SEGURO FACULTATIVO DE DANOS PRÓPRIOS
ACIDENTE DE VIAÇÃO
EXCLUSÃO DA COBERTURA
ABANDONO DO LOCAL DO ACIDENTE
CHEGADA DA AUTORIDADE POLICIAL
Sumário

I – Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas – nomeadamente prova testemunhal -, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela.
II – O valor da prova de factos feita por declarações da parte a quem eles aproveitam é livremente determinado pelo juiz, mas o tribunal deve ser particularmente cauteloso nessa avaliação, dado o natural interesse do declarante, principalmente quando existem outras provas que colocam em causa as suas declarações.
III – A exclusão da cobertura do seguro facultativo de danos próprios quando o condutor do veículo, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade, só ocorre se a autoridade policial já tiver sido chamada no momento do abandono e o condutor tenha conhecimento desse facto.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

1.Relatório  

AA, residente na Rua ..., ..., ..., ..., com o NIF ...71..., intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “A..., S.A.”, pessoa colectiva nr.º ...31, sociedade anónima com sede na Avenida ..., ..., ..., alegando:

Que no dia 06-08-2022, pelas 19 horas, conduzia o veículo Renault Megane, com a matrícula ..-TF-.., seguro pela Ré, quando na Rua ..., em ..., numa curva à esquerda, o carro fugiu de frente, foi à valeta e acabou por capotar, tendo-se magoado e entrado em pânico, com o que, desorientado e após ter telefonado de imediato para o seu irmão, seguiu pela estrada, tendo sido interceptado por este, que o levou ao Hospital, mais referindo que mal se recorda do sinistro e do que fez.

Como consequência do acidente, o veículo ficou totalmente danificado e, após vistoria condicional, foi atribuída perda total e uma indemnização no valor de 12.563,50€, atendendo ao valor da reparação (21.869,17€), o valor do veículo (15.313,50€) e o valor do salvado (2.500,00€).

Que, embora a Ré tenha aceite pagar, posteriormente, acabou por declinar tal responsabilidade, não obstante o veículo se encontrar seguro pela Ré no que concerne a danos próprios, com fundamento em abandono do local, pelo Autor, antes da chegada das autoridades, o que este nega.

Por fim, por sua iniciativa procedeu ao aluguer de um veículo de substituição, considerando que o contrato de seguro celebrado com a Ré possuía cobertura de veículo substituição, tendo peticionado o pagamento de tal à Ré, no valor de 547,10€, o que a Ré veio a recusar.

Em consequência, termina pedido a condenação da Ré no pagamento da quantia total de 14.022,89€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, até efectivo e integral pagamento.

Apresentou a Ré, “A..., S.A.”, a sua contestação, tendo admitido a verificação do acidente de viação e a celebração do contrato de seguro com o Autor, tendo impugnado a restante factualidade invocada pela contraparte na petição inicial e aduzido, a título de excepção peremptória, a exclusão da cobertura do sinistro pela circunstância de o condutor do veículo ter abandono o local do acidente antes da chegada das autoridades, bem como abuso de direito por parte do Autor.

Concluiu, deste modo, pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido, bem como pela condenação do Autor em litigância de má-fé, por valor não inferior a 547,10€.

Foram proferidos despachos a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova, os quais não foram objecto de qualquer censura, consistindo aquele na responsabilidade civil da Ré “A..., S.A.”, por virtude da celebração de contrato de seguro com o Autor AA e na exclusão da sua cobertura ao sinistro por abandono do local.


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O Juízo Local Cível de Pombal - Juiz 1 julga a acção e, consequentemente, decide:

V – DISPOSITIVO

Pelo exposto, julga-se a presente acção totalmente improcedente e, em consequência:

a) Absolve-se a Ré, “A..., S.A.”, de todos os pedidos contra ela formulados.

b) Absolve-se o Autor, AA, do pedido de litigância de má-fé contra ele formulado.

Custas: a cargo do Autor, AA.

Registe e Notifique.

Pombal, 3 de Abril de 2024”.


*

O Autor, AA, interpõe recurso para este Tribunal, assim concluindo:

(…).


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Contra-Alegações da Apelada  A..., S. A.:

(…).


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2. Do objecto do recurso

2.1-Da discordância quanto à matéria de facto;

Como é sabido, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova - consagrado no artigo 607.º nº 5 do Código do Processo Civil/será o diploma a citar sem menção de origem- que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.

A lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador - artigo 607.º, nº 4.

Todavia, na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal da Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.

Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 21.12.2012 - Processo nº 5797/04.2TVLSB.L1-7, l1-7, www.dgsi.pt. , “…a verdade judicial traduz-se na correspondência entre as afirmações de facto controvertidas, relevantes e pertinentes, aduzidas pelas partes no processo e a realidade empírica, extraprocessual, que tais afirmações contemplam, revelada pelos meios de prova produzidos, de forma a lograr uma decisão oportuna do litígio. Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a realidade empírica, vide Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à configuração do objecto da prova e a sua relação com o themaprobandum, vide Eduardo Gambi, A Prova Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e seguintes; LLuísMuñozSabaté, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor, Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.

Por isso mesmo, a “reconstrução” cognitiva da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia ter, a finalidade exclusiva de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do acontecido, como sucede, de certo modo, nos domínios da verdade história ou da verdade científica, muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e íntima do julgador. Diversamente, tem como objectivo conseguir uma compreensão altamente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso (…)”.

Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas – nomeadamente prova testemunhal -, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela.

Para desencadear a reapreciação dos factos pelo Tribunal da Relação, a parte tem de colocar uma questão a este tribunal. Ora, só coloca uma questão se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida pelo juiz em 1.ª instância, colocando então o tribunal de recurso perante uma questão a resolver.

Não basta, pois, identificar meios de prova e dizer-se que os mesmos deviam ter sido valorados em certo sentido e em detrimento daqueles que o tribunal valorou. A formação da convicção do juiz não pode resultar de partículas probatórias, mas tem necessariamente de provir da análise global do conjunto da prova produzida - a prova é um todo que deve ser analisado e conjugado de forma coerente, ponderadas as regras de experiência e tendo em atenção as regras do ónus da prova.

Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhes sejam oferecidos, por isso, quem invoca a violação do valor tabelado de um meio de prova tem de tornar claro o sentido da sua alegação, por referência aos elementos do processo - dar ou não dar crédito ao que diz uma testemunha é uma questão de convicção. Quando a atribuição de credibilidade ou de falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não é racional, se mostra ilógica e é inadmissível face às regras da experiência comum.

Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora, se assiste razão ao Apelante.

A 1.ª instância assentou, assim, a sua matéria de facto:

1. FACTOS PROVADOS

Após a realização da audiência final, mostram-se provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:

1) No dia 06-08-2022, pelas 19 horas, o veículo Renault Megane, de matrícula ..-TF-.., foi interveniente num embate, tendo acabado por capotar, ocorrido na Rua ... de ..., ..., ....

