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CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
POSSIBILIDADE DE ENTREGA DO BEM
ELEMENTO DA ILICITUDE
Sumário
I - No crime de desobediência o MP não tem de descrever na acusação a disponibilidade do bem ou a possibilidade da arguida em o entregar, pois, quer à vista desarmada, quer no campo teleológico, a possibilidade da arguida obedecer à ordem dada, não se inscreve nos elementos típicos objetivos do crime. II - Nestes crimes de mera atividade (por contraposição aos crimes de resultado), ao MP apenas cabe o dever de descrever a conduta típica desse delito (a legal comunicação e suas cominações, assim como a falta de obediência), não cabendo ao MP indagar das razões justificativas ou injustificadas para a não apresentação do veículo no prazo concedido. A letra da lei não usa a expressão “desobediência injustificada”. III - Uma eventual impossibilidade de apresentar o veículo outrora arrestado, situar-se-á no plano da ilicitude ou da culpa, como causa de exclusão das mesmas. IV - O arguido apesar de consumar a tipicidade, posteriormente, pode alegar a falta de culpa ou de ilicitude, demonstrando, ou o Tribunal indagando oficiosamente, da impossibilidade de cumprir a ordem, e por isso, da falta de desvalor da ilicitude.”
Texto Integral
Proc. 3250/22.5T9MAI.P1
X X X
Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Nos autos de processo comum com intervenção de Tribunal Singular que correu termos no Juízo local Criminal da Maia, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto foi proferido acórdão julgando-se nos seguintes termos: “a) Condenar a arguida AA pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º1, alínea b) do Código Penal, na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à razão diária de €6,00, num total de € 510,00 (quinhentos e dez euros); b) Condenar a arguida no pagamento de custas, fixando-se a taxa de justiça no valor de 2 (duas) UC. ”
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Não se conformando com a sentença a arguida veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes CONCLUSÕES:
1 - A recorrente pretende ver alterada a decisão condenatória do Tribunal a quo que decretou a sua condenação. 2.º - Da matéria de facto provada, descrita no ponto II da Fundamentação da Decisão do Tribunal a quo, não consta que a arguida tinha o veículo, não consta a possibilidade de cumprimento da ordem (da entrega do veículo), nem, tão pouco, que a recorrente agiu de forma voluntária. 3.º - Os factos dados como provados são insuficientes para condenar a recorrente. 4.º - Ser fiel depositária não é, por si, sinónimo de ter o veículo na sua disponibilidade. 5.º - Da matéria dada como provada não constam factos da possibilidade de cumprimento da ordem, nem factos relativos à descrição da voluntariedade – não descrevendo que agiu de forma voluntária ou que “quis não entregar”. 6.º - Bastando-se com o descrito no ponto 6 dos factos provados - “a arguida não entregou o veículo nos prazos que lhe foram fixados (…)”. 7.º - O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão em factos que não foram dados como provados. 8.º - Numa insuficiência para a decisão da matéria de facto provada - cfr. 410, n.º2, a) do CPP. 9.º - Da factualidade vertida na decisão faltam elementos – necessários - para que se possa formular um juízo seguro de condenação. 10.º - Não sendo dado como provado que a arguida não quis entregar o veículo ou que não o entregou, podendo fazê-lo! 11.º - Não é descrita a possibilidade de cumprimento da ordem, nem o comportamento voluntário da arguida ao não cumprir a ordem. 12.º - Ora, “Como bem refere a Dr.a Cristina Monteiro in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo III, pg. 358, a afirmação do dolo do tipo depende de o agente conhecer e querer todas as circunstâncias fácticas que o tipo descreve, ou seja, o “tipo doloso preenche-se sempre que alguém incumpre, consciente e voluntariamente, uma «ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente»” – cfr. Acórdão do TRG de 06/12/2004 disponível em 13.º - O que não consta, igualmente, do libelo acusatório! 14.º - Sendo a acusação omissa ao não mencionar que a arguida agiu de forma voluntária/deliberada e ao não descrever que foi representado e querido por esta (tornando, salvo melhor entendimento, o alegado “propósito concretizado” descrito na acusação num mero juízo conclusivo, sem factos). 15.º - Não sendo possível a sua retificação ou aperfeiçoamento em audiência de julgamento - cfr. Ac. do STJ, de Fixação de Jurisprudência de 20-11-2014. 16.º - A acusação deverá conter, sob pena de nulidade, a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” – cfr. artº 283º, nº 3 alínea b) do Código de Processo Penal. 17.º - Sem a descrição dos factos não existe objeto idóneo à atividade do Tribunal e o princípio geral “nulla poena sine culpa” – cfr. artigo 13º do Código Penal. 18.º - Que conduz a uma espécie de ineptidão da acusação (e absolvição da instância). 19.º - Com as devidas consequências processuais. Ora, 20.º - Os poderes de cognição e decisão - do Tribunal estão limitados pelo princípio de vinculação temática quanto ao objecto do processo, definido na acusação. 21.º - Não podendo, assim, o Tribunal a quo, no Enquadramento jurídico-penal (pág. 9 da Sentença), invocar: “Nesse sentido, provou-se que a arguida atuou deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida por lei.”, numa violação do princípio da vinculação temática (negrito nosso). 22.º - Não sendo tal acréscimo - a arguida atuou deliberada (…) – inócuo (e sentiu o Tribunal a quo necessidade de o acrescentar), no sentido de ser uma atuação controlada pela vontade, querendo a realização do facto (da descrição do elemento subjetivo essencial do tipo, traduzida nos elementos intelectual ou cognoscitivo e volitivo). 23.º - Convertendo uma conduta atípica numa conduta típica. 24.º - O Tribunal a quo alegou que “a arguida atuou deliberada (…)” e dá-o como provado – como fundamento da decisão – no enquadramento jurídico penal. 25.º - Ora prevê o artigoº 379º, 1, b) do CPP, que é nula a sentença que condene por factos diversos dos descritos na acusação, sem referência aos artigos 358º e 359º do CPP. 26.º - Devendo ser declarada a nulidade da decisão que condenou a arguida por factos diferentes dos descritos na acusação. 27.º - Sem prescindir, quanto ao descrito na pág. 6 da decisão do Tribunal a quo - das várias “desculpas” que a arguida foi apresentando no procedimento cautelar, sempre se dirá: “(…) a circunstância de determinado facto resultar da prova arrolada na acusação, não dispensa a sua alegação.” – Cfr. Acórdão do TRG de 08/02/2021, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/d8e7899804e44a43 8025868400530173?OpenDocument (negrito nosso). Destarte, 28.º - Da factualidade vertida na decisão faltam elementos – necessários - para que se possa formular um juízo seguro de condenação. 29.º - Sendo dado provimento ao presente recurso e a arguida absolvida do crime de desobediência previsto e punido pelo artigo 348.º n.º 1, alínea b) do Código Penal.
Vossas Excelências, porém, farão a costumada e esperada J U S T I Ç A.
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O Digno Procurador apresentou contra-motivação, sumariando da seguinte forma:
II- DOS FACTOS E DO DIREITO
Pouco há a acrescentar para além do que consta da motivação da decisão sobre a matéria de facto e de direito da sentença proferida, uma vez que o Sr. Juiz fundamentou a sua convicção de uma forma clara, concreta e precisa, baseada em toda a prova documental junta aos autos, e ainda nas declarações da arguida, mas apenas quanto às suas condições pessoais e económicas e mesmo assim quanto às condições económicas com algumas reservas, já que a mesma se recusou a falar sobre os factos de que vinha acusada, tudo analisado à luz das regras da experiência, já que há que ter em conta quer o principio da livre apreciação da prova de que o julgador dispõe, quer o principio da imediação que só a audiência de julgamento proporciona.
