DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
PRESSUPOSTOS PARA REPETIÇÃO EM AUDIÊNCIA DA INQUIRIÇÃO
RECUSA A DEPOR EM AUDIÊNCIA DE QUEM PRESTOU DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
Sumário

I - A recolha de declarações para memória futura constitui uma excepção ao princípio da imediação e prende-se com a protecção das vítimas especialmente vulneráveis.
II - Sob pena do risco de frustração do objectivo do legislador, a ponderação da repetição de inquirição, em audiência, à vítima que prestou declarações para memória futura só se justifica se for possível, condicionando o legislador a possibilidade se a saúde física ou psíquica da pessoa não for posta em causa e se ela for considerada indispensável para o esclarecimento da verdade material.
III - A eventual inexistência dos pressupostos para a inquirição em audiência da vítima que prestou declarações para memória futura ou dos procedimentos a observar quanto à aferição dos mesmos gera mera irregularidade do despacho que a autorizou, enquadrável no artigo 123.º do C.P.P.
IV - Quando a vítima de crime de violência doméstica que prestou declarações para memória futura se recusa a depor em audiência, ao abrigo do artigo 134.º, n.º 1, alínea b), do C.P.P., duas correntes se confrontam quanto à ponderação daquelas declarações:
- uma defendendo que as declarações para memória futura não podem ser valoradas, por força do artigo 356.º, n.º 6, do C.P.P., que impõe a efectiva tutela do direito de recusa a depor e de não contribuir para a condenação do arguido com quem tem vinculação familiar;
- outra defendendo que prestadas as declarações para memória futura e se no acto tiverem sido feitas ao declarante as advertências devidas, a recusa de depor em audiência não inviabiliza o valor da prova que com aquelas ficou validamente constituída, devendo, por isso, ser ponderada em conjugação com a restante prova e segundo os critérios da lógica e da experiência comum.

Texto Integral

           

            Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

            I- Relatório

           

            1. No Processo Comum Singular Nº 51/23.7GCTCS, …, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido …, imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso efetivo, de um crime de violência doméstica, p.p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al. a), e nº 2, al. a), do Código Penal, e com as penas acessórias previstas no art.º 152.º, n.ºs 4 e 5, do Código Penal, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº1, alínea c) do Regime Jurídico de Armas e Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23.02, ao qual são aplicáveis as penas acessórias de interdição e detenção, uso e porte de arma e de interdição de frequência, participação ou entrada em determinados locais, previstas nos artigos 90º e 91º, respetivamente, do mesmo diploma legal.


*

2. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, em 14 de maio de 2024, depositada na data de 15 de maio de 2024, do dispositivo da qual ficou a constar (transcrição):

            “ a) Absolver o arguido … da prática de 1 (um) de crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea a), n.ºs 4 e 5, ambos do Código Penal, pelo qual vinha acusado;

a) Condenar o arguido …, pela prática, em autoria imediata, na forma consumada, de 1 (um) crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), o que perfaz o montante total de € 1.400,00 (mil e quatrocentos euros);

(…)”


*

            2. Inconformado com o decidido, interpôs recurso da sentença o Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância, extraindo da motivação exarada no respetivo requerimento de interposição do recurso as seguintes conclusões, que se transcrevem:

            “…

                2 – Esta sentença absolutória proferida em 13-05-2024 não pode, a nosso ver, colher aplauso, porquanto resulta de apreciação da prova em violação das normas legais previstas nos artigos 271.º, 355.º, n.º 2, 356.º, n.º 2, alínea a) e n.º 6, todos do Código de Processo Penal (CPP) e art.º 24.º, n.º 6 da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro e art.º 32.º, n.º 5 da CRP.

            3 – In casu, por despacho proferido em audiência de discussão e julgamento de 30-04-2024, considerou-se indispensável à descoberta da verdade que a vítima … prestasse novo depoimento em audiência de discussão e julgamento, ao abrigo do disposto no artigo 271.º, n.º 8, do CPP, conjugado com o artigo 33.º, n.º 7, da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, após esta ter prestado em 17-10-2023 as Declarações para Memória Futura, recusando-se aquela validamente a depor em julgamento (art.º 134.º, n.º 1, al. a) do CPP).

                4 – Tal circunstância aceite pelo Tribunal a quo mas não mereceu a nossa concordância nem a do Ilustre mandatário da vítima AA.

                5 – Pese embora tal oposição, decidiu o Tribunal a quo sem que tenha efectivamente ponderado a salvaguarda da saúde física ou psíquica da vítima, como impõe a lei, desde logo, não determinou que a vítima fosse assistida, no decurso do acto processual, por técnico especialmente habilitado para o efeito, tal como sucede em sede de declarações para memória futura, nos termos art.º 33.º, n.º 3 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e decorre dos normativos previstos em diversos diplomas legais, tais como, artigos 2.º, al. c), 32.º, 33.º e 37.º A, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, artigos 8.º, 13.º, n.º 2, 17.º, 23.º e 24.º da Lei n.º 130/2015, de 04 de Setembro e art.º 27.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho.   

            6 – Previamente à ponderação da salvaguarda da saúde física e psíquica das vítimas – única situação em que estas poderão ser chamadas a depor em audiência – deve ser dada à vítima a possibilidade de se pronunciar sobre tal questão, desta forma assegurando o Tribunal a quo o necessário contraditório sobre tal matéria (art.º 32.º, n.º 5 da CRP).

            7 – A verdade é que apenas o Ilustre mandatário da vítima foi notificado tanto do despacho proferido em 26-04-2024 como do despacho proferido em 30-04-2024 pelo Tribunal a quo, não tendo a vítima conhecimento formal do teor dos referidos despachos, o mesmo sucede, mutatis mutandis, aquando da exigência de requerimento livre e esclarecido da vítima sobre a possibilidade de aplicação do instituto da suspensão provisória do processo (art.º 281.º, n.º 8 do CPP).

                8 – À vítima … foi atribuído o estatuto de vítima especialmente vulnerável (artigos 67.º-A, n.º 1, al. b) do CPP e 2.º, al. b) da Lei 112/2009, de 16/9), sendo que por força desse estatuto é-lhe aplicável o regime especial decorrente dos artigos 21.º, n.º 2, al. d) e 24.º, n.º 6 da Lei 130/2015 de 04/09, relativo à prestação de declarações para memória futura, segundo o qual as vítimas só deverão prestar depoimento em audiência de discussão e julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a respectiva saúde física ou psíquica.

                9 – O art.º 24.º do Estatuto da Vítima é norma especial e mais recente (2015) que o disposto nos artigos 271.º, n.º 8 e 356.º, ambos do CPP (1987), existindo ainda uma relação de especialidade entre aquela e estas normas gerais (art.º 7.º, n.ºs 2 e 3 do Código Civil).

                10 – Por força do disposto no art.º 24.º do Estatuto da Vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica atento o disposto no seu art.º 2.º, estas têm o direito de prestar declarações para memória futura, com observância do ali preceituado, e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (pressupostos cumulativos).

                11 – Ora, resulta da lei que a presença da vítima em sede de audiência de discussão e julgamento deve ser assumida sempre como uma verdadeira excepção, constituindo a regra a valoração da prova pré-constituída traduzida nas declarações prestadas para memória futura (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9/11/2022, relator José Eduardo Martins, consultado in www.dgsi.pt).

                12 – Se do processo não consta pronúncia sobre se a audição em audiência de julgamento põe em causa ou não a saúde física e psíquica da vítima não compete ao Tribunal, muito menos ao arguido, pronunciar-se sobre esse aspecto (cfr. art.º 151.º do CPP) mas sim suscitar o competente parecer/audição do técnico/a especializado/a e habilitado/a para o efeito e assim, recolhido todos os elementos necessários, decidir em conformidade, o que não sucedeu.

                13 – Do que precede resulta que o técnico/a que deva acompanhar a vítima nos termos do art.º 271.º, n.º 4 do CPP, deve previamente pronunciar-se sobre se a audição da vítima em audiência de discussão e julgamento no Juízo de Competência Genérica de Trancoso, põe em causa a saúde psíquica da vítima, devendo após exercício do contraditório da própria vítima, decidir-se em conformidade.

