I - No presente recurso de fixação de jurisprudência, pese embora se verifiquem os requisitos formais (artigos 437.º e 438.º do Código de Processo Penal), não estão reunidos os requisitos de ordem substancial de que depende a sua admissibilidade, os quais, segundo a lei e o que tem sido entendido pelo Supremo Tribunal de Justiça, consistem na i) oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, que devem ter sido proferidos no domínio da mesma legislação; ii) a questão decidida em termos contraditórios deve ter sido objecto de decisão expressa em ambos os acórdãos, tomada a título principal, não bastando que a oposição se deduza de posições implícitas ou de contraposição de fundamentos ou de afirmações; iii) as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico devem ser substancialmente idênticos, por só assim ser possível aferir se para a mesma questão jurídica foram adoptadas soluções opostas e iv) a vexata quaestio, não deve ter sido objecto de anterior fixação de jurisprudência. Com efeito,
II – No caso sub judice caso, os arguidos invocam dois acórdãos fundamento, quando é certo o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a afirmar que não é possível invocar mais do que um acórdão para fundamentar a oposição de julgados – o que resulta do art.º 437.º, n.º 1 do Código de Processo Penal ao estabelecer «Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções oposta (…)» e, do art.º 438.º do mesmo diploma legal, onde se prescreve que «No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição». A esse elemento literal alia-se a questão da viabilidade prática na medida em que a exigência de confrontar apenas dois acórdãos - o recorrido e o fundamento - assenta numa lógica de delimitação precisa da questão a decidir, pois se em grande número de casos não é tarefa fácil descortinar a questão, quando e estejam em causa dois (ou mais) acórdãos essa tarefa tornar-se-ia muito mais complexa e difícil de obter.
III - Acresce que, para além das situações de facto nos acórdãos em questão não serem idênticas, os recorrentes suscitam uma pluralidade de questões jurídicas, constituindo também entendimento deste Supremo Tribunal de Justiça de que não é possível indicar mais do que uma questão fundamental de direito, por a isso obstar, desde logo, o referido art.º 437.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, e as concretas finalidades deste tipo de recurso extraordinário - através do qual se pretende a uniformização dos critérios interpretativos de modo a garantir a unidade do ordenamento jurídico penal ou processual penal, os princípios de ..., previsibilidade e certeza das decisões judiciais e, com isso, a realização do interesse público, através da garantia da igualdade dos cidadãos perante a lei.
5.ª Secção
Recurso de Fixação de Jurisprudência
Acordam na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça
1. Relatório
1.1. Os arguidos AA e Terroso e Torrão, Lda. interpuseram, em ...-...-2024, o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência do acórdão proferido em ...-...-2024, pelo Tribunal da Relação do Porto, já transitado em julgado (acórdão recorrido), rematando a sua motivação com as seguintes conclusões:
«I. Como decorre do artigo 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre, devendo esta possibilidade revestir a, “(…) forma de notificação, como decorre das disposições conjugadas dos artigos 41.º, n.º 1, 46.º, n.º 2, e 50.º do Decreto-Lei n.º 433/82, e do artigo 112.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal” a qual “(…) terá de ser feita, em alternativa, por contacto pessoal com o notificando e no lugar em que este for encontrado, ou por via postal registada – artigo 113.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal”, sendo que a, “(…) notificação por contacto pessoal com o notificando a lei não admite que a mesma seja feita em pessoa diversa daquele (artigo 113.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal)”;
II. Tendo a Autoridade Administrativa optado por proceder à notificação dos arguidos na modalidade de carta registada com aviso de receção, procedimento ao qual – como é comumente conhecido – está associado um formalismo específico, concretamente à necessidade de identificação da pessoa que recebeu a carta ou aviso e a verificação da capacidade dessa pessoa para transmitir ou comunicar à arguida sociedade o conteúdo da notificação que recebeu ou a capacidade de obrigar a sociedade (circunstância que a Autoridade Administrativa tinha condições de apurar), verificando que dos avisos de receção não resulta a cabal identificação de quem os recebeu, tinha a obrigação de regularizar tal situação.
III. Não o tendo feito, dúvida não há de que os arguidos não foram regularmente notificados para os efeitos previstos no artigo 50.º do Regime Geral das Contraordenações, o que resulta numa nulidade insanável.
