhas das e para declarações electrónicas fiquei com a ideia de que a cliente as havia já fornecido a V. // Ex.a. Ao senão fornecê-las-á. // O activo móvel da Empresa encontra-se todo ele nas instalações onde funcionava o estabelecimento comercial – A indicada sede da empresa); // Não me consta que tenha havido alienação de qualquer imobilizado da empresa nos anos de 2020, 2021 e 2022, mas se o tiver sido, a contabilidade dará e comprovará esta informação. // Igualmente não consta que a empresa (confecção e fornecimento de refeições) disponha de um quadro devedor que releve individualizar. // Os extractos de conta dos sócios e mesmo descendentes do sócio falecido ser-lhe-ão remetidos pela cliente, posto que o tenha já solicitado. // O contacto do contabilista certificado ser-lhe-á remetido pela cliente, interpelada nesta data, para cumprir com todo o solicitado. // Finalmente a Insolvente não titula como se referiu em Pi qualquer contrato de arrendamento e nem é inquilina igualmente.”;
e) Em 20/06/2023 (do AI para advogado): “Acuso a receção do e-mail infra que desde já agradeço. // Ficam em falta os seguintes documentos/esclarecimentos: // a) Documentos referidos na Petição e que não foram juntas aos autos: // a. Relatório gestão 2020, 2021 e 2022 // b) Senha das declarações eletrónicas. // c) Balancete analítico de 31/12/2020, 31/12/2021 e 31/12/2022 (antes e após o encerramento). // d) Último balancete analítico disponível de 2023. // e) Paradeiro dos bens da insolvente. // f) Mapa da Amortizações de 2020, 2021 e 2022. // g) Inventário de 2021 e 2022. // h) Cópia das faturas de venda de bens imobilizados em 2021, 2022 e 2023, comprovativo do pagamento e do depósito na conta da insolvente. // i) Lista e extratos de contas dos devedores da empresa (Nome, NIF, morada e montante em dívida). // j) Extrato da conta de sócios. // k) Contratos de arrendamento. // l) Contactos do Contabilista Certificado. // m) Modelo 22 (IRC) de 2022 // n) Cessação de atividade para efeitos de IVA à data da insolvência (5/6/2023) e envio do comprovativo.”;
f) Em 30/06/2023 (do AI para o advogado): “Venho, na sequência da minha visita às instalações da insolvente para proceder à apreensão dos bens a favor da massa insolvente, mostrar a minha preocupação e descontentamento em relação ao seguinte: // - Desde o dia 7/6/2023 que tenho solicitado várias informações/documentos essenciais para a elaboração do relatório a que alude o artigo 155º do CIRE; // - Passado todo este tempo, e apesar dos vários e-mails e telefonemas, inclusivamente à representante legal da insolvente a ao Contabilista Certificado, continuam em falta os seguintes: // a. Relatório gestão 2020, 2021 e 2022. // b. Balancete analítico de 31/12/2020, 31/12/2021 e 31/12/2022 (antes e após o encerramento). // c. Último balancete analítico disponível de 2023. // d. Paradeiro dos bens da insolvente. // e. Mapa da Amortizações de 2020, 2021 e 2022. // f. Inventário de 2021 e 2022. // g. Cópia das faturas de venda de bens imobilizados em 2021, 2022 e 2023, comprovativo do pagamento e do depósito na conta da insolvente. // h. Lista e extratos de contas dos devedores da empresa (Nome, NIF, morada e montante em dívida). // i. Extrato da conta de sócios. // j. Contratos de arrendamento. // k. Modelo 22 (IRC) de 2022 // l. Cessação de atividade para efeitos de IVA à data da insolvência (5/6/2023) e envio do comprovativo. // - Com a marcação da Assembleia de credores para dia 20/7, o relatório terá que ser entregue até ao dia 12/7; // - A falta dos envios dos elementos supra-mencionados limita a elaboração do relatório e configura a falta de colaboração da devedora com a consequencia de ser proposta a qualificação culposa.”;
g) Em 24/07/2023 (do AI para o advogado): “Na sequência da Assembleia de Credores realizada em 20/7/2023, venho solicitar os seguintes documentos em falta: // a. Relatório gestão de 2022. // b. Balancete analítico de 31/12/2022 (antes e após o encerramento). // c. Último balancete analítico disponível de 2023. // d. Mapa da Amortizações de 2022. // e. Inventário de 2022. // f. Extrato da conta de sócios. // g. Modelo 22 (IRC) e IES de 2022. // h. Faturas dos trabalhos realizados na esplanada em // a. 2019 no montante total de 7.510,88€ // b. 2020 no montante total de 51.320,95€ // c. 2021 no montante total de 3.572,23€”
31. As mensagens electrónicas trocadas entre o AI e o contabilista da insolvente (AC) têm o seguinte teor:
a) Em 22/06/2023 (do AI para o contabilista): “(…) Venho, na qualidade de Administrador da Insolvência da sociedade J… Lda, solicitar a V. Exa., no prazo de 5 dias, o envio dos seguintes esclarecimentos/documentos: // a) Relatório gestão 2020, 2021 e 2022 // b) Senha das declarações eletrónicas. // c) Balancete analítico de 31/12/2020, 31/12/2021 e 31/12/2022 (antes e após o encerramento). // d) Último balancete analítico disponível de 2023. // e) Paradeiro dos bens da insolvente. // f) Mapa da Amortizações de 2020, 2021 e 2022. // g) Inventário de 2021 e 2022. // h) Cópia das faturas de venda de bens imobilizados em 2021, 2022 e 2023, comprovativo do pagamento e do depósito na conta da insolvente. // i) Lista e extratos de contas dos devedores da empresa (Nome, NIF, morada e montante em dívida). // j) Extrato da conta de sócios. // k) Contratos de arrendamento. // l) Modelo 22 (IRC) de 2022 // m) Cessação de atividade para efeitos de IVA à data da insolvência (5/6/2023) e envio do comprovativo.”;
b) Em 03/07/2023 (do contabilista para o AI): “No seguimento das suas solicitações informo que até à próxima segunda-feira conto enviar-lhe todos os documentos solicitados com referência a 31.12.2021, nomeadamente, relatórios de contas de gestão, balancetes, mapas de amortizações e inventários de existências. // Os dados solicitados relativamente ao exercício de 2022 não estão disponíveis porque as contas não estão fechadas. // Naturalmente, 2023 também não. // No que diz respeito à entrega da declaração de cessação de atividade, e por falta de experiência neste tipo de situações, solicito o favor de indicar qual a alínea do artigo 34º do CIVA que sustenta a cessação, de modo a evitar fazer alguma opção incorreta e penalizadora. (…)”;
c) Em 03/07/2023 (do AI para contabilista): “É o art 34, n. 1 -a) // Junto comprovativo de cessação de uma insolvente. // O representante da cessação deverá ser a representante legal da empresa. // Solicito o envio do comprovativo o mais tardar amanhã durante o dia para juntar ao processo.”;
d) Em 04/07/2023 (do contabilista para o AI): “(…) Em anexo partilho o comprovativo da entrega da declaração de cessação de atividade da empresa J… Lda (…)”;
e) Em 04/07/2023 (do AI para contabilista): “Fico à espera da documentação.”;
f) Em 09/07/2023 (do contabilista para o AI): “Em anexo junto a documentação disponível referente às contas dos exercícios de 2020 e 2021 da J… Lda // Relativamente aos balancetes apenas tenho em arquivo os balancetes de razão geral e analítico do ano 2021, após apuramento de resultados. // Realço, no entanto, que esse balancete não resulta da contabilização direta da documentação contabilística, mas sim dos mapas de faturação mensal da empresa, dos registos de fornecedores disponíveis no portal e-fatura (compras, despesas e investimentos), dos mapas de amortizações que partilho em anexo, dos mapas de processamento salarial, dos extratos de fornecedores e de toda a informação declarativa em termos de impostos (IVA, IRS, IRC, TSU). // Estou ao seu dispor para os esclarecimentos que entender necessários. (…)”;
g) Em 10/07/2023 (do AI para o contabilista): “Acuso a receção do e-mail infra que mereceu a minha melhor atenção e que desde já agradeço. // Apesar de informar que dispõe dos balancetes de 2021 após o apuramento dos resultados, os mesmos não foram enviados. // Pelo que ficam em falta os seguintes documentos: // a. Relatório gestão de 2022. // b. Balancete analítico de 31/12/2020, 31/12/2021 e 31/12/2022 (antes e após o encerramento). // c. Último balancete analítico disponível de 2023. // d. Mapa da Amortizações de 2022. // e. Inventário de 2022. // f. Extrato da conta de sócios. // g. Modelo 22 (IRC) de 2022. // Solicito o envio com urgencia uma vez que o relatório a que alude o artigo 155º do CIRE terá que ser entregue at´ao dia 12/7/2023.”;
h) Em 10/07/2023 (do contabilista para o AI): “De acordo com o solicitado, em anexo, partilho os balancetes a 31.12.2021. // Tal como referi num mail anterior os dados de 2022 e 2023 não estão tratados. // No que diz respeito ao inventário de existências de 31.12.2022 apenas o recebi na semana passada e não está valorizado. Pretende o ficheiro nesses moldes?”