Pela leitura atenta da sentença proferida e que aqui foi posta em crise, pode aferir-se da concreta participação que esta arguida teve na prática dos factos.
Na verdade, a participação da arguida na prática do crime está bem concretizada e fundamentada na referida sentença, quer a nível da fundamentação de facto, quer a nível da fundamentação de direito, atentos os factos dados como provados, estando também devidamente fundamentado o elenco das várias circunstâncias que relevaram, in casu, para efeitos da escolha e da medida concreta da pena (veja-se a este propósito a motivação da matéria de facto, a motivação da matéria de direito, e a motivação da escolha e determinação da medida da pena, cujo teor se dá aqui por reproduzido por uma questão de economia processual).
Entendemos que não assiste razão à recorrente em nenhum dos argumentos aduzidos.
Vejamos.
Foi dada como provada, a seguinte matéria de facto: “…”.
Pela leitura atenta da sentença proferida e que aqui foi posta em crise, pode aferir-se da concreta participação que esta arguida teve na prática dos factos, que permitiram que fosse condenada pelo crime de que vinha acusada, o que determinou a concreta pena em que foi condenada.
Na verdade, pode afirmar-se que todos os factos dados como provados resultaram da análise que conjugadamente o Sr. Juiz fez da prova produzida em audiência de julgamento conjugada com a prova dos autos.
Podemos ler na motivação da sentença que: “(…)”. a) Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Perante o teor da fundamentação da matéria de facto dada como provada, cai por terra a alegação de que existe insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, suportada tal alegação com o facto de a mesma querer fazer crer ao Tribunal que a arguida não detinha a posse do veículo e por isso não cumpriu tal obrigação porque não podia.
Na verdade, basta atentar no teor da certidão de fls. 4 a 132, extraída de procedimento cautelar n.º 3352/21.5T8CBR para verificar que a arguida foi sempre apresentando desculpas, incluindo a alegação de que tal veículo não tinha seguro nem certificado de inspeção válidos, para não entregar o veículo de marca Volkswagen ..., com a matrícula ..-OS-... Aliás, a arguida, que é sócia gerente da sociedade A... – Unipessoal, Lda (conforme resultou provado), reconheceu por documento com a sua assinatura manuscrita, em requerimento que fez juntar a esse procedimento cautelar, que logo após a remoção da viatura, e “porque não possuía local ou meios para a guardar, a viatura foi transportada para o armazém da requerente do procedimento cautelar (a sociedade A... Unipessoal, Lda) sito na estrada ..., ..., ... em Coimbra, local de trabalho da fiel depositária dessa mesma viatura (a aqui arguida) e onde a mesma ainda se encontra (…)”.
Resulta assim que a arguida tinha na sua posse tal veículo, e que o local onde o mesmo terá sido guardado foi da sua responsabilidade.
Alega ainda a arguida que da matéria de facto dada como provada não constam factos da possibilidade de cumprimento da ordem, nem factos relativos à descrição da voluntariedade – não descrevendo que a arguida agiu de forma voluntária ou que quis não entregar, bastando-se o Tribunal com o descrito no ponto 6 dos factos provados: “a arguida não entregou o veiculo nos prazos que lhe foram fixados”.
Esquece a arguida que também consta da factualidade dada como provada que:
“7.Ao ser nomeada e ao aceitar o cargo de fiel depositária do veículo apreendido, a arguida ficou ciente das obrigações que sobre si impendiam, assim como ficou ciente da obrigação de entrega do veículo que lhe foi judicialmente determinada nos prazos fixados pelo tribunal, tendo agido de forma livre, consciente e com o propósito concretizado de desrespeitar a ordem da autoridade judicial. 8. Sabia, de igual modo, a arguida, que a sua conduta era vedada e punida pela lei penal”.
Seguindo o entendimento do Acórdão da Relação de Lisboa, proc. n.º652/21.8PEAMD.L1-9, de 05.05.2022, relatado por Renata Whytton da Terra, de 05.05.2022, disponível em www.dgsi.pt, pode ler-se nesse acórdão que:
“I- Não existe um modo semântico único para a descrição dos factos que integram o tipo de dolo, sendo, naturalmente, livre a redação e a utilização dos termos que servirão para o descrever, para integrar o dolo, não havendo uma fórmula que, não sendo utilizada ipsis verbis, conduza fatalmente à queda da acusação por manifestamente infundada, por não conter a suficiente narração dos factos. II- No que ao dolo diz respeito, este, desdobra-se num elemento intelectual e num elemento volitivo. O elemento intelectual do dolo implica, desde logo, o conhecimento, previsão ou representação por parte do agente, dos elementos materiais constitutivos do tipo objectivo do ilícito. O outro elemento do dolo, o elemento volitivo, consiste na vontade, por parte do agente, de realizar o facto típico, depois de ter representado, ou previsto as circunstâncias ou elementos do tipo objectivo do ilícito”.
Ora, não é exigível que se use a fórmula tabular e costumeira da praxis judiciária: “ter agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua atuação era proibida e punida por lei”, pois nessa fórmula se encerram aliás, juízos conclusivos, abstratos e não factos, juízos esses que haverão de basear-se nos factos concretos alegados, sendo no caso concreto redundante, pois a menção de que “tendo agido de forma livre, consciente e com o propósito concretizado de desrespeitar a ordem da autoridade judicial” – corresponde inequívoca e expressamente ao elemento intelectual ou cognitivo do dolo, encerrando igualmente o elemento volitivo (neste sentido, embora esteja e causa outro crime, encontramos o Acórdão Tribunal da Relação de Évora, proc. n.º 89/09.7TAABT.E1, de 20.01.2011, relatado por António João Latas, disponível em www.dgsi.pt.).
Na verdade, e reportando-nos ao Acórdão Supremo Tribunal de Justiça, proc. n.º 373/15.0JACBR.C1-S1, de 28.03.2019, relatado por Nuno Gomes da Silva, disponível em www.dgsi.pt, pode ler-se que: “(…) não há “fórmulas sacramentais”, sendo possível transmitir o «dolo de culpa» ou «tipo-de-culpa dolosa» de diferentes formas, posto que inequivocamente signifiquem uma atitude, revelada no facto, de contrariedade ou indiferença do agente perante o dever-ser jurídico-penal, ou seja que encontrando-se o mesmo em condição/posição de se determinar de outro modo, ainda assim optou por agir contra o direito.”
Face ao exposto, não vislumbramos que assista razão à arguida recorrente. b) Da ineptidão da acusação
Considera ainda a recorrente que a acusação é inepta por não descrever de forma clara e inequívoca os factos que levam a concluir a possibilidade do destinatário cumprir a ordem.
Ora, mas neste âmbito, a recorrente apenas debitou acórdãos sem qualquer concretização do que visava com tal alegação, pelo que não se vislumbra o alcance do pretendido. c) Da violação do princípio da violação temática
Invoca a recorrente que foi violado o princípio da vinculação temática considerando que o Tribunal a quo condenou por factos diversos dos descritos na acusação.
