I - O habeas corpus é uma providência extraordinária e expedita, independente do sistema de recursos penais, que se destina exclusivamente a salvaguardar o direito à liberdade.
II - Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de se reconduzir, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.
III - Qualquer das medidas enunciadas nas várias alíneas do n.º 1, do artigo 35.º, da LPCJP, visa, em satisfação do superior interesse da criança e do jovem - um dos princípios orientadores da intervenção, nos termos do artigo 4.º, alínea a), desse diploma -, designadamente, proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral, não visando sancionar, nem isolar ou privar de liberdade, mas antes beneficiar e socializar as crianças e jovens em perigo.
IV – Ainda assim, em certos casos, seguramente excecionais, dentro da grande variabilidade da vida, admite-se que possam estar em causa situações de limitação ao direito à liberdade que justifiquem a garantia de habeas corpus no âmbito da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial.
V - No âmbito da jurisdição civil, a questão da natureza dos prazos do artigo 37.º, n.º3, da LPCJP tem sido apreciada – recordemos que os recursos das decisões que, definitiva ou provisoriamente, se pronunciem sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas de promoção e proteção (artigo 123.º do LPCJP), são da competência das secções cíveis das Relações e do STJ e não das respetivas secções criminais -, com diversas decisões no sentido de que a medida cautelar não caduca com a simples passagem dos prazos a que alude o referido artigo, admitindo despacho de prorrogação.
VI – Tendo sido proferido tal despacho, não compete ao STJ, em sede de providência de habeas corpus, sindicar, como se de uma revista se tratasse, o acerto da fundamentação do juízo prorrogativo, não sendo possível afirmar a existência de qualquer situação de ilegalidade evidente, ostensiva, indiscutível e diretamente verificável.
1. AA, com os sinais dos autos, mãe de BB, veio, através de advogada, apresentar petição de habeas corpus, nos termos e com os fundamentos que seguidamente se transcrevem:
«(…)
Providência de Habeas Corpus,
Nos termos dos artigos 222º, nºs 1 e 2, alínea c), do Código de Processo Penal, o que faz nos termos e com os seguintes Fundamentos:
Venerando Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Dos fundamentos da admissibilidade
I) - Por decisão do Tribunal a quo, procedeu-se em 02.02.2024 à aplicação de medida provisória de medida de Acolhimento residencial da menor BB, pelo período de 3 meses.
II) Por despacho datado de 09.05.2024 foi prorrogado por mais três meses a medida provisoriamente decretada.
IV) Tendo tal medida provisória atingido o seu limite legalmente admissível (6 meses) em 02.08.2024, inexistindo qualquer despacho persistindo o acolhimento residencial da menor para além do prazo estipulado por lei, art.37.º, n.º3 da LPCJP
V) Mantendo-se a menor com aplicação de medida cautelar mais gravosa, para além do legalmente admissível, em franco prejuízo da menor e dos progenitores!
VI) Mostrando-se assim violados os princípios da proporcionalidade e da prevalência da família, que pressupõem, o segundo, a existência duma família capacitada para assegurar o bem-estar dos menores e mantê-los afastados dos perigos que os possam afectar e, o primeiro, uma intervenção adequada à situação real verificada.
VII) Pelo que se entende, sendo jurisprudência maioritária do STJ que se aplica ao presente caso o instituto jurídico de Habeas Corpus visando a imediata restituição da menor à liberdade (artigos 4.º. alínea h), 34.º, alíneas a) e b), 35.º, n.º1, alínea f), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) e 13.º e 31.º da Constituição da República Portuguesa).
VIII) Em consonância com o disposto art. 31.º da Constituição da República Portuguesa, e bem assim o disposto no art. 222.º, n.º2, do Código de Processo Penal, estabelece como pressupostos de habeas corpus, em virtude de prisão ilegal:
a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
VIII) Com o acórdão do S.T.J. de 18-01-2017 (proc. n.º 3/17.6YFLSB, in www.dgsi.pt), passou a admitir-se, também, a aplicação do regime penal de habeas corpus à medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, podendo ler-se, nos primeiros pontos do sumário desta decisão:
“I - Não obstante a medida de promoção e proteção prevista no art.35.º, n.º 1, al. f), da LPCJP, ter por finalidade o afastamento do perigo em que a criança se encontra e proporcionar-lhe as condições favoráveis ao seu bem-estar e desenvolvimento integral, ela não deixa de traduzir uma restrição de liberdade e, nessa medida, mesmo que não caiba nos conceitos de “detenção” e de “prisão” a que aludem os arts. 220.º e 222.º do CPP, configura uma privação da liberdade merecedora da proteção legal concedida pela providência extraordinária de “habeas corpus”, sob pena das ilegais situações de excesso da sua duração, por decurso do seu prazo máximo de duração (6 meses) ou por omissão de revisão (findos os 3 meses), ficarem desigualmente protegidas em relação aos casos de detenção ou prisão ilegais.
II - Daí que, embora o CPP, nos seus arts. 220.º e 222.º, n.º 1, preveja apenas a medida de habeas corpus para a detenção e prisão ilegais, atenta a filosofia subjacente a estas normas, tem-se por adequado aplicar, ao abrigo do disposto no art.4.º do CPP e por analogia, o regime do “habeas corpus” previsto no citado art.222.º ao caso dos autos, ou seja, à medida de provisória de acolhimento residencial do menor, sob pena de situações análogas gozarem de tratamento injustificadamente dissemelhante, com a consequente violação do princípio da igualdade consagrado no art.13.º da CRP.”.
IX) assim , não obstante a finalidade da medida de acolhimento residencial constituir uma realidade distinta das situações específicas a que se reporta o instituto do habeas corpus, considerou o STJ que a medida é aplicável num caso de limitação ou restrição da garantia de liberdade, socorrendo-se de entre outros textos legais do citados artigos 27.º, n.º3 da C.R.P., que admite a privação da liberdade através da “sujeição do menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente”, do art. 5.°, n.º1 da CEDH, que dispõe que “ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal», incluindo o caso de «Se se tratar da detenção legal de um menor, feita com o propósito de o educar sob vigilância, ou da sua detenção legal com o fim de o fazer comparecer perante a autoridade competente” (alínea d)).
