I - O instituto do desconto, regulado nos artigos 80.º a 82.º do Código Penal, assenta na ideia segundo a qual as privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha sofrido em razão do facto ou factos que integram ou deveriam integrar o objecto de um processo penal, devem, por imperativos de justiça material, ser imputadas ou descontadas na pena a que, naquele processo, o agente venha a ser condenado, valendo esta ideia para todas as privações da liberdade anteriores ao trânsito em julgado da decisão do processo: prisões preventivas, obrigações de permanência na habitação e quaisquer detenções.
II - O desconto previsto no artigo 80.º do Código Penal deve ser efectuado na execução da pena de prisão a cumprir pelo condenado, relevando, não só para a determinação do termo da pena, mas também para a determinação dos momentos intermédios relevantes para efeitos de concessão de liberdade condicional que no caso sejam de ponderar.
III - Tal entendimento é mais favorável ao arguido, por permitir sempre uma apreciação da liberdade condicional mais próxima do cumprimento efectivo da pena.
Acordam em conferência os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra
I- RELATÓRIO
1. Por acórdão transitado em julgado em 7.02.2024, foi o arguido … condenado na pena única de 6 (seis) anos de prisão.
«III – LIQUIDAÇÃO DE PENA DE PRISÃO
Por acórdão transitado em julgado a 07-02-2024, o arguido … foi condenado, além do mais, na pena única de 6 (seis) anos de prisão.
Neste contexto, importa proceder ao desconto, no cumprimento da pena a que o arguido foi condenado, de todo o tempo de privação da liberdade que o mesmo sofreu no âmbito dos presentes autos, em virtude da detenção e da medida de coacção privativa da liberdade a que foi sujeito (cfr. artigo 80.º, n.º 1 do Código Penal).
Nesta decorrência, atento o disposto nos artigos 42.º, 61.º e 80.º, do Código Penal, e nos artigos 477.º, n.º 2 e 479.º, n.º 1, do Código de Processo Penal – e sem prejuízo de se entender notificar os condenados, bem como os respectivos defensores, para informar, querendo, outros períodos de privação da liberdade que sejam susceptíveis de ser atendidos em sede de liquidação de pena – procede-se desde já à liquidação da pena de prisão de prisão aplicada ao referido arguido, do seguinte modo:
PENA: 6 anos
DESCONTOS: 1 ano, 4 meses e 14 dias (entre 23-09-2022 e 06-02-2024).
INÍCIO de pena: 07-02-2024.
- Metade da pena (3 anos, i.e. 07-02-2024 [deveria constar 07-02-2027] -1M, 4M e 14D=): 23-09-2025;
- Dois terços da pena (4 anos, i.e. 07-02-2024 [deveria constar 07-02-2028 -1M, 4M e 14D =): 23-09-2026;
- Cinco sextos da pena (5 anos, i.e. 07-02-2024 [deveria constar 07-02-2029 -1M, 4M e 14D =): 23-09- 2027; e
- TERMO da pena (6 anos, i.e. 07-02-2024 [deveria constar 07-02-2030 -1M, 4M e 14D =): 23- 09-2028.»
“Concordo com a liquidação da pena a que foi condenado o arguido …, nos termos da douta promoção que antecede, a qual homologo, mas com a seguinte correcção:
Início da Pena: 7/02/2024
Descontos: 1 ano, 4 meses e 14 dias.
Pena a cumprir: 4 anos, 8 meses e 14 dias
½ da pena: 31/05/26
2/3 da pena: 7/03/27
5/6 da pena: 15/12/27
Termo da pena: 23/09/2028.
Dê cumprimento ao disposto nos art. os 477.º, n.ºs 1 e 4, do Código de Processo Penal e 35.º da Portaria n.º280/2013, de 26/08.
Notifique o arguido para, havendo períodos de detenção a considerar para os efeitos consignados no art.º 80.º, n.º1, do CP, do facto vir dar conhecimento aos autos em 10 dias.
