PENA DE MULTA
PRESTAÇÕES
INCUMPRIMENTO
Sumário

Perante o não pagamento de uma prestação, a lei impõe um vencimento ope legis das demais em falta, ou seja, a imediata exigibilidade das restantes, não dependendo de despacho judicial que o declare, nem se exigindo – fora das situações de invocado justo impedimento - qualquer ponderação das circunstâncias do incumprimento.

Texto Integral

Processo n.º 164/18.7GCETRP1

Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I.
I.1
Nos autos de processo comum n.º 164/18.7GCETR, a correr termos no Juízo Local Criminal de Oliveira de Azeméis, por despacho de 10 de janeiro de 2024 (Ref.ª 130932403), foi concedida ao condenado a possibilidade de prosseguir o pagamento do plano prestacional da multa criminal preteritamente aplicada, decidindo-se como segue: “Ante os fundamentos invocados que se nos afiguram justo impedimento, notifique o arguido para o cumprimento integral dos valores prestacionais.”.

*
I.2
Não se conformando com o decidido, veio o Ministério Público interpor o recurso, ora em apreciação, referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
a. Nos termos do art. 47.º nº 3 do Código Penal, sempre que a situação económica e financeira do condenado o justifique, o Tribunal pode autorizar o pagamento da multa em prestações, conquanto o prazo de pagamento não exceda os 2 anos após o trânsito em julgado da condenação.
b. Nos termos do art. 47.º nº 5 do Código Penal, a falta de pagamento de uma prestação importa o vencimento imediato de todas.
c. Esse efeito é consequência automática da lei, não estando o vencimento dependente de despacho judicial que o declare, na medida em que não há qualquer ponderação a fazer pelo Tribunal das circunstâncias do não pagamento.
d. O condenado AA não procedeu ao pagamento da prestação da pena de multa que se venceu no dia 4 de Julho de 2023.
e. Como tal, em face desse não pagamento, no dia 5 de Julho de 2023, primeiro dia após o termo do prazo para pagamento da prestação relativa a esse mês, venceram-se todas as prestações da pena de multa, deixando de estar vigente o pagamento prestacional.
f. Pelo que não podia o Tribunal decidir como decidiu, mantendo o pagamento em prestações da pena de multa e determinando que o condenado dê cumprimento integral às prestações fixadas.
*
1.3
O condenado AA apresentou resposta (Ref.ª 16092558) pugnando pela improcedência do recurso e consequente preservação do decidido, alegando, em conclusão:
1. O presente recurso é circunscrito ao Despacho da Meritíssima Juíza que decidiu que se mantinha o pagamento prestacional e notificou o arguido para cumprimento integral dos valores prestacionais – despacho com a referência 130932403.
2. A condição económica do arguido e agregado familiar é precária.
3. O arguido pagou algumas prestações e sempre manifestou vontade de pagar as remanescentes.
4. A Meritíssima Juíza invocou e bem o justo impedimento para o não pagamento e decidiu manter o pagamento da multa penal em prestações.
5. A Decisão por parte da Meritíssima Juíza a quo ao decidir como decidiu, mantendo o pagamento em prestações do remanescente da pena de multa e determinando que o arguido dê cumprimento integral dos valores prestacionais afigurou-se-nos correta e devidamente fundamentada.
6. A decisão proferida não violou o disposto no artigo 47º nº 5 do Código Penal
7. A Decisão em análise não deve ser alterada.
Termos em que não deve ser concedido provimento ao presente recurso.
Nesta conformidade VªS Exas como sempre farão inteira JUSTIÇA.
*
1.4
Por despacho de 16.06.2024 (Ref.ª 133218532) a Mma. Juíza a quo reparou parcialmente a decisão recorrida considerando vencidas, ope legis, todas as prestações e determinando que os autos fossem com vista ao Ministério Público para efeitos do disposto no art.º 47.º, n.º 3, do C.P..
Conferido contraditório à defesa nada foi requerido.
O Ministério Público nada promoveu.