E, ainda:
32. Por sentença proferida em 18/09/2023, já transitada em julgado, foram verificados e graduados créditos reclamados, no montante global de 95.777,03€, dos quais 17.166,86€ assumem natureza garantida, 4.043,98€ natureza privilegiada e 74.566,19€ natureza comum (sendo que, destes últimos, 18.599,23€ o foram sob condição).[6]

*
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Da nulidade da sentença:
Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, do CPC que a sentença é nula quando: a) não contenha a assinatura do juiz; b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e e) condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Como decorre desta norma, as causas de nulidade aqui previstas reportam-se à violação de regras de estrutura, conteúdo e limites do poder-dever de pronúncia do julgador, consubstanciando os mesmos vícios formais da sentença ou vícios referentes à extensão/limites do poder jurisdicional (não contendendo, pois, com o mérito da decisão)[7].
No caso, a recorrente defende ocorrer nulidade nos termos previstos pelas als. b) e d) do citado artigo 615.º.
Não obstante a Mma. Juíza a quo não se tenha pronunciado quanto a tal arguição (cfr. artigo 617.º, n.º 1, do CPC), entendeu-se não ser de ordenar a baixa do processo para esse efeito (como previsto no n.º 5 do mesmo artigo) por não se revelar indispensável para apreciação do objecto do recurso, do qual se passará a conhecer.
Apreciemos.
Da nulidade da decisão por falta de fundamentação – al. b)
A nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 615.º (falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão), tem correspondência com o n.º 3 do artigo 607.º do CPC - deve o juiz “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final” - e mostra-se igualmente conexionada com o artigo 154.º, n.º 1 do mesmo código - “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas[8].
Contudo, como tem vindo a ser decidido de forma uniforme pela nossa jurisprudência, apenas a absoluta falta de fundamentação é susceptível de integrar nulidade. Já assim não ocorrerá se a sentença, embora de forma insuficiente ou mesmo incorrecta, se mostre fundamentada[9].
Da leitura da decisão recorrida, constata-se que a Mma. Juíza a quo elencou quais os factos que considerava provados, assim como referiu inexistirem factos não provados com interesse para a decisão, mais tendo indicado, interpretado e aplicado as normas jurídicas nas quais sustentou o decidido.
Nessa medida, resulta da sentença recorrida estarem suficientemente indicados os fundamentos de facto (não apenas a factualidade considerada provada mas também o fundamento da convicção da julgadora para que a mesma fosse firmada, desde logo com indicação dos meios probatórios que a sustentaram) e de direito em que assenta, pelo que a mesma não padece do vício que lhe é imputado (falta de fundamentação).
O que sucede é que a recorrente discorda do entendimento defendido pela 1.ª instância (designadamente quanto à interpretação das normas aplicadas e valoração e qualificação jurídica da factualidade elencada), o que, a proceder, apenas constituirá erro de julgamento.
Independentemente do acerto do decidido, carece de fundamento a alegação de não estar a sentença fundamentada, pelo que improcede a invocada nulidade.
Da nulidade da decisão por excesso de pronúncia – al. d)
Esta alínea reporta-se às situações nas quais o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, isto é, casos nos quais ocorre uma omissão ou um excesso de pronúncia.
Trata-se de uma nulidade que se mostra interligada com a previsão do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Porém, como é entendimento pacífico na nossa doutrina e jurisprudência, não se poderão confundir as questões a apreciar com os argumentos invocados pelas partes, sendo que, essencial, é que as primeiras sejam decididas.
Reportando ao caso, desde já se dirá que, ao contrário do alegado pela recorrente, na sentença impugnada não se qualificou a insolvência com recurso às previsões das als. a) e b) do n.º 2 do artigo 186.º.
Pese embora na mesma se tenha escrito “haverá que proceder à qualificação da insolvência como culposa, por verificação das alíneas d) e h) do n.º 2 do art.º 186.º e alíneas a) e b) do CIRE”, o que poderia suscitar algumas dúvidas, sempre estas últimas estarão completamente afastadas em face da leitura da sentença.
Em momento algum a Mma. Juíza a quo recorre à aplicação dessas qualificativas sendo por demais evidente que a referência às als. a) e b) se reportam ao n.º 3 do artigo 186.º (e não ao seu n.º 2). O que ocorreu foi um evidente lapso de escrita, ficando por identificar qual o número a que essas alíneas respeitam.
Já no que concerne à qualificativa constante da al. a) do n.º 3 do artigo 186.º importa referir que o facto de a mesma não ter sido invocada pelo AI e pelo MP não constitui obstáculo a que o tribunal a quo a ponderasse (como ponderou e aplicou) – nesse sentido, cfr. acórdão da Relação de Évora de 19/11/2015 (Proc. n.º 468/13.5TBPSR-E.E1, relator Paulo Amaral), segundo o qual, “[n]ão viola o princípio do contraditório, estabelecido no art.º 188.º, n.º 5, do CIRE, nem incorre em excesso de pronúncia a sentença que qualifica a insolvência como culposa com base numa previsão legal do n.º 2 do art.º 186.º que não tinha sido considerada no parecer do Administrador de Insolvência.”[10]
Aliás, tal circunstância não traduzirá qualquer vício que configure nulidade nos moldes invocados, na medida em que não se trata de conhecer de uma nova questão, porquanto a questão que importava decidir é apenas uma, a saber: a da qualificação da insolvência como culposa e a consequente afectação da recorrente. Ou seja, a pronúncia efectuada pela 1.ª instância debruçou-se sobre as questões que lhe era imposto conhecer, e só essas.
A Mma. Juíza a quo decidiu com base nos elementos que constavam dos autos (sendo que não se poderá deixar de realçar que, no incidente em causa, vigora o princípio do inquisitório – cfr. artigo 11.º) e não estava a mesma sujeita às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (não obstante a qualificação jurídica assumida tenha que respeitar a factualidade alegada e provada e os limites do efeito prático-jurídico pretendido) – cfr. artigo 5.º, n.º 3 do CPC (ex vi artigo 17.º).
Ao julgador é legalmente possível e admissível atribuir um diferente enquadramento jurídico aos factos alegados no parecer do AI ou do MP (bem como do invocado em requerimento de qualquer outro interessado).
Sem prejuízo de assim ser, não se deixará de referir que: a) na pronúncia apresentada pela credora “R… SA” (transcrita no relatório supra descrito), apesar de não ter sido concretizada qualquer qualificativa, o certo é que se aludiu directamente ao momento em que a situação de insolvência foi conhecida; e b) na oposição que deduziu, a recorrente não deixou de se pronunciar quanto ao momento da apresentação à insolvência, aí tendo defendido: “Logo que se inteirou da inviabilidade da empresa e se alguma culpa esta tem prende-se única e exclusivamente com a total falta de jeito para na prática gerir o estabelecimento, a notificada logo ponderou a possibilidade de submeter a empresa à insolvência, antes que a situação mais se agravasse. E fê-lo em tempo não censurável de alguma forma.
Carece, ainda, de sustentação a alegação de ter ocorrido violação do princípio do contraditório, ao qual se reporta o n.º 3 do artigo 3.º do CPC - “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Sendo certo que vigora no nosso ordenamento jurídico uma concepção ampla deste princípio (o qual está associado, não apenas a uma efectiva participação das partes no desenvolvimento do litígio, mas também ao poder de influenciarem o que no processo se decide[11]), não se poderá ignorar que se, por um lado, o respeito pelo contraditório impõe a audição específica das partes (por forma a carrearem para o processo os argumentos que entendam por convenientes e que sejam susceptíveis de influenciar a decisão que irá ser tomada), por outro lado, não está o tribunal obrigado a auscultar aquelas quanto ao sentido de todas as decisões, tanto mais se as mesmas se contiverem dentro da factualidade alegada e respeitarem os limites atinentes ao pedido e à causa de pedir[12].
Por assim ser, em face do que se expôs, impõe-se concluir que a sentença não padece igualmente do vício apontado e os fundamentos alegados não preenchem a invocada nulidade.

Da matéria de facto
Sem que autonomize nas suas alegações a pretensão de impugnação da matéria de facto, invoca a recorrente ocorrer “incongruência e contrasenso” entre o constante dos factos 1, 2 e 3 já que ficou assente que a recorrente renunciou à gerência em 01/06/2013 e depois se identifica a mesma como gerente. Nessa sequência pretende que seja eliminado dos factos 2 e 3 a menção de ser a mesma gerente.
Não obstante o artigo 662.º, n.º 1 do CPC permitir que a decisão sobre a matéria de facto possa ser alterada pela Relação - “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documentos superveniente impuserem decisão diversa” -, para que ocorra reapreciação da prova, exige o n.º 1 do artigo 640.º do mesmo código que seja cumprido determinado formalismo, aludindo no seu n.º 2 à especificação dos meios probatórios.
Como refere Abrantes Geraldes[13], deverá ter lugar a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto – sem que, previamente, haja lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento - se se verificar: a) falta de conclusões sobre tal impugnação – artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, al. b), ambos do CPC; b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados – artigo 640.º, n.º 1, al. a); c) falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios; d) falta de indicação exacta, na motivação, das passagens de gravação em que se funda; e) falta de decisão expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação.
No caso, sempre se poderá entender que a recorrente não deu cumprimento ao disposto no artigo 640.º do CPC, sequer tendo mencionado nas suas conclusões a pretensão concreta de impugnar a decisão de facto. No entanto, ter-se-á de ter em conta o disposto na al. c) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC, designadamente quando a decisão sobre a matéria de facto possa revelar-se contraditória.
Isto posto, não nos deixaremos de pronunciar quanto à invocada contradição a qual, diremos, não se verifica, desde logo porque toda a factualidade descrita terá de ser conjugada entre si, o que implica que se atenda igualmente ao ponto 26 da mesma (o qual não foi impugnado).
