I - O caso julgado material penal, enquanto pressuposto processual, conforma um efeito negativo que consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão e ele verifica-se quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos.
II - O caso julgado formal significa que os despachos, as sentenças e os acórdãos que recaiam unicamente sobre a relação processual apenas têm força obrigatória dentro do processo e ocorre quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso, como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução.
III - Existe grande consenso jurisprudencial e doutrinário quanto ao facto de só produzir efeito de caso julgado formal a decisão que conheça especificamente de determinada questão, não acontecendo no caso de uma decisão genérica sobre a verificação de pressupostos processuais e inexistência de nulidade e irregularidades, como é a que é normalmente proferida nesses termos ao abrigo do disposto no artigo 311.º do C.P.P.
IV - Não tendo proferido decisão concreta e fundamentada sobre a sua competência territorial, o tribunal não está impedido de se pronunciar sobre mesma até ao início da audiência de julgamento.
I – Relatório:
Pelo Juízo de Competência Genérica de Mangualde foi proferido despacho, datado de 7/9/2023, a declarar tal tribunal territorialmente incompetente para julgar a causa, determinando a remessa dos autos, após trânsito, ao Juízo Local Criminal de Viseu.
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-» O MP respondeu ao recurso, motivando-o e pugnando pela sua improcedência, …
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-» Uma vez remetido a este Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do Recurso, …
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Cumprido o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.1995 (Diário da República, série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
Das conclusões do recurso extrai-se que com o mesmo visa o recorrente abordar a seguinte questão:
- o saber se o despacho judicial proferido ao abrigo do disposto no art.º 311º do CPP, designando data para julgamento, adquire força de caso julgado formal quanto à competência territorial do tribunal, impedindo por isso que o tribunal retome e conheça, posteriormente, da questão.
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1) Distribuídos os autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo de Competência Genérica de Mangualde, foi proferido, em 23.01.2023, o seguinte despacho:
“O Tribunal é competente.
O processo é o próprio.
O Ministério Público tem legitimidade para promover a acção penal.
Inexistem nulidade, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que
obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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Autue como Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular.
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Atenta a decisão instrutória constante de fls. 360 a 374 importa determinar a prossecução dos autos para julgamento, considerando a acusação deduzida pelo Ministério Público a fls. 239 a 243, e para a qual remete o despacho de pronúncia, contra o arguido …
2) A 7/9/2023 foi proferido o despacho recorrido com o seguinte teor (transcrição):
“Da (in)competência territorial deste tribunal judicial para julgar a causa.
Nos presentes autos foi proferido despacho de pronúncia contra o arguido …, imputando-se-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, …
O Ministério Público pronunciou-se no sentido da incompetência territorial deste Juízo de Competência Genérica para conhecer os factos imputados ao arguido e da remessa dos autos ao Juízo Local Criminal de Viseu por ser o territorialmente competente para o efeito (v. fls.441).
Já o arguido afirmou que é competente para conhecer dos factos o Juízo Criminal de Lisboa …
Sobre a questão da (in)competência territorial:
…
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Estabelece o art.19.º, n.º1 do Código de Processo Penal que “é competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação”.
Já o art.21.º, n.º1 do mesmo diploma legal dispõe que “se o crime estiver relacionado com áreas diversas e houver dúvidas sobre aquela em que se localiza o elemento relevante para determinação da competência territorial, é competente para dele conhecer o tribunal de qualquer das áreas, preferindo o daquela onde primeiro tiver havido notícia do crime”, adiantando o n.º2 que “se for desconhecida a localização do elemento relevante, é competente o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime”.
Como supra referido, desconhece-se o local onde foi alegadamente cometido o ilícito criminal imputado ao arguido.
E refira-se que nenhuma referência é sequer feita, na acusação pública, para qual remete o despacho de pronúncia, a este Juízo de Competência Genérica de Mangualde no sentido de permitir estabelecer qualquer conexão com o mesmo, …
Assim, é competente o tribunal onde primeiro tiver havido notícia do crime, que no caso em apreço foi em Viseu, na medida em que o email e comprovativo do alegado envio, alegadamente fabricados pelo arguido, ou por alguém a seu mando, foram apresentados nos autos de processo comum colectivo …, que correm termos no Juízo Central Criminal … a partir do qual se desencadearam todas as diligências destinadas a apurar a veracidade/autenticidade dos documentos em questão.
Saliente-se ainda que afirmando o arguido que enviou o email em questão a partir do seu domicílio sito na cidade de ... (que, refira-se, não identifica), o que está especificamente em causa nos autos não é o envio do email (envio que na versão da acusação pública, para a qual remete o despacho de pronúncia, não ocorreu), mas o fabrico de tal email e do documento comprovativo do seu alegado envio.