X) No mesmo sentido, pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09-06-2021 (proc. n.º 6/21.6T1PTG.S1) e de 23-07-2021 (proc. n.º 2943/20.6T8CBR-A.S1), acrescentando como argumentos, designadamente, a definição ampla de privação da liberdade que resulta do ponto 11 do Anexo, relativo às Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 45/113, de 14.12.1990 - «privação de liberdade significa qualquer forma de detenção, de prisão ou a colocação de uma pessoa, por decisão de qualquer autoridade judicial, administrativa ou outra autoridade pública, num estabelecimento público ou privado do qual essa pessoa não pode sair pela sua própria vontade» - e o art.37.º, alínea d) da Convenção Sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21.9.1990, enquanto dispõe que «A criança privada de liberdade tem o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão sobre a matéria.».
XI) Falando-se mesmo numa intolerável violação do princípio da igualdade, consagrado no art.13.º da Constituição da República Portuguesa, não admitir o regime de habeas corpus em situações de sujeição do menor a medidas de proteção, como a de acolhimento residencial.
XII) Pese embora a natureza e finalidades da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, entendemos, como cremos ser o entendimento da maioria da jurisprudência do STJ que originando esta medida uma compressão do direito da criança à unidade familiar, é equiparável, de algum modo à prisão e detenção ilegal para efeitos de aplicação do regime do “habeas corpus”.
XIII) O art.36.º da Constituição da República Portuguesa, ao tutelar a família, o casamento e a filiação, no capítulo dos «Direitos, liberdades e garantias», impõe ao legislador um específico dever de proteger a família e as crianças, garantindo a estas o direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao desenvolvimento da sua personalidade integral.
XIV) A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, que tem por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, estabelece sobre a legitimidade daquela intervenção, no seu art.3.º, com interesse para a decisão:
«1 - A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.
2 - Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações:
(…);
c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequada à sua idade e situação pessoal;».
XV) Os princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo são, nos termos do seu art.4.º: o interesse superior da criança; o da intervenção mínima; o das responsabilidades parentais; do primado da continuidade das relações psicológicas profundas; e da prevalência da família.
XVI) De acordo com o disposto no art.34.º, da LPCJP, «As medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e dos jovens em perigo visam:
a) Afastar o perigo em que estes se encontram;
b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;
c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.».
XVII) Estas medidas de promoção e proteção encontram-se elencadas nas alíneas a) a g) do n.º 1 do art.35.º da LPCJP, constando a medida de «acolhimento residencial» da alínea f).
XVIII) A medida de «acolhimento residencial» consiste, nos termos do art.49.º da LPCJP, «..na colocação da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados (n.º1), e tem como finalidade «…contribuir para a criação de condições que garantam a adequada satisfação de necessidades físicas, psíquicas, emocionais e sociais das crianças e jovens e o efetivo exercício dos seus direitos, favorecendo a sua integração em contexto sociofamiliar seguro e promovendo a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral» (n.º2).
XIX) O «acolhimento residencial» tem lugar em casa de acolhimento e obedece a modelos de intervenção socioeducativos adequados às crianças e jovens nela acolhidos (art.50.º, n.º1), ou seja, esta medida retira o exercício das responsabilidades (e guarda da criança) a quem não se encontra em condições de as exercer, entregando-as a uma instituição terceira.
XX) À exceção da medida de «confiança a pessoa selecionada para a adoção a família de acolhimento ou a instituição com vista a adoção», a que alude a g) do n.º 1 do art.35.º da LPCJP, todas as medidas de promoção e proteção podem ser decididas a título cautelar.
XXI) É o que resulta do art.35.º, n.º 2 da LPCJP, ao dispor que «As medidas de promoção e de proteção são executadas no meio natural de vida ou em regime de colocação, consoante a sua natureza, e podem ser decididas a título cautelar, com exceção da medida prevista na alínea g) do número anterior.».
XXII) Sobre as circunstâncias em que podem ser aplicadas medidas cautelares estabelece o art.37.º, n.º1 da LPCJP: «A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.».
XXIII) O art.92.º, n.º1 da LPCJP, a que alude o art.37.º, n.º1 da mesma Lei, dispõe, designadamente, que o tribunal, a requerimento do Ministério Público, quando lhe sejam comunicadas situações de existência de perigo atual ou iminente para a vida, ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem e na falta de consentimento, designadamente dos detentores das responsabilidades parentais, profere decisão provisória, no prazo de quarenta e oito horas, confirmando as providências tomadas para a imediata proteção da criança ou do jovem, aplicando qualquer uma das medidas previstas no artigo 35.º ou determinando o que tiver por conveniente relativamente ao destino da criança ou do jovem.
XXIV) Por fim, quanto à duração das medidas cautelares, dispõe o art.37.º, n.º3 da LPCJP, que «As medidas aplicadas nos termos dos números anteriores têm a duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses.».
XXV) Ora, se atentarmos no supra exposto constatamos que à menor foi aplicada medida provisória de acolhimento em residência, pelo prazo de 3 meses, em 02.02.2024, sendo que decorrido tal prazo veio a medida a ser prorrogada em por mais três meses, atingindo a sua duração máxima em 02.08.2024, sendo que os prazos máximos legalmente admissíveis foram atingidos e nada mais foi dito pelo tribunal, o que configura uma situação de privação ilegal da liberdade da menor sua filha, ao abrigo do art.222.º, n.º2, al. c), do C.P.P.,
XXVI) Porquanto, se encontram ultrapassados os prazos legais.
XXVII) Em face do regime legal exposto, conclui-se que a menor, que se encontra sujeita à medida provisória de acolhimento em residência se encontra numa situação análoga à de quem se encontra ilegalmente preso, fundada no facto de se manter a medida aplicada para além do prazo fixado por lei, art. 37º nº 3 da LPCJP art. 222º nºs 1 e 2 al. c) do CPP.
(…)
Termos em que, deve o presente procedimento de Habeas Corpus ser julgado procedente por provado e, em consequência ser determinada a ilegalidade da medida de acolhimento residencial aplicada à menor desde 02.08.2024.
ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!»
2. Foi prestada a informação referida no artigo 223.º, n.º1, parte final, do Código de Processo Penal (doravante CPP), nos termos que, seguidamente, se transcrevem:
«Nos presentes autos veio, mais uma vez, a requerente intentar uma providência de Habeas Corpus alegando, para tal efeito, que a criança se encontra em acolhimento residencial no âmbito de aplicação de uma medida provisória tendo sido prorrogada por despacho proferido em 9 de maio de 2024.