Alega em sua defesa o facto do Tribunal a quo, no enquadramento jurídico penal invocar “nesse sentido, provou-se que a arguida atuou deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida por lei”.
O Ministério Público sustenta aqui o que já foi referido supra quanto à existência do elemento volitivo que está presente na acusação e igualmente na matéria de facto dada como provada, pois não sendo exigível a existência de uma fórmula tabelar e costumeira da praxis judiciária: “ter agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua atuação era proibida e punida por lei”, não vislumbramos que o principio da vinculação temática tenha sido posto em crise quando o Sr. Juiz, na sentença, sob a epigrafe “enquadramento jurídico-penal” escreveu que: “provou-se que a arguida atuou deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida por lei”.
O Sr. Juiz, na sentença, sob a epigrafe: “enquadramento jurídico-penal” está apenas a apreciar o caso concreto, e a justificar a sua razão de ciência. d) Da condenação por factos diferentes dos descritos na acusação
Alega a recorrente que o Sr. Juiz ao referir no “enquadramento jurídicopenal que, “provou-se que a arguida atuou deliberada”, está a condenar por factos diferentes dos descritos na acusação.
Ora, não vislumbramos que conste da factualidade dada como provada que a arguida atuou deliberada (…).
Consta sim que: “7. Ao ser nomeada e ao aceitar o cargo de fiel depositária do veículo apreendido, a arguida ficou ciente das obrigações que sobre si impendiam, assim como ficou ciente da obrigação de entrega do veículo que lhe foi judicialmente determinada nos prazos fixados pelo tribunal, tendo agido de forma livre, consciente e com o propósito concretizado de desrespeitar a ordem da autoridade judicial (sublinhado nosso), que entendemos ter o mesmo sentido de que a arguida atuou de forma “deliberada”, pelo que também neste ponto se entende não assistir razão à recorrente, até porque o que importa é a factualidade dada como provada, a qual está devidamente fundamentada pelo Sr. Juiz, que invoca sinónimos para justificar o enquadramento legal que efetuou e que consideramos acertado.
Na verdade, estão reunidos todos os elementos subjetivos e objetivos constitutivos do crime.
Por todo o exposto, não vislumbramos que a arguida possa ser absolvida do crime pelo qual foi acusada e pelo qual foi condenada em 1ª instância.
(…). IV- TERMOS EM QUE SE FORMULAM AS SEGUINTES CONCLUSÕES:
1- AA, arguida nestes autos, não se conformando com a sentença que a condenou pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º1, alínea b) do Código Penal, na pena de 85 (oitenta e cinco) dias de multa, à razão diária de €6,00, num total de € 510,00 (quinhentos e dez euros, veio da mesma interpor recurso.
2- Alega, em resumo, que existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; que a acusação é inepta; que existe violação do princípio da vinculação temática; que a condenação foi por factos diferentes dos descritos na acusação; que a arguida deve ser absolvida.
3- Entendemos que não assiste razão à recorrente em nenhum dos argumentos aduzidos.
4- Pouco há a acrescentar para além do que consta da motivação da decisão sobre a matéria de facto e de direito da sentença proferida, uma vez que o Sr. Juiz fundamentou a sua convicção de uma forma clara, concreta e precisa, baseada em toda a prova documental junta aos autos, e ainda nas declarações da arguida, mas apenas quanto às suas condições pessoais e económicas e mesmo assim quanto às condições económicas com algumas reservas, já que a mesma se recusou a falar sobre os factos de que vinha acusada, tudo analisado à luz das regras da experiência, já que há que ter em conta quer o principio da livre apreciação da prova de que o julgador dispõe, quer o principio da imediação que só a audiência de julgamento proporciona.
5- Pela leitura atenta da sentença proferida e que aqui foi posta em crise, pode aferir-se da concreta participação que esta arguida teve na prática dos factos.
6- A participação da arguida na prática do crime está bem concretizada e fundamentada na referida sentença, quer a nível da fundamentação de facto, quer a nível da fundamentação de direito, atentos os factos dados como provados, estando também devidamente fundamentado o elenco das várias circunstâncias que relevaram, in casu, para efeitos da escolha e da medida concreta da pena (veja-se a este propósito a motivação da matéria de facto, a motivação da matéria de direito, e a motivação da escolha e determinação da medida da pena, cujo teor se dá aqui por reproduzido por uma questão de economia processual).
7- Perante o teor da fundamentação da matéria de facto dada como provada, cai por terra a alegação de que existe insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, suportada tal alegação com o facto de a mesma querer fazer crer ao Tribunal que a arguida não detinha a posse do veículo e por isso não cumpriu tal obrigação porque não podia.
8- Basta atentar no teor da certidão de fls. 4 a 132, extraída de procedimento cautelar n.º 3352/21.5T8CBR para verificar que a arguida foi sempre apresentando desculpas, incluindo a alegação de que tal veículo não tinha seguro nem certificado de inspeção válidos, para não entregar o veículo de marca Volkswagen ..., com a matrícula ..-OS-... 9- Aliás, a arguida, que é sócia gerente da sociedade A... – Unipessoal, Lda (conforme resultou provado), reconheceu por documento com a sua assinatura manuscrita, em requerimento que fez juntar a esse procedimento cautelar, que logo após a remoção da viatura, e “porque não possuía local ou meios para a guardar, a viatura foi transportada para o armazém da requerente do procedimento cautelar (a sociedade A...Unipessoal, Lda) sito na estrada ..., ..., ... em Coimbra, local de trabalho da fiel depositária dessa mesma viatura (a aqui arguida) e onde a mesma ainda se encontra (…)”.
10- Resulta assim que a arguida tinha na sua posse tal veículo, e o local onde o mesmo terá sido guardado foi da sua responsabilidade.
11- Alega ainda a arguida que da matéria de facto dada como provada não constam factos da possibilidade de cumprimento da ordem, nem factos relativos à descrição da voluntariedade – não descrevendo que a arguida agiu de forma voluntária ou que quis não entregar, bastando-se o Tribunal com o descrito no ponto 6 dos factos provados: “a arguida não entregou o veiculo nos prazos que lhe foram fixados”. 12- Esquece a arguida que também consta da factualidade dada como provada que: “7.Ao ser nomeada e ao aceitar o cargo de fiel depositária do veículo apreendido, a arguida ficou ciente das obrigações que sobre si impendiam, assim como ficou ciente da obrigação de entrega do veículo que lhe foi judicialmente determinada nos prazos fixados pelo tribunal, tendo agido de forma livre, consciente e com o propósito concretizado de desrespeitar a ordem da autoridade judicial. 8. Sabia, de igual modo, a arguida, que a sua conduta era vedada e punida pela lei penal”.
13- Ora, não é exigível que se use a fórmula tabular e costumeira da praxis judiciária: “ter agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua atuação era proibida e punida por lei”, pois nessa fórmula se encerram aliás, juízos conclusivos, abstratos e não factos, juízos esses que haverão de basear-se nos factos concretos alegados, sendo no caso concreto redundante, pois a menção de que “tendo agido de forma livre, consciente e com o propósito concretizado de desrespeitar a ordem da autoridade judicial” – corresponde inequívoca e expressamente ao elemento intelectual ou cognitivo do dolo, encerrando igualmente o elemento volitivo.
14- Face ao exposto, não vislumbramos que também quanto a este ponto assista razão à arguida recorrente.