2) Nessa ocasião, o referido veículo era conduzido por AA.

3) O embate descrito em 1., ocorreu sem a intervenção de terceiros.

4) BB, ao ter ouvido um grande estrondo, por força do descrito em 1 e ao ter visto as rodas de um carro no ar, ligou para a ambulância e foi prestar auxílio a AA.

5) O Autor, tendo saído do veículo pelo seu próprio pé, encontrava-se com sangue no rosto.

6) Após lhe ter sido questionado se se encontrava bem e de lhe ter sido pedido para se deitar e manter imóvel, o Autor questionou BB se já tinha ligado para a Polícia, ao que aquela respondeu que não e que apenas teria chamado uma ambulância.

7) Após, o Autor, de forma errática e a cambalear, seguiu pela estrada.

8) AA telefonou ao seu irmão, CC, a relatar o embate.

9) CC, atento o telefonema de AA, de imediato se deslocou para o local.

10) AA foi interceptado, na estrada, por CC.

11) CC, ao ver o estado de AA e que este apresentava sangue na cabeça, de imediato o levou ao Hospital ....

12) AA não chamou as autoridades aquando do descrito em 1.

13) AA deu entrada junto do Hospital ... pelas 19 horas e 27 minutos.

14) Do Diário Clínico do Centro de Hospitalar ..., do episódio de atendimento de urgência de AA, consta, com informação aposta pelas 20 horas e 12 minutos, «doente de 50 anos vítima de queda de bicicleta com traumatismo CE e da face, com hematoma periorbitário bilateral e dor da grelha costal direita posterior, agravada à inspiração profunda. Queixas de visão à direita desfocada».

15) As autoridades policiais, quando chegaram ao local e verificaram que o Autor não se encontrava presente, ainda foram à sua procura nas redondezas, mas acabaram por não o localizar.

16) Devido ao embate referido em 1., o veículo ficou totalmente danificado, nomeadamente frente, lateral, capot, tejadilho e mala.

17) Por contrato de seguro titulado pela apólice nr.º ...57, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo com a matrícula ..-TF-.. encontrava-se transferida para a Ré.

18) Consta das condições particulares de tal apólice (constantes de fls. 19 a 20 dos autos), além do mais, a identificação do Autor como “Cliente”, o veículo identificado em 1. como sendo o “objecto do seguro”, o montante de 538,09€ como “prémio do contrato (valor anual)”, tendo como “coberturas”, além do mais, “danos próprios” por “choque, colisão e capotamento”, sendo de 16.225,79€ o “capital seguro” e de 250,00€ a “franquia”, e ainda “assistência” com “veículo de substituição, pelo período imobilização, em caso de: (…) Acidente (máx. 30 dias, 2 ocorrências/ano)”.

19) Consta ainda dessas condições particulares que “o presente contrato de seguro regula-se por estas Condições Particulares e ainda pelas Condições Gerais e Especiais com o modelo 105.041 – nov 2021”.

20) Das condições gerais desse acordo consta sob a cláusula 40.º (sob a epígrafe “exclusões), no nr.º 1, que “para além das exclusões previstas na cláusula 5.ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações: (…) c) Sinistros resultantes de demência do condutor do veículo ou quando este conduza em contravenção à legislação aplicável à condução sob o efeito de álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos, ou ainda quando este recuse a submeter-se aos testes de alcoolemia ou de deteção de estupefacientes, bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra autoridade”.

21) Das condições especiais desse acordo consta sob o título “automóvel de substituição”, sob a cláusula 1.ª (sob a epígrafe “âmbito da cobertura”) no nr.º 1, que “a presente condição especial garante ao segurado, em caso de privação forçada do uso do veículo seguro, em consequência de danos enquadráveis nos rsicos de choque, colisão ou capotamento, furto ou roubo ou de incêndio, raio e explosão, a atribuição, nas condições previstas na presente Condição Especial, de uma viatura de substituição da classe C, F ou H, conforme definido nas condições particulares”, e sob a cláusula 2.ª (sob a epígrafe “condições de funcionamento da cobertura”) no nr.º 1, que “… Para acionar a presente cobertura, o Tomador de Seguro ou o Segurado deverão solicitar previamente ao Segurador a viatura de substituição, a qual deverá ser levantada pelo Tomador do Seguro/Segurado no local e Rent-a-Car indicados pelo Segurador” e no nr.º 4 que “sempre que o Tomador do Seguro ou o Segurado, por sua iniciativa e risco, proceda ao aluguer de uma viatura sem a aceitação prévia do Segurador, este apenas ficará obrigado a responder pelo valor máximo indicado no n.º 5 da presente cláusula, desde que feita prova do efetivo pagamento à entidade legalmente autorizada para o exercício da atividade de aluguer de veículos sem condutor”, prevendo o nr.º 5 que “para efeitos do disposto no n.º 4 da presente cláusula, o valor da prestação a cargo do Segurador ficará sujeito aos seguintes limites: Classe C, valor máximo do Segurador/dia, de 14,70€; de 19,60€, para a Classe F; e de 31,20€ para a Classe H”.

22) Da participação do descrito em 1., à Ré, a 08-08-2022, AA, no segmento relativo à descrição pormenorizada do acidente consta que “seguia na Rua ... com destino à ... e numa curva para a minha esquerda, despistei-me”.

23) A 11-08-2022 foi feita uma participação à Ré, “A..., S.A.”, via e-mail, por parte de ..........@....., de um sinistro rodoviário, com intervenção do veículo com a matrícula ..-TF-.., no concelho ....

24) A 12-08-2022, AA, no contacto feito com a perita da Ré, “A..., S.A.”, referiu que « no dia 6 de agosto de 2022 por volta das 19h conduzia um veículo matrícula ..-TF-.. Rua ... no sentido ... ... ao fazer uma curva pra esquerda fui em frente entrando no terreno ao lado para continuar a circular em despiste atravessando a rua da ... capotando de seguida. Não me recordo de mais nada apenas se estou no Hospital .... Só segunda feira seguinte soube por familiares que a GNR tinha estado no local. Não tendo falado com as autoridades e também soube que tiveram os bombeiro a limpar a via».

25) Participado o Sinistro à Ré, “A..., S.A.”, esta procedeu a vistoria, sem desmontagem.

26) Após vistoria descrita em 25., a Ré, “A..., S.A.”, por carta datada de 23-08-2022, com o assunto “Proposta Condicional de Perda Total”, refere que: «No seguimento da vistoria efetuada pelos nossos serviços técnicos ao veículo acima indicado, informamos que a estimativa reparação de 21.869,17€ se torna excessivamente onerosa face ao valor seguro. Nos termos do Decreto-Lei nr.º 214/97, de 16 de Agosto, o valor seguro à data do sinistro é de 15.313,50€ e o veículo com danos (salvado) foi avaliado em 2.500,00€. Face ao exposto, embora ainda não nos seja possível assumir uma posição quanto a responsabilidades, colocamos condicionalmente à sua disposição a quantia de 12,563,50€, já deduzida a franquia contratual de 250,00€».