Sem prejuízo de assim ser, considerando que era controvertida tal qualidade e que a referência à recorrente enquanto “gerente” nos factos 2 e 3 sempre poderá traduzir um juízo conclusivo - tanto mais que a fundamentação de facto não deverá conter matéria que poderá ser qualificada como questão de direito -, oficiosamente, determina-se que seja eliminado de tais factos o substantivo “gerente”, mantendo-se inalterado o demais.

Do mérito do recurso:
O incidente de qualificação (previsto e regulado nos artigos 185.º e ss) visa averiguar quais os motivos que determinaram a situação de insolvência e se os mesmos foram puramente fortuitos ou se, pelo contrário, traduzem alguma actuação gravemente negligente ou fraudulenta do devedor.
O artigo 185.º consagra, assim, dois tipos de incidentes de qualificação da insolvência - culposa ou fortuita.
No caso, como já descrito no relatório deste acórdão, foi requerido que a insolvência fosse qualificada como culposa, sendo essa a posição defendida pelo AI, pelo MP e, pelo menos, por um dos credores.
Instruída e julgada a causa, o tribunal recorrido proferiu sentença pela qual veio a corroborar a posição consensualmente defendida, qualificando, assim, a insolvência como culposa, por entender que a mesma se subsume às previsões constantes das als. d) e h) do n.º 2 e das als. a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º.
Prescreve o n.º 1 do artigo 186.º que “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
O período juridicamente relevante cifra-se entre 02/06/2020 e 02/06/2023 (data da apresentação à insolvência).
Em face do transcrito n.º 1, são requisitos cumulativos da insolvência culposa: a) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores (tanto de direito, como de facto), nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; b) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); e c) o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.[14]
O conceito constante deste n.º 1 é depois complementado nos dois números seguintes por um conjunto de situações em que a insolvência se considera sempre culposa (n.º 2) ou nas quais se presume a existência de culpa grave (n.º 3).
No caso, como referido, a sentença recorrida julgou verificadas as circunstâncias previstas nas citadas alíneas d) e h) do n.º 2, bem como nas als. a) e b) do n.º 3, as quais têm carácter disjuntivo (pelo que bastará a verificação de uma delas para que a insolvência seja qualificada culposa)[15].
Rege este normativo, no que aqui releva, que “2. Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros; (…) h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor; (…) 3. Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência; b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial. (…)”.
As previsões elencadas nas diversas alíneas do citado n.º 2 correspondem a condutas que integram uma presunção iuris et de iure, da existência de insolvência culposa.[16]  Trata-se de um elenco taxativo de presunções inilidíveis de insolvência culposa, de culpa e de nexo de causalidade – cfr. artigo 350.º, n.º 2, in fine, do CCivil.[17] Por assim ser, e como refere Maria do Rosário Epifânio[18], “quando se preencha algum dos factos elencados no n.º 2 do art. 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato”.
Refira-se que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 570/2008, publicado no D.R., 2.ª Série, n.º 9, de 14/01/2009, considerou ser “… duvidoso que na previsão do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE se instituam verdadeiras presunções … o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico -sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal de situações típicas de insolvência culposa”. Não obstante, quer se trate de presunção inilidível de culpa ou de factos-índice, perante a prova de determinados comportamentos sempre se terá de concluir que a insolvência é culposa (sem necessidade de demonstração do nexo causal entre as condutas constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento).
Em síntese, poder-se-á concluir que, se, por um lado, a qualificação culposa da insolvência exige sempre, como requisito, uma actuação do devedor que seja causadora da situação de insolvência ou do seu agravamento; por outro lado, verificando-se alguma das circunstâncias previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º tal requisito presume-se verificado e impõe-se a qualificação como culposa da insolvência – sem prejuízo de, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda[19], as alíneas deste n.º 2 exigirem uma ponderação casuística, ou seja, na apreciação de cada uma das situações aí previstas dever-se-á atender às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor.
Já no que respeita ao estatuído no n.º 3 do mesmo artigo 186.º, aqui se prevê unicamente uma presunção ilidível da culpa grave.
Nessa medida não se mostra suficiente para a qualificação culposa que tenha ocorrido algum dos comportamentos omissivos descritos nas suas alíneas. Para que assim se possa concluir, será ainda necessário que tais comportamentos tenham contribuído para causar ou agravar a situação de insolvência.
Já assim se entendia maioritariamente e, com a alteração introduzida a este número pela Lei n.º 9/2022 de 11/01, nomeadamente pela introdução do advérbio “unicamente”, afastada fica a posição que defendia que este n.º 3 abrangia igualmente o nexo de causalidade a que alude o n.º 1 – cfr., quanto a esta questão, os acórdãos do STJ de 17/01/2023 (Proc. n.º 14604/18.1T8LSB-A.L2.S1, relatora Graça Amaral) e de 28/09/2022 (Proc. n.º 2770/18.0T8VNG-B.P2.S1, relatora Ana Resende).

Cumpre, pois, aferir se o comportamento da devedora é subsumível às alíneas elencadas na sentença recorrida.

Al. d) do n.º 2 do artigo 186.º:
Nesta alínea estão em causa comportamentos dos administradores e gerentes da insolvente que, afectando a situação patrimonial desta, implicam concomitantemente benefício para o próprio administrador/gerente que os adopta ou para terceiros. Embora a hipótese mais comum se traduza na saída de bens do património do devedor (venda ou doação) ou perda de disponibilidade dos mesmos, não se reduz tal disposição a actos de alienação, abrangendo igualmente os que afectem em geral o seu património (o capital administrado), pondo-o em risco.
Visa-se a protecção do património da insolvente, penalizando-se actos de disposição com fins contrários aos da empresa (atendendo a que o património da devedora deverá ser afecto à satisfação dos credores, há que obstar a que haja uma afectação ao benefício ilegítimo dos próprios administradores/gerentes ou de terceiros).
Al. h) do mesmo n.º 2
Esta alínea alude ao incumprimento de obrigações legais, compreendendo três situações distintas: a) incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada, b) manutenção de uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade (fraude contabilística); e c) prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
O prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor releva, essencialmente, para esta terceira hipótese, na qual, apesar de existir contabilidade (não falseada), a mesma apresenta irregularidades (sendo que estas últimas poderão ser mais ou menos graves e prejudicar ou não a compreensão da situação do devedor). Na verdade, nas restantes duas hipóteses, salvo raras excepções, tal prejuízo sempre existirá (uma vez que a situação do devedor jamais poderá ser aferida pela contabilidade).
 Nesta matéria, vejam-se os acórdãos da Relação de Coimbra de 01/06/2020 (Proc. n.º 5831/18.2T8VIS-A.C1, relator Emídio Santos) – “(…) «Organizar a contabilidade em termos substanciais» é organizá-la de maneira a que ela mostre fielmente a situação patrimonial e financeira da empresa e os resultados da mesma” -, da Relação de Lisboa de 11/12/2019 (Proc. n.º 167/09.2TYLSB-C.L1, relator Rijo Ferreira) – “I. A contabilidade das empresas, através da escrituração, assume particular importância na medida em que, através das demonstrações geradas pela correlação dos respectivos dados, permite avaliar em cada momento a situação patrimonial e financeira da empresa e o seu comportamento negocial, quer por parte do empresário, quer por parte daqueles que se relacionam com a empresa, quer por parte do público em geral. II. Para que o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada possa ser fundamento de qualificação da insolvência como culposa, nos termos da al. h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, ele tem de ser ‘em termos substanciais”. III. O incumprimento deve considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental” IV. E porque para o efeito em causa o que releva não é tanto a contabilidade enquanto registo dos fluxos financeiros e operações comerciais, mas antes enquanto evidenciação do comportamento negocial do empresário, a violação da obrigação de manter a contabilidade organizada só pode ser tida em termos substanciais quando dessa omissão resulte não ser possível indicar com segurança a causa da insolvência e os seus responsáveis” -; e da Relação de Guimarães de 10/09/2020 (Proferido no âmbito do Proc. n.º 1373/17.T8CHV.G1, relator Heitor Gonçalves) - “(…) 3. A contabilidade organizada é um regime fiscal obrigatório para as empresas constituída em sociedades comerciais, que «deve reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes» (cfr. artigo 17º, n.º 3, alínea b), do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas), e cuja execução, segundo o n.º 2 do artigo 123º do mesmo código, exige que «todos os lançamentos devam estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário», e que «as operações sejam registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras». (…) 4. Como refere Luís Brito Correia, «chama-se contabilidade à compilação, registo, análise e apresentação de informações, em termos monetários, sobre operações patrimoniais» (Direito Comercial, I-257), devendo a sua elaboração ser orientada segundo os princípios de clareza e de verdade, por isso implica o arquivo em pastas próprias, por ordem cronológica, de todos os documentos relativos a actos com expressão patrimonial (v.g. compras e vendas, entradas e saídas de caixa e operações bancárias), de molde a permitir às autoridades públicas a verificação da regularidade tributária e o conhecimento pelos sócios da situação patrimonial da empresa, e servindo também «para verificar a regularidade da actuação do comerciante, nomeadamente em caso de falência, tendo em vista o interesse público» (cfr. obra citadas, p. 253).