Já quanto à alegada competência territorial do Juízo Criminal de Lisboa, suscitada pelo arguido, realce-se, desde logo, que o email em questão se destinava alegadamente ao Tribunal Constitucional (uma vez que se destinava à reclamação da decisão sumária proferida pelos Venerandos Srs. Juízes Conselheiros daquele Tribunal no dia 05.11.2020) e não ao Supremo Tribunal de Justiça como refere o arguido.
Por outra parte, afirma-se na acusação pública, para a qual remete o despacho de pronúncia, que o email em questão não foi remetido pelo arguido para aquele tribunal, tendo sido fabricados o email e o documento comprovativo do seu alegado envio, que foram juntos aos autos de processo comum colectivo n.º57/12...., que correm termos no Juízo Central Criminal de Viseu - Juiz ....
Não se verifica, pois, a conexão com o Juízo Criminal de Lisboa mencionada pelo arguido.
Preceitua o art.32.º, n.º1 do Código de Processo Penal que “a incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final”, adiantando o n.º2 que “tratando-se de incompetência territorial, ela somente pode ser deduzida e declarada: a) até ao início do debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução; ou b) até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento”.
Por outro lado, o art.33.º, n.º1 do mencionado diploma legal refere que “declarada a incompetência do tribunal, o processo é remetido para o tribunal competente, o qual anula os actos que se não teriam praticado se perante ele tivesse corrido o processo e ordena a repetição dos actos necessários para conhecer da causa”.
No caso em apreço inexistem descritos factos praticados na área deste Juízo de Competência Genérica, ou de qualquer outro local, diga-se, determinativos de competência territorial para a apreciação do crime de falsificação de documento imputado ao arguido, sendo que foi na cidade de Viseu onde primeiro houve notícia do crime, sendo, pois, pelas razões supra expostas, Juízo Local Criminal de Viseu.
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Em face de tudo o exposto, nos termos do preceituado nos arts.19.º, n.º1, 21.º, n.º2, 32.º, n.ºs1 e 2, al.b) e 33.º, n.º1, todos do Código de Processo Penal, declaro este Juízo de Competência Genérica de Mangualde territorialmente incompetente para julgar a causa, determinando a remessa dos autos, após trânsito, ao Juízo Local Criminal de Viseu por ser o territorialmente competente, aí devendo ser, além do mais, apreciadas as diligências probatórias requeridas pelo arguido em sede de contestação.
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….”
IV- Fundamentação:
Elencada a questão suscitada pelo recorrente, mostrando-se descrita a factualidade que resulta dos autos e transcrita a decisão recorrida, atentemos nas razões de discordância do recorrente em face do despacho recorrido.
Na óptica do recorrente, uma vez proferido o despacho a que se refere o art.º 311º do CPP, de saneamento do processo e tendo o juiz do julgamento aceite a competência territorial do tribunal, há caso julgado formal quanto a tal questão, que obsta a nova pronúncia.
Não lhe assiste razão, julgamos, como infra se explanará.
Quanto à extensão dos efeitos da decisão jurisdicional, também no âmbito do processo penal se distingue o caso julgado formal e o caso julgado material: o primeiro, traduz a força obrigatória da decisão no próprio processo em que é proferida o segundo a força obrigatória dentro do processo e fora dele. Tais institutos estão previstos expressamente para o processo civil nos artigos 619º e 620º do Cód. de Processo Civil.
O caso julgado material penal, enquanto pressuposto processual, conforma um efeito negativo que consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão. É o princípio do ne bis in idem, que se encontra consagrado como garantia fundamental pelo artigo 29.º n.º 5, da CRP: ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. Existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos.
O caso julgado formal significa que os despachos, as sentenças e os acórdãos que recaiam unicamente sobre a relação processual apenas têm força obrigatória dentro do processo (artigo 620.º n.º 1, do CPC) e ocorre quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso, como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução.
Ensina o Ac. STJ de 12 de Novembro de 2008, processo 08P268, in www.dgsi.pt o seguinte:
“O caso julgado formal respeita a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.
Em processo penal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade — a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, mas supondo a inalterabilidade subsequente dos pressupostos de conformação material da decisão.
No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta.
O procedimento é dinâmico, sequencial e, como contínuo instrumental, subsiste até ao momento em que o processo atinja a sua finalidade — a obtenção de uma decisão que lhe ponha termo, seja decisão final sobre pressupostos negativos de procedimento ou sobre a verificação de condições extintivas, seja decisão final de determinação, positiva ou negativa, da culpabilidade ou de aplicação da sanção que couber. Mas no contínuo dinâmico e instrumental, submetido a regras próprias, o procedimento pode sempre cessar por motivo que produza esse efeito — v. g., a prescrição.