15- Considera ainda a recorrente que a acusação é inepta por não descrever de forma clara e inequívoca os factos que levam a concluir a possibilidade do destinatário cumprir a ordem.
16- Ora, mas neste âmbito, a recorrente apenas debitou acórdãos sem qualquer concretização do que visava com tal alegação, pelo que não se vislumbra o alcance do pretendido.
17- Invoca a recorrente que foi violado o princípio da vinculação temática considerando que o Tribunal a quo condenou por factos diversos dos descritos na acusação.
18- Alega em sua defesa o facto do Tribunal a quo, no enquadramento jurídico penal invocar “nesse sentido, provou-se que a arguida atuou deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida por lei”.
19- O Ministério Público sustenta aqui o que já foi referido supra quanto à existência do elemento volitivo que está presente na acusação e igualmente na matéria de facto dada como provada, pois não sendo exigível a existência de uma fórmula tabelar e costumeira da praxis judiciária: “ter agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua atuação era proibida e punida por lei”, não vislumbramos que o principio da vinculação temática tenha sido posto em crise quando o Sr. Juiz, na sentença, sob a epigrafe“enquadramento jurídico-penal” invoca que: “provou-se que a arguida atuou deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida por lei”.
20- O Sr. Juiz, na sentença, sob a epigrafe “enquadramento jurídico-penal” está apenas a apreciar o caso concreto, e a justificar a sua razão de ciência.
21- Alega a recorrente que o Sr. Juiz ao referir no “enquadramento jurídicopenal que, “provou-se que a arguida atuou deliberada”, está a condenar por factos diferentes dos descritos na acusação.
22- Ora, não vislumbramos que conste da factualidade dada como provada que a arguida atuou deliberada (…), consta sim que: “7. Ao ser nomeada e ao aceitar o cargo de fiel depositária do veículo apreendido, a arguida ficou ciente das obrigações que sobre si impendiam, assim como ficou ciente da obrigação de entrega do veículo que lhe foi judicialmente determinada nos prazos fixados pelo tribunal, tendo agido de forma livre, consciente e com o propósito concretizado de desrespeitar a ordem da autoridade judicial (sublinhado nosso), que entendemos ter o mesmo sentido de que a arguida atuou de forma “deliberada”, pelo que também neste ponto se entende não assistir razão à recorrente, até porque o que importa é a factualidade dada como provada, a qual está devidamente fundamentada pelo Sr. Juiz, que invoca sinónimos para justificar, na sentença, o enquadramento legal que efetuou e que consideramos acertado.
23- Na verdade, estão reunidos todos os elementos subjetivos e objetivos constitutivos do crime.
24- Não vislumbramos que a arguida possa ser absolvida do crime pelo qual foi acusada e condenada em 1ª instância.
25- Entende-se que nenhuma crítica pode ser efetuada à sentença aqui posta em crise quanto à medida concreta da pena em que foi condenado, uma vez que pelas razões expostas foi tido em conta o disposto nos arts. 70º e 71º, ambos do Código Penal, conforme bem explicado na sentença na parte relativa ao enquadramento jurídico penal e determinação da medida da pena, porque tudo foi efetuado dentro dos limites definidos pela lei e em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tendo sido ponderadas as circunstâncias que militaram a favor da arguida e em desfavor da mesma.
26- Por todo o exposto, afigura-se-nos que o enquadramento jurídico que o Sr. Juiz fez perante a situação dos autos afigura-se-me correta, pelo que remetemos para a douta decisão proferida e, nesse sentido, decidiu bem o Sr. Juiz ao enquadrar a conduta desta arguida na prática de um crime de desobediência, atenta a matéria de facto dada como provada.
27- O decidido é justo e equitativo.
28- A decisão recorrida não violou qualquer preceito legal ou constitucional, muito menos os alegados pela arguida, antes tendo efetuado uma correta aplicação do direito aos factos. Nestes termos e face todo o exposto, deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se, na íntegra, a douta sentença recorrida, assim se fazendo inteira justiça.
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Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso.
Concorda-se com o teor da Resposta do Ministério Público no sentido da manifesta improcedência do Recurso, acrescentando-se apenas, e em sede de parecer, o seguinte: Dispõe o artigo 348.º do Código Penal: «1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação. 2 - A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.
Como por exemplo refere o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 24-1-2018 « Acórdão de 24 de Janeiro de 2018 (Processo n.º 388/15.9GBABF.S1) Última instância – Falta de fundamentação – Omissão de pronúncia – Desobediência O crime de desobediência, que se inclui na categoria dos denominados “crimes de dever” (C. Roxin), constitui um caso que a doutrina costuma indicar de lei penal aberta ou de lei penal em branco, que impõe particulares precauções na determinação da incriminação perante as exigências decorrentes do princípio da legalidade em matéria penal. Dado o carácter subsidiário do tipo de crime, pois que nem todas as “desobediências” constituem crime subsumível à previsão do artigo 348.º do Código Penal, a concreta qualificação de um comportamento como crime de desobediência tem de equacionar-se em três momentos: em primeiro lugar, pela verificação da subsunção a uma norma que preveja um ilícito próprio; em segundo lugar, pela verificação da subsunção a uma norma que concretamente comine a punição de um comportamento como desobediência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º; finalmente, pela subsunção à alínea b) do n.º 1 do mesmo preceito, que requer a cominação de desobediência pelo agente de autoridade».
No caso concreto, a arguida foi nomeada fiel depositária do veículo com a matrícula ..-OS-.., no âmbito de um procedimento cautelar a correr termos num juízo local Cível da Maia.
Na altura- auto de arresto-, foi a arguida notificada de todos os deveres inerentes a essa qualidade de fiel-depositária e às consequências do seu incumprimento. Volvidos 10 meses foi a arguida notificada pessoalmente pela PSP de Coimbra da obrigação de entrega imediata do veículo arrestado, com a cominação de incorrer na prática de crime de Desobediência, caso não procedesse do modo ordenado.
Passados 2 meses foi a arguida novamente notificada, desta feita por carta registada.
Não obstante, a arguida não procedeu à entrega do veículo nos prazos determinados, só o fazendo em 30-9-2022, dois meses e quase vinte dias depois da 1ª notificação.
Relativamente ao elemento subjectivo do tipo legal cometido o tribunal a quo deu como provado que «Ao ser nomeada e ao aceitar o cargo de fiel depositária do veículo apreendido, a arguida ficou ciente das obrigações que sobre si impendiam, assim como ficou ciente da obrigação de entrega do veículo que lhe foi judicialmente determinada nos prazos fixados pelo tribunal, tendo agido de forma livre, consciente e com o propósito concretizado de desrespeitar a ordem da autoridade judicial. 8. Sabia, de igual modo, a arguida, que a sua conduta era vedada e punida pela lei penal».
Não existem dúvidas de acordo com os factos dados como provados que a arguida cometeu o crime de Desobediência pelo qual foi condenada.
Os factos dados como provados resultaram da prova documental junta aos autos, tendo a arguida optado por se remeter ao silêncio.
Como é bem fundamentado na sentença recorrida, perante os factos dados como provados que preenchem os elementos objectivos do tipo, resultou que a arguida agiu de modo livre e consciente e com o propósito, concretizado, de não cumprir ordem judicial legítima, que lhe foi regularmente comunicada, não havendo nenhum facto- nomeadamente trazido pela defesa da arguida- de que esta estaria impossibilitada de facto de proceder à entrega do veículo arrestado no prazo que foi determinado. Assim, se pronuncia, por exemplo, e quanto à prova do dolo, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-1-2015, « A nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, deduz-se de factos externos, objectivos, revelados pela conduta do agente.