27) Por carta data de 29-08-2022, a Ré, “A..., S.A.”, referiu que «após análise do processo, verificamos que não é da nossa responsabilidade a regularização do presente sinistro, em virtude do disposto na Apólice de Seguro Automóvel, mais concretamente ao nível da cláusula 40.º, número 1, alínea c) – Exclusões às coberturas facultativas, das Condições Gerais. Com efeito e atento ao conteúdo do referido clausulado, encontram-se excluídos os sinistros "…quando voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade"».

28) O valor de salvado do veículo referido em 1., após o embate referido, é de 2.500,00€.

29) Do auto de participação de acidente de viação, elaborado pela Guarda Nacional Republicana, relativamente ao descrito em 1, consta, para além do mais, que «Após comunicação do militar de serviço à sala de situação, desloquei-me, pelas 19h00, à Rua ..., localidade de ... a fim de ter ocorrido um acidente de viação por despiste. Assim a descrição é feita de forma isenta e baseada exclusivamente na posição do veículo, características do local e na declaração do condutor, as quais se transcrevem na íntegra: Declarações da testemunha: “Ao ouvir um estrondo vim à rua e vi um carro virado ao contrário, fui tentar dar auxílio e o senhor perguntou se chamei o 112 ou a polícia e o senhor pôs se em fuga”. O condutor ausentou-se do local não aguardando pela ajuda médica ou pelas autoridades, comparecendo nas instalações desta Guarda no dia 8 (oito) de agosto do presente ano, identificando-se através do cartão de cidadão nº ... como residente na Rua ..., ... ..., referindo ser o condutor e proprietário do veículo sinistrado, declarando “Nesse dia andei numa bicicleta de montanha a fazer desporto durante meia hora, depois peguei no meu veículo para me deslocar para a ..., e só me lembro de ter acordado no hospital” (…) Foi ainda necessário deslocar-se ao local uma equipa para efetuar a limpeza na via, nomeadamente na Rua ....».

30) Do auto de participação de acidente de viação, referido em 29., consta a informação “Sim” quanto à hipótese de “Condutor em fuga?” e consta, ainda, a existência de uma testemunha, no segmento “Testemunhas”, de seu nome BB.

31) AA, por sua iniciativa, procedeu ao aluguer de um veículo, para si próprio, na “B..., S.A.”.

32) AA procedeu ao levantamento do veículo referido em 31. e utilizou-o.

33) “B..., S.A.”, por e-mail datado de 10-01-2023, veio solicitar, ao Autor, o reembolso do custo inerente ao serviço de viatura de substituição, referido em 31., por este não ter direito ao serviço que lhe foi protestado, nos termos da apólice de seguro por aquele contratada.

34) Perante o referido em 33., AA, a 30-06-2023, procedeu ao pagamento da quantia de 547,10€.

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2. FACTOS NÃO PROVADOS

Por sua vez, não resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:

a) O embate descrito em 1., ocorreu por, numa curva à esquerda, o carro ter fugido de frente, ido à valeta.

b) O embate descrito em 1., ocorreu devido a possível distração e, assim, o veículo ter ido à berma, suja, pelo que perdeu a aderência e saiu da estrada.

c) AA, por força do embate descrito em 1., entrou em pânico.

d) AA, após o descrito em 1., de imediato procedeu ao contacto telefónico referido em 8.

e) Do local onde CC se encontrava para o local onde AA se encontrava distava cerca de 1 quilómetro.

f) AA mal se recorda do sinistro e do que fez.

g) Após o descrito em 6., o Autor respondeu, muito atrapalhado, “tenho que fugir tenho de me ir embora”.

h) Após o referido em g)., o Autor questionou numa casa se o podiam levar a casa a qual as pessoas respondem que não.

i) Antes do descrito em 1., o Autor, num passeio de bicicleta com colegas sofreu queda com consequências físicas.

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Pede o Apelante/Autor a alteração da matéria de facto, nomeadamente, o facto provado nº 11- CC, ao ver o estado de AA e que este apresentava sangue na cabeça, de imediato o levou ao Hospital ... -   e os factos não provados nas alíneas c) - AA, por força do embate descrito em 1., entrou em pânico -, f) - f) AA mal se recorda do sinistro e do que fez - e g) - Após o descrito em 6. (Após lhe ter sido questionado se se encontrava bem e de lhe ter sido pedido para se deitar e manter imóvel, o Autor questionou BB se já tinha ligado para a Polícia, ao que aquela respondeu que não e que apenas teria chamado uma ambulância), o Autor respondeu, muito atrapalhado, “tenho que fugir tenho de me ir embora”.

Alega:

“e) – Atento o depoimento e declarações das testemunhas, constata-se que o A. não se recorda do sinistro, que estava desorientado, sem percepção dos acontecimentos, não dizia coisa com coisa.

f) – Assim, deve o facto provado nº 11 ser adicionado que o A. se encontrava desorientado, (sem percepção da realidade).

g) – Já quanto aos factos não provados sob a alínea c) e f) respectivamente que o A. entrou em pânico e mal se recorda do que fez, também estes devem ser dados como provados, pois,

h) – conforme se constata do depoimento do A. e das declarações das testemunhas, antes referidas, verifica-se de forma clara e evidente que o A. ficou desorientado, sem saber o que fazia, em estado de desespero, a sangrar…,

i) – deste modo deve o facto não provado na alínea c) passar aos factos provados.

j) – Também, quanto ao facto da alínea f), o A. mal se recorda do sinistro, sendo claras as suas declarações, bem como o depoimento e da testemunha DD, conforme melhor consta dos depoimentos acima referidos,

l) – deste modo deve o facto não provado na alínea f) também passar a constar como facto provado.

m) – Por fim, quanto ao facto não provado na alínea i) – passeio de bicicleta com colega sofreu queda com consequências físicas - deve o mesmo ser provado, pois,

n) – constata-se quer das declarações do A.(..)


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Mergulhando nos autos:

Como é sabido, o valor da prova de factos feita por declarações da parte a quem eles aproveitam é livremente determinado pelo juiz, mas o tribunal deve ser particularmente cauteloso nessa avaliação, dado o natural interesse do declarante , principalmente quando existem outras provas que colocam em causa as suas declarações – nas palavras do Acórdão da Relação de Lisboa de 26.4.2017, proc. 18591/15.0 T8SNT.L1-7, relator Pires de Sousa, disponível in www.dgsi.pt., na sua valoração dispõem de especial importância os seguintes parâmetros: contextualização espontânea do relato em termos temporais, espaciais e até emocionais; existência de corroborações periféricas; produção inestruturada; descrição de cadeias de interações; reprodução de conversações; existência de correções espontâneas; segurança/assertividade e fundamentação; vividez e espontaneidade das declarações; reação da parte perante perguntas inesperadas; autenticidade.