Adianta, ainda, não concordar com o acolhimento pelas razões que aqui se dão por integralmente reproduzidas pedindo que seja julgado procedente por provado o presente procedimento sendo determinada a ilegalidade da medida de acolhimento aplicada em 2 de fevereiro de 2024.
Cumpre, assim, dar cumprimento ao disposto no artigo 223º nº 1 do CPP:
1.Os autos principais são de promoção e proteção tiveram o seu início no dia 2 de fevereiro de 2022 dando conta da alegada situação de risco/perigo em que a criança BB nascida em ... de ... de 2011 (12 anos) se encontraria junto da progenitora e do companheiro com quem residia, dando-se por integralmente descritos os factos constantes da petição inicial apresentada pelo Ministério Público e que são condizentes com o crime de abuso sexual de criança alegadamente por parte do mencionado companheiro da mãe.
2. No dia 1 de fevereiro de 2024 a CPCJ de ... deliberou ao abrigo do disposto nos artigos 35º alínea f) e 91º da LPCJP a aplicação de um procedimento de urgência.
3. Por despacho proferido em 2 de fevereiro de 2024 atendendo aos factos supra elencados, designadamente estarmos perante um eventual abuso sexual da criança por um elemento que integra o seu agregado familiar concluiu-se que a mesma se encontrava numa situação de grave perigo atual e iminente para a sua integridade física e emocional caso não tivesse sido assegurado o seu acolhimento em instituição capaz de lhes proporcionar a segurança de que necessitava (cfr. arts. 3º, nº 1 e 2, al. c) e e) da LPCJP).
4. Assim entendendo-se mostrar-se verificados os pressupostos confirmou-se a medida adotada de acolhimento residencial da criança identificada de forma, com se disse supra a garantir a preservação da sua integridade física e a promoção da sua saúde, bem estar e segurança (arts. 35º, nº 1, al. f) e art. 37º da LPCJP).
5. Por despacho proferido em 9 de maio de 2024 procedeu-se à revisão da medida cautelar aplicada nos seguintes termos que aqui se reproduzem para os devidos e legais efeitos: (…) Prevê o artigo 37.º da LPCJP no seu n.º1 que a título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º1 do artigo 92, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.
Conforme se referiu não se mostram ainda juntos aos autos os elementos solicitados sobre a avaliação da situação da criança, bem como das informações solicitadas ao processo-crime no sentido de permitir ao tribunal decidir quanto ao encaminhamento subsequente da criança.
Assim sendo, em sede de revisão da medida cautelar de acolhimento residencial aplicada em 2.02.2024, nos termos dos artigos 37.º e 35.º alínea f) da LPCJP, decido prorrogar a mesma por mais três meses (…)”.
6. No âmbito do apenso A por Douto Acórdão proferido pelo STJ no dia 15 de maio de 2024 já havia sido indeferido o pedido de habeas corpus formulado pela progenitora AA e pelos fundamentos daí constantes e que aqui se reproduzem na íntegra para os devidos e legais efeitos.
Face ao que resulta do processo principal de promoção e proteção entendemos não assistir razão à requerente não somente quanto à gravidade dos factos relatados no processo mas e além do mais não haver alternativa no seio familiar ao acolhimento residencial impondo-se que a medida protetiva tivesse sido aplicada e continue em execução na salvaguarda do superior interesse da criança.
Acresce que já no âmbito do apenso A, a requerente formulou exatamente e nos mesmos termos um pedido de habeas corpus que como se disse supra já havia sido anteriormente apreciado e indeferido.
O Ministério Público promoveu que a providência fosse remetida ao STJ.
Assim organize o respetivo apenso com as peças processuais relevantes, da promoção do Digno Magistrado do Ministério Público do requerimento apresentado pela progenitora, remetendo-se o apenso assim organizado, de imediato ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça, para apreciação do pedido da requerente AA.
(…).»
3. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e a Ex.ma advogada, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.
Após o que a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Questão a decidir:
O objeto da presente providência consiste em apreciar se BB, sujeita à medida (cautelar) de acolhimento residencial, se encontra em situação equivalente a privação ilegal de liberdade, nos termos do disposto no artigo 222.º, n.º 2, al. c), do CPP, por ter sido ultrapassado o prazo de 6 meses previsto no artigo 37.º, n.º3, da Lei n.º 147/99, de 1 de setembro.
2. Factos
A matéria factual relevante para o julgamento do pedido resulta da petição de habeas corpus, da informação prestada e dos diversos elementos dos autos, extraindo-se os seguintes dados de facto e processuais (em súmula):
1. BB nasceu a ........2011, tem nacionalidade brasileira e é filha de AA e de CC.
2. BB reside com a mãe e o padrasto, no ..., ....
3. No dia 1.02.2024, na Escola de ..., onde frequentava o 6.º ano, uma amiga de BB, na presença desta, disse que o padrasto abusava sexualmente dela, o que foi comunicado à CPCJ de ....
4. No mesmo dia 1.02.2024, a CPCJ de ..., ao abrigo do disposto no artigo 11º, nº 1, b) da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo [doravante, LPCJP], deliberou não existirem condições para recolha de consentimento e deliberou desencadear procedimento de urgência para aplicação da medida de acolhimento residencial, nos termos dos artigos 35.º, f) e 91.º da LPCJP, determinando o acolhimento residencial de BB no Centro de Acolhimento ..., ..., ....
5. No dia 2.02.2024, a Magistrada do Ministério Público junto do Juízo de Família e Menores de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, requereu procedimento judicial urgente em benefício de BB, requerendo, a final, a ratificação e manutenção da medida de acolhimento residencial, a título provisório, aplicada de emergência, confiando-se a menor ao referido Centro de Acolhimento ....
6. Por despacho de 2.02.2024 a Mm.ª Juíza de Direito do Juízo de Família e Menores de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, a final, decidiu:
“(…).
Decisão:
Pelo exposto:
1. Confirmo a providência tomada para imediata proteção da criança BB, na sequência do que decido aplicar a título provisório em seu benefício a medida de acolhimento residencial, pelo período de três meses.
2. A BB fica entregues ao Centro de Acolhimento ... que, em articulação com a EMAT, serão responsáveis pela execução da medida aplicada.