Por outro lado, a arguida foi notificada pessoalmente no sentido da comunicação relativa à ordem de entrega do veículo arrestado e nenhuma informação foi dada na altura pela mesma no sentido de eventual impossibilidade de cumprir a ordem que lhe era transmitida, sendo que a arguida com o seu curriculum académico tem mais recursos de reacção a algo eventualmente anómalo e justificativo da sua conduta que a generalidade das pessoas nas mesmas circunstâncias.
Por sua vez, e ao contrário do que é alegado em sede de recurso, a fórmula utilizada para a descrição do dolo não tem necessariamente de corresponder a uma fórmula exacta de escolha de expressões, bastando que contenha todos os elementos necessários ao preenchimento do elemento subjetivo do tipo.
Prevê o artigo 14. º, n.º1, do Código Penal que « Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
(…)
Como se verifica do facto dado como provado, e acima, transcrito, consigna-se que a arguida agiu de forma livre e consciente- o que pressupõe que agiu de modo deliberado, tendo como propósito não obedecer a ordem legal regularmente transmitida e sabendo que tal conduta constituía crime e, portanto, era proibida e punida por lei.
Do mesmo modo constava da acusação pública « Ao ser nomeada e ao aceitar o cargo de fiel depositária do veículo apreendido, a arguida ficou ciente das obrigações que sobre si impendiam, assim como ficou ciente da obrigação de entrega do veículo que lhe foi judicialmente determinada nos prazos fixados pelo tribunal, tendo agido de forma livre, consciente e com o propósito concretizado de desrespeitar a ordem da autoridade judicial».
A sentença recorrida não enferma assim de falta de fundamentação ou de omissão de pronúncia que levem à nulidade da sentença, prevista no artigo 379.º do CPP, nada havendo a alterar na sentença recorrida.
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Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal, nada foi acrescentado de relevante.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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II. Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.
É assim composto pela arguição de:
a) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A acusação é inepta;
c) Existe violação do princípio da vinculação temática;
d) A condenação foi por factos diferentes dos descritos na acusação;
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Do enquadramento dos factos. Da sentença recorrida constam como factos provados os seguintes: “O Ministério Público acusou, em processo comum, com intervenção de Tribunal Singular: AA, filha de BB e de CC, natural de ..., nascida a ../../1980, divorciada, residente na Estrada ... (Estrada ...), n.º ..., Coimbra; Imputando-lhe a prática, em autoria material, de um CRIME DE DESOBEDIÊNCIA, previsto e punido pelo artigo 348.º n.º 1, alínea b) do Código Penal. Regularmente notificada, a arguida apresentou contestação em que invocou, em síntese, que na descrição dos factos da acusação faltava a alegação de possibilidade de cumprimento da ordem por parte da arguida e que nunca manifestou qualquer intenção de não cumprir a ordem de entrega do veículo, não tendo agido com o propósito de desrespeitar a ordem da autoridade judicial, motivos pelo quais clamou pela sua absolvição. Realizou-se a audiência de julgamento com observância do formalismo legal, conforme resulta da respetiva ata. Não existem nulidades, questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa.
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I II. FUNDAMENTAÇÃO
Factos provados 1. No âmbito do procedimento cautelar n.º 3352/21.5T8CBR, em que foi requerente “A..., Unipessoal, Lda.” e requerido DD, que correu termos no Juízo Local Cível da Maia, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por decisão datada de 20-08-2021, foi determinado o arresto do veículo com a matrícula ..-OS-.. e a arguida AA foi nomeada fiel depositária desse veículo. 2. No dia 01-09-2021, no auto de arresto do veículo, a arguida aceitou o cargo de fiel depositária e foi advertida das obrigações que sobre si impendiam, designadamente de apresentar o bem quando lhe fosse determinado, de restituir a coisa, e da responsabilidade criminal em que incorria caso não cumprisse os deveres do cargo. 3. No dia 07-04-2022, por falta de instauração da ação principal, foi declarada a caducidade do procedimento cautelar e determinado o levantamento do arresto do veículo com a matrícula ..-OS-... 4. No dia 07-07-2022, AA foi notificada pessoalmente, pela PSP de Coimbra, na qualidade de fiel depositária do veículo com a matrícula ..-OS-.., da ordem judicial para proceder à imediata entrega do veículo arrestado, no preciso local onde foi removido, com a advertência de que, não o fazendo, incorria na prática de um crime de desobediência, punido pelo art.º 348.º, n.º1, al. b), do Código Penal. 5. Em data localizada entre o dia 26-08-2022 e o dia 06-09-2022, a arguida foi novamente notificada no âmbito daqueles autos, por carta registada, da ordem judicial para, no prazo de 5 dias, proceder à entrega do veículo no preciso local onde o levantou, com a advertência de que a falta de cumprimento do ordenado a podia fazer incorrer na prática do crime de desobediência. 6. Não obstante ter recebido tais notificações e ter ficado delas ciente, a arguida não entregou o veículo nos prazos que lhe foram fixados, apenas o vindo a fazer quando assim entendeu, já em 30-09-2022. 7. Ao ser nomeada e ao aceitar o cargo de fiel depositária do veículo apreendido, a arguida ficou ciente das obrigações que sobre si impendiam, assim como ficou ciente da obrigação de entrega do veículo que lhe foi judicialmente determinada nos prazos fixados pelo tribunal, tendo agido de forma livre, consciente e com o propósito concretizado de desrespeitar a ordem da autoridade judicial. 8. Sabia, de igual modo, a arguida, que a sua conduta era vedada e punida pela lei penal.
Mais se provou: 9. A arguida não tem antecedentes criminais. 10. É licenciada e tem mestrado em matemática. 11. Dá explicações de matemática. 12. Vive em casa arrendada, pela qual paga € 610,00 de renda. 13. Tem dois filhos com 5 e 16 anos. 14. É proprietária de um veículo ... de 2010. 15. É sócia gerente da sociedade A... – Unipessoal, Lda.
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Não se deixaram de provar, com interesse para a causa, quaisquer outros factos.