                14 – Com a devida vénia, isto significa que … foi cometida uma irregularidade que afecta o valor do acto praticado (art.º 123.º, n.ºs 1 e 2 do CPP), dado que o despacho do Tribunal a quo não observou os requisitos cumulativamente previstos no art.º 24.º, n.º 6 do Estatuto da Vítima, sendo que a recusa dela em depor não vale, consequentemente, para efeitos do n.º 6 do artigo 356.º, do CPP.

                15 – Mesmo assim, decidiu o Tribunal a quo convocar a vítima para comparecer na audiência de julgamento, permitir que a mesma prestasse declarações não falando e, com isso, afastar as declarações para memória futura por si anteriormente prestadas.

                16 – Efeito este aceite pelo Tribunal a quo, mas não por nós.

                17 – E funda-se no facto de o Tribunal a quo não ter valorado as declarações para memória futura prestadas pela vítima, nem ter fundamentado a razão pela qual as não usou.

                18 – Oartigo 271.º, n.º 8 do C.P.P. implica necessariamente que pretendendo a declarante prestar depoimento em audiência de julgamento, o faça efectivamente, prestando informações  adicionais ou esclarecimentos ou até mesmo negando o que anteriormente disse.

                19 – Tal facto não pode, contudo, levar a considerar as declarações para memória futura uma prova proibida, uma vez que, como é sabido são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei, as quais são livremente valoradas, a não ser que a lei disponha diversamente (artigos 124.º e 127.º do CPP).

                20 – Com efeito, as declarações para memória futura, não tendo de ser reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento, devem ser livremente valoradas pelo Tribunal, nos termos que decorrem do princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º e 355.º, n.º 2 do CPP e AUJ 8/2017, Diário da República n.º 224/2017, Série I de 2017-11-21, páginas 6090 - 6113).

                21 – Na verdade, tais declarações não se mostram abrangidas por qualquer proibição de prova, enquadrando-se, aliás, nas declarações cuja leitura é permitida (artigo 356.º, n.º 2, alínea a) do CPP), pelo que, ainda que não pudessem ser lidas, em virtude de a vítima se ter recusado validamente a depor (artigo 356.º, n.º 6 do CPP), não significa que se verifique, quanto às mesmas, qualquer proibição de valoração, já que se tratam de prova pré-constituída.

                22 – Saliente-se que, o mesmo já não sucederá com as declarações prestadas anteriormente pelo arguido, as quais, caso não sejam reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento, poderão levar à inconstitucionalidade da norma extraída dos artigos 355.°, n.ºs 1 e 2, e 356.º, n.º 9 do CPP, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da CRP (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 770/20, de 21/12/2020, disponível em tribunalconstitucional.pt).

                23 – É evidente que esta diferenciação de regimes por parte dos tribunais superiores tem como explicação as cautelas relativas ao contraditório inerentes à prestação das declarações para memória futura, que se visa ser uma antecipação da prova a produzir em audiência.

                24 – O instituto das declarações para memória futura foi consagrado precisamente como forma de antecipar a audiência, através da produção de prova que se afigura de difícil obtenção num futuro, justificando-se uma tal antecipação pelo princípio da descoberta da verdade material (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 5/03/20, proferido no processo n.° 779/19.6PARGR-A.L1-9, disponível em dgsi.pt).

                25 – Em situações como a dos autos, como resulta da própria sentença recorrida, a prova existente mais forte é aquela que resulta do depoimento da vítima, pelo que, desvalorizar este tipo de declarações, obtidas com base em todas as garantias legais, implica desrespeitar o todo o sentido e alcance do instituto, colocando em causa a própria verdade material.

                26 – Com efeito, não é possível concluir-se pela necessidade para a descoberta da verdade material do depoimento da vítima, para, logo de seguida, considerar a faculdade de exercer o direito ao silêncio (artigo 134.º, n.º 1, alínea a) do CPP) como forma de invalidar esse mesmo depoimento prestado validamente em sede de declarações para memória futura.

                27 – Repare-se que a vítima, a ser chamada à audiência de discussão e julgamento, apenas deveria ser questionada relativamente aos factos supervenientes e não contemplados aquando das declarações para memória futura e relevantes para a eventual medida da pena a aplicar ao arguido (artigo 128.º, n.º 1 do CPP).

                28 – A sua inquirição deveria ser delimitada aos factos vertidos nos artigos 17.º a 28.º da contestação do arguido, tal como solicitado pelo mesmo, e não, como foi o caso, determinada a sua inquirição a todo o objecto do processo

                29 – Contudo, esse depoimento terá de ser prestado, sem que a vítima utilize a faculdade de se remeter ao silêncio para simplesmente impedir que os factos que anteriormente relatou não sejam tidos em conta, conseguindo dessa forma a desistência de queixa que a lei não permite (artigos 241.º e 262.º, n.º 2 do CPP). E, dessa forma, defraudando o próprio instituto das declarações para memória futura, a verdade material e a própria realização da acção da justiça.

                30 – De facto, o artigo 356.º, n.º 6 do Cód. de Processo Penal não visa obter o efeito de defraudar prova validamente obtida que, aliás, não tem de ser lida em audiência para que seja valorada (AUJ n.° 8/2017 acima citado).

                31 – Ora, não pode o Tribunal a quo ignorar a valoração dessa prova que se encontra pré-constituída. Valoração essa, que, saliente-se, deverá ser livre e conjugada com a restante prova produzida em audiência, e que, no limite, até pode levar à conclusão de que os factos não  resultam provados.

                32 – Nem pode suceder o Tribunal a quo escudar-se no silêncio da vítima para evitar valorar as declarações anteriormente prestadas de modo válido, sob pena de serem colocados em causa a descoberta da verdade material e a conservação da prova e a própria protecção da vítima visadas pelo instituto.

                33 – Como tal, impunha-se que o Tribunal a quo se pronunciasse sobre aquele meio de prova, valorando-o, pois já produziram efeitos probatórios, porquanto, são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por vontade da vítima (cfr Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-04-2022, processo n.º 37/21.6SXLSB.L1-3, relatora MARIA PERQUILHAS, consultado in www.dgsi.pt).

                34 – As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.

                35 – Sendo audiência antecipada, como é, aberta especialmente como observância de todas as regras que regulam a audiência de julgamento adequadas a este instituto particular, deve ser observado o disposto no art.º 134.º do CPP quando a vítima tenha com o agente alguma relação de entre as aí previstas. (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-04-2022, processo n.º 37/21.6SXLSB.L1-3, relatora MARIA PERQUILHAS, consultado in www.dgsi.pt).

                36 – Assim, uma vez explicitada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima, querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já foi exercido.

                37 – A isto acresce que verificados os requisitos previstos no artigo 356.º, n° 2, al. a) do C.P.P., a falta de apreciação e valoração das declarações assim prestadas perante o Juiz constitui a nulidade prevista no último segmento normativo da alínea d) do n.º 1 do artigo 120.º do mesmo diploma legal, porquanto foram omitidas diligências reputadas como essências para a descoberta da verdade (cfr. neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.06.2015., proc. 248/09.2JALRA.C1, relator: VASQUES OSÓRIO, consultado in www.dgsi.pt).

                …!”


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            3. Admitido o recurso, a ele respondeu o arguido …


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                4. Neste Tribunal foi aberta vista ao Exmo. Procurador-Geral Adjunto, nos termos do disposto no art. 416º do CPP, tendo o mesmo aduzido o que, com relevo, se transcreve:

                “V- Compulsados os autos, acompanham-se os fundamentos enunciados pelo recorrente na motivação e conclusões do recurso, consideramdo-se, por conseguinte, que o mesmo merece provimento.

