PERDA DOS INSTRUMENTOS E PRODUTOS DO CRIME
DECLARAÇÃO DE PERDA DE BENS PERTENCENTES A TERCEIROS
Sumário

I – O conteúdo dos actuais nºs 7 e 9 do art. 178º do Código de Processo Penal foi reforçado pela transposição da Diretiva 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia. No que tange aos bens pertencentes a terceiros que não sejam sujeitos processuais, essa Directiva teve em vista, para além do mais, assegurar os direitos fundamentais dos visados pela declaração de perda, aí incluído o direito a ser ouvido que assiste a terceiros, assegurando a possibilidade de impugnação.
II - Ainda que a lei não o refira expressamente, os terceiros afectados pela apreensão devem ser notificados, uma vez que só assim se confere efeito útil à faculdade prevista no nº 7 do art. 178º do CPP.
III - A declaração de perda de bens pertencentes a terceiros para efeitos de aplicação do art. 111º do Código Penal tem carácter excepcional, devendo enquadrar-se na previsão de uma das alíneas do nº 2 daquele artigo.
IV - Estando em causa direitos, liberdades e garantias, nomeadamente, a garantia do direito à propriedade privada com sede no art. 62º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa [o Tribunal Constitucional tem considerado que «a garantia de cada um de não ser privado da propriedade (salvo por razões de utilidade pública, e ainda assim só mediante pagamento de justa indemnização), resultante do artigo 62º (designadamente, n.º 2) da Lei Fundamental, tem "natureza análoga" aos direitos, liberdades e garantias» - Acórdãos n.ºs 329/99, 517/99 e 202/2000], a declaração de perda à revelia do terceiro afectado traduz-se numa restrição ilegal de direitos, sem assento na lei, sendo manifestamente inconstitucional a interpretação que conduza à declaração de perda de objectos de terceiro sem que este, sendo conhecido o seu paradeiro, seja ouvido, ou sem que pelo menos lhe seja dada a possibilidade de se pronunciar, tendo aqui aplicação o estatuído no art. 18º, nº 1, da CRP.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

Relator: Jorge Jacob
Adjuntos: João Abrunhosa
Cândida Martinho


*

Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Nos autos de inquérito supramencionados foi decretada e cumprida a suspensão provisória do processo, tendo o Ministério Público proferido despacho de arquivamento, determinando ainda que os autos fossem apresentados ao Mmº. Juiz de Instrução Criminal, nos termos do artigo 268.º n.º 1, alínea e), do CPP, com a promoção de declaração de perda a favor do Estado da arma de fogo, carabina, de marca TIKKA, calibre 300 Win Mag, registada em França, apreendida à ordem dos autos, por se tratar de objecto utilizado na prática de facto ilícito.

…, foi proferido despacho com o seguinte teor:

Nos presentes autos foi apreendida uma arma de fogo, carabina, de marca TIKKA, calibre 300 Win Mag, registada em França.

O Ministério Público promoveu que a referida arma fosse declarada perdida a favor do Estado e, consequentemente, que fosse ordenada a sua destruição.

Estabelece o artigo 109.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal que são declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto.

Encontra-se indiciado que a arma apreendida serviu ou estivesse destinada a servir a prática do facto ilícito em causa nos autos.

Assim, e nos termos do artigo 109.º do Código Penal, declaro perdida a favor do Estado a arma apreendida nestes autos, mais determinando a sua destruição.

Notifique.