Mas, assim, na perspectiva instrumental e no espaço de garantias que é o processo, mudando os pressupostos de que depende a realização da finalidade a que está vinculado — a realização da
justiça do caso, no respeito por regras materiais e de acordo com princípios estruturantes — deixa
de subsistir a razão do caso julgado formal que não pode impedir a realização da finalidade que justifica a sua razão instrumental.”
Neste sentido se pronuncia o Ac. n.º 520/2011 do TC:
“A autoridade do caso julgado formal, que torna as decisões judiciais, transitadas em julgado, proferidas ao longo do processo, insusceptíveis de serem modificadas na mesma instância, tem como fundamento a disciplina da tramitação processual. Seria caótico e dificilmente atingiria os seus objectivos o processo cujas decisões interlocutórias não se fixassem com o seu trânsito, permitindo sempre uma reapreciação pelo mesmo tribunal, nomeadamente quando, pelos mais variados motivos, se verificasse uma alteração do juiz titular do processo.”.
Posto isto, e sobre o caso em apreço, atentemos no texto da lei.
Diz-nos o artigo 311.º do CPP, com a epígrafe “Saneamento do processo”, que:
“1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.”
Já o Artigo 32.º do CPP, com a epígrafe “Conhecimento e dedução da incompetência”, prescreve que:
“1- A incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final.
2 - Tratando-se de incompetência territorial, ela somente pode ser deduzida e declarada:
a) Até ao início do debate instrutório, tratando-se de juiz de instrução; ou
b) Até ao início da audiência de julgamento, tratando-se de tribunal de julgamento.
Em face do texto legal, vemos claramente que, não obstante tenha sido já proferido o despacho liminar tabelar e genérico do art.º 311 do CPP, o Tribunal não está impedido de se pronunciar sobre a competência territorial até ao início da audiência de julgamento.
De facto, o caso julgado apenas se forma relativamente às questões que tenham sido especificamente apreciadas.
Significa isto que, não tendo sobre tal questão da competência territorial do Tribunal incidido ainda decisão concreta e fundamentada, não há caso julgado que deva ser respeitado, podendo o Tribunal dela conhecer-se até ao início da audiência de julgamento, nos termos do disposto no art.º 32º do CPP.
Outro não poderia ser o entendimento, sob pena de esvaziar de sentido o disposto no art.º 32 n.º 2 do CPP
Esta posição é, aliás, a que melhor se compatibiliza com a regra do dever de fundamentação dos atos decisórios contida no artigo 97.º n.º 5, do CPP, enquanto consagração do disposto no artigo 205.º n.º 1, da CRP, e no artigo 6.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, como se salienta no Ac RG de 26-06-2023, Processo: 300/21.6GBVNF.G1, in www.dgsi.pt.
Aliás, existe grande consenso jurisprudencial e doutrinário quanto ao facto de só produzir efeito de caso julgado formal a decisão que conheça especificamente de determinada questão, não uma decisão genérica sobre a verificação de pressupostos processuais e inexistência de nulidade e irregularidades como é a que é normalmente proferida nesses termos ao abrigo do disposto no artigo 311.º do Código de Processo Penal.
Veja-se o o AUJ n.º 2/95 in DR 135/95 Iª SÉRIE-A DE 12-06-1995, PÁG. 3773 s 3782, que estabeleceu que “a decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento.”
Tambem o AUJ n.º 5/2019, de 04-07-2019, DR 185/2019, Série I de 2019-09-26, vem afirmar que «O despacho genérico ou tabelar de admissão de impugnação de decisão da autoridade administrativa, proferido ao abrigo do disposto no artigo 63.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações, não adquire força de caso julgado formal».
Na jurisprudência, encontramos ainda neste sentido, a título exemplificativo, os Acs. desta Relação de Coimbra de 02-02-2022, Processo: 32/18.2GAMGL-A.C1 e de 20 de setembro de 2017, proc. n.º 417/15.6IDPRT.C1, e os Acs. da RP de 07-06-2023, Processo: 313/21.8T9MCN.P1 e de 3/5/ 2023, proc. n.º 209/21.3T9MCN.P1 e da RG de 23-10-2017, Processo: 6941/16.6T8GMR.G1
Na doutrina, também Pinto de Albuquerque in “Comentário do CPP”, 2ª edição atualizada UCE, anotação 28, se pronunciou no mesmo sentido.
Em suma: a decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, não tem o valor de caso julgado formal relativamente à competência do Tribunal em razão do território, uma vez que sobre esta questão não houve uma pronúncia expressa.
Termos em que terá de improceder o recurso.
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Pelo exposto, acordam as Juízas deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, mantendo-se o despacho recorrido
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Condena-se o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
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Notifique.
(Juíza Desembargadora Relatora)