                Nesse sentido, traz-se também à colação o decidido no Acórdão do TRL de 8-02-2023, proferido no processo 617/20.7GBMTJ.L1-3, disponível no site da dgsi, de cujo sumário consta:  «I- Por força do disposto no artigo 356º/2-a) é permitida a leitura de declarações tomadas ao abrigo da referida norma, desde que prestadas perante um Juiz.

                II- O nº 6 da norma declara a proibição da leitura do depoimento prestado nos termos supra descritos, relativo a testemunha que se tenha validamente recusado a depor.

                III- Em processos de violência doméstica, por força do estatuto de vítima especialmente vulnerável, a que se reportam os artigos 87-A/1-b) do CPP e 2º-b) da Lei 112/2009, de 16/9, é aplicável o regime especial decorrente dos artigos 21º/2- d) e 24º/6 da Lei 130/ 2015 de 04/09, (Estatuto da Vítima) relativo à prestação de declarações para memória futura, segundo o qual as vítimas só deverão prestar depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a respectiva saúde física ou psíquica.

                IV- As normas invocadas configuram um regime especial em natureza dos crimes acusados, por se tratar de normas contidas em lei especial com vigência posterior à lei geral, e portanto revogadora desta última no âmbito da respectiva previsão normativa (artigo 7º/2, do Código Civil).

                V- Nos termos da legislação aplicável a inquirição de vítimas de violência doméstica, em sede de audiência de julgamento, apenas é legalmente admitida em caso de necessidade, devidamente justificada por despacho prévio que justifique a diligência, sob pena de ser cometida uma irregularidade que afecta o valor do acto praticado.

                VI- A recusa a depor por parte vítima deste tipo de crime, que prestou declarações para memória futura, e, sem justificação, foi chamada a depor em audiência, está subtraída ao regime do nº 6 do artigo 356º/CPP, porque ao inquiri-la o Tribunal praticou uma irregularidade relevante, que afecta os termos subsequentes à mesma, ou seja, a validade da recusa em depor».”


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            5. Não foi apresentada resposta a tal parecer.

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            6. Colhidos os vistos legais, os autos foram a conferência.

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            II-  Fundamentação

            A) Delimitação do objeto do recurso

            …

            Assim sendo, estando a apreciação do recurso balizada pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso são as seguintes:

            - A irregularidade decorrente do deferimento, na audiência de julgamento, da tomada de declarações à ofendida, tendo esta prestado declarações para memória futura no decurso do inquérito;

            - A nulidade da sentença decorrente da falta de fundamentação e de pronúncia atinente à não valoração dessas declarações prestadas para memória futura pela ofendida.


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            B) Da decisão recorrida      

Com vista à apreciação das questões suscitadas no recurso, vejamos o que deflui da sentença recorrida, o qual, na parte relevante, se transcreve:

II- Fundamentação:

II.A. – Fáctica

1. Factos provados:
Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos, pertinentes para a decisão da causa:


[Acusação Pública]




1.1. No dia 11/05/2002, o arguido … e a AA … contraíram matrimónio na freguesia …

1.4 O casal discutiu por diversas ocasiões.

1.5. AA … saiu da habitação do casal no dia 26/06/2023.

1.6. No dia 01/07/2023, em hora não apurada, no interior da residência em comum, o arguido escreveu uma carta dizendo que se ia suicidar.

1.7. No dia 08/07/2023, cerca das 11:48 hotas, o arguido foi internado no Centro Hospitalar …

1.8. …, foi realizada busca à habitação do arguido, …

1.9. Durante a busca domiciliária, foram encontrados e apreendidas, os seguintes objectos, propriedade do mesmo:    

                a.  uma (1) arma de alarme com inscrições “Rhoner Sportwarfen”, modelo 15, calibre 8mm;

                b. quarenta e oito (48) munições de salva;

                a. uma (1) arma de fogo, marca “star” com o n.º ...30, calibre 6,35mm e carregador com seis (6) munições de calibre 6,35mm;

                a. dezasseis (16) cartuchos de calibre 12 e um (1) cartucho de zagalote;

1.9.4. Num pinhal nas imediações da habitação, por baixo de uma pedra:

                a. um (1) revolver, da marca “Smith & Wesson”, com o n.º ...74, calibre 32;

                b. uma (1) caixa com as inscrições “Winchester”, contendo no seu interior vinte e seis (26) munições de calibre 32.

1.10. O arguido detinha os objectos supra descritos nas circunstâncias de tempo e lugar referidas, sem qualquer propósito que o legitimasse ou justificasse.

1.11. As referidas armas não estavam manifestadas ou registadas.

1.12. O arguido, à data da prática dos factos supra descritos, não possuía licença de uso e porte de arma a que correspondessem à categorias das armas e munições supra descritas.

1.13. O arguido agiu com o propósito concretizado de ter na sua posse os supra identificados objectos, conhecendo as suas características e sabendo que era proibida a sua posse e detenção, o que sabia e quis.

1.14. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.


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2. Factos não provados:
2.1.

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            3. Motivação da decisão de facto:


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             C) Apreciação do recurso

            - Da irregularidade decorrente do deferimento, na audiência de julgamento, da tomada de declarações à ofendida, tendo esta prestado declarações para memória futura no decurso do inquérito

            Na síntese refletida nas conclusões 3) a 16), aduz o recorrente um conjunto de razões que, no seu entendimento, ditariam, ao contrário do que veio a ser decidido, que fosse indeferida a tomada declarações à ofendida em audiência de julgamento, em virtude da mesma ter prestado no decurso do inquérito declarações para memória futura, pugnando, com base nisso, pela verificação de uma irregularidade processual que afeta o valor do ato praticado, enquadrável no disposto no art. 123º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.

            A questão que, desta forma, vem colocada pelo recorrente impõe, antes de mais, a respetiva contextualização juntamente com as demais ocorrências processuais em que a mesma se insere, as quais, apesar de virem minimamente aventadas na motivação da decisão da matéria de facto exarada na sentença recorrida, carecem de mais e melhor detalhe.

            Vejamos, então.

            Na contestação que apresentou nos autos, constante de fls. 390-393vº (Refª 2353189) , veio o arguido …, entre o mais, arrolar como testemunha AA …

            Determinado pelo Mmo. Juiz titular do processo que fosse aberta vista ao Ministério Público para, querendo, se pronunciar, veio o Digno Magistrado do Ministério Público a tomar posição sobre o requerido, nos seguintes termos, que, na parte relevante, se transcreve:

            “ (…)

                Desde logo se adianta que o Ministério Público não concorda com tal pedido por três razões distintas:

                1) A ofendida foi ouvida em 17-10-2023 em declarações para memória futura para evitar estar presente na audiência de discussão e julgamento e prestar depoimento;

                2) Tal antecipação da prova evita a respectiva revitimização, que a sua exposição a uma audiência de julgamento sempre implicará;

                3) Em nenhum momento veio a vítima solicitar nova inquirição ou manifestar não prosseguir com o procedimento criminal, aliás, a vítima pretendeu prestar declarações para memória futura mesmo advertida que poderia não fazê-lo.

                Ao abrigo do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2017 «As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355.º e 356.º, n.º 2, alínea a), do mesmo Código».

                …

                Por despacho prolatado em 25.04.2024, pronunciou-se o Mmo. Juiz sobre o requerimento apresentado pelo arguido, nos seguintes termos, que se se transcrevem:

            “I. Inquirição da testemunha AA …

                Conforme refere o Digno Magistrado do Ministério Público, a produção da prova em audiência de discussão e julgamento ainda não foi realizada e, portanto, a pertinência do novo depoimento da ofendida apenas se poderá aferir em momento próprio, pelo que relego a apreciação da pertinência da inquirição da testemunha AA … para a audiência de discussão e julgamento.

                Não obstante, cumpre assegurar, desde já, o contraditório da própria vítima quanto ao requerido pelo arguido, pois que os fundamentos e finalidades das declarações para memória futuro se centram (também) na sua protecção.

                Assim, notifique a vítima para, no prazo de 10 (dez) dias, querendo, se pronunciar nos termos tidos por convenientes quanto à requerida prestação de depoimento.”