IV. Sobre esta matéria e em sentido diametralmente oposto ao do acórdão recorrido, foram produzidos os acórdão-fundamento, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08.07.2015, proferido no processo 857/13.5TFPRT-A.P1 (publicado no site do Ministério da Justiça -Instituto das Tecnologias de Informação na Justiça - Bases Jurídico-Documentais, in www.dgsi.pt,) referente à pessoa singular e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.05.2023, proferido no processo nº 384/22.0T8PRG.G1 (publicado no site do Ministério da Justiça - Instituto das Tecnologias de Informação na Justiça - Bases Jurídico-Documentais, in www.dgsi.pt) referente à notificação das pessoas coletivas.
V. Assim sendo, a interpretação do acórdão recorrido - ao perfilhar o entendimento de que é regular a notificação para os termos do artigo 50º do Regime Geral das Contraordenações quando o aviso de receção for assinado por terceiro sem a identificação da pessoa que recebeu a carta ou aviso e a verificação da capacidade dessa pessoa para transmitir ou comunicar à arguida sociedade o conteúdo da notificação que recebeu ou a capacidade de obrigar a sociedade - viola o preceituado artigos 113º, 230º e 223.º, ambos do Código de Processo Civil (aplicável ex vi os artigos 41º do Regime Geral das Contraordenações e 4º do Código de Processo Penal) e atenta ainda contra as garantias constitucionais dos arguidos.
VI. Portanto, a jurisprudência que deve ser acolhida – salvo o devido respeito por opinião contrária – é a dos acórdão-fundamento e não a do acórdão recorrido, ou seja, a de que
a. A comunicação ao arguido da decisão da autoridade administrativa que lhe aplicou uma coima reveste a formalidade própria de uma notificação em processo penal.
b. Por isso deve ser feita por carta registada com aviso de receção devendo este ser assinado pelo próprio notificando.
c. Sendo a acoimada uma sociedade e, tendo a mesma sido notificada para apresentar defesa nos termos do art.º 50.º do Regime-Geral das Contraordenações (Regime Geral das Contraordenações), por carta registada com A/R, para se aferir da regularidade dessa notificação há que recorrer aos art.º s 230º e 223º, ambos do Código de Processo Civil (aplicável ex vi os art.º s 41.º do Regime Geral das Contraordenações e 4º do Código de Processo Penal) devendo considerar-se aplicável, à notificação efetuada nos termos do art.º 50º do Regime Geral das Contraordenações, a citação em termos civis (efetuada de acordo com o art.º 228º do Código de Processo Civil ) pois é através dessa notificação que se chama, pela primeira vez, a acoimada ao processo.
d. Assinado o A/R por pessoa diversa do destinatário, sem indicação da concreta identificação dessa pessoa, implica a irregularidade do respetivo A/R o que, por sua vez, leva a que se tenha de concluir que a acoimada não foi devidamente notificada para exercer o seu direito de defesa nos termos do art.º 50º do Regime Geral das Contraordenações.
e. A falta ou irregularidade da notificação efetuada nos termos do art.º 50º do Regime Geral das Contraordenações implica uma nulidade insanável, por analogia com o art.º 119.º al. c) do Código de Processo Penal, devendo todo o processo contraordenacional ser anulado a partir, inclusive, daquela notificação a qual terá de ser repetida.»
1.2. O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação respondeu, tendo concluído no sentido de «encontrando-se verificados os requisitos estabelecidos pelo art.º 437.º do CPP, deve o recurso para fixação de jurisprudência interposto pelos arguidos ser admitido, fixando-se a final jurisprudência que apazigue a necessidade de congruência».
1.3. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, onde fez constar o seguinte:
«[…] Quanto à indicação de acórdão-fundamento (art.º 437.º, n.º 4, do CPP):
Esta disposição refere que «Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado».
Entendem os recorrentes que a decisão proferida nos autos (1028/23.8Y2MTS.P1), pelo Tribunal da Relação do Porto, está em contradição:
- no que se refere a pessoas singulares, com a decisão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 08.07.2015, no processo 857/13.5TFPRT-A.P1; e
- no que se refere a pessoas coletivas, com a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães em 02.05.2023 no processo nº 384/22.0T8PRG.G1.
Ora, logo por aqui se verifica, a nosso ver, um óbice ao prosseguimento dos autos.
