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FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
MEIOS DE PROVA
MEIOS DE OBTENÇÃO DE PROVA
EXAME CRÍTICO DA PROVA
JOVEM DELINQUENTE
OMISSÃO DE PRONUNCIA
Sumário
I - O dever de fundamentação das decisões judiciais, pressupostos do chamado “processo equitativo”, é uma realidade, ainda que com contornos variados, imanente a todos os sistemas de justiça que nos são próximos. II - O processo equitativo, garantido no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, pressupõe a motivação das decisões judiciárias, que consiste na correcta enunciação dos pontos de facto e de direito fundantes das mesmas, em ordem a garantir a transparência da justiça, a persuadir os interessados e a permitir-lhes avaliar as probabilidades de sucesso nos recursos, assente ainda que uma motivação deficiente ou inexacta deve ser equiparada à falta de motivação, mas não obriga a uma resposta minuciosa a todos os argumentos das partes, sendo a extensão da motivação em função das circunstâncias específicas, nomeadamente da natureza e da complexidade do caso. III - Da revisão constitucional de 1997, em que o artigo 205.º, n.º 1, veio substituir o artigo 208.º, n.º 1, resultou um alargamento do âmbito da obrigação de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas "nos termos previstos na lei" para o serem "na forma prevista na lei", com menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação. IV - A sentença deve descrever os factos considerados provados e não provados seguindo à lógica própria de quem descreve um episódio concreto da vida real e em apoio dos primeiros deve justificar a respectiva decisão, isto é, fazer a análise crítica da prova produzida e esclarecer quais os meios de prova que conduziram à convicção anteriormente enunciada. V - A motivação da convicção no âmbito da análise crítica da prova implica, nomeadamente, a indicação expressa de quais os factos provados que cada testemunha revelou conhecer, quais os elementos que dos mesmos depoimentos permitem inferir a interpretação e conclusão a que o tribunal chegou, quais as razões que o levam a valorar determinado meio de prova em detrimento de outro ou outros meios de prova com ele contraditório, quais as razões porque não foi dada relevância a determinada prova ou meio de prova, quais as razões porque julgou relevantes, ou irrelevantes, certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória a prova resultante de documentos particulares, ou retirou certas conclusões da inspecção ao local. VI - Enunciar o que cada arguido ou testemunha disseram sem refutar, minimamente que seja, o teor dessas declarações e sem relacionar o seu teor com a prova dos factos a, b ou c não é fazer uma aturada e exigível análise crítica da prova. VII - O tribunal está obrigado a ponderar a aplicação do regime dos “jovens delinquentes”, do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, sempre que o arguido, à data dos factos, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos, mas já não a sua efectiva aplicação, por não ser automática. VIII - Esta omissão de pronúncia determina a anulação parcial do acórdão recorrido, no que se refere à não ponderação da possibilidade de atenuar especialmente a pena, de acordo com o regime desse diploma de 1982, devendo ser o tribunal recorrido, pelos mesmos juízes, a proceder a essa ponderação, e não a Relação, por não estar em condições de suprir o vício.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra: I - RELATÓRIO
1. AS CONDENAÇÕES RECORRIDAS
…, por acórdão datado de 14 de MARÇO de 2024, foi – e na parte que importa à decisão[1] deste recurso – decidido:
1. «Condenar o arguido AA …, pela prática em co-autoria de um crime de tráfico agravado, previsto e punido pelos artigos 21º, nº1, e 24º, al.h), ambos do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C anexa a este Diploma Legal, como reincidente, na pena de 7 (sete) anos de prisão;
2. Condenar a arguida BB …, pela prática em co-autoria e em concurso efectivo, de um crime de tráfico agravado, previsto e punido pelos artigos 21º, nº1, e 24º, al.h), ambos do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C anexa a este Diploma Legal, na pena de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
3. Condenar o arguido CC …, pela prática em co-autoria de um crime de tráfico agravado, previsto e punido pelos artigos 21º, nº1, e 24º, al.h), ambos do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C anexa a este Diploma Legal, na pena de 6 (seis) anos de prisão;
4. Condenar a arguida DD …, pela prática em co-autoria de um crime de tráfico agravado, previsto e punido pelos artigos 21º, nº1, e 24º, al.h), ambos do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C anexa a este Diploma Legal, na pena de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão;
5. Condenar o arguido EE …, pela prática em co-autoria e em concurso efectivo, de um crime de tráfico, previsto e punido pelos artigos 21º, nº1, do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C anexa a este Diploma Legal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;
6. Condenar o arguido FF …, pela prática em co-autoria e em concurso efectivo, de um crime de tráfico, previsto e punido pelos artigos 21º, nº1, do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C anexa a este Diploma Legal, e como reincidente, na pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão; 7. Condenar o arguido GG … pela prática em co-autoria e em concurso efectivo, de um crime de tráfico, previsto e punido pelos artigos 21º, nº1, do Decreto-Lei nº15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela I-C anexa a este Diploma Legal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses e prisão, suspensa na sua execução por igual periodo e sujeita a regime de prova».
2.OS RECURSOS Sete dos arguidos recorreram do acórdão, … 2.1. Inconformada, a arguida BB … recorreu …, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. «…
2. O acórdão recorrido enferma de erro de julgamento, pois o Tribunal a quo, relativamente aos factos provados nos pontos 10; 11; 15; 17; 18; 19; 25 e 28, dá como provada factualidade da qual não se fez prova na audiência de Julgamento.
…
22. O Tribunal a quo desconsiderou, as declarações confessórias da Recorrente, e não fundamenta porque é que não as teve em consideração a seu favor,
23. Ora, a falta de fundamentação implica a nulidade da sentença nos termos da al. a) do número 1 do artigo 379º e n.º 2 do artigo 374º do CPP, nulidade que expressamente se invoca para todos os efeitos legais.
24. Sem prejuízo do que supra se deixou dito no sentido da sua absolvição, entende a Recorrente que a pena de prisão que lhe foi aplicada, em qualquer caso, se mostra desporporcionada porque excessiva e reveladora de um carácter estritamente punitivo.
…
29. Ora, o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que a circunstância da infracção ter sido cometida em estabelecimento prisional não produz efeito qualificativo automático, antes exigindo a sua interpretação teleológica, por forma a verificar se a concreta modalidade da ação, a concreta infração, justifica o especial agravamento da punição querida pelo legislador.
30. A Canabis é considerada uma droga leve, é a menos nociva;
31. Esta circunstância tem de ser tida em conta na medida da pena, isto porque, a ilicitude não tem a mesmo peso, face à diferente nocividade social das várias drogas.
32. Mas à Recorrente não lhe foi apreendido qualquer estupefaciente;
33. Por hipótese se entendermos que “a placa e os dez gramas” que a Recorrente levou para o Estabelecimento Prisional eram mesmo canábis resina;
34. Ora, dez gramas não são uma grande quantidade de estupefaciente;
35. E a tal “ placa” podia ter qualquer peso; na realidade, não se sabe, nem a Recorrente.
36. À Recorrente é lhe imputado a prática de um único ato isolado de tráfico, a ilicitude mostra-se diminuída, atento o tipo (canábis resina) e a quantidade (“dez gramas”) de produto estupefaciente.
37. Assim, estamos perante factos que integram a prática de um crime de tráfico de menor gravidade previsto e punido pelo art.25.º al. a) do Decreto-Lei 15/93 de 22 de Janeiro.
…
41. Caso se entenda, que se mantém, a qualificação dos factos provados no crime de tráfico 42. A Recorrente não aceita a escolha que o Tribunal fez pela pena privativa da liberdade, nem a medida da pena aplicada.
…». 2.2. Inconformado, o arguido GG … recorreu … finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«A)
Dos elementos de prova obtidos não pode ter-se como provada a factualidade constante dos factos 7, 27 e 28 da “matéria dada como provada”, no que ao recorrente … diz respeito,
…
C)
De facto, o que se sabe é que o recorrente GG se deslocou a Leiria num carro que não era seu, e que no mesmo foi encontrada canábis resina.
…
E)
O saco encontrado na viatura e que continha o estupefaciente estava fechado e não deixava ver o respectivo conteúdo.
F)
Não se alcança como pode concluir-se, sem mais elementos de prova, que o recorrente pudesse ter conhecimento do conteúdo do saco;
G)
Por outro lado, também não se entende como se pode concluir que o recorrente era possuidor, ou copossuidor, do respectivo conteúdo, pois isso pressupõe ser titular de uma relação de domínio sobre o mesmo, o que não se apurou.
H)
Também não poderá ser considerado transportador, na medida em que não era o proprietário da viatura e também não se determinou que exercesse qualquer direcção efectiva sobre a mesma.
…
L)
Consequentemente, deveria o arguido ser absolvido do crime de tráfico, por falta de prova quanto à verificação dos elementos do tipo.
M)
Mesmo que se entenda ter ocorrido a prática do crime de tráfico, não deveria o arguido ser condenado na pena de 4 anos e 6 meses, não só por exagerada face aos elementos de facto apurados, mas ainda por não se ter tido em conta a idade do arguido à data dos factos (20 anos), e o dever de adequar a pena de acordo com o estabelecido no Dec.-Lei 401/82.