Já ao nível da doutrina, escreve Pires Cardoso[20], “a contabilidade, através da escrituração, revela ao comerciante a sua situação económica e financeira em determinado momento, os resultados – lucros e perdas de cada exercício. E assim como lhe releva os erros da sua actuação em certos aspectos do seu comércio, permitindo-lhe modificá-la, também lhe mostra os benefícios trazidos pela sua orientação em outros aspectos, animando-o a continuá-la. (…) Mas além disto, a escrituração mercantil é também uma garantia para quem contrata com os comerciantes, pois nela muitas vezes se fundam reclamações das pessoas que se sentem lesadas, e é nos seus lançamentos que vai buscar-se a prova para fazer valer em juízo ou fora dele, essas mesmas reclamações. (…) Mais ainda: A escrituração é também obrigatória no interesse geral do público porque demonstra a maneira de negociar do comerciante, o seu procedimento honesto ou a sua má-fé nas transacções, sobretudo nos casos de falência em que se tem que reconstituir a sua vida mercantil, para averiguar se houve negligência, fraude ou culpa”.
Reportando ao caso, a 1.ª instância, após transcrever o constante dos factos provados n.º 6, 7 e 8, concluiu estarem preenchidas as qualificativas das als. d) e h) do n.º 2, tendo-se consignado na sentença recorrida:
Dos factos provados emerge à evidência, que as obras imputadas na contabilidade da empresa não têm justificação documental pela maioria do seu valor, em primeira linha, e foram realizados no prédio urbano onde a Insolvente prosseguia a sua atividade, da propriedade do gerente e da sua mulher. // Na verdade, nem sequer foi possível apurar a real situação financeira da Insolvente pois a Insolvente não detinha qualquer contabilidade organizada como devido. Logo, deve, desde logo, ser considerada culposa a insolvência em apreciação, assente, como vimos supra, que a presunção de culpa consignada na norma em aplicação – n.º 2 do art.º 186.º do CIRE- é inilidível.”

Começando pela qualificativa da al. h), resulta provado que a sociedade não tinha contabilidade organizada (facto que a recorrente sequer impugnou), o que apenas terá sucedido até Dezembro de 2021 (razão pela qual apenas foram disponibilizados documentos contabilísticos referentes aos anos de 2020 a 2021, nada tendo sido apresentado com relação aos anos seguintes).
Tal circunstância compromete seriamente os interesses que se pretendem assegurar com a obrigação em causa, traduzindo uma omissão/incumprimento substancial desse dever - o qual  a ter sido cumprido, permitiria o acesso aos elementos necessários à compreensão da realidade financeira e patrimonial da sociedade (desde logo para os terceiros que com ela se relacionam). Precisamente por assim ser, como já referido, sequer é necessário indagar se dessa omissão resultou ou não qualquer prejuízo, porquanto este sempre existirá (a compreensão da real situação da empresa sempre deixará de poder ser alcançada pela análise da sua contabilidade).  
Manter a contabilidade organizada é uma obrigação permanente[21] que segue as regras do SNC (sistema de Normalização Contabilística[22]) e culmina com a obrigação anual de prestação de contas prevista no artigo 65.º do CSC, o que pressupõe a análise e lançamento dos documentos, sendo as operações transcritas e ordenadas em relação a cada uma das contas a que respeitam, por forma a permitir o conhecimento do estado e situação de qualquer delas a cada momento.
Consequentemente, dúvidas inexistem de estar preenchida a qualificativa prevista na al. h), sendo que a inexistência de contabilidade organizada (facto que a recorrente não deixar de reconhecer) se manteve até ao encerramento da actividade.
Como se pode ler no relatório do AI (artigo 155.º), não lhe foram entregues: o relatório de gestão de 2022, o balancete analítico de 31/12/2020 e de 31/12/2022, o último balancete analítico disponível de 2023, mapa de amortizações de 2022, extracto da conta de sócios e Modelo 22 e IES de 2022; mais se tendo aí consignado que, segundo informação do contabilista certificado da empresa, “os dados de 2022 e 2023 não estão tratados”.
Vejamos agora o preenchimento da qualificativa prevista na al. d), sendo que, para o efeito, refere-se na sentença recorrida não terem as obras realizadas e imputadas na contabilidade “justificação documental pela maioria do seu valor”, para além de se reportarem a imóvel não pertencente à sociedade (apesar de a actividade ser aí desenvolvida, o imóvel é propriedade dos sócios).
Sem prejuízo de assim ser, não acompanhamos a decisão recorrida no que respeita ao decidido nesta parte.
Desde logo há a realçar que as obras realizadas em 2019 o foram antes de iniciado o período relevante para efeitos de qualificação da insolvência, nessa medida não podendo ser valoradas.
Já no que respeita às obras efectuadas nos anos de 2020 e 2021[23], é facto assente que não se mostram as mesmas justificadas, nem sequer esclarecido em que consistiram (apenas se tendo apurado o que consta do facto n.º 12) – não se demonstrou qualquer necessidade ou benefício para a sociedade e a sua realização/custo não está sustentada por qualquer documentação contabilística -, para além de terem ocorrido num momento em que a sociedade se encontrava em situação de insolvência técnica[24] (desde 2020) e o imóvel não integrar seu património. Nessa medida, numa primeira leitura, poder-se-ia concluir apenas terem sido beneficiado os sócios (enquanto proprietários do imóvel) – tal circunstancialismo configuraria, na verdade, a prática de actos não orientados pela prossecução do interesse social, um desvio no exercício dos poderes de administração.
Não obstante, é igualmente incontrovertido que estamos perante actos levados a cabo pelo anterior gerente (já falecido), nenhuma intervenção tendo tido a recorrente (a qual não era gerente).
Por outras palavras, com relação a esta facticidade, a recorrente não incorreu em qualquer acção ou omissão que tenha sido causadora da criação da insolvência ou do agravamento desse estado de insolvência, não lhe podendo ser imputada qualquer violação de deveres (legais ou contratuais) a que pudesse estar obrigada.
Como advertem Carvalho Fernandes e João Labareda, as previsões/qualificativas em causa exigem uma ponderação casuística e, no caso, mostra-se inequivocamente demonstrado não ter a recorrente praticado os factos que seriam integradores da al. d) do n.º 2 do artigo 186.º - factos esses que foram praticados por outrem -, nessa medida não podendo a insolvência ser qualificada como culposa com esse fundamento, tanto mais que apenas aquela poderá ser afectada pela qualificação (mais à frente voltaremos a esta questão).[25]
Al. a) do n.º 3 do artigo 186.º
Para enquadramento desta alínea importa ter em conta o artigo 18.º, cujo n.º 1 estatui que o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência tal como descrita no n.º 1 do artigo 3.º, ou à data em que devesse conhecê-la, mais acrescentando no seu n.º 3 que “[q]uando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º”.
Visa-se com esta previsão evitar que a situação se arraste e acarrete ainda mais prejuízos, dessa forma agravando-a.
No caso, a apresentação à insolvência ocorreu no dia 02/06/2023 mas o tribunal a quo considerou que a recorrente estava em condições de o ter feito depois de se ter inteirado da situação da sociedade, o que terá ocorrido após o falecimento do seu marido (até então gerente de facto e de direito), em Junho de 2022, tendo sido nessa sequência que mesma decidiu prosseguir com a actividade.
Pode ler-se na sentença: “(…) Resulta provado que, a situação até junho de 2022, data em que faleceu o sócio gerente e marido da Opoente, era insustentável financeiramente face aos prejuízos apresentados desde 2020. E, atentando à factualidade provada sob os pontos 16 a 27 extrai-se que só após o falecimento do gerente V… é que a ora Opoente assume a qualidade de administradora como Cabeça-de-casal e de gerente de facto, prosseguindo com a atividade. // E, foi quando se viu confrontada com a pressão de fornecedores com exigências de pagamento, eles que já só forneciam a pronto, com a instabilidade na manutenção de cozinheiro para assegurar o fornecimento de refeições, com demissões de pessoal (cozinheira e 2 funcionários), em agosto de 2022. // Logo, mesmo sendo desconhecida a situação, permitimo-nos dizer, desastrosa por parte do seu falecido marido, não podemos deixar de extrair a conclusão que a partir de junho de 2022 passou a conhecer realidade financeira da empresa Insolvente, bastando atentar ao facto 27, destacando-se que os fornecedores apenas negociavam a pronto pagamento em face das dívidas. E, tal circunstância apenas se deve, necessariamente, à falta de liquidez por dividas acumuladas. // Dito isto, após o falecimento do gerente da Insolvente a sua esposa, aqui Opoente, tentou recuperar e seguir com a atividade juntamente com os seus filhos mais velhos, numa tentativa, diremos “desesperada” de prosseguir com o negócio, assente que em agosto de 2022 é evidente que o negócio colapsou (sem cozinheiro e sem funcionários). E, isto para dizer que a Opoente deveria ter apresentado a empresa imediatamente à insolvência o que só veio a suceder em 2023, ultrapassados os limites de tempo fixados na lei. // Portanto, somos levados a concluir que, desde o falecimento do seu marido, não conseguindo prosseguir a atividade, a Opoente sabia que a sociedade em questão estava em situação de insolvência e que não possuía meios próprios suficientes, assim se encontrando impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas (artigo 18.º, n.º 1 e 3.º, n.º 1, ambos do C.I.R.E.). // Na realidade dos factos, conforme provados pela Opoente, esta não teve intervenção na criação da situação de insolvência, não se extraindo qualquer contributo deliberado e reiterado da sua parte de do dever de apresentação de insolvência, nem de falta de colaboração após a mesma (desconhece o paradeiro da mesma e a única pessoa capaz de elucidar a situação faleceu). Todavia, não restam dúvidas que protelou muito para além do prazo legal o dever de apresentação de insolvência, assim o incumprindo. // Consequentemente, desrespeitou os prazos plasmados no artigo 18.º, do C.I.R.E., porque ultrapassados os três meses sobre o incumprimento generalizado das obrigações (seu n.º 3), não conseguindo afastar a presunção, porquanto “herdou uma situação financeira” de tal modo insustentável que tinha obrigação de não a arrastar por largos meses – entre o falecimento do seu marido e a cessação de atividade em sede de IVA decorreu 1 ano, assim  como até à apresentação à insolvência junto deste tribunal. Ademais, sublinhamos que as contas do ano de 2022 não foram encerradas até ao dia de hoje.”