3. Ordeno o prosseguimento do presente processo como processo judicial de promoção e proteção, declarando aberta a instrução e, em consequência:
4. Determino que se solicite à EMAT com nota de urgente a realização de inquérito à situação da criança e progenitora e elaboração de proposta de intervenção e projeto de vida, remetendo cópia do requerimento inicial e desta decisão.
5. Para declarações da progenitora e BB designo o próximo dia 21 de Fevereiro, pelas 16h00m.
6. Determino se notifique a progenitora para juntar ao processo cópia dos documentos pessoais de identificação da criança e progenitores.
7. Determino se junte certificados de registo criminal dos progenitores e padrasto.
8. Determino se solicite à Polícia Judiciária a indicação do número de processo de inquérito onde se investiga o crime de abuso sexual.
Notifique.
(…)”.
7. Em 21.02.2024 foram tomadas declarações, pela Mm.ª Juíza de Direito do Juízo de Família e Menores de ...: a DD, técnica da segurança social; BB; EE, técnica da casa de acolhimento; AA, requerente da presente providência de habeas corpus.
8. Na mesma diligência, a Mm.ª Juíza de Direito, após a tomada de declarações referida em 7, proferiu o seguinte despacho:
“(…).
Indicando que esta criança referiu ter sido vítima de abuso sexual por parte do padrasto sendo certo que agora refere ter sido uma brincadeira, com nota de urgente, solicite ao INML a avaliação psicológica da criança, solicitando-se que caso seja possível, a questionem sobre este assunto, e nos informem das conclusões obtidas.
Envie copia da decisão provisoria proferida.
(…)”.
9. Em 20.03.2024, o Gabinete Médico Legal e Forense ... informou os autos de que o exame da especialidade de Psicologia, relativo a BB, teria lugar no dia 24 de maio de 2024, pelas 14h, no Hospital de ..., em ....
10. Em 24.04.2024, a Magistrada do Ministério Público promoveu que fosse solicitada ao Centro de Acolhimento ... «informação sobre a situação da jovem, integração escolar, aproveitamento e comportamento, se a jovem tem recebido visitas dos familiares e contactos telefónicos, reações e consequências dos convívios e se a jovem tem recebido acompanhamento a nível psicológico ou a nível de pedopsiquiatria e evolução.».
11. Por despacho de 2.05.2024, a Mm.ª Juíza de Direito determinou que se procedesse nos termos promovidos.
12. Em 8.05.2024, a ora peticionária apresentou em juízo petição de habeas corpus.
13. Em 9.05.2024, a Magistrada do Ministério Público promoveu, além do mais:
«Em nosso entendimento, mostrando-se necessária e adequada à situação da criança, não se mostrando juntos os elementos solicitados pelos presentes autos sobre a avaliação da situação da criança e ainda os exames periciais pretendidos, promovo que se proceda à revisão da medida cautelar de acolhimento residencial aplicada em 2.02.2024 nos termos dos artigos 37.º e 35.º alínea f) da LPCJP, mantendo-se a mesma e prorrogando-se a mesma, por três meses. Caso assim não se entenda, que se aplique nova medida cautelar de acolhimento residencial aplicada em 2.02.2024 nos termos dos artigos 37.º e 35.º alínea f) da LPCJP.».
14. Em 9.05.2024, a Mm.ª Juíza de Direito proferiu o seguinte despacho:
“ (…).
No âmbito destes autos em 2.2.2024 foi aplicada em beneficio da BB, nascida em ........2011, de 13 anos, a medida provisória de acolhimento residencial após suspeitas de comportamentos inadequados no seio familiar, designadamente abuso sexual por parte do padrasto.
Encontra-se pendente no DIAP de ... o processo de inquérito com o NUIPC n.º 195/24.8... onde se investiga pela Polícia Judiciária a eventual prática de um crime de abuso sexual de criança e não foi proferida decisão final, aguardando-se a comunicação da mesma.
Em sede de declarações prestadas nos presentes autos em 21.02.2024, BB revelou muita timidez, instabilidade emocional e dificuldades de comunicação sobre os factos.
Quando questionada, não se mostrou disponível para regressar ao agregado familiar materno, manifestando um evidente desconforto perante tal hipótese, preferindo continuar na C... .. ........... onde está a receber apoio e cuidados, preferindo frequentar o atual estabelecimento escolar onde se encontra integrada em Escola Básica de 2.º e 3.º ciclo de Avelar.
A criança, com maturidade para o efeito, manifestou a sua vontade de continuar na instituição.
A Senhora Técnica Diretora da C... .. ........... declarou em sede de audição, conforme consta em ata:
- A menor é comunicativa quanto a assuntos gerais, no entanto, no que toca ao que se passou, mantém-se fechada.
- Estão a diligenciar pelo acompanhamento psicológico da menor;
- A menor referiu à técnica que já mantinha relações sexuais com o padrasto há dois anos;
- Já relatou mais que uma vez que foi abusada pelo padrasto quando este dormia consigo, enquanto a mãe dormia com a irmã.
- A menor está integrada na Escola Básica de 2.º e 3.º ciclo de Avelar;
- Na escola está a decorrer tudo bem e a menor tem bom aproveitamento.
Com nota de urgente, foi solicitado ao INML a avaliação psicológica da criança e encontra-se designado o próximo dia 24.05.2024, pelas 14 horas, para a realização do exame pericial psicológico à jovem.
Foi solicitado à C... .. ..... informação sobre a situação da jovem, integração escolar, aproveitamento e comportamento, se a jovem tem recebido visitas dos familiares e contactos telefónicos, reações e consequências dos convívios e se a jovem tem recebido acompanhamento a nível psicológico ou a nível de pedopsiquiatria e a sua evolução, aguardando-se a sua junção aos autos. Aguarda-se ainda a realização de relatório a enviar por parte do ISS EMAT sobre o agregado familiar da criança e seu projeto de vida.
Prevê o artigo 37.º da LPCJP no seu n.º1 que a título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.
Conforme se referiu não se mostram ainda juntos aos autos os elementos solicitados sobre a avaliação da situação da criança, bem como das informações solicitadas ao processo-crime no sentido de permitir ao tribunal decidir quanto ao encaminhamento subsequente da criança.
Assim sendo, em sede de revisão da medida cautelar de acolhimento residencial aplicada em 2.02.2024, nos termos dos artigos 37.º e 35.º alínea f) da LPCJP, decido prorrogar a mesma por mais três meses.