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Motivação Factos provados 1 a 8: Perante o silêncio a arguida, que optou por não prestar declarações, o tribunal sedimentou a sua convicção relativamente aos factos dados como provados da acusação (factos provados 1 a 8) na análise crítica e conjugada do teor da certidão de fls. 163 a 180, extraída de procedimento cautelar n.º 3352/21.5T8CBR, que correu termos no Juízo Local Cível da Maia -J3, que não foi posta em crise quanto à sua fidedignidade e que constitui prova autêntica dos factos e atos processuais aí certificados. Deste modo, de tal certidão retira-se: - o teor da decisão proferida em 20-08-2021, que decretou o arresto do veículo com a matrícula ..-OS-.. e a sua entrega, enquanto fiel depositária, à arguida AA, que, à data, era a legal representante da sociedade requerente (a fls. 164 a 165); - o auto de arresto daquela viatura em 01-09-2021, ao requerido DD, em que ficou como fiel depositária a arguida, que assinou esse auto nessa qualidade com todas as advertências sobre as obrigações legais que desse cargo decorriam e, nomeadamente, a consequência de responsabilidade criminal pelo incumprimento dessas obrigações (cf. fls. 171 a 173); - a decisão judicial, proferida a 07-04-2022, que declarou a caducidade da providência cautelar de arresto, extinta a instância do procedimento cautelar e ordenou o levantamento do arresto (cf. fls. 179); e - a informação prestada nesses autos pelo requerido DD, a dar conta que a viatura lhe foi entregue em 30-09-2022, pelas 10:20 horas (cf. fls. 170). Assim, deste conjunto de documentos processuais devidamente certificados, dúvidas não se suscitam que a viatura ..-OS-.. foi, efetivamente, entre à arguida em 01-09-2021, que esta ficou fiel depositária da mesma, que, em 07-04-2022, caducou o arresto e que tal viatura apenas foi entregue pela arguida em 30-09-2022. Depois, foi igualmente relevada a certidão de fls. 4 a 132, também extraída de procedimento cautelar n.º 3352/21.5T8CBR, que outrossim não foi posta em crise quanto à sua fidedignidade e que constitui prova autêntica dos factos e atos processuais aí certificados, daí ressaltando, de fls. 54 a 58, a notificação pessoal da arguida, por OPC, em 07-07-2022, para proceder à imediata entrega do veículo ..-0S-.. no local de onde foi removido, com a advertência expressa de que se não o fizesse incorria na prática de crime de desobediência, e a fls. 26 a prova da notificação, por carta registada, datada de 26-08-2022, à arguida para, mais uma vez, proceder à referida entrega, com a mesma cominação, que foi efetivamente recebida até 01-09-2022, visto que, com essa data (cf. fls. 23), a arguida remeteu uma carta ao Juízo Local Cível da Maia, dirigida ao processo n.º 3352/21.5T8CBR, a anunciar os motivos pelos quais não iria entregar a viatura (nomeadamente não ter certificado de inspeção ou seguro válidos) e alegando que quando aceitou exercer as funções de fiel depositária não foi informada dos encargos a que poderia estar sujeita. Ou seja, não só a arguida recebeu esta segunda notificação do tribunal, como, a percebeu e, dúvidas pudessem existir, tinha em seu poder o automóvel. Sobre a intenção que a arguida tinha em desobedecer ao comando judicial, a liberdade que tinha para atuar e a consciência da ilicitude da sua conduta, tal emerge, desde logo, da advertência que lhe foi dirigida sobre as suas obrigações enquanto fiel depositária, nomeadamente de que tinha de entregar o veículo assim que lhe fosse solicitado e das duas notificações pessoais que recebeu para realizar essa entrega, ambas cominadas expressamente com a prática do crime de desobediência. De resto, não podemos deixar de considerar as várias “desculpas” que a arguida foi apresentando no procedimento cautelar para não entregar a viatura, todas elas refutadas pela Sr.ª Juiz titular desse processo, como mais uma evidência que a arguida tinha em seu poder a viatura e que só não a entregava por vontade própria. Note-se, ademais, que a arguida é licenciada e mestrada em matemática e que não há, por isso, qualquer motivo para duvidar que em algum momento não compreendeu as responsabilidades e obrigações de ser nomeada fiel depositária ou o que tal cargo significa. Facto provado 9: Atentou-se no certificado de registo criminal da arguida, que se mostra atualizado. Factos provados 10 a 15: Teve-se em consideração as declarações da arguida sobre a respetiva situação económica e pessoal, não sendo credível, no entanto, que não retire quaisquer proveitos da sua atividade de explicadora de matemática ou que viva só com a ajuda de familiares e amigos (que não identifica como, nem como a ajudam), nomeadamente para financiar o pagamento de uma renda de € 610,00 por mês ou custeio de despesas com dois filhos. Mais, só da consulta das bases de dados da Segurança Social se apurou que, afinal, a arguida é igualmente gerente de uma sociedade comercial, situação que estranhamente ocultou.
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Enquadramento jurídico-penal A arguida vem acusada da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º n.º 1, alínea b) do Código Penal. Dispõe o artigo 348.º n.º 1, alínea b) do Código Penal que “Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: (…) b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.”. O bem jurídico protegido pelo tipo legal em apreço é a autonomia intencional do Estado, procurando-se que não sejam colocados obstáculos à atividade administrativa por parte dos destinatários dos atos. Constituem elementos constitutivos do tipo legal em análise, (1) a existência de uma ordem ou mandado formal e substancialmente legítimos, que tenham sido regularmente comunicados ao agente, (2) comunicação essa que emane de autoridade competente, (3) a falta de obediência – por ação ou omissão - por parte do agente a essa mesma ordem ou mandado e (4) que esse agente tenha atuado dolosamente, ou seja, com conhecimento e vontade de praticar tal facto, podendo o dolo revestir qualquer uma das suas modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal, isto é, dolo direto, necessário ou eventual. Logo, para que uma pessoa deva obediência a ordem ou mandado é necessário que aqueles sejam emanados de autoridade competente, bem como que cheguem ao conhecimento dessa pessoa pelas vias normalmente utilizadas para o efeito, considerando-se, então, que foi regularmente notificada. A compreensão por parte do agente é, pois, elemento fundamental, na medida em que não é suficiente que o meio de fazer chegar a ordem ao conhecimento do seu destinatário se mostre (em conformidade com a legislação) formalmente inatacável, sendo igualmente indispensável que aquele destinatário se tenha inteirado, de facto, do seu conteúdo. Quanto à possibilidade de cumprimento da ordem, somos a propender que, em vez de um elemento literal do tipo objetivo de ilícito, será, ainda assim, um elemento típico implícito relacionado com a capacidade do agente cumprir, visto que, naturalmente, só pode desobedecer que estiver em condições prévias de obedecer, de cumprir o que lhe for determinado. Como refere Cristina Líbano Monteiro “só se deve obediência a ordens possíveis de cumprir, sendo a possibilidade aferida, como é próprio de um comando dirigido a alguém em concreto, pela situação e capacidades do particular destinatário. (…)” podendo “a impossibilidade de praticar o ato ser física ou até legal”. 1 1 In Comentário Conimbricense do Código Penal, 1.ª Edição, Coimbra Editora, Tomo III, p. 357. Assim, nos casos em que, como no presente, o agente desobediente é o fiel depositário e em que se alega que a coisa depositada lhe foi entregue nessas circunstâncias até ao momento em que foi ordenada a devolução, a capacidade ou possibilidade de desobedecer encontra-se dessa forma suficientemente descrita. Demais, quando muitas vezes se afirma, em sede de alegação do elemento subjetivo, que o agente atuou de forma livre, deliberada e voluntária e com o propósito concretizado de desrespeitar a ordem, também aí se está a alegar que a ordem podia ser cumprida, pois se assim não fosse a atuação nunca poderia ser considerada livre, nem voluntária. Como tal, salvo melhor opinião que muito se respeita, entendemos que não será de exigir nenhuma fórmula tabelar a impor que na acusação se diga que o agente estava em condições de obedecer ou que o cumprimento da ordem lhe era possível, sem a qual a acusação há de ser rejeitada ou o agente absolvido. No plano subjetivo, a comissão do ilícito apenas admite o dolo (eventual, necessário ou direto) cf. artigo 14.º do Código Penal. Delimitados os elementos do tipo objetivo e subjetivo em apreço, importa verificar se os mesmos se mostram preenchidos. Apreciando e decidindo, dos factos provados resulta sumariamente que, no procedimento cautelar n.º 3352/21.5T8CBR, no qual a arguida foi nomeada fiel depositária de um automóvel arrestado com a matrícula ..-OS-.. e que lhe foi entregue em 01-09-2021, após ordem judicial que lhe determinou a entrega desse bem com a cominação de incorrer em crime de desobediência em caso de não cumprimento, aquela foi pessoalmente notificada para proceder a essa entrega primeiro em 07-07-2022 e, depois, entre 26-08-2022 e 06-09-2022, tendo ficado ciente dessas ordens e cominações. Na primeira notificação a ordem era para entrega imediata. Já na segunda notificação foi concedido um prazo de 5 dias. Mesmo assim, a arguida não procedeu à entrega do descrito veículo após a segunda notificação no prazo que lhe foi concedido, apenas tendo cumprido com essa entrega em 30-09-2022, o que demonstra, como já resultava implícito de ser ela a fiel depositária, que tinha o veículo em sua posse para poder cumprir a ordem e que só não o fez porque não quis. Nesse sentido, provou-se que a arguida atuou deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida por lei. Assim, da factualidade dada como provada conclui-se que a arguida, com a conduta descrita, preencheu o tipo legal de crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º n.º 1, alínea b) do Código Penal, na forma de dolo direto.