Sucede que, não obstante dos factos resultar a incapacidade financeira da insolvente para cumprir com as suas obrigações já vencidas, daí resultando o dever de apresentação à insolvência em momento anterior, não se poderá deixar de realçar inexistirem elementos de facto que permitam concluir que tal incumprimento (que se traduziu no facto de a apresentação apenas ter ocorrido em 02/06/2023) ter sido causa de agravamento da situação da insolvência (agravando a impossibilidade de cumprimento das obrigações ou de satisfação dos credores). Da matéria de facto não resulta que, depois de Junho de 2022, o passivo tenha aumentado (por exemplo, por terem sido contraídas novas dívidas) ou o activo tenha diminuído (diminuição ou perda de património, património esse que constitui a garantia geral dos credores).
Com efeito, não consta da fundamentação de facto, nem de qualquer outro elemento do processo, o momento no qual se venceram os créditos que foram reclamados, verificados e graduados no apenso B. Mais concretamente, nada resulta dos autos que permita concluir que algum desses créditos se tenha constituído após o falecimento do então gerente V … (quando a recorrente prosseguiu com a actividade da empresa).
Para além de na própria sentença se afirmar expressamente que “conforme provados pela Opoente, esta não teve intervenção na criação da situação de insolvência”, nada se apurou quanto a um possível agravamento dessa situação (não obstante o hiato temporal decorrido até à data da apresentação).
Termos em que não poderá a insolvência ser qualificada com fundamento nesta alínea.
Al. b) do n.º 3 do artigo 186.º
Provou-se que as contas de 2022 não foram elaboradas e depositadas na CRComercial dentro do prazo (facto n.º 11). Trata-se de obrigação legal resultante do artigo 70.º do CSC.
Mas, tal como já referido com respeito à al. a) do n.º 3, também aqui se mostra necessário demonstrar o nexo de causalidade entre a conduta omissiva e o agravamento da situação de insolvência (em obediência ao previsto no n.º 1 do mesmo preceito), demonstração/prova essa que não foi feita.
Como tal, também esta qualificativa fica afastada.

Em síntese, é manter a qualificação culposa da insolvência, mas apenas com fundamento no disposto no artigo 186.º, n.º 1 e 2, al. h).

Aferir se a recorrente deverá ser qualificada como gerente
Não obstante apenas o falecido V… constar como único gerente registado, dúvidas inexistem de, após a sua morte (ocorrida em 01/06/2022), a recorrente ter assumido os comandos da sociedade insolvente.
Ao assim ter sucedido sempre a mesma se terá de considerar gerente de facto a partir desse momento, nessa medida tendo sido indicada como proposta afectada pela mencionada qualificação (como veio a suceder).
Apesar de a al. a) do n.º 1 do artigo 6.º apenas referir quem é considerado administrador para efeitos do CIRE - “aqueles a quem incumba a administração ou liquidação da entidade ou património em causa, designadamente os titulares do órgão social que para o efeito for competente.” -, ou seja os que se encontram regularmente designados para o cargo por deliberação ou disposição contratual registada na conservatória de registo comercial, inexistindo qualquer preceito que forneça o conceito de administrador de facto, sempre o mesmo terá de ser definido com recurso à figura do administrador de direito, designadamente ao constante da primeira parte da referida al. a).
Assim, estaremos perante um administrador de facto quando o mesmo assuma uma conduta similar à exercida pelo administrador de direito, o que nos impõe que analisemos a concreta actuação daquele (no seio da empresa). Só assim será possível aferir se a sociedade fica ou não vinculada pela conduta do mesmo e, no que para o caso interessa, para determinar se lhe poderá ser assacada alguma responsabilidade insolvencial. Segundo Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos[26], será administrador de facto “quem, sem título bastante, exerce, direta ou indiretamente e de modo autónomo (não subordinadamente), funções próprias de administrador de direito na sociedade.
No caso, para além de a recorrente ter efectivamente assumido funções enquanto gerente de facto (tendo conduzido a actividade da empresa até ao momento da sua apresentação à insolvência), sempre teria de ser considerada gerente em face do regime previsto pelo artigo 253.º, n.ºs 1 e 2 do CSC – “Se faltarem definitivamente todos os gerentes, todos os sócios assumem por força da lei os poderes de gerência, até que sejam designados os gerentes[27]. Com efeito, tendo a sociedade insolvente apenas dois sócios, aquando do falecimento do único gerente, a recorrente (sócia) automaticamente ficou investida nos poderes de gerência[28].
Por fim, importa referir que se mostram destituídas de fundamento as considerações tecidas com relação aos demais herdeiros do falecido gerente (no caso, os seus filhos), os quais, para além de nada resultar quanto a terem exercido funções como gerentes de facto, sequer adquiriram, de forma automática e aquando da morte do pai, a qualidade de sócios da sociedade, mas apenas a de contitulares da quota que àquele pertencia[29].
Apenas a recorrente foi gerente pelo que apenas com relação à mesma importa apurar responsabilidades no âmbito do presente incidente.[30]
           
Dos pressupostos de afectação da recorrente – período de inibição e indemnização aos credores
Tratando-se de insolvência culposa, cabe ao juiz determinar as pessoas que são atingidas pelos seus efeitos – artigo 189.º, n.º 2, al. a)[31].
No caso, o tribunal a quo declarou afectada a recorrente, a qual, no período temporal relevante (02/06/2020 a 02/06/2023) – o qual também nesta matéria releva[32] -, apenas exerceu funções de gerente entre 01/06/2022 e 02/06/2023 (data na qual apresentou a sociedade à insolvência).
Quanto à questão suscitada pela recorrente e que se prende com o argumento de que a mesma não deverá ser a única afectada, devendo igualmente ser afectados pela qualificação os demais herdeiros do falecido gerente, impõe-se referir não lhe assistir razão, como se demonstrará.
Falecendo o gerente (indicado como proposto afectado), extinguem-se as obrigações de índole estritamente pessoal que sobre o mesmo impendiam. Porém, quanto às obrigações com natureza patrimonial que lhe pudessem ser impostas, o desfecho poderia ser já diferente. E isto porque a obrigação de indemnizar a que alude a al. e) do n.º 2 do artigo 189.º refere expressamente que o património de todos os afectados responde perante os credores – “considerando as forças dos respetivos patrimónios[33].
 Sucede que, no caso, o óbito do referido gerente ocorreu em data anterior à abertura do incidente de qualificação (aliás, o gerente V… faleceu um ano antes de a sociedade se ter apresentado à insolvência), pelo que o mesmo sequer foi indicado como proposto afectado – nessa medida não sendo aqui aplicável o previsto no n.º 12 do artigo 188.º.
Também não foram indicados para esse efeito os respectivos herdeiros, com vista a que os credores pudessem ver satisfeitos os seus créditos pelos bens da herança (não os indicaram o AI e o MP, nem sequer qualquer outro interessado – seja aquando do início da tramitação referente ao incidente, seja no decurso da mesma -, não obstante os herdeiros terem sido desde sempre conhecidos[34]).
Aliás, em momento algum foram os mesmos chamados a intervir, o que, inclusive, poderia ter sucedido em face do disposto no n.º 9 do artigo 188.º - “(…) o juiz manda citar pessoalmente aqueles que em seu entender devam ser afetados pela qualificação da insolvência como culposa (…)”.  Nos termos deste número, e recorrendo às palavras de Carvalho Fernandes e João Labareda[35], o juiz tem que identificar (no despacho de prosseguimento do incidente), “quem deve ser chamado, além do devedor, e só os citados poderão vir a ser efetivamente considerados culpados. A intervenção do devedor e dessas pessoas no incidente destina-se a facultar-lhes a possibilidade de se oporem à qualificação da insolvência como culposa, se assim o entenderem, em respeito do princípio geral do contraditório.” (sublinhado nosso).
Conclui-se, assim, que não tendo os mesmos sido chamados a intervir ab inicio, não lhes poderá agora ser assacada qualquer responsabilidade, como defendido pela recorrente.

Isto posto,
Prescreve o artigo 189.º que a sentença que qualifica a insolvência, deve também: “b) Decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos; // c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; // d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos. // e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.
Daqui resulta que, uma vez qualificada a insolvência da devedora como culposa, as medidas previstas neste preceito são uma decorrência lógica dessa qualificação.
Por assim ser, carece de ponderação o decidido quanto às inibições a que aludem as als. b) e c), uma vez que, para ambas, o tribunal a quo fixou o mínimo legalmente previsto (dois anos).[36]
Também com relação à medida prevista na al. d), nada importa referir (a qual sequer foi questionada pela recorrente).
Por fim, cumpre apreciar da obrigação de indemnizar prevista na al. e).