                Tal despacho foi notificado ao ilustre mandatário da assistente, através de carta enviada, datada de 26.04.2024.

            Iniciada a audiência de discussão e julgamento no dia 30.04.2024, na qual se encontravam presentes todas as pessoas convocadas, entre as quais a ofendida AA …, após  a tomada de declarações ao arguido na parte em que as quis prestar e  a inquirição das testemunhas arroladas nos autos, e, ainda, depois de dada a palavra ao ilustre mandatário ofendida – que se pronunciou no sentido da sua constituinte, apesar de se encontrar presente, não querer prestar mais declarações - foi proferido o seguinte despacho que, por súmula, ficou a constar da ata nos seguintes termos:

                “ De imediato, o Mm. Juiz proferiu DESPACHO, através do qual, por súmula, determinou, ao abrigo do disposto no artigo 271.º, n.º 8, do Código de Processo Penal, conjugado com o artigo 33.º, n.º 7, da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, a prestação de depoimento em audiência de discussão e julgamento pela ofendida AA …, conforme requerido pelo arguido, observando o disposto no artigo 352.º do Código de Processo Penal, conjugado com o artigo 20.º, n.º 2 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, porquanto, não obstante a posição do Ministério Público e do Ilustre Mandatário da Ofendida, se afigura que tal audição presencial é relevante para o esclarecimento cabal de alguns dos factos imputados ao arguido, atenta a demais prova produzida, que se revela contraditória; e, ainda, considerando que, da prova que foi produzida nos autos, não existe qualquer elemento que permita antever uma prejudicialidade para a saúde física ou psíquica da pessoa.

                Notifique.

                (gravado de 12:32:46 a 12:42:11)”

             Rezando, ainda, a ata que:

            “Neste momento, foram todos os presentes devidamente notificados do antecedente despacho.

            No reinicio da audiência, que teve lugar pelas 14.18 horas do mesmo dia 30.04.2024, consta da ata que, “Nada mais tendo sido requerido e após a saída do arguido da sala de audiências, o Mmo. Juiz passou a inquirir a ofendida”, a qual se identificou e, após ter sido advertida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 134º, nº1 alínea a) do CPP, declarou não querer prestar declarações, tendo sido dispensada de imediato. 

            Feita a resenha das incidências processuais com relevo para a apreciação do segmento recursivo em apreciação, a primeira questão a dirimir consiste em saber se o ato praticado pelo Mmo. Juiz consistente na tomada de declarações à ofendida em sede de audiência de julgamento na circunstância de a mesma ter prestado declarações para memória futura padece de qualquer invalidade, e, se assim for, qual a concreta invalidade que, em relação ao mesmo, que se equaciona. 

            Na abordagem de tal questão, começaremos por apreciar se a tomada de declarações à ofendida na audiência de julgamento, sendo ela vítima do crime de violência doméstica imputado ao arguido na acusação deduzida nos autos, nos casos, como o presente, em que a mesma prestou declarações para memória futura, nos termos do disposto no art. 271º do CPP, se traduz ou não na prática de ato que a lei não permita.

            É consensual nos dias de hoje, quer na doutrina, quer na jurisprudência, o entendimento de que a recolha de declarações para memória futura constitui uma exceção ao princípio da imediação que se prende com a proteção das vítimas especialmente vulneráveis, instituto essa que se encontra regulado nos arts. 271º do CPP, 33º da Lei 112/2009,16.09 e 24º da Lei 130/2015, de 4.09 (Estatuto da vítima).

            Conforme sublinha Maia Costa em anotação ao art. 271º, do Código de Processo Penal Comentado, Obra Coletiva, 3ª Edição revista, pag, 921, « Inicialmente pensado pelo legislador como um meio preventivo de recolha de prova testemunhal suscetível de perder-se ou inviabilizar-se antes do julgamento, o âmbito de recolha das declarações para memória futura foi posteriormente ampliado, já não para prevenir o perigo de perda da prova, mas sim para proteção das vítimas, especialmente menores».

            A Lei 112/2009, de 16.09, regula autonomamente as declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, conforme decorre do art. 33º da mesma, cujo regime de recolha, como salienta o citado autor, in Ob. cit., pag. 922, é idêntico ao disposto no art. 271º do CPP, com a diferença de que no regime previsto por esta Lei a tomada de declarações da vítima no decurso do inquérito deverá ser requerida pela própria vítima ou pelo Ministério Público, enquanto que pelo regime previsto no citado art. 271º do CPP essa tomada de declarações pode ser requerida pelo Ministério  Público, pelo arguido, pelo assistente e partes civis.

            E, igualmente, na Lei 130/2015, de 4.09 (Estatuto da vítima), se prevê, no seu art. 24º, a tomada de declarações para memória futura as vítimas especialmente vulneráveis.

            Sendo certo que o instituto das declarações para memória futura tem como objetivo evitar a repetição da audição da vítima em julgamento, protegendo-a, assim, do perigo da vitimização secundária, visando, ainda,  assegurar a genuinidade do depoimento, em tempo útil, e obstar a pressões ou manipulações prolongadas no tempo, prejudiciais à liberdade de declaração da vítima, a verdade é não está vedado, à luz dos referidos regimes legais, a possibilidade de, em audiência de julgamento, serem tomadas declarações às pessoas que, em sede de inquérito, já as prestaram para memória futura, como decorre do disposto nos nº8 do citado art. 271º do CPP,  nº 7 do art. 33º da citada Lei 112/2009 e nº6 do art. 24º da citada Lei 130/2015.

            Contudo, a ponderação dessa repetição de inquirição à vítima, em audiência de julgamento, só se justificará, sob pena de risco da frustração do objetivo do legislador que, em qualquer dos referidos regimes, se for possível, não deixando o legislador de condicionar a possibilidade de repetir em julgamento essa tomada de declarações aos casos em que a saúde física ou psíquica da pessoa não seja posta em causa, e ainda, nos termos do regime da citada Lei 130/2015, se for considerada indispensável para o esclarecimento da verdade material.

            Aqui chegados.

            No caso em vertente, a inquirição da ofendida … em sede de audiência de julgamento - que, em sede de inquérito, já prestara declarações para memória futura - foi requerida pelo arguido na sua contestação e a tomada de posição sobre a mesma por parte do Mmo. Juiz titular do processo consistiu, num primeiro momento, em relegar a apreciação da pertinência da mesma para a audiência de discussão e julgamento, sem, contudo, deixar de cumprir o contraditório, quer em relação ao Ministério Público, quer em relação à ofendida, anotando ao determinar esse cumprimento do contraditório em relação à vítima que “os fundamentos e finalidades das declarações para memória futuro se centram (também) na sua protecção.”

            E, exercido que foi o contraditório pelo Ministério Público e pela ofendida – manifestando, o primeiro, o entendimento quanto à não repetição da inquirição da ofendida na audiência de julgamento pelas razões aduzidas no seu despacho supra transcrito e, a segunda, manifestando a sua vontade no sentido de não prestar mais declarações  –, ainda assim, sempre e só após a produção da demais prova arrolada nos autos, determinou o Mmo. Juiz que a ela presidiu que nela tivesse lugar a prestação de depoimento pela ofendida AA …, fundamentando-a no disposto no nº7 do art. 33º da citada Lei 112/2009.

            Independentemente do que veio a seguir-se a esta decisão - que se traduziu em a ofendida, ao abrigo do disposto no art. 134º, nº1, alínea b) do CPP, se ter recusado validamente a depor e, de, por isso, a sua inquirição resultar frustrada -  a verdade é que tendo sido, como foi, considerado pelo Mmo. Juiz em sede de audiência de julgamento que a tomada de declarações à ofendida em audiência de julgamento – na qual a mesma se encontrava presente -  se lhe afigurava relevante para o esclarecimento cabal de alguns dos factos imputados ao arguido, porque a demais prova produzida se revelava contraditória, e, também, que não existia qualquer elemento que permitisse antever prejuízo para a saúde física ou psíquica da pessoa em causa, não vemos que com tal decisão sobre a tomada de declarações à ofendida em sede de audiência de julgamento que veio a ser determinada tenha sido praticado qualquer ato que a lei não permita, suportada, como o foi, na disposição legal contida no art. 33º nº7 da citada Lei 112/2009.