…». 2.3. Inconformado, o arguido CC … recorreu – … finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«A) Que se deve verificar a alteração da qualificação jurídica do crime de tráfico de estupefacientes agravado na forma consumada para a forma tentada, concluindo-se que quanto ao arguido recorrente CC, e tendo em conta os factos dados como provados, que praticou, como coautor, um crime de tráfico de estupefacientes agravado, apenas na forma tentada, previsto e punido nos termos do art. 21.º, n.º 1, e art. 24.º, al. h), do DL n.º 15/93, de 22 de janeiro, - caindo a circunstância qualificativa e deveria, portanto, este tipo de crime, objecto do presente recurso.
B) Quanto ao recorrente, a conduta que foi considerada integradora do crime de tráfico de estupefacientes agravado foi a de venda deste produto em estabelecimento prisional.,
C) Da decisão ora recorrida, resulta da matéria de facto provada que o material estupefaciente não entrou no Estabelecimento Prisional e não seria sequer introduzido pelo Arguido, ora Recorrente.
D) Assim, entende o arguido ora Recorrente que deveria ter sido punido como coautor apenas na forma tentada do crime agravado previsto no art. 24.º, al. h), do DL n.º 15/93 quepuneexpressamenteaconduta detráfico quando a“infração tiversido cometida em estabelecimento prisional” — ora, não só o ato de venda não se chegou a verificar, como todos os outros atos realizados pelos outros arguidos não foram “cometidos em estabelecimento prisional”- que ficou pelo estádio da tentativa.
E) Entende o Recorrente que a factualidade provada integra, tão só, um crime de tráfico de estupefacientes agravado apenas na forma tentada.
F) Assim, operando o crime de tráfico de estupefacientes agravado na forma tentada sempre e, atendendo a que o A. não têm antecedentes criminais, uma pena de prisão efectiva mostra-se desadequada às circunstâncias do caso, nomeadamente à gravidade da ilicitude e ao grau deculpa.
…
L) Entende o Recorrente, que a aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução acautela de forma suficiente e adequada as finalidades da punição, o que se requer.
M) Atendendo à possibilidade de suspensão da execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos, importava previamente que Tribunal “a quo” optasse pela suspensão da pena privativa de liberdade porquanto, esta realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (cfr. art. 70º Código Penal).
…». 2.4. Inconformados, os arguidos EE … e FF … recorreram … finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«…
II- Os recorrentes impugnam os pontos 7, 8, 9, 10, 27, 28 e 29, da matéria de facto dada como provada, …
III - Não se provou quem era o proprietário do produto estupefaciente, nem para quem seria a entrega, reafirmamos não se provou o conhecimento dos Recorrentes da existência do produto estupefaciente.
IV - Impugna-se igualmente os pontos 27, 28 e 29, …
V- Como podemos verificar na falta de prova o Tribunal a quo baseou a condenação dos recorrentes apenas em intercepções, assim padece o douto acórdão de nulidade da prova carreada para os autos para fundamentar a decisão.
…
VII - O Tribunal Constitucional considerou igualmente que guardar os dados de tráfego e localização de pessoas restringe de modo desproporcionado os direitos à reserva da intimidade e da vida privada.
…
X - Assim como o douto Acórdão padece de nulidade por Insuficiência da matéria de facto dada como provada, nos termos do artigo 410º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Penal. O arguido impugna os pontos da matéria de facto dada como provada: Pois foram só acompanhar amigos e ignoravam por completo a existência de haxixe. Assim, a matéria de facto deverá ser alterada pela insuficiência de prova
…
XII - Mesmo assim que se entenda pela condenação dos recorrentes cairá na previsão do art.25º, do DL 15/93, ou seja um tráfico de menor gravidade, fala-se num transporte de apenas de haxixe 98g,
XIII - Houve uma notória violação da medida da pena aplicada ultrapassado a medida da culpa concreta dos arguidos face aos factos dados como provados, tendo ainda, o acórdão em crise violado disposto nos artigos 40º, n.º 2 e 71, n.º 1 al. a), do Cód Penal;
…
XV - A ser o entendimento desse Venerando Tribunal a condenação dos arguidos, deverá ser numa pena inferior a 5 anos e suspensa na sua execução, nos termos do art.º 50º do Código Penal.
…» 2.5. Inconformada, a arguida DD … recorreu …, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«…
2º- Impugna ainda o Acórdão em sede de erro notório na apreciação da prova do art 410º CPP.
3º- Das motivações do presente recurso apurou-se a singela violação do art 32º nº 2 da CRP.
4º- Apurou ainda da violação do art 40º do DL 15/93 e da Lei 30/2000, art 22º,23º,50º do CP.
5º- É igualmente patente no acórdão aqui em crise que não se deu materialização adequada ao princípio da livre apreciação da prova do art 127º CPP.
6º- As testemunhas da ACUSAÇÃO em nada contribuíram para a responsabilização criminal da arguida além das suas declarações e das escutas telefonicas
7º- A arguida recorrente é detida em flagrante delito; referindo que desconhecia o conteúdo do pacote que lhe foi entregue por terceiro momentos antes da detenção
8º- O tribunal A Quo foi mal quando se fundamenta e estriba nas escutas telefonicas. (que são meros meios de obtenção de prova)
9º-Não feita qualquer prova que a existir produto estupefaciente introduzido no EP de LEIRIA, a arguida recorrente tivesse contribuindo para tal fim
10º- Foi e é patente a contradição notória e insanável entre os factos provados com os não provados para a fundamentação para a imputação ao arguido recorrente a pratica do crime de trafico de produtos estupefacientes.
11º- Bastou-se o tribunal A Quo pela singela e superficial afirmação que pelas escutas a arguida pretendeu através do co arguido AA … introduzir produto estupefaciente no EP ...
…». 2.6. Inconformado, o arguido AA … recorreu … finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«…
2º- Impugna ainda o Acórdão em sede de erro notório na apreciação da prova do art 410º CPP.
3º- Das motivações do presente recurso apurou-se a singela violação do art 32º nº 2 da CRP.
4º- Apurou ainda da violação do art 40º do DL 15/93 e da Lei 30/2000, art 22º,23º, 50º do CP.
5º- É igualmente patente no acórdão aqui em crise que não se deu materialização adequada ao princípio da livre apreciação da prova do art 127º CPP.
6º- As testemunhas da ACUSAÇÃO em nada contribuíram para a responsabilização criminal da arguida além das suas declarações e das escutas telefonicas
7º- A arguida recorrente é detida em flagrante delito; referindo que desconhecia o conteúdo do pacote que lhe foi entregue por terceiro momentos antes da detenção
8º- O tribunal A Quo foi mal quando se fundamenta e estriba nas escutas telefonicas. (que são meros meios de obtenção de prova)
9º-Não feita qualquer prova que a existir produto estupefaciente introduzido no EP de LEIRIA, a arguida recorrente tivesse contribuindo para tal fim
10º- Foi e é patente a contradição notória e insanável entre os factos provados com os não provados para a fundamentação para a imputação ao arguido recorrente a pratica do crime de trafico de produtos estupefacientes.
11º- Bastou-se o tribunal A Quo pela singela e superficial afirmação que pelas escutas a arguida pretendeu através do co arguido AA … introduzir produto estupefaciente no EP ...
…
20º- O Tribunal A Quo não diligenciou como era seu dever de procurar a descoberta da verdade bastando-se nas escutas telefónicas e mesmos nas declarações da arguida e co arguido AA …
…». 3.AS RESPOSTAS AOS RECURSOS 3.1.O Ministério Público em 1ª instância respondeu aos seis recursos (de 7 arguidos), opinando que eles não merecem provimento, defendendo o sentenciado em 1ª instância. 3.2. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se neles, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento aos recursos. 4. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por deverem ser os recursos aí julgados, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.
II – FUNDAMENTAÇÃO 1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso
…
Desta forma, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, são estas as questões a decidir por este Tribunal em cada recurso: RECURSO 1 – de BB …
· Há alguma nulidade de sentença por falta de fundamentação da sua convicção?
· Há erro de julgamento quanto aos factos 10, 11, 15, 17, 18, 19, 25 e 28?
· Há erro na qualificação jurídica dos factos, devendo ser imputado ao arguido o crime de tráfico de menor gravidade p.e p. pelo artigo 25º/1 do DL 15/93, de 22/1?
· A pena do crime de tráfico foi excessiva?
· É de ponderar a aplicação de uma suspensão da execução da pena de prisão? RECURSO 2 – de GG …
· Há erro de julgamento quanto aos factos 7, 27 e 28?
· Há erro de qualificação jurídica dos factos?
· Deveria ter sido atenuada especialmente a pena por aplicação do DL 401/82? RECURSO 3 – de CC …
· Deveria ter sido condenado pela tentativa e não pela consumação?
· A pena de prisão aplicada foi excessiva?
· É de ponderar a aplicação de uma suspensão da execução da pena de prisão? RECURSO 4 (conjunto) – de EE … E FF …
· Há algum vício do artigo 410º, nº 2, alínea a) do CPP?
· Há erro de julgamento quanto aos factos 7, 8, 9, 10, 27, 28 e 29?
· Há alguma nulidade de prova por uso de intercepções telefónicas?
· Há erro na qualificação jurídica dos factos, devendo ser imputado aos arguidos o crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25º/1 do DL 15/93, de 22/1?
· A pena de prisão aplicada foi excessiva?