*
I.5
Neste Tribunal a Digna Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido do provimento do recurso (Ref.ª 18264327), devendo, em defluência, revogar-se o despacho recorrido declarando-se vencidas todas as prestações da multa criminal.
*
1.6
Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., tendo o recorrido exercido o contraditório (Ref.ª 393006), mantendo a argumentação expressa na resposta e pugnando pela preservação do decidido.
*
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
*
II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, de eventuais vícios da decisão.
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursória, constitui objeto do presente recurso saber se, estando em curso pagamento em prestações da pena de multa, a falta de pagamento de uma delas importa, por força da lei, o vencimento de todas elas, ou se esse vencimento carece de ser judicialmente declarado e, ainda, se ao caso é convocável o mecanismo do justo impedimento.
*
III.
III.1
Elementos relevantes para a decisão a proferir:
A) - Por sentença de 27.05.2021 (Ref.ª 116439219), confirmada por acórdão do Tribunal da Relação de Porto de 10.11.2021 (Ref.ª 15111272), foi o arguido AA condenado, além do mais, na pena única de 360 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, perfazendo € 1.800,00 pela prática, em 26.05.2018, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo art.º 291.º, n.º 1, al. b) do C.P., um crime de desobediência, p. e p. pelos art.ºs 152.º, n.º 3, al. a) do C.E. e 348.º, n.º 1, al. a) do C.P. e um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos art.ºs 138.º, n.º 3 do C.E. e 348.º, n.ºs 1 al. a) e 2 do C.P..
B) – A requerimento do condenado foi autorizado o pagamento da multa criminal em 24 prestações mensais, iguais e sucessivas, de € 75,00, devendo a primeira ser paga até ao dia 03.11.2022 e as seguintes nos meses subsequentes e até as datas limite constantes das guiais remetidas, com a advertência de que, a falta de pagamento de qualquer prestação, implicaria o vencimento das restantes;
C) – Na sequência do não pagamento da guia pagável até 04.07.2023 foi o arguido notificado, por carta registada com PD, nos seguintes termos “Para vir aos presentes autos, no prazo de 10 dias, comprovar o pagamento da prestação de multa em falta, referente ao mês de Julho, sob pena de poderem vir a ser todas declaradas vencidas e cobradas coercivamente e/ou convertidas em prisão subsidiária. Junta-se DUC para pagamento, devendo juntar aos autos o respetivo comprovativo. (…)”;
D) – O condenado procedeu ao pagamento do DUC referido em C) no dia 17.08.2023;
E) – Ante o não comprovação do pagamento das guias referentes aos meses de agosto e setembro de 2023, com data de 20.09.2023 (Ref.º 129062537), o Ministério Público subscreveu promoção com o seguinte teor:
“Atendendo a que o condenado não procedeu ao pagamento de duas das prestações da pena de multa, tal importa, por força da lei – cfr. art. 47.º nº 5 do Código Penal –, o vencimento de todas elas.
*
A fim de se apurar a situação económico-financeira do condenado e aferir da viabilidade de instauração de execução, tendo em vista a cobrança coerciva do remanescente da pena de multa, promovo que:
- Se averigúe na base de dados do Registo Automóvel se ele possui veículos com motor registados em seu nome e se sobre eles pendem ónus e encargos;
- Se averigúe na base de dados do ISS, IP – Instituto da Segurança Social –, se em nome dele se encontram a ser efectuados descontos como trabalhador por conta de outrem ou a outro título e, em caso afirmativo, qual a entidade patronal e quais os montantes de retribuição mensal por ele auferidos, ou se é ele beneficiário de alguma prestação social (subsídio de desemprego, subsídio de doença, RSI, pensão de invalidez…) e, em caso afirmativo, qual o montante mensal;
- Se oficie ao Serviço de Finanças ..., solicitando, no prazo de 10 dias, informação sobre se ele possui bens imóveis registados em seu nome.”.