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Escolha e medida da pena O crime de desobediência é punível com uma pena de 1 mês a 1 ano de prisão ou pena de multa de 10 a 120 dias (artigo 348.º n.º 1, alínea b) do Código Penal). Dispõe o artigo 70.º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa de liberdade e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição”. As finalidades de punição são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigo 40.º, n.º1 do Código Penal. A finalidade de proteção de bens jurídicos equivale à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, correspondendo às necessidades de prevenção geral positivas. A reintegração do agente na sociedade, ou ressocialização, resume o outro polo legitimador de aplicação da pena, que deve ter em consideração, nos casos em que o agente já tenha sido punido em ocasiões pretéritas, a capacidade deste ser influenciado pela pena. No caso, apesar de se considerar que são reduzidas as necessidades de ressocialização da arguida (em face da ausência de antecedentes criminais), não pode deixar de salientar-se que o tipo de crime em questão protege a autonomia intencional do Estado e convoca necessidades de prevenção geral médias a elevadas, nomeadamente no que tange ao reforço da ideia, junto da comunidade, que as ordens das autoridades devem ser respeitadas e cumpridas com escrúpulo. Ainda assim, sendo a prisão uma solução de última “ratio”, reservada para situações de maior gravidade do que a dos presentes autos, como por exemplo casos de pluricriminalidade ou reincidência, entende-se ser de aplicar à arguida uma pena de multa. Resulta do artigo 47.º, n.º1 do Código Penal que “A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º1 do artigo 71.º” e esta norma dispõe que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. Acresce que não há pena sem culpa e a medida da pena não pode ultrapassar a da culpa (cf. artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal). Estabelece, ainda, o artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal que, na determinação da medida concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Quanto às necessidades de prevenção geral, como já apontado, situam-se já num patamar médio a elevado, não podendo a medida da pena deixar de refletir essas preocupações mediante o afastamento da pena de multa do seu limite mínimo. O grau do dolo, direto, é o mais grave. A ilicitude, bem como a culpa, situa-se num patamar mediano, verificado pela ausência de factos que a agravem ou a atenuem, sendo de notar, ainda assim, que a arguida foi advertida por duas vezes para entregar a viatura e que tem um mestrado, pelo que a sua formação universitária deveria afastá-la da prática de ilícitos. A favor da arguida, tem-se em conta a aparente integração social. Assim, tudo considerado, encontra-se justo e adequado aplicar à arguida uma pena de 85 dias de multa. Quanto ao montante diário a fixar, prevê o artigo 47.º, n.º2 do Código Penal que cada dia de multa corresponde a uma quantia entre € 5,00 a € 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais. No caso, tendo em consideração a profissão da arguida e ser sócia gerente de uma empresa, na ausência de conhecimento de dados mais recentes sobre os seus rendimentos (não sendo, porém, credível que não aufira nenhuns e que viva apenas da ajuda de terceiros), deve sempre partir-se do princípio que aufere, pelo menos, o salário mínimo nacional, pelo que, por isso, entende-se ser justo e adequado fixar-lhe uma quantia diária, por cada dia de multa, de € 6,00 (seis euros).
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Custas Atento o disposto nos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal, é devida taxa de justiça pelo arguido quando for condenado em 1.ª instância, devendo também pagar os encargos que a sua atividade houver dado lugar. Nos termos do artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais, por referência à Tabela III, tendo em conta o número de sessões e a atividade processual originada, entende-se como justa e adequada a fixação de uma taxa de justiça de 2 Unidades de Conta, que equivale a € 204,00. Quanto aos encargos, serão devidos aqueles que, a final, vierem a ser contabilizados, nos termos do artigo 16.º do Regulamento das Custas Processuais.
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I III. DISPOSITIVO
DECISÃO (…)”
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Cumpre apreciar.
Primeiramente a recorrente na questão que suscita, apoiada em alguns acórdãos dos Tribunais da Relação que cita, pretende inverter os termos da responsabilidade penal, quando sustenta ser dever do MP descrever na acusação a possibilidade da arguida em entregar o veículo, como se esse facto fosse um elemento típico objetivo inscrito na tipicidade do delito de desobediência.
No entanto, uma eventual impossibilidade (que nem se alega qual fosse, pois, a arguida remeteu-se ao silêncio, e a sua contestação não avança razão alguma) de apresentar o veículo outrora arrestado, situar-se-ia no plano da ilicitude ou da culpa concretamente, propriamente como causa de exclusão da ilicitude ou da culpa. No objeto de processo provaram-se os elementos típicos do delito de desobediência, e nessa medida haverão de improceder as conclusões de recurso.
A tese que sustenta o facto respeitante à possibilidade da arguida poder cumprir a ordem em causa, como elemento típico objetivo, compara com as acusações por detenção de arma proibida, onde a detenção tem de ser descrita. Ora, estes exemplos são incomparáveis, porque também o são os delitos em discussão, desde logo, porque a detenção da arma é um elemento típico desse delito. A tese desses acórdãos também se firma que “este último requisito surge como evidente se tivermos em conta o princípio ad impossibilita nemo tenutur (Ninguém é obrigado ao impossível), só se devendo obediência a ordens possíveis de cumprir, sendo a possibilidade aferida pela situação e capacidades do destinatário da ordem”, ver por todos o Douto Acórdão do TRP de 15/03/2023. No entanto, essa justificação não é suficiente para lhe atribuir consagração típica, e em última análise é um requisito que está presente em todos os crimes, seja nos crimes de resultado, seja nos crimes de mera atividade, e em todos eles tem direta repercussão na expressão da ilicitude ou da culpa, que é o seu lugar próprio (quando não tem consagração típica, como é o caso).
Salvo o devido respeito, nestes crimes de mera atividade (por contraposição aos crimes de resultado), ao MP apenas cabe o dever de descrever a conduta típica, do delito de mera atividade (a legal comunicação e suas cominações, assim como a falta de obediência), não cabendo ao MP indagar das razões justificativas ou injustificadas para a não apresentação do veículo no prazo concedido. A letra da lei nem sequer usa a expressão de “desobediência injustificada” (nem o teria de fazer porquanto, as justificações inscrevem-se nos parâmetros da ilicitude e da culpa, portanto, a jusante dos pressupostos da responsabilidade penal do delito).