            Ainda assim, não poderemos escamotear que na ponderação da decisão do Mmo. Juiz atinente a essa tomada de declarações à ofendida em sede de audiência de julgamento, deveria ter pesado a previsível e duvidosa eficácia da mesma com vista ao almejado cabal esclarecimento de alguns dos factos imputados, pois, a tomada de posição previamente assumida pela ilustre mandatária da mesma, anunciando previamente que a ofendida “ não pretendia prestar mais declarações”, deixaria adivinhar a frustração da diligência que veio a ser ordenada, como, efetivamente, veio a concretizar-se, visto que a ofendida exerceu a prerrogativa legal de recusa em depor.

            Mas, ainda que o ora recorrente perspetivasse, com base na argumentação que densifica no seu discurso recursivo, a ocorrência de alguma invalidade relacionada com os pressupostos considerados na decisão de inquirir a ofendida em sede de audiência de julgamento ou com os procedimentos a observar quanto à aferição dos mesmos previstos no nº5 do art. 24º da Lei 130/2015, de 4.09 ( Estatuto da vítima), designadamente por não ter sido precedida do parecer ou da audição de técnico especializado e habilitado para se pronunciar sobre se a mesma punha ou não em causa a saúde física e psíquica da ofendida - que, a final, em face da sua válida recusa em depor acabou por o não fazer - essa invalidade só poderia traduzir-se numa mera irregularidade, como, aliás, o mesmo reconhece, enquadrável no disposto no 123ºdo CPP.

            Com efeito, como se sublinha no ac. do STJ, de 20.05.2020, disponível in www.dgsi.pt, “a irregularidade é a vício formal do ato processual que a lei não fulmine com a nulidade (absoluta ou relativa) –art.º 118º n.º 2 do CPP. Consiste na violação de norma do regime processual que tutele interesses públicos ou particulares – dos sujeitos ou intervenientes processuais - de menor gravidade. “

            No n.º 2 do art. 123º do CPP consagra-se o princípio da relevância material da irregularidade, segundo o qual só as ilegalidades relevantes devem ser tidas como irregularidades e só são relevantes as que afetam o valor do ato praticado – neste sentido, Código do Processo Penal notas e comentários, Magistrados do Ministério Público do Distrito judicial do Porto, Coimbra Editora, pag. 311. Isto é, aquelas que possam repercutir-se no mérito da decisão final a proferir na causa.

            Também segundo o AUJ n.º 5/2002, in Diário da República n.º 163/2002, Série I-A de 2002-07-17 “A irregularidade afeta o valor do ato processual praticado quando da mesma decorre a violação de um interesse público ou de um interesse privado indisponível, mas já não quando constitui a inobservância de uma norma processual que tutela um interesse privado disponível”.

            Donde se conclui que, a padecer a tomada de declarações à ofendida em audiência de julgamento que validamente se recusou a depor determinada nos autos, de alguma irregularidade por inobservância da lei, tal irregularidade sempre e só poderia cair no regime das irregularidades previsto no nº1 do art. 123º do CPP, que impunha a respetiva a arguição no próprio ato, no qual o recorrente se encontrava presente.

            Pelo que, não tendo sido arguida nesse momento, a sua arguição mostra-se agora intempestiva.

            E, mesmo a entender-se que o Ministério Público ora recorrente poderia ter reagido por via de recurso contra a decisão de tomada de declarações à ofendida em sede de audiência de julgamento que decorreu na sua presença, pelo facto da mesma já anteriormente, em fase de inquérito, ter prestado declarações para memória futura, contra a qual vem agora insurgir-se - como parece ser o entendimento sufragado por Maia Costa, in Ob. cit., pag. 924, ao salientar que a repetição da inquirição da vitima em audiência de julgamento que já prestou declarações para memória futura pode ser “da iniciativa do tribunal (art. 340º) ou requeria pelas partes, sendo recorrível a decisão que a ordenar ou recusar.” - a verdade é que essa dissensão, manifestada pelo recorrente apenas agora no presente recurso, se apresenta igualmente intempestiva, porquanto, estando o mesmo presente aquando da prática do ato, que teve lugar  na sessão da audiência de julgamento do dia 30.04.2024, quando interpôs o presente recurso – em 7.06.2024 – mostrando-se largamente ultrapassado aquando da interposição do presente recurso o prazo de 30 dias de que para o efeito dispunha, conforme resulta da disposição legal contida na alínea a) do nº1 do art. 411º do CPP.

            Face ao exposto, improcede o recurso neste segmento recursivo.


*

            - Da nulidade da sentença decorrente da falta de fundamentação e de pronúncia atinente à não valoração dessas declarações prestadas para memória futura pela ofendida

            Os termos em que que se apresenta para apreciação deste Tribunal de recurso este segmento recursivo impõe que, previamente, se teçam as seguintes considerações:

            Perpassando, embora, da argumentação recursiva, sintetizada nas Conclusões 17ª, 37ª, 38ª e 39ª, que o recorrente confunde a falta de fundamentação e de pronúncia da sentença atinente à não valoração das declarações prestadas para memória futura pela ofendida, com a não valoração, propriamente dita, dessas declarações prestadas para memória futura, o vício que, com base nela, vem unicamente assacado pelo recorrente à sentença recorrida é do da nulidade desta – com base em nela não se fundamentar por que não foram consideradas as declarações prestadas para memória futura pela ofendida, ancorado no disposto nos os arts. 120º, nº2 d), parte final, 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) todos do CPP [conclusão 38ª], e, com base em a mesma não se ter pronunciado sobre essas declarações para memória futura, esteado no disposto no art. 379º, nº1, alínea c) do CPP, [conclusão 39ª].

            Vício esse, como decorrência do qual, como alega o recorrente, na sintetização que se mostra feita nas conclusões 40ª e 41ª, almeja que:

             “ 40 – Nesta conformidade e valorando as declarações para memória futura prestadas nos autos pela vítima, cotejada com a demais prova (ainda que parca) produzida nos autos, deveria o arguido ser condenado pela prática do crime de violência doméstica por que veio acusado (artigos 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea a), n.ºs 4 e 5, ambos do Código Penal e 21.º da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro).

                41 – Ainda que em pena de prisão, suspensa na sua execução.”

                Rematando, a final, com o pedido de revogação da sentença proferida nos autos e a sua substituição por outra na qual se analisem e valorem as declarações para memória futura prestadas pela vítima …, em conjugação com as restantes provas produzidas, de harmonia e à luz das regras da experiência comum.

      Enveredaremos, pois, por abordar se a sentença recorrida padece dos invocados vícios. 

      A argumentação que subjaz ao discurso recursivo do recorrente, com base no qual suscita as apontadas nulidades que assaca à sentença recorrida, arranca do entendimento, que sufraga e que é transversal a toda essa argumentação, de que o Tribunal recorrido deveria ter valorado na sentença recorrida as declarações prestadas para memória futura pela ofendida … ainda que, como sucedeu, esta se tenha recusado validamente a depor na audiência de julgamento.

      As nulidades da sentença mostram-se elencadas na previsão do Art. 379º nº1 do CPP.

      A nulidade prevista no citado Art. 379º, nº1, a), por remissão para o normativo contido no Art. 374º nº2 do mesmo diploma legal – a que o recorrente igualmente faz alusão na conclusão 38ª– pressupõe que a decisão em causa não contenha fundamentação, da qual deverá constar: a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, fundamental à decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

      Por seu turno, a nulidade prevista no mesmo Art. 379º, nº1, c) – a que o recorrente alude na conclusão 39º - pressupõe que a decisão não se pronuncie sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

      Densificando o conteúdo do preceito legal contido no citado Art. 374º, nº 2 do CPP, diremos, seguindo de perto o Ac. do STJ, de 16-03-2005, disponível in www.dgsi.pt,  que:

      “ A fundamentação da sentença consiste na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão;

      (… ) A fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual) a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão.