· É de ponderar a aplicação de uma suspensão da execução da pena de prisão? RECURSO 5 – de DD …
· Há algum vício do artigo 410º, nº 2 do CPP?
· Há erro de julgamento?
· Deveria ter sido condenada pela tentativa e não pela consumação?
· Há erro na qualificação jurídica dos factos, devendo ser imputado à arguida o crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25º/1 do DL 15/93, de 22/1?
· A pena de prisão aplicada foi excessiva?
· É de ponderar a aplicação de uma suspensão da execução da pena de prisão? RECURSO 6 – de AA …
· Há algum vício do artigo 410º, nº 2 do CPP?
· Há erro de julgamento?
· Deveria ter sido condenado pela tentativa e não pela consumação?
· Há erro na qualificação jurídica dos factos, devendo ser imputado ao arguido o crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25º/1 do DL 15/93, de 22/1?
· A pena de prisão aplicada foi excessiva?
· É de ponderar a aplicação de uma suspensão da execução da pena de prisão?
2. DO ACÓRDÃO RECORRIDO 2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso[2](transcrição):
«…»
2.2. O tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso[3](transcrição): «…».
2.3. Motivaram-se assim tais factualidades (transcrição): «Para formação da convicção do Tribunal, foram tidos em consideração os elementos de prova constantes dos autos, na sua globalidade, bem como a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, designadamente testemunhal, prova essa apreciada e avaliada à luz dos critérios da normalidade e segundo as regras de experiência comum e a sua livre convicção (cfr. Artigo 127.º do Código de Processo Penal).
O Tribunal formou assim a sua convicção:
Todos os arguidos, usaram, validamente, o direito ao silêncio; ouvidas as declarações prestadas pela arguida DD … que referiu ter sdido contatada pelo AA que lhe disse que o CC lhe ia entregar uma coisa para ir entregar à cozinheira da prisão que entrou em comtato telefonco com ela; tal aconteceu por duas vezes e a terceira foi quando foram presos; o AA é namorado dela que está preso no …; o AA contatou a telefonicamente de um telemóvel e disse-lhe que uma pessoa lhe ia entregar uma encomenda que não sabia o que era, mas era para entregar à cozinheira; não sabia qual o conteúdo da encomenta; o CC mandou-lhe mensagem pelo Whatsap a dizer que já estava no local num carro com a namorada e ele deu-lhe um saco plástico preto (do lixo) fechado e amarrado com um nó; foi a … que lhe entregou e depois foi apanhada; a cozinheira ia ligar-lhe para se encontrar na Rua … com ela, das outras vezes a encomenda estava dentro de um saco transparente com jornais; fazia isto como favor ao namorado mas não sabe explicar porque o fez; não conhecia o CC nem a …; não sabia qual era o destino da encomenda; visitava com frequeência o namorado na prisão, alguma vezes ia com a sogra; não conhece os outros arguidos; ouvidas as declarações da HH … que esclareceu que estava a tentar comprar casa e pediu um credito que não foi aprovado e mudou para o Banco 1... onde abriu uma conta própria e o irmão foi-lhe pedindo para receber dinheiro na conta e transferências para comprar telemóveis, tabaco e onças porque era mais barato que na prisão; desconhecia que o irmão continuava com as drogas, nem tão pouco na prisão, porque ele lhe tinha dito que nunca a iria”lixar”; nunca chegou a saber se o irmão comprava os telemóveis dentro da prisão ou se os metia lá dentro; pouco ou nada conseguia poupar; estava afastada do irmão por zangas com a mulher dele, mas quando ele foi preso houve uma aproximação; no fundo a conta era utilizada para advogada do irmão, um barracão e por algum dinheiro da prisão; fazi carregametos de telemóveis a pedido do irmão; não conhece nenhum dos outros arguidos; BB …, cozinheira no E.P., diz que o AA foi ter com ela a perguntar se ela conseguia por um telmovel no E.P, e ela fez entrar dois telemóveis e uma barra de droga que não sabe dizer qual era; o AA trabalhava com ela na cozinha e isto aconteceu três vezes; AA … referiu que está no E.P. de … desde 30.7.020 e conheceu o II … no E.P. e em outubro foi trabalhar para a cozinha e conheceu a cozinheira BB e conheceu o JJ … porque também estava preso; o CC … não conhece; KK … estava também no pavilhão; nunca transportou da cozinha para as celas ou vendeu placas de canábis; a BB nunca lhe entregou Canabis nem ninguém lhe entregou; não conhece a HH … mas sabe que éirmã do II …; a DD é compamheira dele; Sopesado o depoimemto das testemunhas: LL …, cozinheira no …, trabalhou com a BB e o AA … que estava recluso também trabalhou na cozinha como ajudante, chegou a trocar uma mensagem com o AA, mas este nunca disse quem era, e queria trocar com a BB; Chegiu a falar com ele se tinha algo a ver com entrada de droga na cadeia, mas este negou sempre e aquele disse-lhe que a namorada tinha feito um favor à BB; MM …, conhece o II … mas nunca cumpriu pena com este, e o II apenas lhe chegou a mandar mensagens para o telemóvel quando aquele esteve preso em Leiria e pediu se ele lhe podia levar telemóveis e uma vez mandou dinheiro e inventou que tinha sido intercetado pela GNR para que o II … lhe deixasse de enviar SMS’s, 900€ que lhe entregou a HH … num supermercadoe em … e era para comprar telemóveis e não chegou a ir comprar nada e disse-lhe que tinha ficado sem o dinheiro por ter sido apanhado pela GNR; era telemóveis não droga ; após cortou relações com ele;NN …, esteve preso no E.P. …, conheceu o II … e chegou a usar telemóvel que este lhe emprestou e já vinha também o cartão; e depois quando foi transferido devolveu-o; não conhece o … mas só de vista eo … também de bom dia e boa tarde; chegou a fumar um “piquinho” de haxixe que comprou a um recluso da cela do OO , mas não o conhecia por gordo; nunca comprou droga ao II …; PP …, esteve preso no EP … e conhece o AA que também lá esteve preso e chegou a usar o telemóvel deste para falar; desconhece qualquer situação de entrada de droga no EP; o que sabe era o que se comentava dentro da prisão quer através de recluos quer de guardas priionais; MM …, esteve no EP … e chegou a pedir à mulher e à tia para lhe fazerem paragamentos de 20, 25€, de 15 em 15 dias, duas ou 3 vezes para comprar onças de tabaco e elas faziam a transferência para um recluso da cela ao lado de quem não sabe o nome nem o numero de conta; QQ …, tia … que lhe pediu para fazer transferências para comprar tabaco para ele consumir quando estava preso e também chegou a dar dinheiro à …; RR …, preso no E:P. …, conhece o II … e conhece o … porque esteve a cumprir pena em … com eles; tinha um telemóvel com ele do qual já não recorda o numero e quando chegou à cela ele já lá estava; nunca comprou droga na cadeia mas tão só tabaco; SS …, esteve entre dezembro de 2019 a junho de 2021 no EP ...; cruzou-se com o II … e houve troca de dinheiro entre os dois para compra de tabaco, através de transferência de multibanco feita para a namorada …; o II … emprestou-lhe telemóvel que usava ele e o irmão, …, devolveu-o quandos se foi embora; o telemoveltanto estava com ele como estava com o II …; apenas vendia tabaco; TT …,o SS … é o seu namorado; recebeu transferências bancárias na conta dela para tabaco para o namorado vender na cadeia;UU …, cumpriu pena no EP …, conhecia a maior parte dos reclusos mas nunca falou com o II … por telefone; confrado com a audição de escutas telefónicas o mesmo referiu não reconhecer nenhuma das vozes que ouviu; NN …, inspector da Polícia Judiciária, referiu que a sua intervenção foi ouvir pontualmente algumas intercepções telefonicas e teve intervenção em três momentos: uma apreensão de estupefacientes no parque de estacionamento do Aldi e junto do café A... e nas apreensões em casa da BB sempre na sequência das escutas que se vieram a confirmar com as apreensões; VV …,inspector da Polícia Judiciária,teve intervenção na detenção junto do EP ... em Junho de 2021 num Smart branco na zona do Aldi , o FF e o EE … e o GG, dentro do carro no banco d afrente tinham haxixe, telemóveis e auriculares e posteriormente com o CC …,através de vigilâncias e intercepções telefónicas sabiam que ia haver entrega de estupefacientes e de telemóveis; sabiam que ia haver uma tentativa de entrega a uma cozinheira do E.P., ficou na vigilância do CC … que saiu acompanhado pela … que se deslocaram da … para … onde se encontraram com a DD e viu a entrega da Julieta, pendura, num Peugeot e foi abordada a DD que tinha um saco com dinheiro e uma placa de haxie; na buca em caa … deteram mais ioito placas com o mesmo código; fez a abordagem à DD e depois não participou nas outras diligências; WW …, inspetor da Polícia Judiciária, teve uma intervenção apenas em breves acompanhamentos doas escutas telefónicas do KK …, porque o conhecia pela voz que estava preso no E.P. … e no âmbito d einterior de inquérito esteve em prisão domiciliária;JJ …,esteve na investigação e instruiu praticamente todo o processo; todo o