Inconformado, recorre o arguido … formulando as seguintes conclusões:

           

4. Com o devido respeito, não podemos concordar com a douta decisão proferida.

5. No despacho datado de 01.02.2024 a Meritíssima Juiz Tribunal a quo fundamentou a sua decisão no facto de a referida arma apreendida ter servido ou estivesse destinada a servir a prática do facto ilícito em causa nos autos, nomeadamente a detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º n.º 1, al. c) e n.º 2, com referência aos artigos 38.º, 70.º, 71.º e 82.º, todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

6. Fundamento que NÃO CORRESPONDE À VERDADE.

7. O inquérito movido contra o arguido, ora Recorrente, investigava a eventual prática de um crime de detenção de arma proibida que veio a culminar com o decretamento da suspensão provisória do processo, com o estabelecimento de injunções, que o arguido, ora Recorrente, integralmente cumpriu e que conduziu, a final, ao arquivamento do inquérito.

8. Nos presentes autos o facto ilícito praticado pelo arguido, ora Recorrente, consubstancia-se na detenção de arma proibida.

9. No dia, hora e local dos factos, o arguido, ora Recorrente, encontrava-se a caçar munido da arma apreendida, que lhe havia sido emprestada.

10. O arguido, ora Recorrente, encontrava-se a residir em França e veio a Portugal no dia dos factos para participação de uma atividade de caça.

11. A arma apreendida e que lhe havia sido emprestada encontrava-se registada em França e cuja documentação era detentor na data dos factos.

12. O arguido, ora Recorrente, tinha na sua posse uma licença de caça para não residentes em território nacional emitida pelo ICNF, mas não detinha cartão Europeu da arma apreendida e outra documentação necessária para o uso da arma apreendida.

14. Constitui pressuposto formal da perda de instrumentos e produtos prevista no artigo 109.º que os mesmos tenham sido ou estivessem destinados a ser utilizados numa actividade criminosa ou que por esta tenham sido produzidos.

15. Para a perda é ainda necessário que os objectos ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, o que significa que os objectos hão-de ser perigosos, isto é, “que atenta a sua natureza intrínseca”, a sua “específica e conatural utilidade social” se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa.

17. No caso em apreço, o uso e posse da arma apreendida destinou-se à atividade de caça.

18. No ordenamento jurídico português a atividade da caça não constitui facto ilícito, sendo uma atividade legal e regulamentada.

19. O arguido, ora Recorrente, desconhecia a exigência da documentação em falta e que originou os presentes autos.

25. Além de que, a decisão também não se encontra devidamente fundamentada.

26. O artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa refere que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei".

27. E o artigo 97.º, n.º 5, do CPP, dispõe que "os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão".

31. Além disso, previamente à decisão que declarou perdida a favor do Estado a arma apreendida, a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo não notificou o arguido, ora Recorrente, para se pronunciar quanto à questão.

32. O que deveria ter feito porque a decisão tomada afeta os direitos do arguido, ora Recorrente.

33. Ao não proceder desta forma violou a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo o disposto no artigo 61.º n.º 1 al. b) do CPP e no artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa, bem como as garantias de defesa e o princípio do contraditório constitucionalmente consagrados.

34. Pelo que, o despacho é nulo.

            O M.P. respondeu, pronunciando-se pela manutenção da decisão recorrida, …

            Nesta Relação o Exmº. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual acentua, em síntese, que o Tribunal tomou uma decisão de perda sobre um objeto que, ao que tudo indica, pertence a terceira pessoa, sem estar na posse dos elementos que o permitiriam fazer, violando os referidos normativos, podendo estar também em causa a violação, desproporcionada, entre outros, do disposto nos artºs. 18º nºs. 1 e 2, 20º nºs. 1, 4 e 5, 30º nºs. 3 e 4, 32º nºs. 1 e 5, 62º e 202º nº 1 da CRP.

            Notificado, o arguido respondeu, alegando que por ocasião do seu interrogatório juntou documentação relativa à arma apreendida e à sua titularidade e aquando da notificação do arquivamento voltou a informar que a arma não era sua e indicou o nome e morada do proprietário.                 

            Foram colhidos os vistos legais.