Por isso, como o fez a 1.ª instância, teremos de concluir, no apanhado das versões apresentadas, que a versão da testemunha BB, que presenciou os factos em causa, não conhece o Autor, não tendo qualquer interesse no desfecho da devassa, arreda, neste particular, as declarações prestadas pelo Autor.

Escutado o seu depoimento, este mostra-se objectivo, cristalino, sincero e, acima de tudo, desinteressado, descrevendo o que viu naquela tarde do dia seis de Agosto. Mesmo devassada energicamente no seu interrogatório, porque testemunha essencial, manteve serenidade nas suas declarações, expondo a realidade por si vivida de forma clara e sem contradições.

Relatou que, após ter ouvido um estrondo e ter verificado que se encontrava um carro com rodas para o ar afirmou ter ligado para a ambulância a relatar o sucedido e que, quando se aproximou do veículo, verificou que o Autor se encontrava a sair daquele, pelo seu próprio pé, com sangue no rosto.

Ao se dirigir ao Autor, que seguia pela estrada, a cambalear, e desnorteado, na medida em que em primeiro lugar se deslocou para uma direcção e, após, para a direcção oposta, tendo seguido por essa mesma direcção de forma ininterrupta, ter-lhe-á pedido para se deitar e para permanecer imóvel, ao que aquele, o Autor a terá questionado, imediatamente, se já tinha ligado para a Polícia, ao que a testemunha respondeu que não, tendo referido, porém, que apenas tinha ligado para a ambulância. Esta testemunha, não teve dúvidas que no momento em que o Autor lhe coloca tal questão, este lhe pareceu lúcido, não  existindo por parte desta testemunha qualquer relato , no sentido de ter presenciado ou visto, o Autor a realizar qualquer chamada telefónica, o que afasta que o contacto estabelecido entre o Autor e a testemunha CC, que é irmão do Autor (que recebeu uma chamada deste, a propósito do acidente, e que se deslocou, no imediato, até ao local onde o seu irmão se encontraria) fosse de imediato ou concomitante à ocorrência do despiste.

Não foi, contudo, relatado pela testemunha qualquer alusão a qualquer resposta por parte do Autor, nem da sua direcção a qualquer casa, com intenção de pedir um qualquer transporte ou ajuda nesse sentido.

Para mais, questionada a testemunha quanto ao estado de espírito do Autor, após a sua saída do veículo, BB foi clara ao ter afirmado que este se encontrava lúcido, até pela circunstância de lhe ter questionado, de forma imediata, se já teria ligado para a Polícia e que só após esta lhe ter dito que apenas teria ligado para a ambulância é que este pareceu desnorteado.

(…).

Improcede, pois, neste particular, a Apelação.

2.2-Da questão de direito

Importa decidir se ao Autor são devidas as compensações indemnizatórias peticionadas pelo acidente de viação descrito nos autos, atenta a celebração de um contrato de seguro com a Ré C..., S.A., ou se, diferentemente, o sinistro se encontra excluído da cobertura da apólice pelo seu abandono do local do acidente - de acordo com a matéria de facto dado como provada, nomeadamente os factos provados nrs.º 17 a 21, dúvidas não restam, nem as partes puseram em causa a respectiva qualificação jurídica, que o Autor e a Ré celebraram entre si um contrato de seguro, tendo o Autor demandado a Ré com base na responsabilidade civil contratual emergente desse contrato de seguro facultativo, titulado pela apólice nr.º ...57, destinado a garantir, além do mais, a cobertura dos denominados danos próprios do Autor relativamente ao veículo de matrícula ..-TF-...

Atento o princípio da liberdade contratual previsto no artigo 405.º, do Código Civil, e expressamente reafirmado no artigo 11.º, do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril - Regime Jurídico do Contrato de Seguro- , o contrato de seguro é regulado pelas estipulações da respectiva apólice que não sejam proibidas por lei - artigos 11.º a 13.º, do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril - e, subsidiariamente, pelas disposições deste diploma legal, pelas disposições da lei comercial e da lei civil - artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril.

Como é sabido, no contrato de seguro de danos próprios como o que se encontra em apreciação está em causa, verdadeiramente, uma cobertura que excede o âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil emergente da circulação automóvel - artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto - e que tutela o interesse do Autor na conservação e integridade do referido veículo - artigo 43.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril.

Dos factos provados n.ºs 17 e 18 decorre que a Ré, por força do convencionado no contrato de seguro, assumiu a obrigação de pagamento ao Autor das indemnizações resultantes da circulação da viatura de matrícula ..-TF-.. provenientes, designadamente, de choque, colisão e capotamento, sendo o capital seguro no valor de 16.225,79 €.

Como lhe competia - artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil -, demonstrou o Autor o evento, no caso o capotamento do referido veículo - ainda que não tenha conseguido demonstrar o exacto e concreto circunstancialismo fonte do capotamento – factos não provados sob as alíneas a) e b)), com os consequentes estragos na viatura, ficando esta totalmente danificada, por estragos na frente, lateral, capot, tejadilho e mala [factos provados n.ºs 1, 3, 16]. Dúvidas não restam, também, quanto à prova do nexo causal entre o sinistro e os danos.

Argumenta a Ré/Apelada, no entanto, com vista à exclusão da cobertura prevista no contrato, que o condutor do veículo sinistrado abandonou o local do acidente antes da chegada das autoridades policiais, invocando a seu favor – dando-lhe a 1.ª instância razão - a cláusula 40.ª das condições gerais do contrato de seguro celebrado entre as partes -o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações: (…) c) Sinistros resultantes de demência do condutor do veículo ou quando este conduza em contravenção à legislação aplicável à condução sob o efeito de álcool, ou sob a influência de estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos, ou ainda quando este recuse a submeter-se aos testes de alcoolemia ou de deteção de estupefacientes, bem como quando, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra autoridade

Assim, a única questão a decidir diz respeito à interpretação e aplicação da referida cláusula nº 40, na parte em que dispõe que o contrato não garantirá sinistros quando o condutor do veículo, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade.

Esta admite, no seu sentido literal, duas interpretações:

a) a primeira no sentido de que (todo e qualquer) abandono do local do acidente pelo condutor antes da chegada da autoridade policial mesmo que desconheça esse facto;

b) a segunda no sentido de a norma pressupor um abandono do local relevante e que a chamada da entidade seja efectiva e cognoscível do condutor, pressupondo, por isso, a análise da factualidade carreada para os autos.

Estamos perante uma estipulação contratual, situada no âmbito de um contrato de seguro.

Ora, na interpretação das declarações negociais vigora no nosso direito, por força do disposto no art. 236º, nº 1, do Código Civil, a denominada teoria da impressão do destinatário, que estabelece como regra que "o sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, isto é, um declaratário medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante".