histórico indicava que ia ser feita entrega de estupefaciente no E.P. … e o AA sugeria uma parceria com o KK …; estava previsto ser entregue uma placa de haixe à cozinheira e após o AA ter sido infiormado que a namorada tinha sido presa houve buscas às celas onde foram apreendidos telemóveis e posteriprmente houve buscas nas celas com a participação da P,J, mas já não participou; XX …, não conhece a HH … mas chegou a fazer transferências para a conta dela a pedido do pai, EE …quando este estava preso em … para tabaco que lhe telefonava da cadeia a pedir; YY …, não conhece a HH …mas chegou a receber dinheiro na conta por causa da ex patroa que lhe devia dinheiro, mas não sabe quem foi, conhece o ZZ … porque teve um caso com ele em 2018 e uma vez, quando estava preso em … ele pediu uma vez para enviar dinheiro para tabaco e transferiu para a conta que ele tem na prisão; TT …, VV …, WW …, AAA …, amiga da BB esclareceu o Tribunal sobre as condições sociais e personalidade desta e BBB …, esclareceram o Tribunal sobre as condições e personalidade dos arguidos que as arrolaram como defesa; conjugada com a análie dos exames periciais de fls.1993, 2107 e 2108, das escutas telefónicas, cujas transcrições constam do apenso B junto aos autos, na prova documental, mormenete: autos de informação de fls.9, 289 e de fls.16 a 18, 61, 62 do inquérito 194/21....; prints da Identificação Civil, fichas biográficas e de recluso de fls.10, 11 a 14, 20, 26 a 31, 278 a 280, 341, 381 a 384, 460 a 462, 466 a 478, 482, 638, 764, 1486 1555, 1556, 1861, 1862, 1864, 1890, 1891, e fls. 11 a 15, 20, 49 a 54 do inquérito 194/21....; relatórios de fls.32 a 34, 78 a 82, 126 a 133, 185, 186, 301 a 307, 388 a 395, 539 a 547, 668 a 679, 818 a 825, 1104 a 1106, 1136 a 1138 e de fls.107 a 110, 160 a 162, 199 a 203, 231 a 234, 265 a 267 e 284 a 289 do inquérito 194/21....; informação da S.S. de fls.65 a 67, de fls.98 a 100 do inquérito 194/21....; informação do Instagram de fls.99, 194; elementos bancários de fls.144 a 147, 190, 191, 204 a 270, 560 a 574, 616 a 621, 1460 a 1465, 1729 a 1732, 1812; autos de diligência de fls.276, 288, 425, 655, 656, 767 a 767, 931 e de fls.66 a 71 do inquérito 194/21....; atos de análise de fls.370, 371, 385, 629, 634 a 637, 761 a 763, 1485, 1899, 1900; autos de busca e apreensão de fls.426 a 429, 787, 788, 797, 798, 937, 938, 972, 973, 983, 984; autos de revista e apreensão de fls.430, 431; autos de teste rápido e pesagem de fls.432, 777, 789 a 792, 799, 800, 805, 806; autos de apreensão de fls.433, 776, 804, 1466, 1483, 1589; ficha de registo automóvel de fls.434; reportagens fotográficas de fls. 435 a 456, 778, 779, 793 a 795, 801 a 803, 807, 808, 939, 940; cópias relativas a apreensões no E.P. de fls.715 a 720, 1354 a 1368; auto de notícia e de detenção em flagrante delito de fls.768 a 772; documentos manuscritos de fls.941 a 943; elementos constantes do CD de fls.1099; cópia de contrato de trabalho de fls.1343 a 1346; autos de exame directo de fls.1388 a 1394, 1480, 1481; autos de pesquisa informática de fls.1470 a 1475, 1535 a 1539, 1568, 1569; registo de visitas de fls.1526 a 1530; certidões de fls.1630 a 1702, 2244 a 2500, 2502 a 2529, 2533 a 2549, 2653 a 2688; organograma de fls.2014; relatório final de fls.2017 a 2081; cópias de fls.2803 a 2942; auto de pesquisa de fls.63 a 65, 197, 198 do inquérito 194/21....; movimentos de capital constantes do Apenso C; relatorios sociais e fls. 3887 e ss, 3901 e ss, 3929 e ss, 3934 e ss, 3938 e ss, 3942 e ss, 3946 e ss, 3957 e ss, 4033 e ss, 4076 e ss, 4180 e ss, 4186 e ss, 4199 e ss, 4203 e ss, 4209 e ss; nos certificados de registo criminal juntos de fls. 4097 a fls 4169;
Da conjugação de toda a prova, mormente as declarações confessórias da arguida BB, e parciais da arguida DD, das declarações de HH …, das varias testemunhas, e escutas telefonicas válidas, o Tribunal não tem duvidas que tudo se passou como supra descrito nos factos provados e não provados, sendo que destes não se mostram reumidos os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de associação criminosa e de branqueamento pelos quais os arguidos vinham acusados, pelo que, nesta parte, deverão todos os arguidos serem absolvidos. Outrosssim, apenas os arguidos AA, BB, CC e DD devem ser condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes na sua forma agravada e os arguidos EE, FF e GG também pelo crime de tráfico de estupefacientes».
3.APRECIAÇÃO DOS RECURSOS 3.1. Antes de entrar no âmago dos argumentos recursórios, há que declarar, à evidência, que este acórdão padece do vício da nulidade.
Este vício é directamente mencionado no recurso nº 1 …
E por isso, começaremos por essas nulidades, até por força da ordem sistemática das nulidades a que alude o artigo 379º do CPP [constarão essas nulidades das alíneas a) e c) do n.º 1 desse normativo]:
Note-se que o conhecimento destas nulidades são, para nós, também, de conhecimento oficioso[4].
Dita a lei o seguinte neste particular (sublinhando-se a bold as partes relevantes para os vícios deste acórdão):
Artigo 374.º Requisitos da sentença
1 - A sentença começa por um relatório, que contém: a) As indicações tendentes à identificação do arguido; b) As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis; c) A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido; d) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada. 2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. 3 - A sentença termina pelo dispositivo que contém: a) As disposições legais aplicáveis; b) A decisão condenatória ou absolutória; c) A indicação do destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime; d) A ordem de remessa de boletins ao registo criminal; e) A data e as assinaturas dos membros do tribunal. 4 - A sentença observa o disposto neste Código e no Regulamento das Custas Processuais em matéria de custas.
* Artigo 379.º Nulidade da sentença
1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º; c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. 2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º 3.2. Sabemos que o artigo 374º, n.º 2 do CPP exige que depois da enumeração dos factos provados e não provados, se faça na sentença uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para criar a convicção do tribunal.
O dever de fundamentação[5] das decisões judiciais é uma realidade, ainda que com contornos variados, imanente a todos os sistemas de justiça que nos são próximos, mesmo que sejam detectáveis variáveis do grau de exigência em função das matérias em causa, do tipo de decisão ou da tradição histórica e cultural de cada povo.
Afirmando-se progressivamente como verdadeira conquista civilizacional a partir da Revolução Francesa, o dever de fundamentação das decisões judiciais constitui, nos modernos Estados de Direito, um dos pressupostos do chamado “processo equitativo”a que aludem o artigo 6º da Convenção Europeia dosDireitos Humanos[6], o artigo 7º da Carta Africana dos Direitos Humanos (outrora ainda lido como «do Homem») e dos Povos e, por exemplo, o artigo 20º nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
Dispõe a Constituição, no nº 1 do artigo 205º, que "as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei".
Este texto, resultante da Revisão Constitucional de 1997, veio substituir o nº 1 do artigo 208º, que determinava que "as decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei".
A Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas "nos termos previstos na lei" para o serem "na forma prevista na lei".
A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação.
Numa sentença (cfr nota de rodapé n.º 2), após o relatório, segue-se, já no contexto dos fundamentos, a descrição dos factos provados (e não provados), a qual, para ser facilmente compreensível, devendo obedecer à lógica própria de quem descreve um episódio concreto da vida real.
Em apoio dos factos considerados provados deve então a sentença passar a expressar a justificação da respectiva decisão, isto é, fazer a análise crítica da prova produzida, esclarecer quais os meios de prova que conduziram à convicção anteriormente enunciada.
Sem pretender ser exaustivo, a motivação da convicção do juiz no âmbito da análise crítica da prova implica que o Tribunal indique expressamente:
· quais os factos provados que cada testemunha revelou conhecer;
· quais os elementos que dos mesmos depoimentos permitem inferir a interpretação e conclusão a que o tribunal chegou;
· quais as razões que o levam a valorar determinado meio de prova em detrimento de outro ou outros meios de prova com ele contraditório;
· quais as razões porque não foi dada relevância a determinada prova ou meio de prova;
· quais as razões porque julgou relevantes, ou irrelevantes, certas conclusões dos peritos ou achou satisfatória a prova resultante de documentos particulares, ou retirou certas conclusões da inspecção ao local, etc.