Com esta medida visa-se dissuadir o agente da prática de condutas dolosas ou gravemente culposas que sejam susceptíveis de criar ou agravar a situação de insolvência nas circunstâncias previstas no artigo 186.º, assumindo uma componente reparadora e sancionatória.
Questiona a recorrente o montante indemnizatório fixado pela 1.ª instância, mais concretamente refutando qualquer responsabilidade pelo mesmo ou, pelo menos, pugnando pela sua redução.
Para tanto concluindo: “o tribunal deveria ter considerado a inexistência de qualquer acto e culpa (que aliás considerou mínima no decretamento do período de inibição) e por conseguinte na fixação do montante que fixou deveria atender tão só ao dano ocasionado no período de 3 anos anteriores à apresentação à insolvência, e bem assim considerar, se efectivamente à luz das regras e da experiência comum o património devedor na realidade resultou enriquecido (transformar dois apartamentos numa sala de restauração parece ser ruinoso) e também se a remodelação de esplanada no tempo em que o foi, em plena vigência do COVID, se configurava como negócio razoável na actividade de restauração dadas as restrições de uso de espaços fechados), e, por tudo isto, com base na equidade, fixar equitativamente como dano a ressarcir percentagem nunca superior a 1/6 do dano apurado 62.404,02€”.
Antes de mais, dir-se-á que da actual redacção desta al. e) resulta expressamente que o montante indemnizatório pode ficar aquém do correspondente aos créditos não satisfeitos, pelo que, para o efeito, sempre será de ponderar o valor dos danos causados pelo comportamento das pessoas afectadas pela qualificação. Assim, o montante indemnizatório não tem de corresponder necessariamente à globalidade dos créditos que ficaram por satisfazer, os quais traduzirão apenas o limite máximo da obrigação de indemnizar.
Cfr. nesta matéria, o acórdão desta Secção do Comércio, datado de 24/01/2023 (Proc. n.º 229/14.4T8FNC-C.L1, relatora Teresa de Jesus S. Henriques) - “(…) será atendendo e apreciando as circunstâncias do caso (tudo o que está provado no processo: o que levou à qualificação e o que o afetado alegou e provou em sua “defesa”) que o juiz pode/deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afetadas. // III - E entre as circunstâncias com relevo para apreciar a proporcionalidade ou desproporcionalidade da indemnização a fixar encontram-se os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afetada (da contribuição do comportamento da pessoa afectada para a criação ou agravamento da insolvência): mais estes (os elementos respeitantes à gravidade da ilicitude) que aqueles (os elementos respeitantes ao grau de culpa), uma vez que, estando em causa uma insolvência culposa, o factor/grau de culpa da pessoa afectada não terá grande relevância como limitação do dever de indemnizar, sendo o factor/proporção em que o comportamento da pessoa afectada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização. IV- A indemnização devida pelo afectado, atenta até a alteração de redacção introduzida pela Lei n.º 9/202,11.01, deve corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o activo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, podendo, no entanto ser fixada em montante inferior.” – em cujo sumário se reproduz parcialmente o que já havia sido consignado nos acórdãos do STJ de 22/06/2021 (Proc. n.º 439/14.7T8OLH-J.E1.S1, relator Barateiro Martins) - no qual se escreveu ainda: “a observância do princípio da proporcionalidade não exige que a indemnização a impor tenha que ser avaliada como justa, razoável e proporcionada, mas sim e apenas, num contexto mais lasso, que a indemnização a impor não seja avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável” – e de 06/09/2022 (Proc. n.º 291/18.0T8PRG-C.G2.S1, relator José Rainho) – aqui se defendendo: “(…) V – A indemnização devida aos credores a cargo do afetado pela insolvência culposa deverá, em princípio e tendencialmente, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir.” Neste sentido também decidiu o acórdão desta Secção proferido em 22/02/2022 (Proc. n.º 1564/20.8T8FNC-C.L1, relatora Isabel Fonseca, ao que sabe, não publicado)[37], aí se defendendo que se deverá continuar a entender que a indemnização corresponde ao montante dos créditos não satisfeitos, embora possa ser reduzida (designadamente em face do grau de culpa).
Tecidas estas considerações, importa ainda referir que será apenas de atender aos factos que se mostram demonstrados (e não quaisquer outros que a recorrente entenda que seriam de ponderar mas que não resultaram evidenciados nos autos).
Isto posto,
Nos autos apenas foram apreendidos bens móveis (não estando a liquidação ainda concluída – cfr. apenso D).
Os créditos reconhecidos e já verificados e graduados ascendem ao montante global de 95.777,03€.
A insolvência da devedora foi qualificada como culposa com fundamento apenas na al. h) do n.º 2 do artigo 186.º.
A sentença recorrida condenou a recorrente a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos até ao montante de 62.404,02€ e considerando as forças do respectivo património.
Como escreve Catarina Serra[38], “o regime da responsabilidade por insolvência culposa perde grande parte da sua dimensão punitiva ou sancionatória (em que havia “um espaço de responsabilidade sem causalidade”) e (re)aproxima-se do regime geral da responsabilidade civil, com um desvio, atendendo à fixação de um (do tal) máximo. Traduz-se isto, em suma, na máxima de que devem ser indemnizados (só) os danos (cfr. art. 483º do CC) mas não necessariamente todos os danos. (…). O factor que pode e deve ser considerado e tem efeitos sensíveis na modelação do valor da indemnização, imprimindo-lhe proporcionalidade, é um único: a contribuição causal de cada sujeito para a ocorrência dos danos/a medida da participação efectiva de cada um. (…) A qualificação da insolvência como culposa pressupõe sempre a causalidade (provada ou presumida) entre a conduta e a criação ou o agravamento da insolvência (a “causalidade fundamentadora” da responsabilidade civil), mas esta não basta para responsabilizar os sujeitos afectados; deve ainda verificar-se a causalidade entre a conduta e os danos (a “causalidade preenchedora” da responsabilidade civil). (…) é preciso apurar a diferença entre a situação que existe e a situação que existiria se a conduta ilícita não tivesse tido lugar – apurar, mais precisamente, o dano diferencial. (…).”
Porém, como resulta do anteriormente exposto, não se mostra verificada a qualificativa a que alude a al. d) do n.º 2 do artigo 186.º, porquanto para os factos que relevariam para o seu preenchimento a recorrente em nada contribuiu – factos ocorridos num período em que a mesma era apenas sócia (e não gerente) e que foram da exclusiva responsabilidade do então gerente (já falecido).
Já no que concerne à conduta integradora da al. h), tendo a recorrente sido gerente entre 01/06/2022 e 02/06/2023 (período com relação ao qual inexistiu contabilidade nos moldes já tratados), nunca a mesma se poderá alhear e desresponsabilizar dos prejuízos daí resultantes (pelos actos de administração atinentes à contabilidade/escrita). O simples facto de inexistir uma contabilidade organizada conduz à dificuldade de ser avaliada a situação patrimonial da devedora que vem a ser declarada insolvente e, tendo a recorrente estado a gerir a sociedade durante um ano, era-lhe exigível que se tivesse inteirado da situação atinente à contabilidade e a tivesse organizado/regularizado.
Mas qual a medida do dano daí decorrente e qual o respectivo contributo da recorrente?
Referindo-se, para além do mais, ao dano decorrente da falta de contabilidade organizada, no acórdão proferido por esta Secção em 16/01/2024 (Proc. n.º 18172/20.6T8LSB-B.L1-1, relatora Amélia Sofia Rebelo), escreveu-se: “não existe uma linear ou justaposta coincidência entre a causa fundamentadora da responsabilidade e a causa ‘preenchedora’ dessa responsabilidade ou, dito de outra forma, entre o perigo de dano presumido pelas normas fundamento da qualificação e o dano concretamente causado pelas condutas omissivas da recorrente, entre o presumido agravamento da situação de insolvência e o concreto valor ou mensuração desse agravamento. Coincidência ou justaposição que por princípio existe quando, por exemplo, a conduta qualificadora corresponde a um ato de dissipação ou de disposição de um bem do devedor, cujo valor de mercado corresponderá ao valor do prejuízo por ele causado aos credores”. Porém, acrescenta-se, “os afetados pela qualificação da insolvência com fundamento na violação dos deveres de informação (através da falta de contabilidade e através da não prestação da colaboração devida ao AI) não podem deixar de ser civilmente responsabilizados perante os credores, tanto mais que este constitui um efeito legal imperativo da qualificação da insolvência como culposa. Mas, concedendo que a afetação pela qualificação da insolvência contém em si mesma a demonstração e verificação da ilicitude do facto fundamento da qualificação, bem como do juízo de censurabilidade que pelo mesmo é passível de ser dirigido ao afetado, nos casos como o presente a amplitude do perigo abstratamente gerado – que tem sempre como limite máximo o passivo não satisfeito pelas forças da massa - deve ser objeto de um ajustamento proporcional à gravidade da ilicitude e da culpa manifestadas nas concretas circunstâncias de cada caso.”
Aderindo-se a tal entendimento (e perante o que já anteriormente se defendeu), em face de ser reduzida a ilicitude da conduta da recorrente, bem como ser reduzida a sua culpa (o que, diga-se, não deixou de ser reconhecido pelo tribunal a quo ao fixar as medidas de inibição pelo mínimo legalmente previsto), tanto mais que a mesma apenas assumiu a gerência no último ano que antecedeu a apresentação à insolvência (sendo que, até então, apenas exercia funções como professora e sequer se demonstrou que, não obstante essa apresentação devesse ter acontecido em momento anterior, daí tenha resultado algum agravamento para a situação de insolvência), assim como nada resulta provado quanto ao momento em que se constituíram os créditos que vieram a ser reconhecidos e graduados, julgamos que o montante indemnizatório fixado na sentença recorrida se revela excessivo.