Na verdade, existe mais do que um acórdão-fundamento invocado o que, por si só, deverá levar à impossibilidade de o recurso prosseguir, por violação do preceito legal mencionado (art.º 437.º, n.º 4, do CPP).
[…]
Mas, mesmo se assim não se entendesse, ou seja, que o recurso não pode prosseguir por terem sido invocados dois acórdãos-fundamentos, também nos parece que não pode prosseguir por se estar, no fundo, perante um duplo pedido de fixação de jurisprudência, ou seja, por se estar perante pedido que versa, no entender do requerente, a fixação de jurisprudência quanto a dois aspetos: quanto à forma/exigências de notificação relativamente a pessoas singulares em sede de processos contraordenacionais, e quanto à notificação de pessoas coletivas no âmbito desse mesmo tipo de processos.
Ou seja, é efetuado um duplo pedido de fixação de jurisprudência no mesmo requerimento, o que nos parece extravasar o que a lei permite no art.º 437º, n.º 1, do CPP, ao referir que o recurso de fixação é interposto quando forem proferidas duas decisões que «relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas».
[…]
Mas, se não bastassem aquelas duas circunstâncias para se entender pela impossibilidade de prosseguimento dos autos (a invocação de dois acórdãos-fundamento e o duplo pedido efetuado), certo é que se não se verifica efetiva oposição de julgados nos termos que a lei e a jurisprudência exigem.
[…] por todos os motivos referidos – indicação indevida de mais do que um acórdão-fundamento, indevida cumulação de pedidos e inexistência de efetiva oposição de julgados, - o Ministério Público entende que não se verificam os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário interposto, pelo que não deverá o mesmo prosseguir».
1.4. Realizado o exame preliminar, foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
Cumpre apreciar e decidir
2. Fundamentação
Como é sabido, para além dos recursos ordinários, contempla o Código de Processo Penal como recurso extraordinário, entre outros, o recurso de fixação de jurisprudência, que se mostra regulado, para o que ora releva, nomeadamente, nos artigos 437.º e 438.º. Aí se dispõe o seguinte:
Artigo 437.º - Fundamento do recurso
“1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.
2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
3 - Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.
4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.
5 - O recurso previsto nos n.os 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público”.
Artigo 438.º - Interposição e efeito
“1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.
3 - O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.”
Como ensinava o Prof. Alberto do Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 233 -234, cuja doutrina se mantém actual e transponível para o presente caso, o princípio da liberdade de interpretação da lei de que gozam os tribunais pode conduzir a resultados indesejáveis, dando origem a interpretações divergentes e a diverso tratamento jurídico em casos particulares, perfeitamente idênticos. E assim, nas palavras daquele autor, “o princípio da igualdade perante a lei torna-se uma ficção e um mito. A máxima constitucional – a lei é igual para todos – fica reduzida a fórmula vã, se em consequência da liberdade de interpretação jurisdicional a casos concretos rigorosamente iguais corresponderem soluções jurídicas antagónicas ou divergentes. O que importa essencialmente, para efeitos práticos, é a actuação concreta da lei e não a sua formulação abstracta. Sente-se, pois, a necessidade de conciliar o princípio da liberdade de interpretação da lei com o princípio da igualdade da lei para todos os indivíduos. Quer dizer, reconhece-se a conveniência de tomar providências tendentes a assegurar, quanto possível, a uniformidade da jurisprudência.”
Trata-se no fundo de harmonizar a certeza do Direito com a Justiça.
Acresce que, sendo o recurso de fixação de jurisprudência um recurso extraordinário (através do qual se pretende a anulação do caso julgado), a sua utilização depende da verificação de um conjunto estrito de requisitos de ordem formal e substancial.
Em sintonia com o disposto nos supra citados normativos legais, são requisitos formais do recurso de fixação de jurisprudência, os seguintes:
1. Os acórdãos em conflito serem de tribunais superiores, ambos do Supremo Tribunal de Justiça, ambos de tribunal da Relação, ou um – o acórdão recorrido – de Relação, mas de que não seja admissível recurso ordinário, e o outro – o acórdão-fundamento – do Supremo Tribunal de Justiça;
2. O trânsito em julgado dos dois acórdãos;
3. A interposição do recurso em 30 dias contados do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (acórdão recorrido).