3.3. Com a devida vénia, transcrevemos parte do Acórdão desta Relação, no Pº 770/08.8PBCBR.C1:
«Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova. Num segundo nível intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, sendo que as inferências hão-se basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimento científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”. O juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a decisão do julgado, face à credibilidade que a prova mereça e as circunstâncias do caso, com recurso a prova indiciária, podendo esta por si só conduzir à convicção do julgador. … É legítimo o recurso às presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.º do Código de Processo Penal). … Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (ou de uma prova de primeira aparência). As presunções naturais são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções. As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto. Como é referido no Ac. do STJ de 07-01-2004, «na passagem do facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) do facto desconhecido têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. (…) A ilação decorrente de uma presunção natural não pode, pois, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável». … O meio probatório por excelência a que se recorre na prática para determinar a ocorrência de processos psíquicos sobre os quais assenta o dolo não são as ciências empíricas, nem tão pouco a confissão auto inculpatória do sujeito activo. As enormes dúvidas que suscita a primeira e a escassa incidência prática da segunda levam a que a maioria das situações acabe por se resolver através de um terceiro meio de prova: precisamente a referida prova indiciária, ou circunstancial, plasmada nos juízos de inferência. A conclusão é então imposta pela aplicação das regras da experiência – premissa maior – aos factos previamente demonstrados e que constituem a premissa menor. Como efeito, no que concerne aos factos atinentes à intenção e motivação dos arguidos, convém recordar a lição de Cavaleiro Ferreira, quando refere que existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica, aos quais apenas se poderá aceder através de prova indirecta (presunções naturais não jurídicas) a extrair de factos materiais comuns e objectivos dados como provados».
Essa convicção de certeza, eventualmente baseada em prova directa ou indirecta, vai formar-se como resultado final de operações sequenciais de análise do puzzle indiciário: apreciação de cada elemento de prova, individualmente considerado; análise diferenciada dos diversos meios; ponderação global e compatibilização da prova coligida.
O caminho é este – é um caminho de pedras mas bem sólidas e bem sedimentadas – neste particular, recorramos ao acórdão do STJ, datado de 23/2/2011 (Pº 241/08.2GAMTR.P1.S2), escrito pela sempre avisada pena do Conselheiro Santos Cabral: «Momento fundamental em processo penal é o julgamento com o objectivo de produzir uma decisão que comprove, ou não, os factos constantes do libelo acusatório e, assim, concretizar, ou não, a respectiva responsabilidade criminal. Nessa concretização, o julgador aprecia livremente a prova produzida com sujeição ás respectivas regras processuais de produção aos juízos de normalidade comuns a qualquer cidadão bem como às regras de experiência que integram o património cultural comum e decide sobre a demonstração daqueles factos, extraindo, em seguida, as conclusões inerentes á aplicação do direito. Perante os intervenientes processuais, e perante a comunidade, a decisão a proferir tem de ser clara, transparente, permitindo acompanhar de forma linear a forma como se desenvolveu o raciocínio que culminou com a decisão sobre a matéria de facto e, também, sobre a matéria de direito. Estamos assim perante a obrigação de fundamentação que incide sobre o julgador, ou seja, na obrigação de exposição dos motivos de facto e de direito que hão de fundamentar a decisão. … Por essa forma, acabaram por obter consagração legal as opções daqueles que consideravam a fundamentação uma verdadeira válvula de escape do sistema permitindo o reexame do processo lógico ou racional que subjaz á decisão. Também por aí se concretiza a legitimação do poder judicial contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre o qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto». Ora, para concretização de tal obrigação de fundamentação o momento-chave da sentença é o da motivação da matéria de facto, que existirá, e será suficiente, sempre que com ela se consiga conhecer as razões do decisor.
3.4. Com este pano de fundo, vejamos, então, o nosso caso concreto e analisemos a forma como fez o tribunal recorrido esse exame crítico das provas quanto à imputação criminosa aos arguidos dos delitos em causa ou à sua desresponsabilização.
Fazendo uma radiografia da sua motivação, o que temos:
· a declaração de nenhum dos arguidos falou em julgamento;
· a alusão às declarações das declarações prestadas anteriormente no processo por parte dos arguidos … neste particular, note-se que o Colectivo se limitou a resumir tais declarações, sem fazer o competente exame crítico das mesmas declarações, ficando sem se saber com rigor o que é que delas se retirou de incriminatório para cada um deles, sabendo como sabemos que tais declarações não podem configurar uma confissão, nos termos do artigo 357º, nº 2 do CPP, estando apenas sujeitas à livre apreciação pelos julgadores [artigo 141º, nº 4, alínea b) do CPP] – como foi feita essa apreciação no caso concreto, no que tange aos depoimentos dos 3 arguidos condenados a final?
· a alusão, em tom de mero e simplista resumo, das declarações de 16 testemunhas ouvidas em julgamento (para além de uma rápida referência aos depoimentos abonatórios de 5 testemunhas, …) – também aqui fica sem se saber muito bem quais os específicos depoimentos que provaram a matéria dada como provada, faltando também aqui o competente e exigível exame crítico da prova;
· a alusão aos exames periciais de fls 1993, 2107 e 2108;
· a alusão às escutas telefónicas, dizendo apenas que as transcrições «constam do apenso B junto aos autos» - ora, confrontado tal apenso (F), o mesmo tem 312 páginas, não tendo havido qualquer preocupação em ir buscar algumas transcrições que comprovem a factualidade dada como provada, não valendo apenas remeter, de forma genérica e apressada para o teor das escutas telefónicas existentes nos autos;
· a alusão á prova documental existente nos autos – e aqui, mais uma vez, faz-se um rol de prova, sem minimamente a discutir: ouça-se o rol: «…»;
· e termina-se com uma conclusão absolutamente indemonstrada, em tom de texto escrito, escrevendo-se: «Da conjugação de toda a prova, mormente as declarações confessórias da arguida BB, e parciais da arguida DD, das declarações de HH …, das varias testemunhas, e escutas telefonicas válidas, o Tribunal não tem duvidas que tudo se passou como supra descrito nos factos provados e não provados, sendo que destes não se mostram reumidos os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de associação criminosa e de branqueamento pelos quais os arguidos vinham acusados, pelo que, nesta parte, deverão todos os arguidos serem absolvidos. Outrosssim, apenas os arguidos AA, BB, CC e DD devem ser condenados pelo crime de tráfico de estupefacientes na sua forma agravada e os arguidos EE, FF e GG também pelo crime de tráfico de estupefacientes».
Que dizer mais?
Enunciar o que cada arguido disse sem refutar minimamente que seja o teor dessas declarações não é fazer uma aturada e exigível análise crítica da prova. Em que é que foram confessórias as declarações da BB e da DD? Qual foi afinal a prova produzida de acordo com as regras da experiência comum[7]? Por que razão se deram tantos factos como não provados, o que originou a absolvição de dez arguidos? Por que é que não se fez prova da associação criminosa e do branqueamento?
Tudo ficou absolutamente nebuloso. Não havendo prova directa, recorreu-se à chamada prova indirecta ou indiciária? Em que moldes?
Essa prova indirecta está sujeita à livre apreciação do tribunal e exige um particular cuidado na sua apreciação, apenas se podendo extrair o facto probando do facto indiciário quando seja corroborado por outros elementos de prova, por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente plausíveis.
Doutrinou o Acórdão desta Relação de 25/11/2009 o seguinte:
«Nos casos de prova indirecta o que está em causa é «o tribunal inferir racionalmente a prova dos factos a partir da prova indirecta ou indiciária desde que seja seguido um processo dedutivo baseado na lógica e nas regras de experiência comum (recto critério humano e correcto raciocínio) – cf. Ac. R. Coimbra de 2008, proc. 495/002.
A prova indirecta, sendo um meio de prova absolutamente legítimo, pode ser livremente utilizada e valorada pelo Tribunal, em todas as circunstâncias que entender como útil à sua utilização, assumindo relevância específica em circunstâncias de défice da prova directa, seja por virtude de inexistência, seja pela sua debilidade valorativa.
Nessesentido «a prova indirecta ou indiciária pode ser valorada preferencialmente pelo julgador e, só por si, conduzir à sua convicção, tal qual a prova directa», cf. Ac. RC 26.11.2008 proc. 341/06 in www.dgsi.pt.
Já nos referimos à prova indirecta em vários dos nossos arestos desta Relação, escritos desde 2009 a 2011 e depois de 2021.
Sabemos que fundamental em muitos casos da vida judiciária em que não é possível obter prova directa dos factos é a valoração da chamada “prova indirecta”.
Neste sentido: J. M. Asencio Mellado, in “Presunción de inocência em Matéria Criminal”, 1992: “Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir, a todo o custo, a existência deste tipo de provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura”.
Entendemos, assim, que há que ultrapassar os rígidos cânones da valoração pelo julgador exclusivamente da prova directa, para atribuir à prova indirecta, indiciária ou por presunções judiciais o seu específico relevo nos casos de maior complexidade.
Mittermayer, in “Tratado de La Prueba em Matéria Criminal”, 1959, dizia já o seguinte: “…o talento investigador do Magistrado deve saber encontrar uma mina fecunda para o descobrimento da verdade no raciocínio, apoiado na experiência e nos procedimentos que adopta para o exame dos factos e das circunstâncias que se encadeiam e acompanham o crime. Estas circunstâncias são outras tantas testemunhas mudas, que a Providência parece ter colocado à volta do crime para fazer ressaltar a luz da sombra em que o criminoso se esforçou por ocultar o facto principal; são como um farol que ilumina o entendimento do juiz e o dirige até aos vestígios seguros que basta seguir para chegar à verdade”.
Por outro lado, há que afirmar que ao ser valorada a prova indiciária não se está a violar o princípio da presunção da inocência, uma vez que aquela valoração tem de ser objectivável, motivável e não arbitrária, baseada numa pluralidade de indícios.