Nestes termos o teor da cláusula impõe uma previsão simples e clara “que voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”.

Desta condição parece resultar que o abandono para integrar a cláusula terá de ser efectuado com conhecimento dessa chamada das forças de autoridade. Na verdade, esta cláusula só se compreende, no quadro dos deveres contratuais da seguradora, como forma de assegurar a recolha imediata de prova em acidentes graves e de assegurar que é feita a despistagem da condução sob o efeito de álcool que pode vir a sustentar um pedido de regresso da eventual indemnização. Parece ser esse o sentido apreensível por qualquer declaratório normal- A este propósito observa Paulo Mota Pinto (Declaração Tácita e Comportamento Concludente, 1995, pg. 208): “O declaratário normal deve ser uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-se na posição do real declaratário, isto é, acrescentando às circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo.”

Em segundo lugar, em matéria de cláusulas contratuais gerais o art.º 11º, n.º 2, da respectiva lei LCCG, estabelece o princípio do in dubio contra proferentem, de acordo com o qual, existindo dúvidas quanto ao entendimento do destinatário prevalece o sentido mais favorável ao aderente, neste caso o segurado.

Sob um prisma semelhante o art.º 237º, do Código Civil, dispõe que em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.

Ora, parece pacífico que o sentido mais conforme não apenas com a interpretação de um declaratário normal, mas do segurado, será aquele que impõe que não abandone do local quando chame ou saiba que tenha sido chamada a entidade policial. Os nossos tribunais, em casos semelhantes de aplicação (ou não) da cláusula exclusiva, têm vindo a decidir, também, de acordo com a factualidade levada a cada um desses autos:

Subscrevendo a tese ampla, de que basta o abandono, sem efectivo chamamento da autoridade policial, temos duas decisões deste tribunal da Relação de Coimbra: “Basta, para a aplicação da cláusula de contrato de seguro que exclua a responsabilidade da seguradora quando o segurado «abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”, que o abandono se verifique com consciência por banda deste da necessidade de tal chamamento, pelo que é irrelevante que aconteça antes ou depois do mesmo. Provado tal abandono, sem justificação, num acidente ocorrido cerca das 6,00 horas da manhã de um sábado e em que a entidade policial tinha de ser chamada, pois que provocou danos avultados em veículos e em bens do domínio publico, tem de concluir-se que o interveniente se quis escapulir a ser fiscalizado, por motivos de atuação menos lícita, pelo que, mesmo que a tal atuação não se subsumisse na aludida clausula excludente, sempre estaria inquinada de abuso de direito, ao menos na modalidade do tu quoque” - Acórdão de 13.12.22, nº 2456/20.6T8LRA.C1 (Carlos Moreira);  “Basta, para a aplicação da cláusula de contrato de seguro que exclua a responsabilidade da seguradora quando o segurado «abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”, que o abandono se verifique com consciência por banda deste da necessidade de tal chamamento, pelo que é irrelevante que aconteça antes ou depois do mesmo” - Acórdão de 28.03.2023 nº 1247/21.1T8GRD.C1.

Subscrevendo uma tese mais restritiva (impondo que tenha existido um abandono com conhecimento do efectivo chamamento da autoridade policial): “Constando das condições gerais de um contrato de seguro facultativo de responsabilidade civil automóvel que o contrato também não garantirá a situação em que o condutor do veículo, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade, essa exclusão de responsabilidade só ocorre se a autoridade policial já tiver sido chamada no momento do abandono – Acórdão desta Relação de Coimbra 23.11.21, nº 3310/20.7T8LRA.C1 (Arlindo Oliveira); “exclusão da cobertura do seguro facultativo de danos próprios quando o condutor do veículo, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade, só ocorre se a autoridade policial já tiver sido chamada no momento do abandono e o condutor tenha conhecimento desse facto” – Acórdão da Relação de Lisboa de 22.11.22, nº 2517/20.1T8VFX.L1-7 (ANA RODRIGUES DA SILVA); “na referida cláusula é possível descortinar dois momentos relevantes para a verificação da exclusão: o do abandono do local do acidente antes da chamada das autoridades e o da chamada das autoridades policiais. Neste contexto somos levados a considerar que a exclusão da cobertura do sinistro só tem razão de ser se o condutor do veículo, sem motivo que o justifique, abandonar o local do acidente, depois de saber que as autoridades policiais foram chamadas para tomar conta da ocorrência. Aliás, o segmento final da referida cláusula apenas adquire alguma utilidade quando interpretado no sentido que acabamos de enunciar, ou seja o de que a seguradora apenas poderá opor a exclusão da garantia contratada ao tomador se a autoridade policial tiver sido chamada ao local pelo condutor do veículo ou por outra entidade e, não obstante, aquele, depois disso tiver voluntariamente e por sua iniciativa abandonado o local do acidente de viação antes da chegada dessa autoridade - Acórdão do STJ de 18.3.2021, nº 1542/19.0T8LRA.C1.S1 (Mário Morgado).

Por outro lado, em sentido oposto e mais recentemente, destacam-se os Acórdãos desta  Relação de Coimbra, de 13-12-2022 (Proc. n.º 2456/20.6T8LRA.C1) e de 28-03-2023 (Proc. n.º 1247/21.1T8GRD.C1), ambos disponíveis in www.dgsi.pt, que atribuem relevo a uma interpretação da cláusula 40.ª, n.º 1, alínea c, in fine, das Condições Gerais do seguro (facto provado n.º 20), para lá do elemento literal, com enfoque nos elementos lógico e teleológico de interpretação, pugnando que “basta, para a aplicação da cláusula de contrato de seguro que exclua a responsabilidade da seguradora quando o segurado «abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”, que o abandono se verifique com consciência por banda deste da necessidade de tal chamamento, pelo que é irrelevante que aconteça antes ou depois do mesmo.”

Ou seja, de um critério post factum com conhecimento do chamamento das autoridades policiais, esta corrente jurisprudencial acolhe um critério de necessidade do chamamento das autoridades policiais.

Em síntese, referem que a letra da lei – aqui da clausula contratual – “mata a justiça, mas o seu espírito e ratio, pode vivificá-la. Ou seja, por vezes, só com apelo aqueles elementos não literais da interpretação jurídica, e sem obediência cega e acrítica à literalidade do quid interpretando, se pode almejar a consecução do fito último da actividade jurisdicional, qual seja, a prolação da decisão que reflicta e alcance não apenas a, por vezes a mais cómoda e fácil, justiça formal, mas antes atinja a verdade e, assim, realize a justiça material do caso concreto. A assim ser tem de concluir-se que in casu, o cerne substantivo da aludida cláusula de exclusão prende-se com o facto de, para um acidente rodoviário, ser, ou não ser, necessário, ou até conveniente, chamar a autoridade policial. Nos pequenos sinistros com consequências materiais nocivas minudentes – pequenos riscos ou amolgadelas – normalmente tal chamamento não se impõe, nem as autoridades policiais o aconselham, ficando a resolução dos mesmos entregue aos intervenientes, vg. com o preenchimento da chamada declaração amigável.