4. A identificação do aresto com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição (acórdão-fundamento).
5. A indicação, caso se encontre publicado, do lugar de publicação do acórdão-fundamento.
6. A indicação de apenas um acórdão-fundamento.
7. A legitimidade do recorrente, restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis.
8. A justificação/fundamentação da oposição.
Constitui requisito de ordem substancial,
A oposição de julgados entre os acórdãos em questão, que devem ter sido proferidos no domínio da mesma legislação.
Acresce ainda, de acordo com a jurisprudência deste Supremo Tribunal, que a questão decidida em termos contraditórios deve ter sido objecto de decisão expressa em ambos os acórdãos, tomada a título principal, não bastando que a oposição se deduza de posições implícitas ou de contraposição de fundamentos ou de afirmações. As situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico devem outrossim ser substancialmente idênticos, por só assim ser possível aferir se para a mesma questão jurídica foram adoptadas soluções opostas. Por fim, a vexata quaestio não deve ter sido objecto de anterior fixação de jurisprudência. (Acórdão do STJ de 24.02.2022, proc. 42/16.4GDCTX.L1-A.S1, in www.dgsi.pt).
Nesta linha fez-se constar do Acórdão do STJ, de 20-10-2011, proc.1455/09.3TABRR.L1-A.S1 (sumário), disponível no mesmo local, «IV - A exigência de oposição de julgados, de que não se pode prescindir na verificação dos pressupostos legais de admissão do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos do art.º 437.º, n.º 1, do CPP, é de considerar-se preenchida quando, nos acórdãos em confronto, manifestamente de modo expresso, sobre a mesma questão fundamental de direito, se acolhem soluções opostas, no domínio da mesma legislação.
V - A estes requisitos legais, o STJ, de forma pacífica, aditou a incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito. E, sendo o recurso em causa um recurso extraordinário e, por isso, excepcional, é entendimento comum do STJ que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras de tal recurso se deve fazer com as restrições e o rigor inerentes (ou exigidas) a essa excepcionalidade”. (Itálicos e sublinhados nossos).
No caso sub judice mostram-se, inequivocamente, verificados os pressupostos formais.
Com efeito,
Os recorrentes possuem legitimidade (artigos 437.º, n.º 5 do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações - DL 433/82, de 27 de Outubro), uma vez que são arguidos e foi proferida decisão que lhes é desfavorável.
Ademais, como resulta dos autos, o acórdão recorrido transitou em julgado em 07-03-2024, tendo o presente recurso dado entrada em juízo no dia ...-...-2024, ou seja, 1.º dia útil após o termo do prazo de 30 dias, tendo os recorrentes liquidado a competente multa (artigos 107.º-A do Código de Processo Penal e139.º do Código de Processo Civil).
O acórdão recorrido e o acórdão fundamento encontram-se transitados em julgado, tendo-se sido efectuada a correcta indicação do seu local de publicação.
Posto isto, desde já se adianta que se não encontram reunidos os pressupostos substanciais de que depende a admissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência e o seu prosseguimento (art.º 441.º n.º 1 do Código de Processo Penal).
Os arguidos invocam dois acórdãos fundamento. O Acórdão do TRP de 08.07.2015, proc. 857/13.5TFPRT-A.P1, referente à pessoa singular e o Acórdão do TRG de 02.05.2023, proc. 384/22.0T8PRG.G1, relativo à notificação das pessoas colectivas, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Sucede que este Supremo Tribunal, tem sido unânime em afirmar que não é possível invocar mais do que um acórdão para fundamentar a oposição de julgados.
Trata-se de um requisito que decorre de forma expressa da Lei, ao estabelecer-se no art.º 437.º, n.º 1 do Código de Processo Penal «Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções oposta (…)» e, ainda, no art.º 438.º do Código de Processo Penal, que «No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição».
Tal indicação, no singular - o recorrente identifica o acórdão - conduz-nos à conclusão de que não poderão ser indicados vários acórdãos fundamento.
A esse elemento literal alia-se a questão da viabilidade prática na medida em que a exigência de confrontar apenas dois acórdãos - o recorrido e o fundamento - assenta numa lógica de delimitação precisa da questão ou questões a decidir, já que se em grande número de casos não é tarefa fácil descortinar a questão, quando e estejam em causa dois (ou mais acórdãos) acórdãos, essa tarefa tornar-se-ia muito mais complexa e difícil de obter.
Nesta linha, entende-se que a indicação de mais do que um acórdão fundamento é motivo de rejeição do recurso para fixação de jurisprudência em virtude de assim se não mostrarem preenchidos os requisitos formais, legalmente previstos.
