TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Sumário

É competente o Tribunal Comum para julgar acção movida por particular contra Câmara Municipal em que se pede indemnização a esta por ter excedido a área que lhe fora cedida para alargamento da via, ocupando e usando parte não cedida.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

No Tribunal Judicial de....., X..... e K....., residentes no lugar de....., freguesia de....., dessa comarca, intentaram contra a Câmara Municipal de.... acção de condenação sob a forma ordinária, pedindo que esta fosse condenada:
a) a reconstruir, no prazo de um Mês a contar do trânsito em julgado da sentença, o muro em toda a extensão frontal do terreno com a estrada e com a altura do terreno, em pedra, ou noutro material resistente como betão, no prédio designado por M.....,
b) indemnizar os AA. em quantia suficiente para o efeito, mais os dispensando de qualquer licenciamento, e que desde já calculam no mínimo de € 5.048,00,
c) indemnizar os AA. pelo preço das árvores, castanheiro, cerejeiras e videiras, que mandou cortar no prédio designado M....., a qual calculam desde já em € 1.000,00,
d) indemnizar os AA. pela ocupação ilícita de 300 m2 e aquisição ou desvalorização das áreas sobrantes com 450 m2 (ou a que resulte de rigorosa medição a efectuar pela Ré) no prédio supra identificado e designado por L....., a qual calculam desde já em € 18.600,00, restando em dívida € 17.702,00,
e) Indemnizar os AA. pela ocupação e desvalorização do prédio designado R....., artigo matricial 2325 em virtude da ocupação não prevista de terreno de cultura e regadio, a qual calculam desde já em € 25,00 por m2 sobre a área efectivamente ocupada para além do muro de suporte do 2º socalco a partir da estrada, a medir pela Ré, ou em alternativa,
f) Retirar, no prazo de um mês a contar do transito em julgado da douta sentença a proferir, desse terreno até ao referido muro do 2º socalco todo o entulho que para lá foi mandado jogar pela Ré com as obras de alargamento da referida estrada.
g) Pagar juros de mora à taxa legal de 7% desde a citação até efectivo pagamento.

Para tanto alegaram, muito em síntese, que são donos dos terrenos que
identificam, mesmo por usucapião, que são atravessados pela Estrada Municipal que liga..... à ...... A Câmara Municipal de..... propôs-se a alargar e repavimentar essa estrada e, para o efeito, promoveu contratos com os proprietários, tendo o vereador M..... contactado com o A. marido, num café, e ambos acordaram que cederia à ora Ré, para esse fim, 1258 m2, sendo o preço do terreno de cultura a 600$00 o m2 e o terreno a pinhal a 120$00 o m2. Aos AA. não foi apresentado qualquer projecto de rectificação do traçado e só depois de iniciadas as obras é que verificaram que lhes foi ocupado mais área do que a que tinham combinado, que descreve, bem como lhe deixaram terrenos sobrantes, sem interesse, derrubaram um muro em pedra e abateram árvores, o que tudo lhes trouxe prejuízos que enumeram e de que pretendem ser ressarcidos, nos termos do seu pedido.

Devidamente citada veio a Ré invocar a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal comum para apreciar e decidir a acção, por tal competência ser dos Tribunais Administrativos, assim como a ilegitimidade passiva. A matéria fáctica que sustem os pedidos dizem respeito a um projecto de rectificação e repavimentação de uma estrada municipal pelo que se repercute no Município e não na Câmara Municipal. De seguida passou a defender-se por impugnação dando versão diferente ao acordado com o A. marido, até a quem já foi pago o valor estabelecido, com quem sempre agiu de boa fé, não tendo havido qualquer abuso de ocupação de solo ou de outros actos que lhes fossem lesivos. Finalizaram no sentido que as excepções dilatórias de ilegitimidade passiva e de incompetência material devem ser julgadas procedentes por provadas e ela absolvida da instância, ou a acção ser julgada improcedente por não provada e ela, então, absolvida do pedido.
Na réplica os AA. aceitaram que a acção deveria ter sido intentada contra o Município de.... e não contra a Câmara Municipal, requerendo se proceda à devida rectificação. Mas mantém que o tribunal competente para conhecer da acção é o tribunal comum, o judicial de..... No mais manteve a sua versão do abuso da Ré na feitura das obras, com ocupação do que era deles, e o mais alegado no articulado inicial, voltado a concluir como nesse articulado.
A instância esteve suspensa enquanto não foi junta a certidão predial, o que veio a acontecer.
No despacho saneador o Mer.mo Juiz apenas se debruçou sobre a excepção da incompetência material do seu tribunal que após douta análise julgou procedente e, em consequência, declarou absolutamente incompetente em razão da matéria para decidir a acção, absolvendo a ré Câmara Municipal de..... da instância.

Não se conformaram os AA com este saneador – sentença pelo que dele interpuseram recurso, que foi recebido como de agravo, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo – v. fls. 96.