Nos acidentes com maiores e mais graves consequências, humanas e/ou materiais, tal chamamento impõe-se ou é aconselhável. Nestes casos alguém terá de chamar a autoridade policial, mais referindo que caso assim não se entenda estava encontrado o ovo de colombo para os infratores e culpados de um acidente rodoviário se eximirem à aplicação de tal cláusula: fugiam antes de eles ou alguém chamar a polícia e ficavam imunes a tal exclusão.

Acrescenta ainda que “a interpretação da letra da cláusula de exclusão em apreço tem de ser operada sagaz e habilmente, cum granno sallis (…) Ou seja, se ela se aplica quando a polícia já tiver sido chamada, por igualdade ou maioria de razão se deve aplicar quando, sendo tal chamamento necessário, o infrator se escapulir do local, mesmo antes de ele ser efetivado (...) o que importa é saber se é necessário, ou não, chamar a polícia. Se for necessário, o interveniente no acidente não pode ausentar-se do local, nem antes nem depois de ter sido chamada.

Ora, regressando ao nosso caso, escreve a 1.ª instância:

“Em sentido concordante com a segunda posição exposta, e para mais, sempre se poderá apontar, quanto à ratio subjacente à cláusula, que quando ocorre um determinado sinistro onde se mostra obrigatório ou necessário o chamamento de autoridades policiais, a fuga do sinistrado em momento anterior à sua chegada obsta a que as autoridades (entendidas lato sensu) possam realizar os devidos testes de alcoolémia ou de substâncias psicotrópicas não permitidas, tornando inútil ou inócuo a tutela que a cláusula pretende assegurar, nomeadamente quando exista, precisamente, a consciência da necessidade de tal chamamento, dentro do contexto do contrato de seguro em causa e da pretensão dos motivos previstos de exclusão da responsabilidade da entidade seguradora.

Ou seja, encontrando-se previstas situações taxativas de exclusão da cobertura do seguro, que visam assegurar condutas dentro dos quadrantes da boa fé, de forma a assegurar a legalidade, dúvidas também não podem existir quanto à circunstâncias de que, de acordo com a teoria da impressão do destinatário, a cláusula em questão pretende alertar para a correcção, legalidade e urbanidade das condutas dos tomadores de seguro, pois, caso contrário, não exigiria a presença dos mesmos até à chegada das autoridades em caso de acidente de viação, vedando uma sua saída voluntária e por própria iniciativa, sem razão justificativa (salvaguardando-se, claro está, as situações de verdadeiro estado de necessidade).

Por estes motivos, concorda-se com a segunda exposição exposta, de acordo com os Acórdãos recentes do Tribunal da Relação de Coimbra, por se entender consonante não só com uma interpretação teleológica da cláusula, ainda com amparo na letra da lei (ainda que interpretada em sentido amplo face ao seu teor literal), mas também por, à luz da teoria da impressão do destinatário, esta facilmente traduzir uma imposição de cuidado e de legalidade, que se subsume na adopção de condutas responsáveis e de tornar claro que, perante a consciência da necessidade da presença das autoridades, não podem existir fugas voluntárias por iniciativa própria – não se ignorando um argumento de princípio de unidade ou harmonização do sistema jurídico, na medida em que se encontra previsto na «Secção XIV - Comportamento em caso de avaria ou acidente», do Código da Estrada, sob a epígrafe «Identificação em caso de acidente», o artigo 89.º, nr.º 2, que prevê que se do acidente resultarem mortos ou feridos, o condutor deve aguardar, no local, a chegada de agente de autoridade, que corrobora o entendimento perfilhado.

Nestes termos, à luz das regras de repartição do ónus da prova, se ao Autor cabia a alegação e prova da ocorrência do sinistro e dos danos sofridos, enquanto factos constitutivos do respectivo direito (artigo 342.º, nr.º 1, do Código Civil), já recai sobre a Ré o ónus da prova dos factos ou circunstâncias excludentes do risco (artigo 342.º, nr.º 2, do Código Civil).

In casu, de acordo com a factualidade dada como provada, o sinistro ocorreu no dia 06-08-2022, pelas 19 horas, ocorrendo um capotamento [facto provado nr.º 1], que originou ruído elevado [facto provado nr.º 2], tendo sido necessário a limpeza da via, pelas entidades competentes, atento os estragos verificados no veículo [factos provados nrs.º 16, 23, 26 e 29], tendo ainda sido demonstrado e provado, pela Ré, que foi chamada uma ambulância para o local [facto provado nr.º 3].

Para mais, foi igualmente provado que o Autor saiu do veículo pelo próprio pé, ainda que com sangue na zona do rosto [facto provado nr.º 5] e que, assim que é confrontado sobre o seu estado de saúde e lhe é dito para se deitar e manter imóvel, a primeira e única referência que questiona é se já se teria ligado para a Polícia [facto provado nr.º 6], ao que, tendo a resposta sido negativa, este decide seguir pela estrada, a cambalear e desnorteado [facto provado nr.º 7].

Ora, face ao exposto, e desde já, cumpre concluir que o Autor abandonou de forma voluntária e por própria iniciativa, o local do sinistro. Em bom rigor, o Autor, ao ter sido confrontado com a chamada de uma ambulância e após ter obtido esclarecimentos quanto ao não chamamento de qualquer autoridade policial, decidiu, por si só, abandonar o local do acidente de viação.

Vexato quaestio, porém, é saber a circunstância do seu abandono do local se subsume, ou não, na cláusula de exclusão por abandono do local, do contrato de seguro [factos provados nrs.º 17 a 20, maxime nr.º 20].

De acordo com a interpretação supra exposta quanto a esta mesma cláusula, será, então, necessário apurar se a chamada das autoridades policiais é ou seria necessária e se existia consciência dessa mesma necessidade, por parte do Autor, incumbindo tal ónus de prova à Ré (artigo 342.º, nr.º 2, do Código Civil).

Em primeiro lugar, e tal como já referido, o sinistro em causa diz respeito a um capotamento, ocorrido às 19 horas, com consequências tais que implicaram a perda total do veículo e que exigiram a limpeza da via pelas entidades competentes.

Ou seja, tal traduz-se não num mero pequeno sinistro com consequências materiais mínimas, como pequenos riscos ou amolgadelas, mas sim num sinistro com graves e manifestas consequências materiais (que, nomeadamente, terminaram com a declaração de perda total do veículo) e, até, humanas, na medida em que o Autor se deslocou ao Hospital ..., tendo-se verificado lesões [factos provados nrs.º 13 e 14].