F) – Em 15.10.2023 o condenado enviou e-mail (Ref.ª 15171223) com o seguinte teor: “Eu, AA, na qualidade de arguido do Processo Comum (Tribunal Singular) 164/18.7GCETR, venho pelo presente atestar a falta de pagamento de duas das 24 prestações mensais, referentes ao pagamento da multa de 1800,00€ a que fui condenado, nomeadamente as prestações que venceram em 03/08/2023 e 03/09/2023. A falta de cumprimento deveu-se ao facto de me encontrar em situação de carência económica, estando desempregado e sem usufruir de qualquer subsídio. À data de hoje, já me encontro empregado, tendo já cumprido o pagamento da prestação que vencia no dia 04/10/2023. Posto isto, peço a V/ Excelências que permitam que as duas prestações não pagas transitem para o final do conjunto de prestações que ainda faltam vencer. Sendo que a última prestação vence a 04/10/2024, pedia que as duas prestações não cumpridas, vencessem no mês 11 e 12 de 2024. Desde já agradeço a compreensão e tempo dispensados. (…)”.
G) – Com data de 17.10.2023 e com referência à promoção mencionada em E), foi proferido despacho (Ref.ª 129223219) com o seguinte teor: - “Proceda em conformidade com o Doutamente Promovido.”;
H) – Na sequência do e-mail referido em F), com data de 25.10.2023 (Ref.ª 129607173) o Ministério Público promoveu que:
“(…) Depois de lhe ser autorizado o pagamento em prestações da pena de multa, nos termos do art. 47.º nº 3 do Código Penal, o condenado não pagou, desde logo, a prestação relativa ao mês de Julho de 2023.
Ora, nos termos do art. 47.º nº 5 do Código Penal, “A falta de pagamento de uma das prestações importa o vencimento de todas.”.
Resulta, assim, do elemento literal dessa norma legal, que o não pagamento de uma prestação conduz ao vencimento automático das restantes, ou seja, o vencimento de todas as prestações, na sequência do não pagamento de uma delas, opera por força da lei, sem necessidade de despacho judicial a declará-lo.
Como tal, a partir do momento em que uma prestação não é paga, o condenado deixa, ope legis, de beneficiar da possibilidade de pagamento prestacional e passa imediatamente, a partir daí, a dever o montante total da multa que se encontra por liquidar (correspondente às prestações vencidas e vincendas).
Neste sentido, vide, entre outros, os acórdãos do TRP de 9/12/2020 (proc. nº 1320/12.7PJPRT-A.P1) e 15/06/2016 (proc. nº 440/10.7GDVFR-A.P1), in www.dgsi.pt.
Dessa consequência foi o condenado, aliás, logo advertido aquando da notificação do despacho judicial de deferimento do pagamento prestacional da pena de multa.
Assim, estando vencidas todas as prestações, desde o dia 5 de Julho de 2023 – primeiro dia após o termo do prazo para pagamento da prestação relativa a esse mês –, tinha o condenado que proceder ao pagamento do montante da pena de multa que se encontrava em dívida e não, tão-só, como fez, o pagamento das quantias referentes às prestações desse mês de Julho – que veio a pagar apenas no dia 17 de Agosto de 2023 – e do mês de Outubro de 2023.
Importa, por isso, procurar obter o pagamento da multa, seja por via da sua cobrança coerciva, seja, caso essa não seja possível, por via da sua conversão em prisão subsidiária.
Sendo certo que, a todo o tempo, mesmo após a conversão do remanescente da pena de multa em prisão subsidiária, pode o condenado pagá-la – cfr. art. 49.º nº 2 do Código Penal.
Assim, por não estar já vigente o pagamento prestacional da pena de multa, o requerido carece de fundamento legal, pelo que promovo que se indefira. (…)”.
I) – Ordenada a observância de contraditório relativo à promoção mencionada em H) o condenado subscreveu requerimento datado de 21.11.2023 (Ref.ª 15353067) com o seguinte teor:
J) – Na sequência do mencionado em I) o Ministério Público promoveu (Ref.ª 130217579), além do mais, que:
“Como se expôs na promoção com a referência 129607173, entende-se que o vencimento de todas prestações da pena de multa, por falta de pagamento de uma delas, é consequência automática da lei.