      (… ) O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

      (…) A integração das noções de ‘’exame crítico" e de "fundamentação envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.”.

      A nulidade elencada no citado Art. 379º nº1 a) do CPP pressupõe, assim, que a decisão (sentença ou acórdão) não contenha fundamentação com a abrangência imposta por aquele citado Art. 374º nº2.

      Ora, a sentença recorrida contém a enumeração dos factos provados e dos factos não provados, a indicação das provas, por declarações, depoimentos e documental, que serviram para fundar a convicção do tribunal recorrido quanto aos factos provados e não provados e, ainda, a explicação da relevância probatória atribuída a cada meio de prova enunciado e das razões da sua credibilização, permitindo sem qualquer dificuldade a total e efetiva compreensão do raciocínio lógico que conduziu à decisão de facto, mostrando-se, portanto, feita, a análise critica das provas fundamentadoras da convicção do tribunal.

No que concretamente diz respeito às declarações para memória futura prestadas em sede de inquérito pela ofendida AA … sobre as quais o recorrente alega não se mostrar fundamentada na sentença a não consideração das mesmas, mostra-se exarado na motivação de decisão da matéria de facto que “Por sua vez, AA, em sede de audiência de discussão e julgamento, optou por não prestar depoimento ao abrigo do disposto no artigo 134.º do Código de Processo Penal.

Salienta-se que, relativamente às declarações para memória futura previamente prestadas por AA …, não se considerou o teor das mesmas em face da proibição de prova ínsita no artigo 356, n.ºs 6 e 8, conjugado com o artigo 355.º, ambos do Código de Processo Penal, pois que aquela testemunha se recusou, validamente, a prestar depoimento em sede de audiência de discussão e julgamento.”

      Pode concordar-se ou discordar-se do entendimento sufragado pelo Tribunal recorrido relativamente à proibição de prova das declarações prestadas para memória futura pela mencionada ofendida com os fundamentos, de facto e direito, para tanto adiantados na motivação exarada na sentença recorrida, e, como bem ressalta da argumentação recursiva, o recorrente discorda do entendimento de que não possam ser valoradas como meio de prova essas declarações prestadas para memória futura pela ofendida porque esta se recusou validamente a depor na audiência de julgamento, mas esta divergência de entendimento não significa, nunca, a verificação da nulidade da sentença com a abrangência que a densificação normativa contida na alínea a) do nº1 do art. 379º do CPP comporta .

      Doutra parte, também não alcançamos o sentido da argumentação recursiva quando, a propósito da nulidade da sentença prevista na alínea a) do nº1 do art. 379º do CPP, se faz referência expressa ao disposto no art. 120º, nº2, alínea d) parte final, no qual se prevê a nulidade, dependente de arguição, consistente na “omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade”, porquanto, não se adianta qual a diligência que, podendo reputar-se essencial para a descoberta da verdade, foi omitida, sendo certo, ainda, que, qualquer nulidade que, a esse propósito, pudesse equacionar-se relacionada com a omissão de diligências sempre estaria já sanada, uma vez que não foi tempestivamente arguida. 

      Em suma, a sentença recorrida cumpre as exigências do art. 374º, nº 2 do C. Processo Penal, não enfermando da nulidade prevista na alínea a) do nº 1 do art. 379º do mesmo diploma.

      Já sobre a omissão de pronúncia, que subjaz à invocada nulidade da sentença por referência ao disposto na alínea c) do nº1 do art. 379º do CPP a que o recorrente faz alusão no seu discurso recursivo, deve entender-se que ela ocorre quando o tribunal não conhece de questão ou questões sobre as quais se deve pronunciar (omissão), realçando-se que o tribunal deve conhecer das questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais não está impedido de se pronunciar, e bem assim das questões de conhecimento oficioso.

            …

            … A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa da tese por ela propugnada.

            Depreende-se do discurso recursivo e da respetiva síntese conclusiva que o Digno recorrente alavanca a omissão de pronúncia que assaca à sentença recorrida por nesta não terem sido consideradas as declarações prestadas para memória futura pela ofendida AA para efeito de decisão da matéria de facto imputada ao arguido na acusação.

            Mas, salvo o devido respeito, neste particular o recorrente confunde a falta de pronúncia - que constitui nulidade da sentença quando nesta não se apreciam as questões submetidas ao conhecimento do tribunal - com a não valoração de um meio de prova que, efetivamente, veio a ocorrer na sentença recorrida em relação aquelas declarações prestadas para memória futura, pelos motivos que – correta ou incorretamente ponderados – se deixaram explicitados na motivação da decisão da matéria de facto.

            A omissão que fundamenta a nulidade da sentença, abrangida pela densificação normativa que comporta a alínea c) do nº1 do citado art. 379º do CPP, refere-se a questões concretas a decidir, e, todas as questões que nesta havia a decidir, foram apreciadas na sentença recorrida.

            É verdade que o Tribunal recorrido não valorou nem analisou as referidas declarações prestadas para memória futura pela ofendida … critica e conjugadamente com os demais meios de prova carreados para os autos, mas não deixou de explicitar o motivo por que entendeu não o fazer, ao adiantar na motivação da decisão da matéria de facto que, no seu entendimento, tal meio de prova não podia ser valorado “em face da proibição de prova ínsita no artigo 356, n.ºs 6 e 8, conjugado com o artigo 355.º, ambos do Código de Processo Penal”.

            E, ainda que não tivesse fundamentado, dessa ou de outra forma, a razão de ser da não valoração de um meio de prova, no caso as declarações para memória futura prestadas pela ofendida na fase de inquérito, a nulidade da sentença que então poderia equacionar-se, nunca seria a elencada na alínea c) do nº1 do art. 379º do CPP, mas antes a elencada no disposto na alínea a) do nº1 do citado art. 379º do CPP, por a mesma se mostrar abrangida na densificação normativa de tal preceito legal, a qual, pelas razões já aduzidas não se patenteia. 

            Donde, também se conclui que a sentença recorrida não padece da nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do Art. 379º do mesmo diploma.

      …

            Torna-se evidente que a discordância do Ministério Público recorrente em relação à sentença recorrida se prende com a ponderação nela feita pelo Tribunal recorrido a respeito da valoração a fazer das declarações para memória futura prestadas por testemunha que, chamada a depor em audiência, por crime de violência doméstica, se recusa a fazê-lo, ao abrigo do disposto no art. 134º, nº1, alínea b) do CPP.

            Sobre tal questão, vêm sendo perfilhados diferentes entendimentos que resumiremos na, ainda, que breve resenha jurisprudencial, acessível em ww.dgsi.pt., que se cita:

            a) Ac. TRL 15/09/2021, processo 20/21.1SXLSB.L1-3, em cujo sumário se pode ler:     

            “A decisão sobre a tomada de declarações para memória futura não pode ser vista como um meio de evitar ou propiciar que a vítima exerça o direito de se recusar a depor porque a vítima tem (como o arguido), esse direito a qualquer momento em que tenha de depor ou queira depor, ainda que, sendo apenas ofendida, seja ouvida como testemunha. É o que resulta do disposto no n.º 6 do art. 356.º do CPP e do art. 134.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP.

                O art. 356.º não inibe a leitura/valoração das declarações para memória futura, mas também não pode inibir o direito a recusar-se a depor acrescendo que a lei é rigorosa quando diz que é proibida, em qualquer caso, a leitura de depoimento nessas circunstâncias.

                Poderia argumentar-se que o que o legislador pretendeu foi proibir a leitura nos casos de recusa a depor, mas não a apreciação das declarações prestadas para memória futura.

                Mas, o que temos perante nós, já que entendemos que nem têm de ser lidas as declarações, é que havendo proibição expressa de leitura das declarações de quem se recusa a depor, o legislador está a impedir que essa prova seja valorada.

                Há um reforço de não leitura já expresso pelo legislador no art. 271.º, n.º 8, no qual nos diz que a tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento.