Nas suas alegações de recurso os Apelantes formularam as seguintes conclusões:
1 – Os AA. apresentaram à apreciação do Tribunal um comportamento da Ré Câmara Municipal de....., que classificam de violador e ofensivo do seu direito de propriedade sobre os prédios que identificam no art. 1º da p. i., o qual lhes acarretou elevados prejuízos.
2 – Acabaram por pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre esses mesmos prédios, a reconstrução de um muro existente num deles e o pagamento do valor das árvores aí existentes e mandadas cortar pela Ré sem seu conhecimento e autorização e ainda a indemnização pelos prejuízos resultantes de ocupação indevida de áreas de dois desses prédios assim como pela desvalorização das áreas sobrantes em virtude dessa mesma ocupação.
3 – A apreciação de tais questões, em seu entender, pertence exclusivamente aos tribunais comuns e no caso concreto ao Tribunal Judicial de....., o territorialmente competente.
4 – Isto porque, trata-se de reconhecimento de direitos privados e de indemnização por actos de violação de direitos privados, não sendo relevante neste caso para apurar a competência do tribunal a qualidade pública ou privada de qualquer das partes.
5 – Invadir, ocupar e prejudicar propriedades particulares sem cumprir as regras pré definidas não pode ser considerado acto de gestão pública nem acto compreendido nos poderes de jus imperii de qualquer ente público.
6 – Apesar do Estatuto dos Tribunais administrativos dizer no seu art. 3, na sequência do estipulado no n.º 3 do art. 214 da Constituição que são esses tribunais os competentes para ...dirimir conflitos de interesse públicos e privados no âmbito das relações administrativas, a al. f) do art. 4 desse mesmo Estatuto exclui da jurisdição administrativa questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja de direito público.
7 – Por seu lado, a lei 3)99 de 13 de Janeiro que aprova a Lei de organização e funcionamento dos tribunais judiciais, no seguimento do estabelecido no art. 66 do CPC, estabelece no n.º 1 do art. 18 que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”,
8 – Porque as questões apresentadas a tribunal se reconduzem a questões de direito privado (o direito de propriedade, sua violação e indemnização dos prejuízos), devia o Sr. Juiz a quo ter decidido pela competência material do tribunal comum.
9 – Ao decidir em sentido contrário violou o douto despacho sob recurso as disposições supra referidas, designadamente o disposto no art. 66 do CPC, e no n.º 1 do art. 18 da Lei 3/99, assim como, por consequência, as do Estatuto dos Tribunais administrativos, e ainda o disposto no n.º 3 do art. 214 e no n.º 1 do art. 213º da Constituição.
Finalizam no sentido de que o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que declare o Tribunal Judicial de..... competente para julgar a presente acção.
A Apelada contra-alegou a pugnar para que seja negado provimento ao agravo e mantida a decisão recorrida.
No mesmo sentido despachou o Mer.mo Juiz e ordenou a remessa dos autos a esta Relação.
Colhidos os vistos legais dos Ex.mos Colegas Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

* * *

A questão que vem posta no presente recurso está circunscrita à excepção de incompetência material do tribunal comum para decidir a acção. E os autos possuem elementos suficientes para conhecer deste conflito e que constam do relatório antecedente. Se outros forem referidos será indicada a sua origem.

É de aceitação geral na Jurisprudência e na Doutrina que a competência do Tribunal se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como a configura o autor, ou seja, nos termos em que foi proposta a acção – v. p. e. Ac STJ, de 20/05/98, BMJ 477-389.
Como atrás ficou referido os AA. intentaram esta acção com o fundamento da Ré ter excedido a cedência de terrenos que lhe foi feita, para rectificação e repavimentação da estrada municipal que liga..... à ....., invadindo terrenos seus, apoderando-se da área de alguns, derrubando um muro e cortando árvores, sem autorização ou título para assim actuar, determinando-lhes os prejuízos que quantificam e de que pretendem ser ressarcidos com este processo.

Qual o tribunal competente em razão da matéria para conhecer desta acção?