Como tal, não há necessidade da existência de qualquer despacho a declarar esse vencimento e, por isso, é indiferente o motivo pelo qual não foi paga uma prestação, na medida em que não há qualquer ponderação a fazer quanto ao ser justificada ou injustificada a razão do não pagamento.
Dessa consequência é o condenado logo advertido, como o foi, aquando da notificação do despacho judicial de deferimento do pagamento prestacional da pena de multa.
Assim, perante a falta de pagamento de uma prestação, impõe-se que o condenado proceda ao pagamento do montante da pena de multa em dívida e não dos montantes fixados para cada uma das prestações, pois o pagamento prestacional, por força da lei, deixou de estar vigente.
No caso, não obstante o vencimento de todas as prestações, o condenado não veio proceder ao pagamento integral da quantia da pena de multa que se encontra em dívida, mas tão-só de montantes correspondentes às prestações que lhe foram anteriormente autorizadas.
Pelo exposto, promovo que, considerando-se vencidas todas as prestações, se notifique o mesmo para proceder ao pagamento do remanescente da pena de multa, sob pena de, não o fazendo, ser procurada a sua cobrança coerciva ou, não sendo essa viável, ser esse remanescente convertido em prisão subsidiária.
L) – Foi proferido o despacho datado de 10.01.2024 (Ref.ª 130932403), alvo de recurso, com o seguinte teor: - “Ante os fundamentos invocados que se nos afiguram justo impedimento, notifique o arguido para o cumprimento integral dos valores prestacionais.”.
M) – Admitido o recurso interposto pelo Ministério Público do despacho mencionado em L), pela Mma. Juíza e já no âmbito do presente recurso, foi proferido o despacho datado de 16.06.2024 (Ref.ª 133218532), com o seguinte teor:
“(…) Ao abrigo do disposto nos arts. 379.º, n.º 2 e 414.º n.º 4, do CPP, importa tecer as seguintes considerações e decidir em conformidade:
No caso em apreço e agora nos ocupa, prende-se com o facto de o arguido condenado em pena de multa ter beneficiado da possibilidade de cumprir aquela pena em prestações e entrou em incumprimento.
Ora da mesma análise de todos os elementos documentais juntos pelo arguido ao longo dos autos ressalta a sua situação de carência económica, desempregado ou trabalho precário, com um agregado dele dependente uma das filhas com incapacidade de 70% e outra estudante universitária, tendo, em visível esforço e ajuda de outros, ir pagando as prestações em que foi autorizado àquele pagamento faseado.
Porém, o arguido sempre com pagamentos em atraso.
Após pesquisas atualizadas na jurisprudência e independentemente da opinião que se perfilhe daquela diferenciada que consultamos e acerca do funcionamento «ope legis» do efeito previsto no nº 5 do art. 47º do CP - ainda que a maioritariamente para o vencimento automático das prestações em caso de não pagamento de uma delas – conforme pugnado pelo Ministério Público, afigura-se-nos adotar uma posição intermédia, interpretando literalmente o nº 5 do art 49º [certamente por lapso querendo referir-se o art.º 47.º], sem dependência de despacho prévio judicial de declaração do respetivo vencimento, porém tendo em conta a sistemática do dipositivo em análise e concretamente o disposto no nº 3 do mesmo dispositivo legal e aquela que vimos defendida mais recentemente na jurisprudência dos Tribunais Superiores.
Na verdade, o citado dispositivo visa salvaguardar a necessidade de garantir a credibilidade e eficácia intimidatória da multa enquanto pena criminal, tanto mais que continua a ser uma das penas com maior potencialidade para constituir alternativa à pena de prisão.
E, por outro lado, nele está refletida a preocupação de assegurar o princípio constitucional da igualdade no domínio das consequências jurídicas do crime, procurando prevenir, essencialmente, que alguém venha a cumprir prisão por falta de capacidade económica e financeira dos agentes para solver a multa, como aludido supra de forma genérica para a pena de multa.
E, a nosso ver, é com este enquadramento que deve interpretar-se e aplicar-se o regime previsto no art. 49º do CP, nºs 5 e 3.