Instrua o apenso com o requerimento apresentado pela progenitora a 8.05.2024 e com cópia de todo o processo, incluindo o presente despacho e remeta de imediato ao STJ.
(…)”.
15. O pedido de habeas corpus referido no ponto 12 foi indeferido por acórdão do STJ, de 15.05.2024.
16. Em 23.05.2024, o Gabinete Médico Legal e Forense ... solicitou lhe fosse enviado o auto de inquirição da jovem pela PJ.
17. Em 24.05.2024, a ora peticionária requereu a realização de diligências em ordem à revisão da medida aplicada e sua substituição por medida a executar em meio natural de vida junto a família.
18. Em 3.06.2024, a Mm.ª Juíza proferiu despacho no sentido de que (além do mais que contém), após a junção aos autos do relatório pericial em falta, seria apreciado o requerido.
19. Em 14.07.2024, foi remetido aos autos Relatório Social de Acompanhamento da Execução da Medida, concluindo: “Pelo exposto e uma vez que se aguarda o resultado das perícias da jovem BB, efetuadas em 23/05/2024 e 12/07/2024, consideramos salvo melhor opinião que, de momento, o Acolhimento Residencial é a medida que melhor salvaguarda os interesses da jovem.”
20. Em 15.07.2024 insistiu-se no sentido da remessa do relatório pericial em falta.
21. Em 17.07.2024 determinou-se o cumprimento do contraditório relativamente ao Relatório Social.
22. Em 18.07.2024, o Gabinete Médico Legal e Forense ... informou que o relatório pericial se encontrava em fase de elaboração e que entrevista final à jovem tinha sido realizada no dia 12.07.
23. No dia 5.08.2024, foi apresentada a petição de habeas corpus em apreço.
24. No dia 7.08.2024, a Mm.ª Juíza do Juízo de Família e Menores de ..., em turno, proferiu despacho com o seguinte teor:
“Insista por confidencial e como nota de muito urgente pelo resultado do exame pericial e as habituais informações no âmbito do processo-crime identificado nos autos.
Sem prejuízo de ulterior apreciação, tendo em conta o teor do relatório e o mais que resulta dos autos conclui-se, por enquanto, que a medida aplicada à menor BB, mantém a sua actualidade, proporcionalidade e adequação.
Pelo exposto, entende-se, pois, manter a medida de acolhimento residencial, a título provisório, por mais três meses, o que se determina nos termos do disposto nos arts. 35º, n.º 1 al. f) , 37º, 49º e 62º, n.º 3, al. c) da LPCJP.
Notifique.”
3.1. Nos termos do artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.
Excetua-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 3 do mesmo preceito constitucional, em que se incluem: (a) a detenção em flagrante delito; (b) a detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos; (c) a prisão, detenção ou outra medida coativa sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão; (d) a prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente; (e) a sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente; (f) a detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente; (g) a detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários e; (h) o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.
O artigo 31.º da CRP consagra o direito à providência de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer pela própria pessoa lesada no seu direito à liberdade, ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente.
Em anotação ao artigo 31.º, n.º 1, da CRP, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508):
«Na sua versão atual, o habeas corpus consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos arts. 27.º e 28.º (...). A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art. 27.º, quando efetuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir, quando a detenção ou prisão ocorra fora dos estabelecimentos legalmente previstos, etc.
Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade.»
José Lobo Moutinho (Jorge Miranda e Rui Medeiros, com a colaboração de José Lobo Moutinho [et alii], Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Tomo1, 2.ª edição, 2010, pp. 694-695), em comentário ao mesmo artigo 31.º, n.º1, da Lei Fundamental, sustenta que a qualificação de «providência extraordinária», atribuída ao habeas corpus «…não significa e não equivale à excecionalidade. Juridicamente excecional é a privação da liberdade (pelo menos, fora dos termos e casos de cumprimento de pena ou medida de segurança) e nunca a sua tutela constitucional. A qualificação como providência extraordinária será de assumir no seu descomprometido significado literal de providência para além (e, nesse sentido, fora – extra) da ordem de garantias constituída pela validação judicial das detenções e pelo direito ao recurso de decisões sobre a liberdade pessoal.»
A lei processual penal, dando expressão ao referido artigo 31.º da CRP, prevê duas modalidades de habeas corpus: em virtude de detenção ilegal e em virtude de prisão ilegal.
Dispõe o artigo 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”:
«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»
A jurisprudência deste Supremo Tribunal vem considerando que constituem fundamentos da providência de habeas corpus os que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão (acórdão de 06.04.2023, proc. n.º 130/23.0PVLSB-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação).
Tem também decidido uniformemente o Supremo Tribunal de Justiça que a providência de habeas corpus, por um lado, não se destina a apreciar erros de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (por todos, o acórdão do STJ, de 04.01.2017, proc. n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada) e, por outro, que a procedência do pedido pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que é apreciado o pedido (entre muitos, o acórdão de 19.07.2019, proferido no proc. n.º 12/17.5JBLSB, com extensas referências jurisprudenciais).
Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de se reconduzir, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.
Como se tem afirmado, em jurisprudência uniforme, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionário (ou aquele em cujo beneficio tenha sido peticionado o habeas) atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (acórdãos de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, de 18.05.2022, proc. 37/20.3PJLRS-A.S1, e de 06.09.2022, proc. 2930/04.1GFSNT-A.S1), não constituindo o habeas corpus um recurso sobre atos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais (acórdão de 10.01.2023, proc. 451/21.7POLSB-D.S1).
Nas palavras de Damião da Cunha (Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva, Volume II, UCP, 2020, p. 1370), no âmbito desta providência «nunca o STJ se pronuncia sobre qualquer decisão judicial. De facto, ao contrário do que sucede nos recursos, o STJ nunca revoga, nunca altera qualquer decisão; não profere uma qualquer pronúncia semelhante. Por isso, o habeas corpus nunca foi, nem é, um recurso; não atua sobre qualquer decisão; atua para fazer cessar “estados de ilegalidade”».
Concretamente, quanto às relações a estabelecer entre habeas corpus e recurso, refere Maia Costa (Habeas corpus: passado, presente, futuro, Revista Julgar n.º 29, Maio-Agosto de 2016, pg. 219 e ss.) que o habeas corpus é uma garantia situada à margem do sistema de impugnações do processo penal, constituindo um remédio contra a privação ilegal de liberdade. Nas situações previstas no artigo 222.º, do CPP, em que a prisão foi decretada ou validada por um juiz, o habeas corpus, para ter razão de ser, deverá assumir uma função diferente da dos recursos – que constituem o modo de impugnação por excelência de decisões judiciais -, servindo como instrumento de proteção da liberdade quando os meios ordinários não sejam suficientemente expeditos para assegurar essa proteção urgente.