Este entendimento, que já começou a ser seguido na jurisprudência nacional, tem sido defendido pela jurisprudência de Espanha, conforme os seguintes Ac do Tribunal Supremo de Espanha: Ac nº 190/2006, de 1 de Março de 2006; Ac nº 392/2006, de 6 de Abril de 2006; Ac nº 562/2006, de 11 de Maio de 2006; Ac nº 560/2006, de 19 de Maio de 2006; Ac nº 557/2006, de 22 de Maio de 2006; e Ac nº 970/2006, de 3 de Outubro de 2006.
(ver todas estas referências in Revista Julgar, nº 2, 2007 – Euclides Dâmaso Simões – “Prova Indiciária).
A convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Por isso, resulta que, para respeitarmos os princípios da oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como opina o acórdão da Relação de Coimbra de 6 de Março de 2002 (C.J. , ano XXVII, 2º, página 44) , “quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Nesta parte, importa realçar que o objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos (prova directa), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este (prova indirecta ou indiciária).
A prova indirecta “…reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal”, Vol. II, pág. 289.
Como acentua o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996, “a inferência na decisão não é mais do que ilação, conclusão ou dedução, assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.” – cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6.º, tomo 4.º, pág. 555.
No mesmo sentido veja-se o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV, 1.º, pág. 51.
Como já se disse, em matéria de apreciação da prova, o artigo 127.º do C.P.P. dispõe que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Na expressão regras de experiência, incluem-se as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, devendo as inferências basear-se na correcção do raciocínio, nas regras da lógica, nos princípios da experiência e nos conhecimentos científicos a partir dos quais o raciocínio deve ser orientado e formulado (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª edição, p. 127, citando F. Gómez de Liaño, La Prueba en el Proceso Penal, 184).
Atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso, há que recorrer, por vezes, à prova indirecta para basear a convicção da entidade decidente sobre a existência ou não da situação de facto.
Como acentua Euclides Dâmaso, no seu artigo «Prova indiciária (contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente)», publicado na Revista Julgar, n.º 2, 2007, «vale isto por dizer-se que a “prova indirecta, indiciária, circunstancial ou por presunções”, que alguns decisores por vezes (infelizmente raras e apenas em crimes contra as pessoas) meticulosa e exigentemente praticam sem claramente assumirem fazê-lo, tem que ganhar adequada relevância jurisprudencial e dogmática também entre nós. Sob pena de a Justiça não se compatibilizar com as exigências do seu tempo e de se agravar insuportavelmente o sentimento de impunidade face aos desafios criminosos de maior complexidade e desvalor ético-jurídico, mormente os “crimes de colarinho branco” em geral e a corrupção e o branqueamento em particular».
Prieto-Castro Y Fernandiz e Gutiérrez de Cabiedes opinam mesmo que«o indício apresenta grande importância no processo penal, já que nem sempre se têm à disposição provas directas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, com o esforço lógico-jurídico intelectual necessário, antes que se gere impunidade». * Aqui chegados, pergunta-se mais uma vez: qual foi a prova feita pelo Colectivo de Leiria? Quanto às testemunhas, assistiu-se ao mesmo processo redutor – enuncia-se apenas o que cada um disse, não relacionando o teor dessas declarações com a prova dos factos a, b ou c…
A enunciação simplista dos meios de prova, depois da alusão às testemunhas, é também insuficiente, confundindo-se meios de prova e meios de obtenção de prova.
Todos sabemos que os meios de prova são os elementos que permitem afirmar a realidade dos factos relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da sanção aplicável.
É com base nestes elementos que as autoridades competentes, em especial os tribunais, baseiam algumas das suas decisões, incluindo a de condenação ou absolvição do arguido, sendo a prova apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Os meios de utilização mais comum são: a prova testemunhal; as declarações do arguido, do assistente e das partes civis; a prova por acareação (um confronto entre sujeitos que prestaram declarações contraditórias); a prova por reconhecimento (a identificação e/ou descrição de uma pessoa por parte de outra); a reconstituição do facto (a reprodução, tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o crime e a repetição do seu modo de realização); a prova pericial; e a prova documental.
Diversamente, os meios de obtenção de prova são as diligências realizadas pelas autoridades para recolher a prova. Alguns dos meios de obtenção de prova mais tradicionais são os exames, as revistas e buscas, as apreensões e as escutas telefónicas.
Ora, in casu, não se fez qualquer exame crítico de todo este manancial de prova, ficando muito nebulosa a forma como o tribunal chegou à culpabilidade e não culpabilidades dos arguidos nestas factualidades.
Muitas respostas que ficaram por dar para lançar luz sobre os argumentos do tribunal e a sua razão de ciência para a prova dos factos tidos como provados e não provados.
Repetimos: Que regras da experiência foram tidas em linha de conta? Houve prova directa? Houve prova indirecta ou indiciária? Se sim, em que medida e em que termos? É verdade que as testemunhas disseram o que se reproduz no acórdão – mas isso provou exactamente o quê? A documentação referida a fls 79-80 (do acórdão), em tom de rol acrítico, provou exactamente o quê?
Como tal, e sem necessidade de mais considerações, esta Relação conclui que o tribunal recorrido não procedeu à indicação das concretas e individualizadas provas a partir das quais formou a sua convicção para condenar ou absolver os arguidos, em cada tipo de crime, nem tão pouco operou um exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção. De facto, as provas não estão associadas ou referenciadas aos hipotéticos factos praticados pelos arguidos, surgindo desgarradas no Acórdão, sem qualquer indicação relativamente aos tipos de crime alegadamente praticados por cada arguido, o que não permite conhecer o processo lógico racional prosseguido pelo tribunal a quo, nem tão pouco identificar as provas consideradas relevantes para formar a sua convicção na respectiva decisão.
Queremos saber, nesta Relação, a razão pela qual foi criada no Colectivo de Leiria esta convicção de culpabilidade e não culpabilidade dos arguidos - não por impressões mas por factos e argumentos substantiva e processualmente válidos.
De juízes convencidos na culpabilidade ou não culpabilidade dos arguidos, não passaram a juízes convincentes no texto do aresto recorrido.
E deveriam ter sido convincentes e explícitos nas suas explicações para a clareza da justiça – ou tentativa dela - que por si foi feita no aresto de 14/3/2024.
Está em causa a liberdade de seres humanos.
Por isso, a prova tem de ser bem explicada por quem julga, não olvidando qualquer aspecto que seja relevante.
Parece-nos, assim, que o tribunal de Leiria ficou aquém do exigido neste particular da fundamentação fáctica.
Recordemos que o processo equitativo garantido no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos pressupõe a motivação das decisões judiciárias, que consiste na correcta enunciação dos pontos de facto e de direito fundantes das mesmas, em ordem a garantir a transparência da justiça, a persuadir os interessados e a permitir-lhes avaliar as probabilidades de sucesso nos recursos, assente ainda que uma motivação deficiente ou inexacta deve ser equiparada à falta de motivação.
Essa motivação conforme as exigências do processo equitativo não obriga a uma resposta minuciosa a todos os argumentos das partes, contentando-se com uma descrição clara dos motivos fundantes da decisão, sendo a extensão da motivação em função das circunstâncias específicas, nomeadamente da natureza e da complexidade do caso.
Lopes da Rocha diz mesmo que «o princípio do processo equitativo é compatível com motivação sumária, mas impõe-se uma motivação precisa quando o meio submetido à apreciação do juiz, caso se revele fundado, é de natureza a influenciar a decisão; a obrigação de motivar reveste uma importância peculiar quando se trate de apreciar uma pretensão na base de uma disposição de sentido ambíguo, caso em que é exigível uma motivação adequada e proporcional à complexidade da hipótese». O exame crítico das provas deve indicar no mínimo, e não necessariamente por forma exaustiva, as razões de ciência e demais elementos que tenham, na perspectiva do tribunal, sido relevantes para assim se poder conhecer o processo de formação da convicção do tribunal.
Sem que se defina legalmente em que consiste o propalado “exame crítico da prova”, tal exame há-de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo.
Tal desiderato não foi logrado na decisão.
Lida a motivação, fica-nos um gosto a pouco e algum mistério relativamente à forma como o tribunal chegou a estas convicções.
E isso gera inegável nulidade [artigo 379º, nº 1, alínea a), por referência ao artigo 374º, nº 2, ambos do CPP].
3.5. Mas há mais. Na fundamentação de Direito, nem um a palavra é dita sobre as seguintes questões jurídicas que se podem aqui colocar (aliás, abordadas em alguns dos seis recursos):
· A circunstância de a infracção ter sido cometida em EP, prevista na al. h) do art. 24.º do DL 15/93 (a incriminação da conduta de 4 dos arguidos dos autos, a saber, …), não produz efeito qualificativo automático, antes exigindo a sua interpretação teleológica, por forma a verificar se a concreta modalidade da acção, a concreta infracção justifica o especial agravamento da punição querida pelo legislador[8] – como tal, não foi feita no aresto em causa qualquer alusão jurídico-conceptual a esta circunstância, condenando-se quase de preceito sem ter havido uma palavra que fosse para justificar a opção pela agravativa do artigo 24º, alínea h) do dito diploma, nos moldes expressos acima;
· A questão do estádio dos crimes praticados pelos arguidos … – houve mera tentativa ou foram consumados? (questões aludidas em 3 destes 6 recursos).