Nestes termos, dúvidas não se colocam quanto à necessidade do chamamento das autoridades policiais, em face da dimensão e das consequências do sinistro [até em face do teor do disposto no artigo 89.º, nr.º 2, do Código da Estrada, supra referido, na medida em que se verificaram ferimentos que implicaram a deslocação do Autor ao Hospital].

Em segundo lugar, a primeira preocupação do Autor, quando confrontado por um terceiro, foi no sentido de questionar se já tinha efectuado qualquer contacto com a Polícia (i.e., uma autoridade policial).

Ou seja, o Autor demonstrou ter consciência da razoabilidade ou justificabilidade de chamamento das autoridades policiais ante o sinistro em causa, daí que tivesse sido a sua primeira preocupação, até mesmo antes do seu estado de saúde e em face das lesões que sofreu.

Em terceiro lugar, o Autor teve conhecimento do chamamento de uma ambulância, por parte de BB.

Neste conspecto, importa não ignorar que, em face das consequências do sinistro, e tendo BB feito referência a uma chamada para uma ambulância, que, de acordo com as regras da experiência e para todos os efeitos, se entende que terá ligado para o serviço “112”. Sucede, contudo, que o “112” é, em bom rigor, uma central que procede à gestão de meios, entre a autoridade policial competente respectiva e os meios de socorro necessários. Com efeito, de acordo com o auto de participação de acidente da Guarda Nacional Republicana verifica-se que esta autoridade policial foi, efectivamente, chamada, precisamente às 19h (hora de ocorrência do sinistro – facto provado nr.º 1), através de comunicação do militar de serviço à sala de situação [facto provado nr.º 29], o que traduz uma comunicação imediata entre a central do “112” e a sala de situação da Guarda Nacional Republica – justificando-se, por sua vez, a chegada ao local desta autoridade policial ao invés de uma ambulância ou, até mesmo, dos bombeiros.

Assim, existindo, em abstracto, um chamamento para uma central que pode dirigir o pedido de auxílio entre uma autoridade policial e um meio de socorro, de acordo com as regras da experiência é também expectável que, qualquer que fosse o meio accionado para a resposta a este pedido de auxílio, este poderia, atenta a descrição do sinistro (i.e., de um capotamento), realizar testes, nomeadamente de alcoolémia ou de substâncias psicotrópicas, ao condutor do veículo.

Ou seja, não só o Autor teve conhecimento directo do chamamento de uma ambulância, como, com a sua fuga do local impediu a realização de quaisquer exames sob a sua pessoa, que poderiam ter sido realizados por uma qualquer das referidas entidades.

Nestes termos, portanto, é, de forma inequívoca, evidente a consciência do Autor da necessidade do chamamento das autoridades policiais. Caso contrário, nem teria no imediato questionado acerca do seu chamamento nem se teria posto em fuga após e imediatamente a seguir a saber da circunstância de já ter sido chamada uma “ambulância”.

Aliás, o Autor, ao se ter retirado do local, com o conhecimento do acionamento de uma ambulância, impediu ou frustrou os devidos esclarecimentos da verdade e do liso e leal cumprimento contratual, não se verificando uma conduta social de correcção, respeito, lisura e verdade.

Nem se diga que o estado de saúde do Autor justifica a sua saída do local por um eventual estado de necessidade quando, pelo seu próprio pé, não só sai do veículo capotado, como se desloca por uma estrada, efectua uma chamada telefónica ao seu irmão e tem apenas como lesões «traumatismo CE e da face, com hematoma periorbitário bilateral e dor da grelha costal direita posterior, agravada à inspiração profunda. Queixas de visão à direita desfocada» [facto provado nr.º 14]. Para mais, o Autor, tendo dado entrada no Hospital pelas 19 horas e 27 minutos [facto provado nr.º 13], tem apenas o primeiro registo clínico às 20 horas e 12 minutos [facto provado nr.º 14], o que poderia ter sido diferente caso tivesse aguardado, efectivamente, por uma ambulância (pois beneficiaria de entrada directa e de tratamento de primeiros socorros, no imediato, com a respectiva triagem – triagem essa pela qual teve necessariamente de passar no Hospital). Mais ainda, se o motivo da saída do local do sinistro, pelo Autor, fosse única e exclusivamente dirigir-se ao Hospital para receber tratamento médico, também as regras da experiência não compreendem nem a fuga do local do sinistro com uma incursão a pé por uma estrada, sujeita aos riscos inerentes à circulação de peões por uma qualquer estrada (sem ignorar que o Autor tinha acabado de sofrer lesões por força de um acidente de viação que poderiam ter sequelas que implicassem, por exemplos, desmaios), nem a circunstância de ter apenas questionado BB acerca do chamamento da Polícia (ao invés de um meio de socorro).

Face ao exposto, portanto, considera-se verificada e preenchida a excepção da cobertura do risco (cláusula 40.º, nr.º 1, alínea c, in fine, das Condições Gerais do Contrato de Seguro celebrado entre o Autor e a Ré), por o chamamento das autoridades policiais ser necessário, existindo consciência dessa mesma necessidade e, ainda assim, o Autor ter abandonado o local do acidente de viação, voluntariamente e por sua própria iniciativa.

Por último, diga-se, ainda que seguindo uma interpretação mais restrita e literal quanto ao teor da cláusula em causa, como defendido pela primeira posição jurisprudencial supra exposta, sempre se poderia questionar se o chamamento para uma “ambulância” se traduz, ou não, num chamamento para uma “autoridade policial”, considerando que a chamada in casu, ao ser efectuada para o “112”, é realizada para uma central de gestão de meios que pode acionar quer essas mesmas forças policiais, quer meios de socorro, e se a transmissão da realização dessa chamada se subsume, ab initio, no teor literal da cláusula, na medida em que aí, indubitavelmente, o Autor teria conhecimento desse chamamento, abandonando o local voluntariamente e por sua própria iniciativa. Em todo o caso, sempre se poderia ter equacionado uma resposta positiva, caso a Ré tivesse logrado demonstrar e alegado isso mesmo (artigo 342.º, nr.º 2, do Código Civil), o que não se verificou”.

Fazendo esta interpretação, concluiu que, “subsumindo-se a conduta do Autor na previsão normativa da cláusula 40.º, nr.º 1, alínea c, in fine, das Condições Gerais do Contrato de Seguro, celebrado entre este e a Ré, encontra-se o presente sinistro excluído da cobertura do seguro, nada tendo a Ré a indemnizar ao Autor, a título do peticionado”.

Embora nos suscite muitas dívidas a conduta do autor - foi-se embora do local, perguntou de imediato pela polícia e no hospital diz que teve um acidente de bicicleta - no sentido de que poderia estar alcoolizado, tendo pretendido furtar-se à acção de fiscalização da polícia, ao afastar-se do local do acidente, o certo é que a cláusula do contrato de seguro nos parece clara.