Porém, discordamos da pretensão da recorrente quando defende dever o mesmo ser reduzido para 1/6 (tanto mais que, como também já tratado, apenas a recorrente poderá ser afectada pela qualificação).
Em face do já defendido e perante a facticidade apurada, entende-se que a mesma deverá indemnizar os credores cujos créditos não venham a ser satisfeitos até ao limite máximo de 33.373,01€ (95.777,03€-62.404,02€), considerando as forças do seu património, montante este que, nas palavras do já citado acórdão do STJ de 22/06/2021, não se revela excessivo, desproporcionado e desrazoável.
Procede, pois, parcialmente, a presente apelação.

*
IV - DECISÃO
Perante o exposto, acordam as Juízas da Secção do Comércio deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, por provada, e, consequentemente:
1. Manter a sentença quanto à qualificação culposa da insolvência da devedora, com a alteração de o ser apenas com fundamento no artigo 186.º, n.º 1 e n.º 2, al. h);
2. Revogar parcialmente o segmento e) do dispositivo da mesma sentença, o qual se substitui por outro a condenar a recorrente PM… a indemnizar os credores da devedora no montante dos créditos não satisfeitos até ao limite máximo de 33.373,01€ e considerando as forças do respectivo património.
3. Manter, quanto ao mais, o decidido.

Custas pela apelante e pela massa insolvente, na proporção de metade.
*
Lisboa, 01 de Outubro de 2024
Renata Linhares de Castro
Isabel Maria Brás Fonseca
Manuela Espadaneira Lopes
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[1] Diploma ao qual se estará a aludir sempre que outro não for indicado.
[2] Em 13/09/2023, o AI havia juntado um anterior parecer que foi alvo de despacho convite de aperfeiçoamento no dia 18 do mesmo mês.
[3] Em requerimento de 18/08/2023 (apenso A – apreensão de bens), pelo AI foi referido: “(…) 1. O AI voltou a solicitar aos representantes legais da insolvente o envio dos elementos contabilísticos de 2022 e 2023, assim como cópia das faturas contabilizadas em edifícios e outras construções a partir de 1/1/2019; // 2. O Contabilista Certificado da Empresa veio informar o AI que não consegue ter a informação solicitada antes de meados de outubro de 2023, cfr Doc. nº 1 que se junta; // 3. Pelo que o AI reitera na íntegra o seu relatório a que alude o artigo 155º nº 1 do CIRE; // 4. Não pode deixar de salientar o facto de não lhe ter sido disponibilizado qualquer elemento contabilístico de 2022 (de qualquer período), nem as cópias das faturas que foram contabilizadas na rúbrica edifícios e outras construções a partir de 1/1/2019; (…) salvo melhor opinião, que a insolvência poderá ser qualificada como culposa. // 8. Atendendo à falta do envio das faturas relativas às obras realizadas no edifício desde 1/1/2019, constata o AI que tais obras poderão consubstanciar um enriquecimento sem causa dos proprietários do imóvel. (…)”.
[4] Os temas da prova elaborados foram os seguintes: “1. A Insolvente não manifestou qualquer cooperação ou colaboração perante a mesma, não entregando documentos que lhe foram solicitados, apesar de notificada para o efeito. // 2. Dos documentos contabilísticos, a que teve acesso o Sr. Administrador da Insolvência, extrai-se que: // 2.1 O passivo aumentou cerca de 89% de 2019 para 2021 e cerca de 9% de 2020 para 2021, situando-se em 31/12/2021 em 160.504,66€; // 2.2 Em relação ao ativo imobilizado, em 2021 apresentava um valor líquido de 117.483,25€, assim discriminado: // - Edifícios e outras construções – 94.498,88€ // - Equipamento básico – 22.984,37. // 2.3 Em edifícios e outras construções encontra-se contabilizado o seguinte: // - Reparação e despesas do Edifício (1998 a 2013) – 32.094,80€ // - Obras remodelação restaurante (2019) – 7.510,88€ // - Obras remodelação esplanada (2020) – 51.320,95€ // - Obras remodelação esplanada (2021) – 3.572,23€. // 3. As obras de remodelação imputadas à Insolvente destinaram-se a imóvel de terceiro, e, na afirmativa, propriedade de quem. // 4. A Insolvente não tinha contabilidade organizada e não procedeu à entrega das contas anuais, e, na afirmativa, em que períodos/anos. // 5. Foi o marido da gerente P …, entretanto falecido (V …), quem exerceu a gerência de facto da Insolvente e, na afirmativa, em que termos e em que período.”
[5] Em virtude de a factualidade provada conter dois factos identificados sob o n.º 5, de mote oficioso, alterou-se o segundo deles para 5-A para melhor compreensão.
[6] Constando do dispositivo de tal sentença: “Face ao exposto, nos termos dos citados normativos legais, decido: // 1. Homologar a lista de créditos reconhecidos, constante nos autos, nos termos do disposto nos artigos 130º, n.º 3 e 136º, n.º 4 do C.I.R.E.; // 2. Graduar os créditos reconhecidos e verificados relativamente ao produto da massa insolvente, procedendo-se ao pagamento dos créditos reconhecidos pela seguinte ordem: // A. As custas da insolvência e as que devam ser suportadas pela massa insolvente, bem como as despesas de administração saem precípuas de todo o produto da massa e, na devida proporção, do produto da venda dos bens. // B. MÓVEIS // b.1.Do produto da venda das ações que integram a massa insolvente, apreendidas nos autos, dar-se-á pagamento aos créditos da seguinte forma: // 1.º O crédito, no valor de €17.666,86, da G – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., garantido por penhor; // 2.º Os créditos privilegiados da Autoridade Tributária e do Instituto da Segurança Social dos Açores, rateadamente; // 3.º Os créditos comuns, id. na lista, rateadamente, sendo parte do crédito da G – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., no montante de €18 599,23, sob condição, nos termos do artigo 50.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE; // 4.º Os créditos subordinados referentes aos juros dos créditos reconhecidos vencidos após a declaração de insolvência. // b.2. Sobre o produto de todos os demais bens móveis apreendidos, dar-se-á pagamento aos créditos da seguinte forma: // 1.º Os créditos privilegiados da Autoridade Tributária e do Instituto da Segurança Social dos Açores, rateadamente; // 2.º Os créditos comuns, id. na lista, rateadamente, sendo parte do crédito da G – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., no montante de €18.599,23, sob condição, nos termos do artigo 50.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE; // 3.º Os créditos subordinados referentes aos juros dos créditos reconhecidos vencidos após a declaração de insolvência.”
[7] Veja-se, nesta matéria, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17/12/2018 (Proc. n.º 1867/14.0TBBCL-F.G1. Relator José Alberto Moreira Dias), disponível in www.dgsi, como os demais que vierem a ser citados.
[8] O dever de fundamentação tem, aliás, consagração constitucional – cfr. artigo 205.º do CRP.
[9]  O que apenas será valorado para efeitos de uma eventual revogação ou alteração do decidido. Acrescente-se que igualmente não configura nulidade o putativo desacerto da decisão.
[10] Esse será igualmente o entendimento de CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3.ª edição, pág. 688, os quais, em anotação ao artigo 188.º, escrevem: “a questão da qualificação não é, nem pode ser, considerada como algo que se situa no estrito âmbito dos interesses particulares e, nessa medida, no âmbito da disponibilidade”, mais acrescentando: “mesmo coincidindo os pareceres do administrador e do Ministério Público, na proposta da qualificação da insolvência como fortuita, o tribunal não ficar vinculado a ela (…)”.
[11] Razão pela qual não é lícito ao tribunal conhecer de quaisquer questões, de facto ou de direito, sem que as partes tenham oportunidade de sobre elas se pronunciarem (não sendo admissíveis as chamadas decisões surpresa). Assim, se uma decisão for proferida com preterição do contraditório, será a mesma intrinsecamente nula, por excesso de pronúncia (já que o foi sem que os autos estivessem processualmente preparados para tanto (por não ter sido possibilitada a pronúncia pela parte contrária).
[12] Como se escreveu no acórdão do STJ de 10/12/2019 (Proc. n.º 1808/03.0TBLLE.E1.S1, relatora Graça Amaral), “O princípio da oficiosidade do julgador quanto à matéria de direito apenas se mostra cerceado pela imposição do contraditório na perspectiva de proibição das decisões-surpresa (artigos 3.º, n.º 3, e 5.º, n.º 3, do CPC). (…) só se justificará a audição prévia das partes quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes haviam preconizado ser aplicável de tal forma que não possam razoavelmente contar com a sua aplicação ao caso. // Neste sentido refere Lopes do Rego, que a audição excepcional e complementar das partes (…) só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo (…), entendimento que este Tribunal vem afirmando repetidamente decidindo no sentido de que só há decisão surpresa se o juiz, de forma absolutamente inopinada e sem alicerce na matéria factual ou jurídica, enveredar por uma solução que os sujeitos processuais não tinham a obrigação de prever.” (sublinhado nosso).