Delimitando-se o âmbito do recurso pelas conclusões formuladas, importa fundamentalmente verificar se na declaração de perda da arma e determinação da sua subsequente destruição foram preteridos pressupostos que contendam de forma intransponível com a subsistência do despacho recorrido.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

           

            Resulta dos autos, com interesse para a decisão do recurso, o seguinte:

            1. No decurso de uma acção de fiscalização no âmbito das actividades venatórias desenvolvida por uma patrulha … foi verificado que o arguido e ora recorrente … encontrava-se a caçar numa montaria, munido de uma carabina marca Tikka, modelo M65, com o n.º de série 650-...33, de um cano, calibre 300 e com mira nikkostirling 1.5-6x44.

            2. O arguido, residente em França, tinha na sua pose uma licença de caça para não residentes em território nacional emitida pelo ICNF.

            3. Foi nessa ocasião verificado que o arguido não detinha cartão europeu da arma que trazia consigo, que não era titular de seguro de responsabilidade civil nem autorização de empréstimo emitida pela PSP e que a arma não se encontrava registada a seu favor.

            4. A arma foi apreendida à ordem dos autos.

            5. Foi decretada a suspensão provisória do processo instaurado contra o arguido por crime de detenção de arma proibida, …, tendo o arguido cumprido a injunção que lhe foi imposta.

            6. O inquérito foi, entretanto, arquivado.

            7. A arma apreendida encontra-se registada em França em nome de AA …, constando dos autos os seus elementos de identificação e endereço.

            8. O referido AA … não foi ouvido no inquérito por se ter constatado residir em França e não foi notificado para se pronunciar sobre a titularidade da arma ou sobre a sua perda a favor do Estado.

            A primeira constatação que os factos apontados consentem traduz-se na verificação de que estando a arma apreendida registada em nome de AA … haverá que presumir ser essa pessoa o respetivo proprietário. Tratando-se de pessoa diversa do arguido, portanto, um terceiro para os efeitos previstos no art. 111º do Código Penal, deveria o Mmº Juiz a quo ter ponderado o correspondente regime legal, tomando em linha de conta que por força do nº 1 daquele artigo a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada, salvo se se verificar alguma das circunstâncias enumeradas nas alíneas do nº 2, ou seja, quando:

            a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios;

            b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou

            c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida.

            Nessa medida, constituindo aquela arma um objecto de terceiro, para que pudesse ser declarada a perda impunha-se a realização de um mínimo de investigação que permitisse ter por verificada alguma das excepções previstas nas alíneas acima referidas. Com efeito, estando em causa bens pertencentes a terceiros, a declaração de perda tem carácter excepcional, carecendo de justificação à luz do correspondente regime legal.

            De resto, como pertinentemente refere o Exmº Procurador-Geral Adjunto, em momento algum foi cumprido o disposto no art. 178º, nº 9, do CPP, … podendo a autoridade judiciária prescindir da presença do interessado quando esta não for possível, de acordo com o estatuído no nº 10 do mesmo artigo, o que no caso vertente e sendo conhecida a morada de residência em França do titular inscrito deveria ter conduzido à sua notificação para se pronunciar.

            Os autos revelam que após a tentativa de inquirição do titular inscrito, efectuada por intermédio da GNR na morada conhecida em Portugal, tendo-se constatado que aquele se encontrava a residir em França, e apesar de recolhida informação sobre a respectiva morada nesse país, nenhuma outra iniciativa para o ouvir foi desenvolvida. 

            Ora, ainda que a lei não o refira expressamente, os terceiros afectados pela apreensão devem ser notificados, uma vez que só assim se confere efeito útil à faculdade prevista no nº 7 do art. 178º do CPP [1].

            Tenha-se em atenção, por outro lado, que os normativos a que nos referimos foram reforçados com a transposição da Directiva 2014/42/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia [2] que, no que tange aos bens pertencentes a terceiros que não sejam sujeitos processuais, teve em vista, para além do mais,  assegurar os direitos fundamentais dos visados pela declaração de perda, aí incluído o direito a ser ouvido que assiste a terceiros, assegurando a possibilidade de impugnação [3].