Nos termos do art. 209º, n.º 1 da Constituição existem duas ordens jurisdicionais, a ordem dos tribunais judiciais, cujo órgão superior é o Supremo Tribunal de Justiça, abarcando os tribunais de 1ª e 2ª instância, e a ordem dos tribunais administrativos e fiscais que tem como cúpula o Supremo Tribunal Administrativo.
Os tribunais judiciais são os comuns, em matéria cível e criminal, exercendo jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais – art. 211º, n.º 1 da mesma CRP - a quem pertence a competência residual, como dispõe, expressamente, o art. 18º, n.º 1 da LOFTJ. Melhor determinando, todas as matérias que não sejam da competência específica de tribunais especiais cabem na competência genérica dos tribunais comuns.
Grosso modo, tem-se entendido que nas relações entre a Administração e os particulares, estando em causa interesses privados regidos por normas de direito civil, competirá aos tribunais comuns a sua jurisdição. Porém, se se tratar de actos “de um órgão da Administração que, no exercício de um poder público e para persecução de interesses postos por lei a seu cargo, produza efeitos jurídicos num caso concreto” os conflitos com particulares serão dirimidos pelos tribunais administrativos – cfr. Manual do Direito Administrativo, Prof. Marcelo Caetano, 8ª ed., Pág.390.
Porém, por virtude de legislação posterior, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira “a competência dos tribunais administrativos e fiscais deixou de ser especial ou excepcional face aos tribunais judiciais, tradicionalmente considerados como tribunais ordinários ou comuns; aqueles são agora os tribunais ordinários de justiça administrativa”- cfr. “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed., pág.814.
Nos termos do art. 51º, n.º 1. al. h) do Decreto Lei n.º 129/84 – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – estabelece que compete aos Tribunais Administrativos de Círculo julgar “as acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso.”
Mas, de acordo com o art. 4º, n.º 1, al. f) do mesmo Decreto Lei, estão excluídos da jurisdição administrativa ...”os recursos e acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público.”
A Câmara Municipal é o órgão representativo do Município, que gere e administra os bens da autarquia e por delegação do Estado faz cumprir as leis e regulamentos sobre matérias que lhe são atribuídas, especificadamente.
Dúvidas não existem que a agravada Câmara Municipal de.... tinha poder e diligenciou para proceder às obras de reparação e rectificação do traçado da estrada municipal em causa. E até obteve poderes de expropriação de utilidade pública para o efeito, que usou para com os proprietários com quem não chegou a acordo. Não é o caso dos autos em que o A. marido acordou a cedência dos seus terrenos para tal fim. E recebeu a respectiva compensação, como designadamente se deduz da p. i..
Mas a acção não foi proposta ao abrigo do Código das Expropriações segundo o qual para resolução de qualquer conflito entre expropriante e expropriado é resolvido pelo tribunal comum – art. 38º desse Código aprovado pela Lei 168/99, de 18 de Setembro.
Não vamos repetir a definição de actos de gestão pública e de gestão privada por muito citada em acórdãos sobre a questão, sendo que tem adoptado o que ensina Antunes Varela em “Das Obrigações em geral”, 9ª ed., vol. I, pág 671, e sufragada pelo Tribunal de Conflitos no seu acórdão de 5/11/81, in BMJ 311-195.
Por sinal, nos dois acórdãos citados nas doutas alegações dos Apelantes – ac. RP, de 7/11/00, CJ, t. V, pág. 184, e de 30/04/02, CJ, t. II, pág. 221 – o relator destes autos figura como adjunto deles, pelo que vamos manter a mesma jurisprudência.
Que manteve actualidade no acórdão desta mesma Relação, de 9/07/02, CJ, t. III, pág. 177, do qual reproduzimos:
“Todavia, se, v. g. a deliberação de realização da obra, a aprovação do respectivo projecto e a sua concretização devem qualificar-se como actos de gestão pública, já se nos afigura que assim não será no que concerne à execução prática da estrada, e muito especialmente aos eventuais danos para terceiros decorrentes dessa execução.”
Não se integram em qualquer relação jurídica administrativa os actos praticados por uma Câmara Municipal que excedendo o âmbito da expropriação pratica actos de ocupação de propriedade privada ou nela causa prejuízos que constituem a causa de pedir da presente acção.
“As questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja de direito público”, nos termos do art. 4º, al. f) do ETAF, estão excluídas da jurisdição dos tribunais administrativos.
A invasão de propriedade alheia, o derrube de muro, o corte de árvores e a ocupação de terreno, a provarem-se, não são atribuições de entidade pública, agindo com “jus imperii”, para persecução de interesse público, de jurisdição de tribunais administrativos.
Citando o acórdão atrás referido, de 30/04/02:
“Uma coisa é proceder à abertura de uma estrada, expropriando os terrenos necessários à sua implantação e realizando por administração directa ou por empreitada, a obra, outra é invadir prédio alheio, terraplanar e causar danos, sem autorização dos donos do prédio ou prévia expropriação.”
“O direitos dos AA. que estes invocam como ofendido é um direito privado e não um direito ou garantia de natureza publicista”.
A hipótese dos autos, apesar de não idêntica, merece a mesma integração dos preceitos legais pugnados pelos recorrentes.

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Nestes termos acorda-se em dar provimento ao agravo e, em consequência, decide-se ser o tribunal a quo o competente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção, pelo que se revoga a decisão recorrida, ali devendo prosseguir os ulteriores termos.
Sem custas pela Agravada delas estar isenta.

Porto, 19 de Fevereiro de 2004
Rui Fernando da Silva Pelayo Gonçalves
Manuel António Gonçalves Rapazote Fernandes
António Luís Caldas Antas de Barros