Comentando o artigo 222.º, do CPP, escreve também Maia Costa (Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2016. Almedina, 2.ª edição revista, pág. 853):
«O habeas corpus «não é um recurso de uma decisão processual, mas uma providência extraordinária e expedita que se destina exclusivamente a salvaguardar o direito à liberdade, não visando, pois, a reapreciação da decisão que decretou a prisão.»
Mais adiante:
«Não é, assim, o habeas corpus o meio próprio de impugnar o mérito do despacho que decreta a prisão preventiva, nem quanto à suficiência ou solidez dos indícios das infrações imputadas, nem quanto à pertinência dos fundamentos invocados para justificar essa medida, nem relativamente à insuficiência de outras medidas de coação. O instrumento adequado para impugnar o mérito do despacho que decreta a prisão preventiva é o referido recurso do art. 219.º».
Neste sentido, assinala o acórdão de 21.10.2021 (proc. 260/11.1JASTB-F.S1) que os recursos ordinários e o habeas corpus são institutos diversos, com processamento e prazos diferentes por virtude de prisão ou detenção que o requerente considere ilegais, cuja diversidade mais se acentuou com a alteração da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, introduzida no artigo 219.º do CPP, quando passou a consignar no seu n.º 2, a propósito da impugnação das medidas de coação: «Não existe relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso previsto no número anterior e a providência de habeas corpus, independentemente dos respetivos fundamentos.»
Estando ultrapassado o entendimento que considerava o habeas corpus como sendo de caráter meramente residual ou subsidiário, admite-se que tal providência não pressupõe a exaustão de recursos ordinários.
Porém, sendo diferentes os pressupostos do habeas corpus e do recurso ordinário, a jurisprudência deste Supremo tem sustentado, em suma, que a providência extraordinária (no sentido supra referido) de habeas corpus em virtude de prisão ilegal não almeja a reanálise do caso, mas antes serve exclusivamente para apreciar se existe, ou não, uma privação da liberdade cuja ilegalidade que seja evidente, ostensiva, indiscutível, de um erro diretamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência - ilegalidade motivada por algum dos fundamentos legal e taxativamente previstos.
3.2. Não é inédita a pretensão de que se aplique o regime legal do habeas corpus a situações não expressamente previstas nos artigos 31.º da CRP e 222.º do CPP.
No que concerne à medida de acolhimento residencial, a partir do acórdão deste Supremo, de 18.01.2017, proferido no processo n.º 3/17.6YFLSB, passou a ser admitida a aplicação do regime do habeas corpus a tal medida de promoção e proteção, com fundamento em que esta, embora destinada a afastar o perigo em que a criança se encontra e a assegurar-lhe condições favoráveis ao seu bem-estar e desenvolvimento, não deixa de se traduzir numa restrição da liberdade, configurando uma privação deste direito, merecedora da proteção da providência (no mesmo sentido, entre outros, acórdãos do STJ, de 9.06.2021, processo n.º 6/21.6T1PTG.S1; de 23.07.2021, processo n.º 2943/20.6T8CBR-A.S1; de 30.06.2022, processo n.º 736/20.0T8CBR-E.S1; de 16.11.2022, processo n.º 2638/22.6T8LRA-A.S1).
Em sentido contrário, pronunciaram-se os acórdãos deste STJ de 12.07.2018, processo n.º 50/18.0YFLSB.S1, de 04.07.2019, processo n.º 2199/17.8T8PRD-F e de 23.12.2020, processo n.º 339/05.9TMCBR-C.S1, realçando que a medida de acolhimento residencial, mesmo que provisória, não tem correspondência com a prisão ou com medida de coação restritiva da liberdade, aplicada em processo penal, pois que, no âmbito do regime aprovado pela Lei n.º 147/99, de 1 de setembro - Lei de proteção de crianças e jovens em perigo, que passaremos a designar de LPCJP -, as medidas de promoção e de proteção não visam sancionar nem isolar, nem privar de liberdade, mas, antes, beneficiar e socializar as crianças e jovens em perigo.
Qualquer das medidas enunciadas nas várias alíneas do n.º 1, do artigo 35.º, da LPCJP, visa, em satisfação do superior interesse da criança e do jovem - um dos princípios orientadores da intervenção, nos termos do artigo 4.º, alínea a), desse diploma -, designadamente, proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral.
A medida de promoção e proteção visa, por definição, proteger a criança / jovem e afastar uma situação de perigo, finalidade que, numa primeira mirada, parecerá pouco compatível com a ideia de “libertar” a criança / jovem quando e enquanto esse perigo se mantém. Por isso, podemos configurar situações em que, decidindo o STJ no sentido do deferimento do habeas, ainda assim não tenha como determinar a “libertação” do visado, que significaria a sua entrega aos pais, pois a procura de eventuais medidas subsequentes ou mesmo a prorrogação da que já se encontrava em vigor, teria de ser feita no devido processo de promoção, e não em sede de apreciação da providência de habeas corpus, conduzindo a situações atípicas de habeas deferido, mas inconsequente, no imediato, por razões de proteção da criança / jovem em causa.
Também não temos como evidente o paralelo que por vezes se faz com as medidas tutelares educativas, cujas finalidades, regime e forma de execução são muito diferentes das relativas às medidas de promoção e proteção, razão por que as garantias aplicáveis num contexto não são necessariamente transponíveis para o outro (a este propósito, a lei tutelar educativa tem como direito subsidiário o Código de Processo Penal, enquanto ao processo de promoção e proteção são aplicáveis subsidiariamente as normas relativas ao processo civil declarativo comum, ainda que fase de debate judicial e de recurso – artigo 126.º da LPCJP).
Apesar das dificuldades, admitimos, porém, que em certos casos, seguramente excecionais, dentro da grande variabilidade da vida, possam estar em causa situações de limitação ao direito à liberdade que justifiquem a garantia de habeas corpus no âmbito da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, razão por que entendemos não ser de rejeitar, de princípio, a admissibilidade da sua aplicação.