Entendemos, assim, que o tribunal incumpriu o dever de melhor fundamentar a sua decisão de DIREITO nestes assinalados aspectos.
3.6. E finalmente, um último vício.
Os factos referidos ao arguido GG … verificaram-se no dia 17 de Junho de 2021 (factos 6 a 9), quando o referido arguido-recorrente tinha 20 anos de idade …
Pela sua idade à data dos factos, o arguido em questão encontra-se abrangido pelo regime do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.
O S.T.J. tem repetidamente afirmado que o tribunal está obrigado a ponderar a aplicação do regime dos “jovens delinquentes”, previsto no mencionado Decreto-Lei n.º 401/82, sempre que o arguido seja um jovem que, à data dos factos, tiver completado 16 anos sem ter ainda atingido os 21 anos.
Se a ponderação da aplicação de tal regime é obrigatória, constituindo um verdadeiro poder-dever a considerar oficiosamente, já não o será a sua efectiva aplicação, por não ser automática, como decorre daquele diploma, em especial do seu artigo 4.º, que dispõe: «Se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado» (as remissões devem ser interpretadas como reportando-se, presentemente, para os artigos 72.º e 73.º). No caso concreto, estando em julgamento um jovem delinquente de 20 anos à data dos factos, o tribunal a quo tinha de equacionar a aplicação do regime penal do Decreto-Lei n.º401/82, averiguando, oficiosamente, da verificação dos respectivos pressupostos, procedendo, para esse efeito, autonomamente, às diligências e à recolha de elementos que, numa leitura objectiva, pudessem ser razoavelmente considerados necessários (cfr. Acórdão do S.T.J. de 7 de Novembro de 2007, Processo 07P3124, www.dgsi.pt).
O acórdão recorrido omite qualquer referência a esta questão e não evidencia que a mesma tenha sido sequer representada pelo tribunal de 1.ª instância, pelo que ocorre omissão de pronúncia, o que constitui nulidade do acórdão, de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 379.º, n.º1, alínea b), do C.P.Penal (cfr. os Acórdãos do S.T.J. de: 15 de Outubro de 1997, Colectânea de Jurisprudência, STJ, Ano V, III, pp. 191 a 193; 7 de Dezembro de 1999, Colectânea de Jurisprudência, STJ, Ano VII, III, pp. 237; 6 de Fevereiro de 2002, Processo 01P4106; 31 de Março de 2005, Processo 05P896; 4 de Janeiro de 2006, Processo 05P3801; 14 de Junho de 2006, Processo 06P2037; 18 de Outubro de 2006, Processo 06P3045; 11 de Outubro de 2007, Processo 07P3199, todos estes disponíveis para consulta em www.dgsi.pt. Nos SASTJ – Secções Criminais, disponíveis na página do STJ, encontramos nos mesmo sentido, entre outros, os Acórdãos: de 10 de Março de 2005, Processo 644/05 – 5.ª; de 30 de Março de 2005, Processo 4557/04-3.ª; de 18 de Maio de 2005, Processo 4189/02-3.ª; de 7 de Dezembro de 2005, Processo 3904/05-5.ª; de 28 de Fevereiro de 2007, Processo 2037/06-5.ª)
De acordo com a jurisprudência do S.T.J., a falta de alusão na decisão condenatória quanto à aplicabilidade do regime de jovens delinquentes releva como omissão de pronúncia, geradora de nulidade.
Não contraria este entendimento o Acórdão do S.T.J., de 13-07-2005, no Processo 05P2122, que teve como relator o conselheiro Henriques Gaspar, pois nesse caso o acórdão recorrido pronunciara-se sobre a aplicação do regime penal de jovens delinquentes, não havendo omissão de pronúncia, mas sim insuficiência da matéria de facto por falta dos necessários elementos relativos às condições pessoais e de personalidade do recorrente que os factos provados não contemplavam.
Discute-se o alcance do nº 2 do artigo 379.º, quando se refere à possibilidade do tribunal suprir as nulidades da sentença.
Ouçamos o douto pensamento do hoje Juiz Conselheiro Jorge Gonçalves (Pº 1215/06.3PBOER.L1-5 - acórdão da Relação de Lisboa de 13/12/2012): «Há quem entenda que, cometida omissão de pronúncia numa sentença penal e arguida a respectiva nulidade em recurso, esta só pode ser conhecida pelo tribunal ad quem, sem que o tribunal recorrido possa proceder ao seu suprimento (cfr. acórdão da Relação do Porto, de 10.02.2010, processo 35/09.8JAPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt, como todos os que sejam citados sem outra indicação), o que, a nosso ver, esvazia de sentido o preceito em causa. A nosso ver, com a expressa remissão do n.º 2 do artigo 379.º para o n.º 4 do artigo 414.º, do C.P.P., o suprimento das nulidades da sentença é feito pela 1ª instância, através da reparação da decisão. Quanto à forma como pode o juiz da 1.ª instância reparar a decisão, há quem entenda que deve fazê-lo através de nova sentença (cfr. acórdão da Relação de Coimbra, de 21.10.2009, processo 161/06.5GCSAT.C1), enquanto outros se bastam com a prolação de despacho (cfr. acórdão da Relação de Coimbra, de 6.05.2009, processo 601/08.9GAVGS.C1)».
No caso, na resposta ao recurso do dito arguido, o MP tenta sugerir que possa ser este Tribunal da Relação a fazer essa sanação.
Discordamos, dando o nosso aval à posição da Relação de Lisboa acima mencionada. Assim, a nulidade por omissão de pronúncia determina a anulação parcial do acórdão recorrido, no que se refere à não ponderação da possibilidade de atenuar especialmente a pena, de acordo com o regime do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, de forma a que o tribunal recorrido, pelos mesmos juízes, proceda a essa ponderação, por não estar esta Relação em condições de suprir o vício. 3.7. Qual a sanção para estes vícios?
Já aqui o deixamos dito.
Estipula a lei que é a nulidade da sentença [artigo 379º, n.º 1, alíneas a) e c) do CPP, referido ao artigo 374º/2 do mesmo diploma] NO SEU TODO.
Equivale isto a dizer quea sentença incumpriu o dever de:
· fazer o exigível exame crítico de quase todos os meios de prova e meios de obtenção de prova com vista a concluir pela culpabilidade criminal dos arguidos ou pela sua absolvição,
· e de fazer uma acrescida e exigível fundamentação jurídica sobre algumas questões controvertidas,como lhe ordena o normativo do nº 2 do artº 374º do CPP,
· a que acresce uma omissão de pronúncia sobre a questão da aplicação ou não à situação do arguido GG do DL nº 401/82, de 23/9;
· tal, face ao disposto nas alíneas a) e c) do nº1 do artº 379º do mesmo diploma legal, acarreta a sua nulidade e determina a prolação de nova decisão, expurgada dos apontados vícios (NÃO sendo caso de anulação do julgamento ou de aplicação do disposto no artigo 715º/1 do CPC e no artigo 379º/2, 2ª parte do CPP). Urge, pois, REESCREVER este acórdão, colmatando as omissões detectadas e assinaladas nos pontos 3.4, 3.5 e 3.6 (partes sublinhadas), dali retirando as consequências jurídico-penais que se tiverem agora por convenientes. Aproveitará o Colectivo para:
· perfectibilizar de forma mais escorreita o texto formal do acórdão,
· revisitando a letra dos factos nºs 10 (esclarecendo a natureza do estupefaciente em causa quando se fala da «placa[9]», ficando sem se saber se a canábis só se refere aos 10 g ou também à placa) e 49 (faltará a alusão à não prova do dolo de associação criminosa relativamente a 7 arguidos, para além dos 10 que constam da letra desse facto),
· corrigindo ainda a moldura penal abstracta do delito tido por praticado pelo arguido AA, errada a fls 91, 7ª linha. 3.8. Se assim é, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões aduzidas nos 6 recursos (artigo 660º do CPC, ex vi artigo 4º do CPP). III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em:
· anular o acórdão recorrido, que deverá ser substituído por outro que colmate as lacunas apontadas nos pontos 3.4, 3.5, 3.6 e 3.7, decidindo em conformidade.
Sem tributação.
Coimbra, 25 de Setembro de 2024 (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturaselectrónicasapostasna1.ªpágina,nostermosdoartº19ºdaPortarianº280/2013,de26-08,revistapelaPortarianº267/2018,de20/09)
Relator: Paulo Guerra
Adjunta: Cristina Pêgo Branco
Adjunta: Ana Carolina Cardoso
[1] Foram ainda julgados neste processo, no mesmo acórdão recorrido, dez outros arguidos, todos absolvidos, estando transitado em julgado o acórdão quanto a eles. [2] Retiram-se os factos referentes aos antecedentes criminais e condições pessoais dos arguidos não recorrentes. [3] Retiram-se os factos referentes aos antecedentes criminais e condições pessoais dos arguidos não recorrentes. [4]Antes das alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, não havia dúvidas de que as nulidades da sentença constantes das alíneas a) e b) (as únicas então existentes) do artigo 379º do CPP, eram nulidades sanáveis e, portanto, dependentes de arguição (veja-se até que, no caso da nulidade prevista na alínea a) do art. 379º do CPP, consistente na falta de indicação, na sentença penal, das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ordenada pelo art. 374º nº 2, do mesmo diploma, decidiu o STJ, pelo Assento de 6.5.1992, in DR-I Série-A, de 6.8.1992, com dois votos de vencido, que tal nulidade não era insanável, por isso não lhe sendo aplicável a disciplina do corpo do artigo 119º do CPP).