Por isso, deve ser claramente afirmado que, quer à vista desarmada, quer no campo teleológico, a possibilidade da arguida obedecer à ordem dada, não se inscreve nos elementos típicos objetivos do crime previsto no art.348º nº1 alínea b) do CP, não incumbindo ao MP a sua descrição na acusação.
No caso, a arguida tinha o dever de prontidão sobre o bem, e perante uma ordem que lhe seja dada, tinha o ónus de a cumprir. Não integra manifestamente o objeto típico deste crime de desobediência, quer em fase de inquérito, ou de julgamento indagar das possibilidades sobre os modos do cumprimento desse dever. A indagação da impossibilidade da arguida, pode lhe ser imputável, a ponto de implicar uma violação dos seus deveres, com o cometimento do delito de descaminho, ou a própria desobediência. Na notificação pessoal da arguida, através de agente policial, não tem este de constatar que o veículo estava nas imediações do local onde se efetuou a notificação, pois essas, são possibilidades que não tem de aferir. Após a notificação, o arguido dispõe do prazo que lhe foi concedido, para realizar as “démarches” para obedecer e cumprir a ordem que lhe foi dirigida, providenciando por reboque ou deslocação do veículo onde estiver parqueado.
Diferentemente no delito de descaminho previsto no art.355º do CP a acusação deverá descrever o destino e o descaminho que o bem sofreu.
As possibilidades que normalmente o agente policial afere, aquando da emissão da ordem, serão sobre as capacidades pessoais do destinatário da ordem, em entender a mesma, e não, sobre o posterior cumprimento da ordem de entrega do objeto, o que ocorre nas ordens de cumprimento imediato. Diversamente, no regulamento de fiscalização da condução sob influência do álcool, cfr.art.4º do Anexo da Leio nº18/2007, o agente de autoridade tipicamente terá de aferir, de modo coevo à ordem, da impossibilidade de realização do teste no ar espirado, mas esta exigibilidade (diferentemente do delito que nos ocupa) manifesta-se expressamente no plano típico.
Nas ordens de cumprimento diferido no tempo, no próprio prazo, o destinatário da ordem pode explicar a impossibilidade de cumprir naquele prazo, ou definitivamente. Nada fazendo, consuma a mera atividade típica. O arguido apesar de consumar a tipicidade, posteriormente, pode alegar a falta de culpa ou de ilicitude. Concretamente pode alegar em inquérito ou em audiência de julgamento a falta de desvalor da ilicitude, ou de culpa, demonstrando, ou o Tribunal indagando oficiosamente, da impossibilidade de cumprir a ordem, e por isso, da falta de desvalor da ilicitude.
Por essa razão, a invocada ineptidão da acusação, improcede.
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Continuando a apreciar a restante parte do objeto de recurso, concretamente, a impugnação da matéria de facto, primeiramente cabe considerar a demarcação do conceito de insuficiência para a decisão da matéria de facto na apreciação da prova, traçando os seus limites.
No elenco dos vícios da decisão, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorre quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objeto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal;
Só existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando se faz a formulação incorreta de um juízo em que a conclusão extravasa as premissas ou quando há omissão de pronúncia pelo tribunal, sobre os factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.
Como se observou no Ac. do S.T.J. de 20-4-2006 (proc.º n.º 363/03, rel. Cons.º R. Costa): “A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão de ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ser apurados na audiência vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.” (cfr. no mesmo sentido o Ac. do STJ de 23-10-1997, proc.º 97P318, rel. Dias Girão, também reproduzido no Ac. do STJ de 18-3-2004, proc.º n.º 03P3566, Rel. Simas Santos).
Como vem referido no Ac. do TRC de 30.03.2011, proc. nº 10/10.OPECTB.C1, www.dgsi.pt, este é um vício que se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para fundamentar a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão esta que é do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
Diversamente, a impugnação da matéria de facto prevista no art.412º nº3 do CPP, consiste na apreciação, tal como sustentou o acórdão que temos vindo a citar”, “que não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs3 e 4 do art. 412º do C.P. Penal. A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º]”.
Portanto, traçados os contornos do quadro dogmático do vício em causa, cabe apreciar os termos do alegado vício de insuficiência da decisão da matéria de facto previsto no art.410º nº2 respeita à alínea a) do CPP, sustentando o recorrente que o Tribunal “A Quo” nunca poderia chegar a essas conclusões probatórias e da solução jurídica que encontrou na subsunção da desobediência. Porém, diversamente do que se sustenta, não se vislumbra qual o parâmetro de insuficiência decisório, dado que no elenco dos factos que constavam da acusação e que vieram a resultar provado, consta claramente do ponto 7 o elemento volitivo da arguida. Concretamente da acusação constava nos pontos 6º a 8º a seguinte redação:
“6º - Não obstante ter recebido tais notificações e ter ficado delas ciente, a arguida não entregou o veículo nos prazos que lhe foram fixados, apenas o vindo a fazer quando assim entendeu, já em 30 de setembro de 2022. 7.º Ao ser nomeada e ao aceitar o cargo de fiel depositária do veículo apreendido, a arguida ficou ciente das obrigações que sobre si impendiam, assim como ficou ciente da obrigação de entrega do veículo que lhe foi judicialmente determinada nos prazos fixados pelo tribunal, tendo agido de forma livre, consciente e com o propósito concretizado de desrespeitar a ordem da autoridade judicial. 8.º Sabia, de igual modo, a arguida, que a sua conduta era vedada e punida pela lei penal.”
Assim, a expressão “com opropósitoconcretizado de desrespeitar a ordem da autoridade judicial”, localiza o facto subjetivo respeitante ao dolo, e à sua vontade de desrespeitar a ordem de que foi destinatária. Agir com o propósito de desobedecer, corresponde, à vontade de querer desobedecer. Com efeito, existem muitas formas gramaticais-verbais de descrever o elemento volitivo e todas elas são válidas, desde que tenham o mesmo valor semântico, o que sucede nos presentes autos.
Portanto, inexistindo os invocados parâmetros de insuficiência improcede a invocada nulidade.
Portanto, não padecendo a sentença de quaisquer dos vícios previstos no art.410º do CPP, nesta parte deve improceder o recurso.
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Quanto à arguida nulidade da sentença nos termos do artigoº 379º, 1, b) do CPP, por alegada condenação por factos diversos dos descritos na acusação, sem referência aos artigos 358º e 359º do CPP, invocando-se a violação do princípio da vinculação temática, como se o Tribunal houvesse alterado os factos, apenas pelo que consta dos considerandos jurídicos que teceu no enquadramento jurídico da sentença, é pretensão que não faz o menor sentido.
Com efeito, no elenco dos factos provados, único lugar que importa para aferir a questão suscitada, não se verifica qualquer alteração de factos, e a subsequente interpretação jurídica dos factos, não constitui em si qualquer alteração de factos, motivo porque, também improcede a arguida nulidade, não existindo a menor violação ao princípio da vinculação temática.
Como resulta dos fundamentos expostos, o recurso não poderá merecer provimento
DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso não provido, mantendo-se a douta sentença do Tribunal a quo.
Custas do recurso pela arguida fixando a taxa de justiça no mínimo.
Notifique.
Porto, 11 de setembro 2024.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Raquel Lima
Paula Natércia Rocha