“1.ª …
2.ª Não pode o Ministério Público conformar-se com o sobredito despacho judicial, por entender que o mesmo viola o disposto nos artigos 61.º e 80.º, n.º 1 do Código Penal, bem como do artigo 479.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, na medida em que a posição reflectida no despacho recorrido é a de que o desconto efectuado está a incidir sobre a pena a cumprir (reflectindo-se somente no termo da pena), em lugar de incidir sobre o cumprimento da pena aplicada (com reflexos desfavoráveis para o condenado, na contabilização de todos os marcos temporais relevantes para a concessão de liberdade condicional, dos quais beneficiará o condenado mais tardiamente).
3.ª Somos de parecer que o desconto, nos termos do artigo 80.º, n.º1 do Código Penal, deve incidir sobre a execução da pena (e não sobre a pena concreta), de modo a reflectir o desconto da detenção/prisão preventiva sofrida pelo condenado (em data anterior ao trânsito em julgado) em todos os marcos temporais intermédios, relevantes para efeitos de concessão de liberdade condicional, nos termos do artigo 61.º do Código Penal, i.e., não só no termo da pena, mas também na 1/2, 2/3 e 5/6 da pena.
4.ª No caso em apreço, o despacho recorrido deveria homologar a liquidação de pena feita pelo Ministério Público (com a correcção do lapso de escrita assinalado na transcrição supra feita), nos seguintes termos:
PENA: 6 anos
DESCONTOS: 1 ano, 4 meses e 14 dias (entre 23-09-2022 e 06-02-2024).
INÍCIO de pena: 07-02-2024.
- Metade da pena (3 anos, i.e. 07-02-2027 -1M, 4M e 14D=): 23-09-2025;
- Dois terços da pena (4 anos, i.e. 07-02-2028 -1M, 4M e 14D =): 23-09-2026;
- Cinco sextos da pena (5 anos, i.e. 07-02-2029 -1M, 4M e 14D =): 23-09-2027; e
- TERMO da pena (6 anos, i.e. 07-02-2030 -1M, 4M e 14D =): 23-09-2028.
5.ª Não o entendendo assim, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 61.º e 80.º, n.º 1 do Código Penal, e 479.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, uma interpretação que é desfavorável ao condenado, retardando injustificadamente a apreciação da liberdade condicional aos 1/2, 2/3 e 5/6 da pena aplicada ao condenado.
….”
A) Delimitação do objeto do recurso
…
Assim, no caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir consiste em saber se o desconto previsto no art. 80º, nº1 do Código Penal deve ser efetuado no cumprimento da pena de prisão ou na medida da pena.
Com vista ao conhecimento da enunciada questão objeto do presente recurso, importa ter presente o que consta do despacho recorrido e da promoção do Ministério Público que o precede, supra transcritos.
A questão que se dirime no presente recurso prende-se com a de saber como é que deve ser feita a liquidação da pena de prisão aplicada ao arguido quando existam períodos de privação de liberdade a descontar, nos termos do disposto no art. 80º do Código Penal.
O entendimento do Ministério Público recorrente é no sentido de que esse desconto previsto no artigo 80.º, n.º1 do Código Penal, deve incidir sobre a execução da pena (e não sobre a pena concreta), de modo a refletir o desconto da detenção/prisão preventiva sofrida pelo condenado (em data anterior ao trânsito em julgado) em todos os marcos temporais intermédios, relevantes para efeitos de concessão de liberdade condicional, e, não só, no termo da pena.
Posição esta igualmente perfilhada no parecer emitido nos autos.
Diferente entendimento foi assumido pelo Mmo. Juiz a quo no despacho recorrido, o qual traduz a efetuação do desconto previsto no art. 80º do Código Penal na pena concreta – no caso única – aplicada ao arguido.
De acordo com o disposto no art. 80º do Código Penal:
“ 1 - A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
2 - Se for aplicada pena de multa, a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação são descontadas à razão de um dia de privação da liberdade por, pelo menos, um dia de multa.”
O instituto do desconto, regulado nos artigos 80º a 82º do C. Penal, assenta na ideia básica segundo a qual as privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha sofrido em razão do facto ou factos que integram ou deveriam integrar o objeto de um processo penal, devem, por imperativos de justiça material, ser imputadas ou descontadas na pena a que, naquele processo, o agente venha a ser condenado.