3.3. As medidas de promoção e proteção de crianças e jovens – entre as quais se conta a medida de acolhimento residencial -, encontram o seu fundamento no artigo 69.º da CRP, cujo n.º 1 estabelece que todas as crianças têm direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições.
A LPCJP, tendo por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral (artigo 1.º), prevê no seu artigo 3.º, com a epígrafe, «Legitimidade da intervenção»:
« 1 - A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo.
2 - Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações:
a) Está abandonada ou vive entregue a si própria;
b) Sofre maus-tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais;
c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal;
d) Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais;
e) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento;
f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional;
g) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação.
h) Tem nacionalidade estrangeira e está acolhida em instituição pública, cooperativa, social ou privada com acordo de cooperação com o Estado, sem autorização de residência em território nacional.»
Decorre do disposto no artigo 4.º, do mesmo diploma, com a epígrafe, «Princípios orientadores da intervenção», que a intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo obedece aos princípios do interesse superior da criança e do jovem, da privacidade, da intervenção precoce, da intervenção mínima, da proporcionalidade e atualidade, da responsabilidade parental, do primado da continuidade das relações psicológicas profundas, da prevalência da família, da obrigatoriedade da informação, da audição obrigatória e participação e da subsidiariedade.
As medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e dos jovens em perigo - medidas de promoção e proteção – visam, nos termos do artigo 34.º da LPCJP:
«a) Afastar o perigo em que estes se encontram;
b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;
c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.»
Tais medidas encontram-se previstas nas alíneas a) a g), do n.º 1, do artigo 35.º, constando o acolhimento residencial da alínea f).
Por sua vez, o artigo 49.º do mesmo diploma dispõe, na parte em que agora releva:
«1 – A medida de acolhimento residencial consiste na colocação da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados.
2 – O acolhimento residencial tem como finalidade contribuir para a criação de condições que garantam a adequada satisfação de necessidades físicas, psíquicas, emocionais e sociais das crianças e jovens e o efetivo exercício dos seus direitos, favorecendo a sua integração em contexto sociofamiliar seguro e promovendo a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral.
(…).»
A aplicação desta medida de promoção e proteção retira, necessariamente, o exercício das responsabilidades parentais e guarda da criança a quem não está em condições de as exercer, incumbindo de tal exercício uma instituição terceira (Ana Rita Gil, «A garantia de Habeas Corpus no contexto de aplicação de medida de promoção e proteção de acolhimento residencial», Revista Julgar Online, Outubro 2017).
Dispõe o artigo 37.º da LPCJP, no que respeita a medidas cautelares:
«1 – A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.
2 – As comissões podem aplicar as medidas previstas no número anterior enquanto procedem ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente, sem prejuízo da necessidade da celebração de um acordo de promoção e proteção segundo as regras gerais.
3 – As medidas aplicadas nos termos dos números anteriores têm a duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses.»
Estabelece o n.º 2, do artigo 35.º, da mesma Lei que, as medidas de promoção e de proteção “são executadas no meio natural de vida ou em regime de colocação, consoante a sua natureza, e podem ser decididas a título cautelar, com exceção da medida prevista na alínea g) do número anterior”.
Finalmente, dispõe o n.º 1, do artigo 92.º [referido no n.º 1 do artigo 37.º], regendo para os procedimentos judiciais urgentes, que o tribunal, “a requerimento do Ministério Público, quando lhe sejam comunicadas as situações referidas no artigo anterior, profere decisão provisória, no prazo de quarenta e oito horas, confirmando as providências tomadas para a imediata proteção da criança ou do jovem, aplicando qualquer uma das medidas previstas no artigo 35.º ou determinando o que tiver por conveniente relativamente ao destino da criança ou do jovem”.
Com exceção da medida de promoção e proteção de confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adoção, prevista na alínea g), do n.º 1, do referido artigo 35.º, todas as medidas de promoção e proteção podem ser decretadas a título provisório.
3.3.1. A requerente da providência invoca, como seu fundamento, o previsto na alínea c), do n.º 2, do artigo 222.º, do CPP, tendo por base o facto de a jovem BB se encontrar sujeita a medida cautelar de promoção e proteção de acolhimento residencial, tendo sido ultrapassado o prazo de 6 meses previsto no artigo 37.º, n.º3, da LPCJP, situação que, na perspetiva da peticionária, configura uma privação ilegal da liberdade da jovem, sua filha.
Conforme já referido, o invocado n.º 3, do artigo 37.º, dispõe que as medidas cautelares de promoção e proteção têm a duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses.
No caso, a medida cautelar de acolhimento residencial foi determinada em 2.02.2024; revista por despacho de 9.05.2024, que a prorrogou por 3 meses; finalmente, por despacho de 7.08.2024, foi mantida por mais 3 meses (o tribunal terá considerado a prorrogação em 9.05. como contando-se deste então).
Tendo em vista que a jovem em questão se encontra, cautelarmente, em acolhimento residencial, há mais de 6 meses, coloca-se a questão da natureza dos prazos fixados no referido artigo 37.º, n.º3.
No âmbito da jurisdição civil, onde a questão tem sido apreciada – recordemos que os recursos das decisões que, definitiva ou provisoriamente, se pronunciem sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas de promoção e proteção (artigo 123.º do LPCJP), são da competência das secções cíveis das Relações e do STJ e não das respetivas secções criminais -, encontramos decisões como o acórdão da Relação de Coimbra, de 06.02.2024, processo 417/22.1T8LRA-A.C1, proferido em apelação onde se discutia, precisamente, a natureza do prazo de 6 meses previsto no artigo 37.º, n.º3, e as consequências da sua ultrapassagem, tendo a Relação entendido tratar-se de prazo meramente indicativo, não obstante se exija que a respetiva prorrogação seja fundamentada e não arbitrária.
No mesmo sentido já se tinham pronunciado, entre outros, os acórdãos da Relação de Coimbra, de 13.09.2022, processo 1276/21.5T8CLD-C.C1, e da Relação de Lisboa, de 10.02.2022, processo 415/16.2T8FNC-J.L1-2, sustentando, em suma, que a medida cautelar não caduca com a simples passagem dos seis meses a que alude o n.º 3, do artigo 37.º, na exata medida em que a sua cessação automática “não se coaduna com a natureza do processo de promoção e proteção nem com o interesse superior da criança e do jovem a ele subjacente” (citação do último dos arestos mencionados).