Acresce que os recorrentes suscitam uma pluralidade de questões jurídicas, requerendo que seja firmada jurisprudência no sentido de que:
«i. A comunicação ao arguido da decisão da autoridade administrativa que lhe aplicou uma coima reveste a formalidade própria de uma notificação em processo penal.
ii. Por isso deve ser feita por carta registada com aviso de receção devendo este ser assinado pelo próprio notificando.
iii. Sendo a acoimada uma sociedade e, tendo a mesma sido notificada para apresentar defesa nos termos do art.º 50.º do Regime-Geral das Contraordenações (Regime Geral das Contraordenações), por carta registada com A/R, para se aferir da regularidade dessa notificação há que recorrer aos art.º s 230.º e 223.º, ambos do Código de Processo Civil (aplicável ex vi os art.º s 41º do Regime Geral das Contraordenações e 4º do Código de Processo Penal) devendo considerar-se aplicável, à notificação efetuada nos termos do art.º 50.º do Regime Geral das Contraordenações, a citação em termos civis (efetuada de acordo com o art.º 228.º do Código de Processo Civil), pois é através dessa notificação que se chama, pela primeira vez, a acoimada ao processo.
iv. Assinado o A/R por pessoa diversa do destinatário, sem indicação da concreta identificação dessa pessoa, implica a irregularidade do respetivo A/R o que, por sua vez, leva a que se tenha de concluir que a acoimada não foi devidamente notificada para exercer o seu direito de defesa nos termos do art.º 50.º do Regime Geral das Contraordenações.
v. A falta ou irregularidade da notificação efetuada nos termos do art.º 50.º do Regime Geral das Contraordenações implica uma nulidade insanável, por analogia com o art.º 119º al. c) do Código de Processo Penal, devendo todo o processo contraordenacional ser anulado a partir, inclusive, daquela notificação a qual terá de ser repetida».
Os recorrentes, partindo da questão geral (formalidades da notificação dos arguidos para apresentação de defesa nos termos do art.º 50.º do Regime Geral das Contraordenações) o que pretendem é que o Supremo Tribunal de Justiça, em sede de fixação de jurisprudência dê resposta a todas as ramificações supra referidas, como se de um recurso ordinário se tratasse.
Ora, é também unânime a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que não é possível indicar mais do que uma questão fundamental de direito, por a isso obstar, desde logo, o referido art.º 437.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, que se refere “à mesma questão de direito”, bem como as concretas finalidades deste tipo de recurso extraordinário - através do qual se pretende a uniformização dos critérios interpretativos de modo a garantir a unidade do ordenamento jurídico penal ou processual penal, os princípios de segurança, previsibilidade e certeza das decisões judiciais e, com isso, a realização do interesse público através da garantia da igualdade dos cidadãos perante a lei.
Consoante tem sido assinalado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, neste tipo de recurso, não está em causa a reapreciação da bondade da decisão (da aplicação do direito ao caso) proferida no acórdão recorrido (já transitado em julgado), mas tão só verificar, partindo de factualidade equivalente, se a posição tomada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir no mesmo momento essa questão, no acórdão fundamento, e vice-versa. Como tal, «Sendo propósito primordial do recurso a definição de uma interpretação, tendencialmente normativa, para uma questão jurídica (e, apenas de modo reflexo, consequencial, a solução do caso concreto cuja decisão formou caso julgado), afastada está a possibilidade de um recurso de objeto complexo, composto por 2, 3…10 questões de direito. Outra solução traduzir-se-ia na solução do caso, aproximando-se assim de um recurso ordinário, numa fase em que, face ao caso julgado, aquele era já inadmissível (Vd. entre outros, os Acórdãos do STJ de 12-01-2023, proc. 11/20.0GAMRA.E1-A.S1, de 12-10-2022, proc. 2113/21.6T9AVR-A.P1-A.S1, de 24-03-2021, proc. 64/15.2IDFUN.L1-A.S1, de 06-01-2021, proc. 112/15.6T9VFR.P1-D.S1, disponíveis em www.dgsi.pt).
Destarte, a questão a decidir, deve ser delimitada e única, não podendo desdobrar-se em várias questões, como pretendem os recorrentes.