Valendo esta ideia para todas as privações da liberdade anteriores ao trânsito em julgado da decisão do processo: prisões preventivas, obrigações de permanência na habitação e quaisquer detenções (não só as referentes ao 254º mas também, v. g. as que resultem do artigo 116º, ambas do Código Processo Penal.”, – veja-se, neste sentido, o ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 17.06.2014, acessível in www.dgsi.pt. e o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime – Notícias Editorial, pág. 297.
Não havendo previsão legal expressa a respeito da concreta forma de proceder ao desconto da privação da liberdade resultante da aplicação do disposto no art. 80º do C. Penal, vêm sendo desenhadas na jurisprudência duas correntes: uma delas que propende para que esse desconto seja efetuado no cumprimento da pena e, a outra, que defende a efetuação desse desconto na pena propriamente dita.
Os entendimentos que sustentam estas duas correntes jurisprudenciais mostram-se refletidos no caso em vertente, pois, enquanto que no despacho recorrido o Mmo. Juiz a quo enveredou pela efetuação do desconto na pena propriamente dita, já o Ministério Público recorrente propende para que esse desconto deva ser feito no cumprimento da pena, de modo a refletir o desconto da detenção/prisão preventiva sofrida pelo condenado (em data anterior ao trânsito em julgado) em todos os marcos temporais intermédios, relevantes para efeitos de concessão de liberdade condicional, e, não só, no termo da pena.
Adiantando já, diremos que, sem prejuízo de ambas as posições se afigurarem defensáveis, aquela que, a nosso ver, se apresenta mais correta é a que propende para que o desconto previsto no art. 80º do C. Penal seja efetuado na execução da pena de prisão a cumprir pelo condenado, relevando, não só para efeitos de determinação do termo da pena, mas também para a determinação dos momentos intermédios relevantes para efeitos de concessão de liberdade condicional que no caso sejam de ponderar.
Tal entendimento mostra-se mais favorável ao arguido por permitir sempre uma apreciação da liberdade condicional mais próxima do cumprimento efetivo da pena, como, aliás, bem se reflete no caso em vertente, visto que, havendo consenso entre o despacho recorrido e a tese defendida pelo recorrente Ministério Público quanto ao desconto a fazer para efeito do disposto no art. 80º do C. Penal ( 1 ano, 4 meses e 14 dias ) e quanto ao momento do termo da pena ( 23.09.2028), a única divergência desses entendimentos acaba por refletir-se nos marcos temporais intermédios, relevantes para efeitos de concessão de liberdade condicional, que no caso são apenas os que dizem respeito ao meio (1/2) da pena e aos dois terços ( 2/3) da pena [ e, não também, ao de 5/6 porque a pena a cumprir é de 6 anos de prisão – art. 61º, nº4 do C. Penal], uma vez que, enquanto o entendimento seguido no despacho recorrido aponta, como momentos em que se atinge a liberdade condicional ao meio (1/2) da pena aplicada e aos dois terços (2/3) da pena aplicada, o de 31.05.2026 e de 7.03.2027, respetivamente, já o entendimento defendido pelo recorrente Ministério Público aponta o alcance desses momentos em 23.09.2025 (o do 1/2 da pena) e em 23.09.2026 (o dos 2/3 da pena), mostrando-se, por isso, este último entendimento, como se vê, manifestamente, mais favorável ao arguido.
Deve, pois, proceder-se à liquidação da pena conforme o entendimento sufragado nos autos pelo Digno Magistrado do Ministério Público na promoção que antecede o despacho recorrido, revogando-se este e determinando a sua substituição por outro que acolha aquele entendimento.
Donde, sem necessidade de mais alongadas considerações, procede o recurso.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em:
1. Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que acolha o entendimento adiantado pelo Ministério Público quanto à liquidação da pena na promoção exarada nos autos que o precede.
2. Recurso sem tributação.
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Coimbra, 25 de setembro de 2024
( Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )
(Maria José Matos – 1ª adjunta)
(Rosa Pinto – 2ª adjunta)