Nesse diapasão, foi também proferido o Acórdão n.º 1/94 do Plenário das secções criminais do STJ, in DR-I Série-A, de 11.2.1994, firmando jurisprudência no sentido de que as nulidades da sentença, previstas então nas alíneas a) e b) do artigo 379º do CPP, poderiam ser ainda arguidas em motivação de recurso para o tribunal superior, à semelhança do que para o processo civil resulta da 2ª regra da 1ª parte do nº 3 do artigo 668º do CPC.
Acontece que o texto do artigo 379º/2 do CPP sofreu alterações pela Lei n.º 59/98 de 25/8, tendo-se aditando uma nova alínea c) ao nº 1, e mudado o nº 2, que passou a ter a seguinte redacção: "as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, sendo lícito ao tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no art. 414º, nº 4".
Vislumbramos, assim que, se a nova alínea introduzida no nº. 1 do artigo 379º do CPP, tem redacção semelhante à contida na alínea d) do nº 1 do artigo 668º do CPC, já o novo nº. 2 do artigo 379º do CPP corresponde a uma transposição parcial do nº 3 do art. 668º do CPC e à adopção da doutrina contida no Acórdão 1/94, indo, porém, mais longe.
Enquanto no regime do CPC, a arguição das nulidades pode ser feita em sede de motivação de recurso, no nº 2 do artigo 379º, impõe-se essa arguição nessa altura, "as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso".
A parte final desta expressão só pode significar o conhecimento oficioso dessas nulidades, justificando-se o afastamento do regime previsto no processo civil, que diversamente do penal, é enformado pelo princípio da livre disponibilidade das partes processuais, neste sentido cfr. Ac. STJ de 12.9.2007, relator Silva Flor, consultável no site da dgsi.
No sentido de que a nulidade da alínea a) do nº. 1 do artigo 379º do CPP é do conhecimento oficioso, decidiram, entre outros, os Acs STJ de 12.9.2007, relator Raul Borges e de 17.10.2007» (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 21/1/2009 (Pº6847/08 - 4ª Secção).
Para Paulo Pinto de Albuquerque, não obstante, a menção alternativa «ou conhecidas» mais não é do que uma referência ao poder de cognição do tribunal de recurso e não a consagração da oficiosidade do conhecimento desse nulidade do artigo 379º do CPP.
Não secundamos tal tese, contrária à nova letra de lei (e já o deixámos escrito em vários arestos desta Relação).
Em apoio da nossa tese:
«Tais nulidades devem ser oficiosamente conhecidas, solução que tem claro apoio na letra do n.º 2 do artigo 379.º do CPP, quando aí se diz que “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”, apontando assim, mais para uma atuação oficiosa do tribunal de recurso, no seu conhecimento do que para a necessidade de, para tal, serem especificamente invocadas como fundamento do recurso. Numa argumentação teleológico-sistemática breve, poderá dizer-se que se verificaria uma incongruência perturbadora da unidade do sistema jurídico, se forçasse-mos um sentido de interpretação da norma em causa que tivesse como consequência prática o não conhecimento oficioso do vício, por exemplo, da falta de menção na sentença dos factos provados, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 379.º, n.º 1, al. a), e 374.º, n.º 2, do CPP, mas já considerássemos ser do conhecimento oficioso, como hoje é pacificamente aceite, sobretudo face ao Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95, a mera insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, registada ao abrigo do artigo 410.º, n.º 2, al. a), do CPP.
Valendo como fundamento para o conhecimento oficioso das nulidades previstas no artigo 379.º, as mesmas razões invocadas pelo Juiz Conselheiro Pereira Madeira, para sustentar o conhecimento oficioso dos vícios do artigo 410.º, n.º 2: “Mandam a prudentia e o bom senso que nenhum tribunal, seja ele qual for, possa ser obrigado a aplicar o direito a uma matéria de facto ostensivamente divorciada da realidade das coisas, quer por ser insuficiente, quer por ser contraditória, quer por erroneamente apreciada. Claramente, em tais casos, qualquer que fosse o edifício jurídico que assentasse em tais bases, seria uma edificação insegura, por falta de alicerces”.
E que maior falta de alicerces poderia ter uma decisão que tivesse de aplicar o direito a factos que não vinham sequer enumerados como provados ou não provados ou que vindo-o, em relação a eles não se descortinava, por falta de motivação, em que prova e em que exame crítico dessa prova se havia baseado o tribunal recorrido para os considerar provados.
Por exemplo, na falta da enumeração dos factos provados e não provados, ademais se da motivação fáctico-conclusiva e jurídica não se pudesse descortinar os factos concretos da vida que levaram àquela decisão, como seria possível delimitar o âmbito objetivo do caso julgado, e assim também salvaguardar as garantias constitucionais do ne bis in idem? É bom de ver a grave incongruência que seria reconhecer a possibilidade de conhecimento oficioso de uma mera insuficiência para decisão da matéria de facto, nos termos previstos no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, e já não a admitirmos quando ela tinha o alcance de uma verdadeira falta, como acontece para a nulidade da sentença por falta de fundamentação, a que alude a al. a) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP.
No sentido de que as nulidades previstas no artigo 379.º do CPP são de conhecimento oficioso, o Senhor Juiz Conselheiro Oliveira Mendes, dizendo que “nem podia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio do acusatório e sem qualquer dispositivo.”
E ainda ac. do STJ, de 27/10/2010, P.º 70/07.0JBLSB.L1.S1. Não obsta a uma tal solução o Assento n.º 9/92, ao dizer que “Não é insanável a nulidade da alínea a) do artigo 379.º do Código de Processo Penal de 1987, consistente na falta de indicação, na sentença penal, das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, ordenada pelo artigo 374.º, n.º 2, parte final, do mesmo Código, por isso não lhe sendo aplicável a disciplina do corpo do artigo 119.º daquele diploma legal” – precisamente por as nulidades relativas ao artigo 379.º terem um regime próprio no que toca à sua cognoscibilidade oficiosa, imposta pelo n.º 2, preceito que era inexistente à data da prolação daquele assento, sendo ademais taxativa a enumeração das nulidades.» (Mota Ribeiro, E-book CEJ 2016, sobre Processo e Decisão Penal, p. 54). [5] Seguimos aqui muito de perto as sábias considerações de Manuel Aguiar Pereira no já aqui citado «Manual sobre Fundamentação dos actos judiciais», CEJ. [6] “1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a protecção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça.
2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada.
(..)” [7] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no Pº 40/11.4TASRE.C1, datado de 22/5/2013: «I - Na apreciação e valoração da prova produzida em julgamento, a lógica resultante da experiência comum não pode valer só por si. Efectivamente, a realidade do quotidiano desmente muitas vezes os padrões de normalidade, que não constituem regras absolutas. II - De outro modo, seríamos conduzidos, a coberto de uma suposta “normalidade”, resultante da “experiência comum”, para um sistema de convenções apriorísticas, equivalente a uma espécie de prova tarifada, resultado que o legislador não quis e que a própria razão jurídica rejeita, pois equivaleria à definitiva condenação do princípio da livre apreciação da prova.”
[8] Cfr. Acórdão do STJ, datado de 12.10.2016 (P 15/13.9PEBJA.E1.S1): «É este o entendimento dominante, podendo citar-se, neste sentido os acórdãos deste Supremo Tribunal referenciados no citado acórdão de 26-09-2012, que se vem acompanhando: de 14-07-2004 (Proc. n.º 2147/04 -3.ª Secção; de 30-03-2005 (Proc. n.º 3963/04 - 3.ª Secção, in CJSTJ 2005, tomo 1, pág. 224; de 21-04-2005 (Proc. n.º 1273/05 - 5.ª Secção; de 28-06-2006 (Proc. n.º 1796/06 - 3.ª Secção, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 230 (a agravante resultante do tráfico ocorrer em estabelecimento prisional não é de aplicação automática); de 06-07-2006 (Proc. n.º 2034/06 - 5.ª Secção; de 12-10-2006 (Proc. n.º 2427/06 - 5.ª Secção; de 29-11-2006 (Proc. n.º 2426/06 - 3.ª Secção; de 02-05-2007 (Proc. n.º 1013/07 - 3.ª Secção; de 12-07-2007 (Proc. n.º 3507/06 - 5.ª Secção; de 16-01-2008 (Proc. n.º 4638/07 - 3.ª Secção); de 06-11-2008 (Proc. n.º 2501/08 - 5.ª Secção; de 21-01-2009 (Proc. n.º 4029/08 - 3.ª Secção (a detenção de droga, no interior de um estabelecimento prisional, por um recluso, em cumprimento de pena, não é circunstância bastante de per se que agrave automaticamente a punição, qualificando o crime). É preciso que resulte do facto verificado que essa detenção de estupefaciente se traduz numa conduta dolosa do agente com vista a potencial produção do resultado desvalioso que levou o legislador a autonomizar o especial agravamento». [9] Placa aludida nos factos nºs 45 a 47 da acusação pública – eram os factos anteriores dessa acusação que caracterizavam a droga em causa, ficando agora a redacção do facto nº 10 algo descontextualizada pela não prova de alguma da factualidade plasmada na acusação em causa.