Mais recentemente, a Relação de Lisboa, por acórdão de 07.03.2024, processo 8079/18.2T8LRS-B.L1-2, entendeu que o referido prazo máximo de 6 meses admite prorrogação, devendo, porém, o juízo prorrogativo merecer uma acrescida fundamentação.
No acórdão que apreciou e decidiu o anterior habeas corpus apresentado pela mesma peticionária já se tinha dito:
«Reconhecendo-se no estabelecimento destes prazos preocupações de celeridade e de segurança, a natureza dos interesses em causa impõe, nos casos em que a efectiva protecção do menor exige a manutenção da medida cautelar, sob pena de este regressar à situação de perigo daquela [medida] determinante, a prorrogação da medida deve ser admissível, mediante prolação de decisão fundamentada (neste sentido, Paulo Guerra, Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, Anotada, 2016, Almedina, pág. 89 e Helena Bolieiro e Paulo Guerra, A Criança e a Família, 2ª Edição, 2014, Coimbra Editora, 2014, págs. 73 e seguintes). Entendimento oposto, atenta a natureza e finalidades da intervenção de protecção afigura-se-nos incongruente e violador do direito da criança à protecção da sociedade e do Estado, constitucionalmente garantido.»
Também o STJ, através das secções cíveis, já teve a oportunidade de se pronunciar sobre o tema, como se extrai do acórdão de 11.07.2019, processo n.º 3404/16.3T8VFR-I.P1.S2, onde podemos ler:
«O confronto das redações sucessivas do art. 37º mostra que, no tocante à duração das medidas provisórias ou cautelares que nas situações aí definidas podem ser aplicadas às crianças e jovens em perigo, pese embora se tenham operado mudanças na expressão verbal usada, mantem-se inalterado o respetivo conteúdo substancial.
Com efeito, tanto na anterior versão da norma, como na atual, se fixa em seis meses o prazo de duração dessas medidas.
E sobre a natureza desse prazo que é, relembre-se, a questão que a recorrente traz nesta revista à nossa apreciação, as expressões sucessivamente usadas e que, de algum modo, podem concorrer para a aferição dessa natureza, são, em termos de significado, perfeitamente idênticas: antes, “não podendo a sua duração prolongar-se por mais de seis meses” e agora “duração máxima de seis meses”.
Também se não vislumbra, nem a recorrente explicitou, em que medida poderá contribuir para caraterizar a natureza imperativa ou meramente indicativa do prazo de duração das medidas, a nova redação do nº 1 do art. 62º que, tal como a anterior, fixa em 6 meses o prazo máximo da revisão das medidas, naturalmente ressalvando o regime já estabelecido no nº 3 do art. 37º onde se prevê um prazo de revisão mais curto.
E o nº 6 da norma – que constitui o seu anterior nº 5 -, é, pelo seu conteúdo, absolutamente alheio à natureza do prazo em questão.
Assim importa concluir que a nova lei, no que respeita à natureza do prazo de duração das medidas cautelares – 6 meses –, não introduziu qualquer alteração, pelo que, mesmo que antes se tivesse estabelecido querela jurisprudencial quanto a saber se o mesmo tinha natureza imperativa ou meramente indicativa, nunca a nova lei poderia constituir uma opção do legislador por uma das soluções plausíveis em termos de interpretação legislativa.
(…)
Está-se inequivocamente perante a fixação de um limite temporal para a duração das medidas cautelares que, em vista da proteção do superior interesse da criança ou do jovem, tem subjacente a preocupação de alcançar com a maior brevidade possível uma solução que consagre em definitivo a medida mais adequada ao seu desenvolvimento equilibrado.
Procura-se celeridade na obtenção desse objetivo, mas esta não é um valor absoluto em si, em termos de poder sobrelevar, prejudicando, o superior interesse da criança, primeiro dos princípios orientadores da intervenção para promoção de direitos e proteção da criança e do jovem em perigo - art. 4º, alínea a).
Se a medida cautelar decretada visa superar, afastando, o perigo em que a criança se encontra, a cessação pura e simples da medida pelo decurso do prazo, sem que o tribunal tenha conseguido obter os elementos relativos à saúde e condições psicológicas dos familiares mais chegados da criança, tidos como indispensáveis para aferir a real situação desta, equivaleria a colocá-la, sem mais, na situação em que antes se encontrava e que foi considerada como indiciando perigo.
Ademais, está-se, como acima dissemos, em sede de processo de jurisdição voluntária em que as resoluções a tomar não estão sujeitas a regras de legalidade estrita, devendo prevalecer razões de oportunidade e conveniência que protejam o superior interesse da criança que, a entender-se de modo diverso do exposto, seria postergado.
Assim, é de afirmar que o prazo de 6 meses fixado no art. 37º, nº 2 para a duração das medidas provisórias é indicativo no sentido de que, sendo embora um objetivo de celeridade a alcançar, pode, em casos devidamente justificados, ser ultrapassado.»
Partindo do pressuposto de que os prazos previstos no artigo 37.º, n.º 3, da LPCJP, não serão perentórios – o que tem sido debatido e decidido, nos termos supra explanados, nas competentes secções cíveis, das Relações e do STJ, em que a questão tem sido colocada - e que, por isso, também a duração máxima de 6 meses contemplada na lei admite prolongamento por despacho de prorrogação, temos como manifesto que, num caso como o dos autos, em que foi proferido tal despacho, não compete ao STJ, em sede de providência de habeas corpus, sindicar, como se de uma revista se tratasse, o acerto da fundamentação do juízo prorrogativo, não sendo possível afirmar a existência de uma situação de ilegalidade evidente, ostensiva, indiscutível e diretamente verificável.
Deste modo, não se verificando qualquer dos fundamentos de habeas corpus em virtude da existência de [situação equiparável a] prisão ilegal, concretamente os previstos nas alíneas do n.º 2, do artigo 222.º, do CPP, resta concluir que a providência em apreço terá de ser indeferida.
Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus peticionada pela requerente AA.
Custas pela peticionária, com 3 UC de taxa de justiça (artigo 8.º, n.º 9, do R. Custas Processuais e Tabela III anexa).
Supremo Tribunal de Justiça, 13 de agosto de 2024
(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)
Jorge Gonçalves (Relator)
António Latas (1.º Adjunto)
Vasques Osório (2.º Adjunto)
Maria Amélia Ribeiro (Presidente)