                E há um duplo travão a que tais declarações sejam valoradas como prova na situação dos autos, ou seja, quem as prestou recusa-se a depor em audiência dando lugar como que a uma inutilidade superveniente das mesmas declarações, que o próprio anula retirando-as do âmbito da apreciação da prova.

                Ou seja, apenas dos meios de prova permitidos e, as declarações para memória futura, após a recusa a depor em audiência, já não podem ser consideradas meios de prova.

                O tribunal não tem de as referir na sua fundamentação, nem pode fazê-lo.”

                b) Ac. TRL 23/03/2022, processo 150/21.0PALSB.L1-3, em cujo sumário se pode ler:

                “I - Num processo tendo por objecto a prática de crime de violência doméstica, em que a ofendida se recusa em audiência de julgamento a prestar declarações sobre esse mesmo objecto, não pode ser valorado o seu depoimento anteriormente prestado nos autos, mesmo aquele prestado para memória futura, no decurso do inquérito ou da instrução – porque assim o exige o preceituado no art. 356.º/6, do CPP.

                II - Com efeito, nada tendo sido estabelecido legalmente em sentido contrário, deve prevalecer o disposto no art. 356.º/6, do CPP, porquanto deve triunfar a autonomia da testemunha e os valores que subjazem ao seu direito de recusar prestar depoimento em julgamento, que lhe é conferido legalmente, em detrimento da procura da verdade.”

                c) Ac. TRL 20/04/2022, processo 37/21.6SXLSB.L1-3, em cujo sumário se pode ler:

                “A tomada de declarações para memória futura nos termos do art. 271.º, não prejudica a prestação de depoimento em audiência, sendo possível e não coloque em causa a saúde física ou psíquica do depoente.

                O art. 24.º, n.º 6, do Estatuto da Vítima, regula a prestação de declarações para memória futura, de forma autónoma do art. 271.º, é expresso na preferência por estas declarações e pela excecionalidade do depoimento em audiência, apenas podendo ter lugar o depoimento em audiência se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

                O art. 271.º não exige qualquer avaliação da essencialidade da prestação do depoimento em audiência. É claro na opção por este.

                O art. 356.º, não se refere às declarações para memória futura a que se refere e regula o art. 24.º do Estatuto da Vítima.

                Por força do disposto no art. 24.º do Estatuto da Vítima, aplicável às vítimas de violência doméstica atento o disposto no seu art. 2.º, estas têm o direito de prestar declarações para memória futura, com observância do ali preceituado, e não devem ser chamadas a depor em audiência a não ser que tal se mostre essencial para a descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar (pressupostos cumulativos).

                As declarações para memória futura constituem prova pré-constituída, adquirida em audiência de julgamento antecipada parcialmente, a valorar após a produção da restante prova e sujeitas, tal como a grande maioria das provas, à livre apreciação do julgador.

                Uma vez explicitada a prerrogativa nesta norma prevista, e exercido o direito de recusa a depor ou ao contrário a ele renunciar prestando depoimento, não pode mais tarde a testemunha que tem a qualidade de vítima, querer exercer em sentido diverso o mesmo direito com efeitos retroativos, pois ele já foi exercido.

                Já produziu efeitos probatórios: as declarações uma vez prestadas constituem prova a valorar; são prova já constituída não podendo ser excluídas do universo probatório a valorar pelo juiz, por vontade da vítima.

                As regras materiais e processuais sobre a validade ou aquisição da prova não podem nem estão dependentes da vontade dos particulares, sob pena de a justiça, um dos pilares do Estado de Direito Democrático, ser afinal, nada mais nada menos, que dependente da vontade e dos caprichos dos particulares, que poderiam colocar em marcha todo o aparelho judiciário para como qual castelo de cartas cair pela base sem qualquer efeito, pese embora todos os elementos constantes dos autos permitissem fazer justiça (seja ela condenatória ou absolutória).

                O art. 356.º do CPP não contém qualquer referência ao art. 24.º do Estatuto da Vítima, legislação especial, razão pela qual não lhe é aplicável o seu n.º 6.”

                d) Ac. TRC de 09/11/2022, processo 712/21.5PCAMD.C1, em cujo sumário se pode ler:           “I – Só após a produção da prova em audiência de julgamento deve o tribunal ponderar a necessidade de ouvir quem antes prestou declarações para memória futura, porquanto estas constituem prova pré-constituída, visando, justamente, evitar que a vítima volte a ser inquirida.

                II – Se a vítima comparece em audiência e se, legalmente, recusa a prestação de depoimento, fica vedada a valoração do que antes dissera em sede de declarações para memória futura.”

                e) Ac. TRP de 14/12/2022, processo 82/21.1GBOAZ.P1, em cujo sumário se pode ler:

         “I - A produção antecipada da prova de julgamento, embora derrogue o princípio da imediação, previsto no art. 355.º, do CPP, é obrigatória nos casos dos crimes contra a liberdade e de autodeterminação sexual de menor (cfr. art. 271.º, n.º 2, do mesmo Código), desde as alterações produzidas pela Lei n.º 48/2007, de 29/08, e sob impulso nos demais casos em que poderão estar em causa vitimas especialmente vulneráveis; é um ato sempre presidido por um juiz e segue trâmites próprios de um julgamento, quer quanto à gravação, quer quanto à liberdade para querer depor, embora não inviabilize a repetição do depoimento em audiência, se este for possível e não tiver contraindicações de natureza física ou psicológica por parte do declarante, não sendo obrigatória a sua reprodução em audiência, uma vez que se trata de prova pré constituída que tem livre acesso à consulta, estando na disponibilidade de todos os intervenientes, que assim se podem defender, ficando cumprido o contraditório.

                II - Nos crimes contra a autodeterminação sexual de menor e também de violência doméstica, a prestação de declarações radica numa “opção protetora” do ordenamento jurídico justificada pela especial vulnerabilidade do ofendido; com efeito, visa-se não só assegurar a genuinidade e a credibilidade das declarações prestadas, mas também, no quadro das recomendações do direito europeu sobre a matéria, mitigar o efeito de vitimização secundária que a repetição das inquirições inelutavelmente comporta.

                III - Mesmo que em audiência a vítima exerça o seu direito ao silêncio ou preste declarações em sentido contrário ao anteriormente declarado, tal não inviabiliza nem retira a possibilidade e o dever de o julgador as apreciar, de forma conjugada com a restante prova, e as valorar de harmonia com as regras da experiência e da lógica.

                f) Ac. TRL de 08/02/2023, processo 617/20.7GBMTJ.L1-3, em cujo sumário se pode ler:

                “I - Por força do disposto no art. 356º/2-a), é permitida a leitura de declarações tomadas ao abrigo da referida norma, desde que prestadas perante um Juiz.

                II - O n.º 6 da norma declara a proibição da leitura do depoimento prestado nos termos supra descritos, relativo a testemunha que se tenha validamente recusado a depor.

                III - Em processos de violência doméstica, por força do estatuto de vítima especialmente vulnerável, a que se reportam os art. 87-A/1-b), do CPP, e 2º-b), da Lei 112/2009, de 16/9, é aplicável o regime especial decorrente dos art. 21º/2- d) e 24º/6, da Lei 130/ 2015 de 04/09 (Estatuto da Vítima), relativo à prestação de declarações para memória futura, segundo o qual as vítimas só deverão prestar depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a respectiva saúde física ou psíquica.

                IV - As normas invocadas configuram um regime especial em natureza dos crimes acusados, por se tratar de normas contidas em lei especial com vigência posterior à lei geral, e portanto revogadora desta última no âmbito da respectiva previsão normativa (art. 7º/2, do Código Civil).

                V - Nos termos da legislação aplicável a inquirição de vítimas de violência doméstica, em sede de audiência de julgamento, apenas é legalmente admitida em caso de necessidade, devidamente justificada por despacho prévio que justifique a diligência, sob pena de ser cometida uma irregularidade que afecta o valor do acto praticado.