De notar é também que se entende não ser de admissível formular convite ao aperfeiçoamento, seja quanto à apresentação de várias questões em oposição, seja quanto à indicação de mais de um acórdão fundamento, visto tratar-se de um recurso extraordinário e tal aperfeiçoamento não se encontrar expressa e legalmente previsto.
Refira-se, por fim, que mesmo que assim não entendesse, sempre seria de concluir pela rejeição do recurso por ausência de identidade de situações de facto.
Efectivamente, resulta do acórdão recorrido que:
“Os arguidos foram notificados para se pronunciarem nos termos e para os efeitos previstos no art.º 50.º do RGCO mediante carta registada expedida para o domicílio do arguido e para a sede da sociedade arguida.
Tais cartas registadas foram acompanhadas do respetivo aviso de receção;
As referidas cartas registadas foram efetivamente entregues no dia ........2020 na morada/sede dos respetivos destinatários, a um terceiro, de nome “BB”, que se encontrava na morada/sede indicada e as recebeu, a coberto do art.º 113.º, n.º 7, do Código Processo Penal, aplicável ex vi art.º 41.º do RGCO quanto ao arguido (pessoa singular) e do art.º 223.º, nº3, do Código Processo Civil, aplicável ex vi do art.º 41º do RGCO e art.º 4º do Código Processo Penal;
No caso haverá de se presumir, salvo prova em contrário, que essa pessoa se declarou em condições de entregar as cartas aos destinatários e que o fez, não obstante se ter recusado facultar, como anotado nos respetivos avisos de receção, a sua identificação completa, o que não afeta a validade da notificação, como não a afetaria a recusa de assinatura do aviso de receção;
Presumindo-se feita a notificação (art.113º, nº2, do Código Processo Penal, aplicável ex vi art. 41º do RGCO), só pode ser ilidida pelo notificado;
Para ilidir a presunção quanto à notificação, cabe ao notificando alegar e provar os factos necessários para demonstrar que não recebeu a notificação e por causa que não lhe é imputável, devendo invocar tal questão no requerimento de impugnação judicial.
Não obstante o ónus da prova que lhes incumbia, os arguidos aceitaram, sem produção desta, a prolação de decisão por despacho, ao qual não se opuseram, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 64.º do RGCO, donde o Tribunal a quo ter logo anunciado que assim decidiria, como o fez através do despacho recorrido.
Pelo que, à evidência, cumpre concluir que os recorrentes foram regularmente notificados – por via postal registada – nos termos dos normativos legais antes enunciados, para os efeitos previstos no art.º 50.º do RGCO, podendo exercer cabalmente o seu direito de defesa”.
Por seu turno, no acórdão fundamento de ........2015, proc. 857/13.5...-A.P1, trata-se da notificação da decisão da autoridade administrativa, proferida em processo de contraordenação, através de aviso de receção da carta enviada para a morada conhecida (pela entidade administrativa) que foi assinado por outrem, que não o arguido.
Neste caso, está em causa a notificação da decisão da autoridade administrativa e não a notificação para o arguido exercer o seu direito de defesa, prevista no artigo 50.º do RGCO (“Não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre”), como era a situação do acórdão recorrido.
Finalmente, no acórdão fundamento de ...-...-2023, proc. 384/22.0..., considerou-se que a notificação efectuada nos termos do art.º 50.º do RGCO não era válida, em virtude, desde logo, de o aviso de recepção assinado por pessoa diversa do destinatário, apenas conter uma assinatura, sem que identificasse de forma cabal esse assinante.
Por conseguinte, não havendo coincidência acerca do núcleo factual essencial constante das aludidas decisões, também por aqui não poderia prosseguir o presente recurso de fixação de jurisprudência, que é assim de rejeitar (art.º 441.º n.º 1, do Código de Processo Penal).
3. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:
a) Rejeitar o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto nos termos do disposto no artigo 441.º, n.º 1, do Código de Processo Penal; e
b) Condenar cada um dos recorrentes, nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais), a que acresce, ao abrigo do disposto no artigo 420.º, n.º 3, do CPP, aplicável “ex vi” do art.º 448.º, do mesmo diploma, a condenação dos mesmos no pagamento da importância de 5 (cinco) UC.
Lisboa, STJ, 2024.09.19
(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pela relatora e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal)
Albertina Pereira (Relatora)
Celso Manata (1.º Adjunto)
Jorge Gonçalves (2.º Adjunto)