Por isso, com todo o respeito pelo julgador e pela Apelada, entendemos que não se fez a melhor interpretação da cláusula 40.ª, subscrevendo a interpretação mais restrita, por três razões:

Porque é isso que resulta da cláusula: o que lá se diz é que a responsabilidade é excluída quando o segurado voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade;

Porque não é justo e não resulta da cláusula que o segurado tenha que pensar se é ou não caso de chamar as autoridades, tanto mais que não tem que saber - e muitas vezes não saberá - quando é caso de o fazer;

Porque não vejo razões para beneficiar a seguradora com uma interpretação que não corresponde à leitura literal, quando é certo que a redacção da cláusula é da sua responsabilidade; se a seguradora pretendia que a cláusula fosse interpretada com o sentido que aqui vem defender, cabia-lhe dar outra redacção da qual resultasse, de modo claro, que o segurado não podia abandonar o local, não apenas quando as autoridades policiais já tivessem sido chamadas, mas também quando o devessem ser, enunciando os casos em que isso deveria acontecer (ou que não podia abandonar o local sem chamar as autoridades). Não tendo sido essa a redacção que deu à clausula, não poderá vir agora invocar essa interpretação em prejuízo do segurado.

Como se escreve no já citado Acórdão desta Relação de Coimbra de 23.11.21, nº 3310/20.7T8LRA.C1 (subscrito pela aqui 2.ª adjunta):

“depreende-se do teor de tal cláusula que o abandono só é relevante em termos de exclusão da responsabilidade da seguradora, se a autoridade policial já tiver sido chamada. A autoridade policial tem que ser chamada e o abandono, injustificado, tem que ocorrer já depois de ter ocorrido tal chamamento, sendo este do conhecimento do condutor do veículo que se ausentou do local do acidente.

Ocorrendo o abandono sem que a autoridade policial tenha sido chamada, não se verifica a factualidade ínsita em tal cláusula e, consequentemente, não se verifica a cláusula de exclusão de que a ora recorrente se pretende fazer valer.

Efectivamente, qualquer tomador de seguro, de mediana sagacidade e prudência, não pode entender aquela expressão como abrangendo, também, o abandono do local do acidente, sem a autoridade policial ter sido chamada a tomar conta da ocorrência, disso sendo sabedor o condutor do veículo sinistrado.

Pelo que, reitera-se, em tal expressão não cabe a situação em que o condutor abandona o local do acidente, antes da as autoridades policiais terem sido chamadas. Como acima já referido, a definição dos riscos assumidos num contrato de seguro é um dos elementos mais importantes, se não o decisivo, no clausulado de um contrato de seguro e interpretar-se aquela expressão como incluindo, também, o abandono antes do chamamento das autoridades policiais, seria restringir o núcleo da prestação da seguradora, seria minimizar/reduzir o risco previsto no contrato, o que, com o devido respeito, os comandos interpretativos acima enunciados não consentem.

A conclusão a que chegamos, afigura-se-nos como o mero resultado da interpretação das cláusulas contratadas, de acordo com os ditames legais aplicáveis e sem esquecer que foi a própria seguradora que redigiu e precisou qual o âmbito da exclusão em causa (trata-se de contrato de adesão), pelo que não pode vir, agora, pretender excluir o risco que assumiu com a celebração do contrato de seguro em causa, nos termos expostos.

Se a ré queria abranger a situação em que o abandono se verificasse independentemente da chamada das autoridades policiais, bastava eliminar da referida cláusula a menção ao “chamamento” das autoridades policiais, ficando apenas a constar que o abandono se verificou antes da chegada das autoridades policiais”.

Como escreve o Apelante nas suas conclusões, “não pode o Mmo. Juiz “a Quo” fazer uma interpretação extensiva do facto da testemunha ter chamado a ambulância, daí deduzir e concluir que foi solicitada a intervenção da policia, e assim o A., ora Recorrente, tinha conhecimento do chamamento das autoridades” (…) a cláusula de exclusão de responsabilidade apenas se verifica no caso do sinistro ter conhecimento do chamamento das autoridades policiais ao local do sinistro e nessa circunstância decida voluntária e conscientemente abandonar o local tudo isto, conforme se decidiu, entre outros, todos em www.dgsi.pt  Acórdão S.T.J. Proc. nº 1542/19.0T8LRA;  Acórdão T.R.C. Proc. 3310/20.7T8LRA;  Acórdão T.R.G. Proc. 412/16.8T8WD.G1,

(…)

Deste modo, só se exonera a seguradora da responsabilidade assumida por via contratual quando o condutor se desloque para fora do local do acidente e se prove que o mesmo o fez tendo perfeita noção da inerente chegada das autoridades convocadas por si ou terceiro.

Apenas nestas circunstâncias passaria a existir verdadeiramente fundamento da exclusão da cobertura do seguro, pois, só se por Lei admitir ou prossupor o seu propósito de procurar inviabilizar pela ausência premeditada, a submissão às autoridades.

(…)

 Assim, jamais se pode dar como provada a cláusula de exclusão de responsabilidade do seguro, abandono do local e consequentemente ser o válido com legais consequências.

eee) – Por fim, atento ao facto do seguro ser válido, e,

fff) – serem dados como provados os danos decorrentes do sinistro, a saber:

 Valor do veículo – 16.225,79€ - facto provado 18;

 Franquia – 250,00€ - facto provado 18;

 Salvado – 2.500,00€ - facto provado em 26;

 Valor do veículo de substituição – 547,10€ - facto provado 33;

ggg) – deve assim a Recorrida ser condenada a pagar ao ora Recorrente a quantia de 14.022,89€, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

Termos em que, com D. suprimento dos Venerandos Desembargadores, deve o recuso ser julgado procedente e em consequência ser revogada a D. Sentença, substituindo-a por outra, que condene a Recorrida a pagar ao Recorrente os prejuízos decorrentes do sinistro no valor global de 14.022,89€, acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento”.

Nestes termos, na procedência das conclusões do Apelante/Autor, revogamos a decisão proferida no Juízo Local Cível de Pombal - Juiz 1e, em consequência, julgamos procedente o recurso condenando a Apelada/Ré a pagar ao Apelante/Autor os prejuízos decorrentes do sinistro no valor global de 14.022,89€, acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.

As conclusões (sumário):

(…).


*
3.Decisão
Assim, na procedência do recurso, revogamos a decisão proferida no Juízo Local Cível de Pombal - Juiz 1 e, em consequência, condenamos a Apelada/Ré a pagar ao Apelante/Autor os prejuízos decorrentes do sinistro no valor global de 14.022,89€ (catorze mil e vinte e dois euros e oitenta e nove cêntimos), acrescidos de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Custas a cargo da Apelada.

Coimbra, 24 de Setembro de 2024

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Helena Melo - 1.ª adjunta)

(Catarina Gonçalves – 2.ª adjunta)