Na verdade, da conjugação destes números (3 e 5) do art 49º do CP, se vencidas as prestações automaticamente com o não pagamento de uma delas, após diligências comprovativas da respetiva incapacidade económica – nestes autos alegadas pelo próprio arguido ao longo dos autos – após conversão da pena, não deve ser determinado o cumprimento efetivo da prisão subsidiária - se a falta de pagamento da multa não resultar de conduta voluntária e censurável do condenado que tenha provocado a impossibilidade prática de satisfação do montante respetivo (de forma voluntária ou coerciva, através do seu património).
A nosso ver, só assim, se assegurará que não só ninguém terá que cumprir prisão por mera falta de capacidade económica, mas também que o mesmo prevê os mecanismos jurídicos necessários para garantir a efetividade das penas e, em especial, a credibilidade e força intimidatória das penas alternativas à prisão.
Nesta conformidade reparo - parcialmente - a posição sustentada nos autos naquela que se deixa consignada supra.
Assim, vencidas as prestações em falta por via do pagamento não atempado das prestações, abra vista ao Mº Pº.
Notifique.
Subam os autos ao Venerando Tribunal da relação do Porto que melhor justiça fará. (…)”.
N) – Na sequência do referido em M) foram os autos com vista ao Ministério Público que subscreveu promoção com o seguinte teor (Ref.º 133645202): - “Tomei conhecimento. Nada a promover.”.
*
III.2
Apreciando.
Como nota introdutória da já identificada questão a decidir, importa referir que, nos termos do estatuído no art.º 47.º, n.º 3 do C.P., “Sempre que a situação económica e financeira do condenado o justificar, o tribunal pode autorizar o pagamento da multa dentro de um prazo que não exceda um ano, ou permitir o pagamento em prestações, não podendo a última delas ir além dos dois anos subsequentes à data do trânsito em julgado da condenação”.
A montante e quanto à fixação da taxa diária contemporâneo à condenação, o Código Penal português adotou o chamado modelo de dias de multa, com a fixação posterior de um quantitativo diário como multiplicando para os dias de multa determinados, defluindo o produto no montante global em espécie, transpondo o modelo escandinavo ao nosso sistema, permitindo que os critérios operativos do art.º 71.º do C.P. laborem na fixação do primeiro fator, situando a ulterior quantificação da taxa diária à margem da correspetividade ao(s) crime(s) praticado(s) e em consonância com a concreta situação económica do agente.
Fixada a pena, o tribunal atribui o quantitativo diário a incidir sobre cada dia de multa da pena concreta, entre um mínimo de € 5,00 e um máximo de € 500,00 diários, em função da situação económica e financeira do condenado.
Ainda que a fixação da taxa diária não assuma uma função preventiva e de correspetividade com o(s) crime(s) praticado(s), não podemos perder de vista que a multa criminal acarreta a inevitável inflição de um sacrifício no destinatário, que se materializará, por referência ao crime concreto e suas circunstâncias, nos dias de multa fixados, mas sem escamotear que a determinação ulterior da taxa diária (ou a jusante o fracionamento do pagamento que no caso ocorreu) não poderá desvirtuar aquela natureza de verdadeira pena, afetando a finalidade desta enquanto tal, quer do ponto de vista da prevenção geral, quer especial.
Conforme se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22.09.2017 [proc. n.º 634/15.9PBSTB.E1, Rel. António Latas], diz F. Dias, ob. cit. p. 119, “Impõe-se…que a pena de multa represente em cada caso uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada”. Assim, até porque a multa é muitas vezes percebida mais como uma taxa que como uma pena, a sua credibilidade enquanto consequência jurídica do crime não pode deixar de assumir caráter aflitivo para o condenado, sendo igualmente inerente a esta pena, como às demais, que possa afetar o modo de vida do próprio e dos que dele dependam, mesmo na sua vertente patrimonial.”.
No caso vertente a taxa diária foi fixada no mínimo legal - € 5,00 – por decisão consolidada e, posteriormente, autorizado o seu pagamento prestacional, precisamente com permissão no estatuído no sobredito art.º 47.º, n.º 3 do C.P.