                VI - A recusa a depor por parte vítima deste tipo de crime, que prestou declarações para memória futura, e, sem justificação, foi chamada a depor em audiência, está subtraída ao regime do nº 6 do art. 356º, do CPP, porque ao inquiri-la o tribunal praticou uma irregularidade relevante, que afecta os termos subsequentes à mesma, ou seja, a validade da recusa em depor.”

                 Mostram-se ilustradas em tal resenha jurisprudencial duas correntes opostas:

            - Uma, sustentadora, essencialmente, no sentido de que quando a testemunha/assistente, tendo prestado declarações para memória futura, depois em audiência legitimamente se recuse a depor, designadamente ao abrigo do disposto pelo art. 134.º, n.º 1, al. b), do CPP (como aqui foi o caso), se mostra inviabilizada a valoração das primeiras, diretamente por força do art. 356.º, n.º 6, do CPP, isso o impondo a efetiva tutela do direito a recusar-se a depor e assim não contribuir para a eventual condenação do arguido com quem tenha vinculação familiar (que é a razão da outorga dessa faculdade); e

             - Outra defensora, também essencialmente, de que uma vez prestadas as declarações para memória futura, e desde que no correspondente ato tenham sido feitas ao declarante as advertências devidas, renunciando à faculdade de não depor e com efeito prestando-as, o facto de em audiência para que seja convocado inverter a posição e manifestar uma tal recusa não pode já apagar o valor da prova que com aquelas primeiras ficara validamente constituída e que, assim, deve ser ponderada em conjugação com a restante prova e segundo os critérios da lógica e da experiência comum.

            A respeito de tais correntes de entendimento o que se patenteia no caso que nos ocupa é que na sentença recorrida sufragou-se a primeira delas enquanto que o Ministério Público ora recorrente defende que nela devia ter sido seguida a segunda.

            Mas então, se este é – como nos parece ser – o cerne da discordância do recorrente em relação à sentença recorrida, tal questão não poderá ser dirimida em sede recursiva com base na nulidade da sentença recorrida, porque, simplesmente, não é possível retirar da decisão nesta sufragada atinente à não valoração das declarações prestadas para memória futura pela ofendida que veio a recusar-se validamente a depor pelas razões nela aduzidas o preenchimento de alguma das nulidades contempladas nas alínea a) a c) do nº1 do art. 379º do CPP – no qual se elencam as nulidades da sentença – porque, face à abrangência normativa que cada uma delas comporta, nenhuma delas existe, pelas razões que deixámos já adiantadas em relação às que vêm invocadas em sede recursiva [ alíneas a) e c) do nº1 do art. 379º do CPP] e que se estendem também em relação à contemplada na alínea b) do mesmo preceito legal, que, apesar de não invocada – e de também se não equacionar na situação em vertente -, sempre seria, como entendemos, de conhecimento oficioso.

            O que vem de dizer-nos reconduz-se, assim, à inevitável conclusão de que a adequada sede para apreciação de tal questão suscitada pelo recorrente seria outra, pela qual o recorrente não enveredou, ou seja, a da impugnação da decisão da matéria de facto.

            Essa impugnação da matéria de facto, pode processar-se por duas vias:    

            - através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada; ou

            - por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP.

      O sujeito processual que discorda da “decisão de facto” da primeira instância pode, assim, optar pela invocação de um erro notório na apreciação da prova, que será o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida (os vícios da sentença poderão ser sempre conhecidos oficiosamente e mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito, conforme acórdão uniformizador do STJ, de 19.10.95) ou de um erro não notório que a sentença, por si só, não demonstre.

      Ao enveredar pela primeira hipótese, a discordância do recorrente que dela lança mão traduz-se na invocação de um vício da decisão recorrida e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; optando pela segunda hipótese, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar.

      Na forma de reagir – com base na invocação dos vícios do Art. 410º, nº2 do CPP - contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto – a denominada “revista alargada” - o tribunal de recurso limita-se a detetar os vícios que a sentença em si mesmo evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art.426, nº1).

            Já na forma de reagir cotra a decisão da matéria de facto com base em erro de julgamento, que se encontra prevista no art. 412º, nº3 e 4 do CPP, o Tribunal de recurso procede à reapreciação das provas examinadas na audiência com vista a aferir da correta ou incorreta valoração das mesmas.

            Mas para tanto, nesta forma de impugnação, o recorrente tem de cumprir as especificações previstas no citado nos nº3 e 4º do citado art. 412º.

            Esboçados, ainda que só esquematicamente, os parâmetros legais que norteiam a impugnação da matéria de facto, enfatizando que por ela não enveredou o recorrente, sempre anotaremos que não se antolha na sentença recorrida a existência de qualquer um vício decisório dos previstos no nº 2 do art. 410º do CPP – insuficiência da matéria e facto provada para a decisão [previsto na alínea a)], contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão [ previsto na alínea b)] e erro notório na apreciação da prova [previsto na alínea c].

A questão em relação à qual o recorrente parece estar inconformado  – que, em tese, mais não é do que não terem sido dado como provados os factos que, imputados ao arguido na acusação, poderiam preencher os elementos constitutivos do crime de violência doméstica por que naquela vinha o mesmo acusado - só poderia ser apreciada por este Tribunal de recurso se o recorrente tivesse enveredado pela impugnação da decisão da matéria de facto com base em erro de julgamento, na perspetiva de que, existindo prova nos autos ( as declarações para memória futura), a ter sido valorada, como no seu entender devia ter sido, se impusesse a prova desses factos, visto que, como já apreciado, a sentença não padece de vícios decisórios de que cumpriria conhecer oficiosamente.

Só por essa via da impugnação com base de erro de julgamento este Tribunal de recurso, na hipótese de discrepar do entendimento do Tribunal recorrido sobre a admissibilidade de valoração dessa prova, e, então, reexaminado a mesma (nos termos do disposto no art. 412º, nº3, alínea b) e nº6 do CPP), poderia concluir, à luz das regras da experiência, como impõe o art. 127º do CPP, que se impunha a prova desses factos, modificando a decisão dos mesmos em conformidade ( art. 431º do CPP).

Contudo, como já se se percebe, os termos em que vem configurado o presente recurso não consente o aproveitamento deste para esse efeito, nem mesmo na sua apreciação se impõe aqui tomar posição sobre a admissibilidade de valoração das declarações para memória futura quando a pessoa que as prestou se recusa validamente a depor na audiência de julgamento.

Donde, manifesto se torna antever o desenlace da apreciação de tal questão, que, em face dos termos em que a mesma vem equacionada no presente recurso relativa à admissibilidade de valoração das declarações para memória futura quando a pessoa que as prestou se recusa validamente a depor na audiência de julgamento, o qual não poderá ser diferente se não no sentido de que a mesma não poderá ser apreciada  por este Tribunal de recurso no âmbito da impugnação ampla da decisão da matéria de facto, pois, sendo este o quadro recursivo próprio  para esse efeito, o mesmo não vem minimamente perspetivado no presente recurso, entendimento este num caso com contornos semelhantes aos do presente caso se mostra perfilhado no ac. deste TRC, de 7.06.2023, acessível in www.dgsi.pt..

E, se a tal se juntar, como já deixámos decidido supra, a impossibilidade de integrar tal questão no âmbito da apreciação das nulidades da sentença - que foi unicamente a vertente recursiva perspetivado pelo recorrente no presente recurso -, nulidades essas das quais, como vimos, a sentença não enferma, o desfecho do recurso só poderá ser o da respetiva improcedência.

Termos em que, se nega total provimento ao recurso, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.


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            III- DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra em:

            1. Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e, consequentemente, confirmam integralmente a sentença recorrida.

            2. Recurso sem tributação. 


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                                                                       Coimbra, 25 de setembro de 2024

                         


            ( Texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários – art. 94º, nº2 do CPP )


(Maria José Guerra – relatora)

 (Maria Teresa Coimbra – 1ª adjunta)

 (Cândida Martinho – 2ª adjunta)