            Acresce que estando em causa direitos, liberdades e garantias – no caso, a garantia do direito à propriedade privada com sede no art. 62º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa [4] – a declaração de perda nos termos em que foi determinada, à revelia do principal interessado, traduz-se numa restrição ilegal de direitos, sem assento na lei, sendo manifestamente inconstitucional a interpretação que conduza à declaração de perda de objectos de terceiro sem que este, sendo conhecido o seu paradeiro, seja ouvido, ou sem que pelo menos lhe seja dada a possibilidade de se pronunciar. Vale, no caso, a norma do nº 1 do art. 18º da Lei fundamental, que estabelece serem directamente aplicáveis os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, vinculando as entidades públicas e privadas.

            Nessa medida, despiciendo se revela averiguar se estamos perante nulidade processual ou perante mera irregularidade. É indiferente para o caso o tipo de invalidade em presença, posto que esse vício nem sequer se poderia sanar por ausência de reacção do arguido que, verdadeiramente, não é o interessado ou, pelo menos, não é o principal interessado na sua sanação (interesse sempre teria, por ter beneficiado do empréstimo da arma, vinculado, pois, perante o proprietário, à sua restituição), sob pena de se abrir caminho a uma declaração de inconstitucionalidade, ou mesmo, in extremis, a uma condenação do Estado Português no TEDH.

            Tanto basta para que se conclua pela procedência do recurso, ainda que com fundamentos distintos dos invocados pelo recorrente.

III – DISPOSITIVO:

            Nos termos apontados, acordam na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, revogando o despacho recorrido e determinando que após baixa dos autos à primeira instância seja aquele despacho substituído por outro que dê cumprimento ao previsto no art. 178º, nº 9, do CPP, com ponderação do disposto no nº 10 quanto à necessidade de audição presencial, seguindo-se depois os demais termos aplicáveis.

            Sem tributação.

                                                                       ***

 Coimbra, 25 de Setembro de 2024

                                   (Processado pelo relator e revisto por todos os signatários)


[1] - Art. 178º, nº 7, do CPP: Os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objectos apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida.
[2] - Transposta pela Lei nº 30/2017, de 30 de Maio.
[3] - Vejam-se os Considerandos nºs 33 e 34 da Directiva, que têm o seguinte teor:
(33) A presente diretiva afeta consideravelmente os direitos das pessoas, não só os direitos dos suspeitos ou arguidos, mas também os de terceiros que não sejam sujeitos processuais. Por conseguinte, importa estabelecer garantias específicas e vias de recurso judicial para assegurar que, ao executar a presente diretiva, se respeitem os direitos fundamentais das pessoas. Isso inclui o direito a ser ouvido que assiste a terceiros que alegam ser proprietários dos bens em causa ou titulares de outros direitos de propriedade («direitos reais» ou «ius in re»), como o direito de usufruto.
(34) A decisão de congelamento deverá ser comunicada à pessoa em causa o mais rapidamente possível após a sua execução. No entanto, por imperativos da investigação, as autoridades competentes podem adiar a comu nicação dessas decisões à pessoa em causa. A comunicação da decisão de congelamento visa, nomeadamente, permitir à pessoa em causa a impugnação da decisão. Essa comunicação deverá, pois, indicar, pelo menos em forma resumida, o fundamento ou os fundamentos de tal decisão, no pressuposto de que essa indicação poderá ser muito sucinta.
[4] - O Tribunal Constitucional tem considerado que «a garantia de cada um de não ser privado da propriedade (salvo por razões de utilidade pública, e ainda assim só mediante pagamento de justa indemnização), resultante do artigo 62º (designadamente, n.º 2) da Lei Fundamental, tem "natureza análoga" aos direitos, liberdades e garantias» - Cf. os Acórdãos n.ºs 329/99, 517/99 e 202/2000.