Também no acórdão do Tribunal Constitucional de 10/07/2019 (Proc. n.º 426/2019, relatora Joana Fernandes Costa), que apreciou em conferência a Decisão Sumária n.º 365/2019, se escreveu: “Têm sido repetidamente assinaladas na jurisprudência constitucional, as condições para que assim seja. Nas palavras do Acórdão n.º 173/2016, na linha de muitos outros: «Como o Tribunal Constitucional vem reiteradamente decidindo, «recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão, cumprindo-lhes adotar as necessárias e indispensáveis precauções, em conformidade com um dever de litigância diligente e de prudência técnica (…)». Cabe-lhes, assim, «a formulação de um juízo de prognose, analisando e ponderando antecipadamente as várias hipóteses de enquadramento normativo do pleito e de interpretação razoável das normas convocáveis para a sua dirimição, de modo a confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que – na sua ótica – poderão inquinar tais normas ou interpretações normativas» (Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, janeiro de 2010, pp. 81-82)” (sublinhado nosso).
[13] In Recursos em Processo Civil, Almedina, 6.ª edição actualizada, 2020, págs. 199/200.
[14] Com relação à análise da culpa, por pertinente, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 22/09/2022 (Proc. n.º 2367/16.0T8VNG-H.P1, relator Filipe Caroço).
[15] Na sentença recorrida afastou-se a verificação das demais circunstâncias invocadas, nomeadamente a prevista na al. i) do n.º 2 do 186.º, sendo que, nessa parte, não houve recurso, pelo que o decidido transitou em julgado – cfr. artigo 635.º, n.º 5 do CPC.
[16] Já assim defendia MENEZES LEITÃO, in Direito da Insolvência, 3.ª edição, págs. 284/285, defendia que este n.º 2, contém “uma presunção juris et de jure de insolvência culposa, considerando-a como tal sempre que os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham praticado actos destinados a empobrecer o património do devedor ou incumprido determinadas obrigações legais”; considerando ainda, mais adiante que “A lei institui … no art. 186.º, n.º 2, uma presunção juris et de jure, quer da existência da culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário”.
[17] Cfr. CARVALHO FERNANDES, A Qualificação da Insolvência, Themis, Edição Especial, 2005, pág. 81 e ss.; CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 680.
[18] In Manual de Direito de Insolvência, 7.ª edição, 2020, pág. 155.
[19] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, já citado, pág. 681.
[20] In Noções de Direito Comercial, pág. 114, como citado nos acórdãos da Relação de Lisboa de 23/11/2021 (Proc. n.º 1921/14.9TBFUN-G.1, relatora Manuela Espadaneira Lopes, subscrito pela aqui relatora na qualidade de 2.ª Adjunta, o qual não se encontra publicado), da Relação do Porto de 27/02/2014 (Proc. n.º 1595/10.6TBAMT.A.P2, relator Leonel Serôdio) e da Relação de Guimarães de 12/01/2017 (Proc. n.º 2253/15.0T8GMR-A.G1, relator José Cravo).
[21] No caso, a insolvente cessou a actividade para efeitos de IVA apenas em 05/06/2023.
Contudo, o dever de manter a contabilidade organizada – cfr. artigo 29.º do CComercial e artigos 65.º e 70.º do CSC - existe até que a sociedade seja encerrada em termos jurídicos, ou seja, quando ocorre o encerramento da sua liquidação.
[22] O qual é obrigatório para todas as sociedades comerciais e foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009 de 13/07 (retificado pela Declaração de Retificação n.º 67-B/2009 de 11/09) – cfr. artigo 3.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma.
[23] Embora se desconheça o exacto momento em que as obras de 2020 foram realizadas, a ausência da respectiva facturação obsta a que se possa concluir no sentido de estarem excluídas do período relevante.
[24] Cfr. artigo 35.º, n.ºs 1 e 2 do CSC.
[25] Por pertinente, vejam-se os acórdão da Coimbra de 18/10/2011 (Proc. n.º 549/10.7TBPBL-A.C1, relator Fonte Ramos) - “A verificação, através dos correspondentes factos, das situações previstas no m.º 2 do artigo 186.º do CIRE, determina a qualificação da insolvência como culposa, sem admissão de prova em contrário, bem como as consequências gravosas sobre as pessoas singulares que, com a sua conduta, efectivamente contribuíram, de modo relevante, para a insolvência, sendo assim necessário avaliar a actuação concreta de quem for potencialmente atingível” – e da Relação de Évora de 10/07/2014 (Proc. n.º 18/12.0TBMTL-C.E1, relator Canelas Brás) - “Em incidente de qualificação da insolvência, as várias alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE encerram uma presunção juris et de jure – por definição, inilidível e irrefutável – de culpa grave da parte dos administradores/gerentes na criação ou agravamento de uma situação de insolvência. Mas, antes, terá que se fazer a prova segura de que, no caso concreto e em relação a eles, tais situações abstractas ali descritas efectivamente se verificaram” (sublinhados nossos).
[26] Responsabilidade Civil de Administradores e de Sócios Controladores (Notas sobre o Art. 379.º do Código do Trabalho), Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho (IDET), Miscelâneas, n.º 3, Almedina, 2004, pág. 43.  
[27] Cfr. RICARDO COSTA, Os Administradores de Facto das Sociedades Comerciais, Almedina, 2016, reimpressão, págs. 984-986
[28] Nesse sentido, veja-se o acórdão desta Secção de 13/09/2024 (Proc. n.º 2024/13.9TYLSB-A.L1, relatora Manuela Espadaneira Lopes, sendo 1.ª adjunta a ora relatora), em cujo sumário se consignou: “IV- Faltando definitivamente todos os gerentes de uma sociedade por quotas, por força do disposto no artº 253º, nº1, do CSC, todos os sócios assumem automaticamente os poderes de gerência, independentemente de qualquer designação ou aceitação e sem que seja lícita a renúncia.” 
[29] Nesse sentido, cfr. acórdão da Relação de Coimbra de 21/06/2011 (Proc. nº 1215/10.9TJCBR.C1, relator Carlos Gil), o qual refere tratar-se “de uma contitularidade de mão comum, não derivando do registo de aquisição uma titularidade directa daquela quota, já que só após efectivação da partilha e da liquidação da herança se virá a determinar se e a quem é transmitida a quota social, sempre também com observância do que estiver previsto no pacto social (vejam-se os artigos 225º e 226º do Código das Sociedades Comerciais). // A administração da herança, até à sua liquidação e partilha, compete ao cabeça-de-casal (artigo 2079º do Código Civil).”
[30] Refira-se, inclusive, que tanto na petição inicial de insolvência, como na procuração junta aos autos, a recorrente identifica-se como sócia gerente da sociedade devedora (Ref.ª/Citius 5209858).
[31] A al. a) do n.º 1 do artigo 189.º não é de aplicação automática, antes se exigindo que o juiz fixe o grau de culpa de cada um dos afectados, porquanto apenas o serão aqueles que, através de uma actuação dolosa ou culposa, hajam contribuído para a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor.
[32] Nesse sentido, vide SOVERAL MARTINS, Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. I, Almedina, 4.ª edição, 2022, pág. 579, “A atuação relevante para a qualificação da insolvência como culposa é a que teve lugar nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Pois bem, também deve ser esse o período relevante para que alguém possa ser afetado pela qualificação. Embora isso não resulte do art.º 189.º, deve ser aquele o regime. Se o prazo é relevante para qualificar a própria insolvência como culposa, por maioria de razão deve ser relevante para se considerar alguém afetado por essa qualificação. Trata-se de encontrar um limite temporal que dê certeza e segurança.”
[33] Cfr. SOVERAL MARTINS, obra citada, pág. 585. 
[34] Estando tais herdeiros devidamente identificados nos autos, designadamente na petição inicial de apresentação à insolvência e no relatório apresentado pelo AI (artigo 155.º), para além de ter sido junto, com aquela, documento da CRCivil de Ponta Delgada e referente ao procedimento simplificado de habilitação de herdeiros.
[35] Obra citada, pág. 690.
[36] Como refere SOVERAL MARTINS, obra citada, pág. 583, apesar de a lei se limitar a balizar a medida de inibição entre 2 e 10 anos e apenas para o exercício do comércio, igual período se deva considerar aplicável por analogia à inibição para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa.
[37] Constando do ponto 5 do seu sumário: “O regime legal plasmado no art.º 189.º do CIRE, quanto à indemnização devida aos credores da insolvência, deve ser interpretado, com base numa leitura integrada do texto vertido no seu número 2, alínea e) e número 4 e a exigência de uma leitura conforme ao princípio da proporcionalidade, no sentido de que a indemnização devida pela entidade afetada pela qualificação deverá, em princípio e tendencialmente, corresponder à diferença entre o valor global do passivo e o que o ativo que compõe a massa insolvente logrou cobrir, salvaguardando-se, no entanto, que esse valor possa ser fixado em montante inferior sempre que o comportamento da pessoa afetada pela qualificação justifique essa diferenciação, mormente por ser diminuta a medida da sua contribuição para a verificação dos danos patrimoniais em causa, assim mitigando o recurso àquele critério exclusivamente aritmético e que, por isso, em determinadas circunstâncias, pode ser redutor.”
[38] Revista Julgar n.º 48, Setembro/2022, Almedina, págs. 28 a 31.
A mesma autora, a fls. 26, nota 36, escreve ainda: “A operação de apuramento da causalidade entre a conduta do sujeito e a criação ou o agravamento da situação de insolvência (o dano para efeitos de qualificação da insolvência como culposa e do sujeito como afectado), não deve ser confundida com a operação de apuramento da causalidade entre a conduta do sujeito e o prejuízo sofrido pelos credores (o dano sem o qual o sujeito não pode ser condenado na obrigação de indemnizar os credores).