Deferido o requerido pagamento da multa única em prestações, o condenado não procedeu ao pagamento da prestação que se vencia até ao dia 04.07.2023 e, bem assim, daquelas que se venciam no início dos meses de agosto e setembro daquele mesmo ano.
Importa, pois, definir quais as consequências extraíveis de tal facto.
Relativamente ao primeiro inadimplemento o condenado veio a liquidar o montante em causa (€ 75,00) em 17.08.2023 (cfr. D), pelo que, sem prejuízo da nossa interpretação quanto ao estatuído no art.º 47.º, n.º 5 do C.P. e ante o teor da notificação mencionada em C), daquele retardamento não podem ser extraídas as consequências apontadas pelo recorrente – designadamente quanto ao vencimento imediato de todas as prestações – tendo em conta que o próprio Tribunal criou a convicção no destinatário de que, com aquele pagamento a coberto da DUC remetida para o efeito, aquele incumprimento seria relativizado e mantida a execução do cumprimento prestacional. Entender-se o contrário configuraria uma situação violadora dos elementares princípios da boa fé, defraudatária das expectativas geradas no destinatário, quando confrontado com o teor literal da notificação que lhe foi dirigida pela Secção.
Resta, então, a questão do não pagamento (assumido pelo condenado) das prestações que se venceram no início dos meses de agosto e setembro de 2023, tendo sido invocadas dificuldades económicas pretensamente justificativas da impossibilidade de cumprimento atempado e pretendendo o obrigado que a respetiva liquidação fosse autorizada no termo do plano prestacional.
Num primeiro momento e por força do despacho recorrido, entendeu o Tribunal a quo que, ante as razões aduzidas pelo obrigado, seria viável a manutenção do plano prestacional conquanto aquele procedesse ao pagamento das prestações então em falta. Inconformado o Ministério Público interpôs o presente recurso por entender que, nos termos do art.º 47.º, n.º 5 do C.P., a falta de pagamento de uma das prestações implicava o vencimento de todas, o que seria incompatível com a preservação do plano de pagamentos.
Sobre o primitivo dissídio, dir-se-á que assistiria razão ao recorrente.
Efetivamente, ante o não pagamento de uma prestação, a lei impõe um vencimento ope legis das demais em falta, ou seja, a imediata exigibilidade das restantes prestações não está dependente de despacho judicial que o declare já que, perante a letra do sobredito n.º 5, não se exige qualquer ponderação das circunstâncias do não pagamento. Assim e em defluência, a partir do momento em que o condenado deixe de pagar uma das prestações dentro do prazo concedido, cessa, por isso, a dilação concedida para o pagamento fracionado da multa.
Com o acabado de expor não se exclui a possibilidade, naturalmente excecional, de o condenado justificar o incumprimento temporário de alguma das prestações da multa, com fundamento em situações que possam ser reconduzíveis à figura do justo impedimento que, ainda assim, implicaria o pagamento da(s) prestação(ões) em falta em ato imediatamente subsequente ao da cessação da pretensa causa justificativa, o que, no caso vertente, também não sucedeu.
Assim e em síntese apertada, o efeito jurídico previsto no n.º 5 do art.º 47º do C.P. não tem como pressuposto a formulação, pelo Tribunal, de qualquer juízo de valor sobre as razões do incumprimento, não acolhendo a lei, na sua literalidade, qualquer discricionariedade ou espaço para flexibilidade, não intercalando vocábulos como “pode o Tribunal determinar o vencimento imediato”.
Destarte, perante o não pagamento de duas prestações (agosto e setembro de 2023) e sem que fosse apreciada, convenientemente, qualquer situação de justo impedimento ou que, a existir e logo que cessado, fosse efetuado o pagamento em causa, por força do n.º 5 do art.º 47.º, do C.P., considerar-se-iam vencidas todas as prestações que, assim, seriam imediatamente exigíveis e a liquidar em ato único.
Nesta parte, porém, o recurso interposto tornar-se-ia absolutamente inútil.
Efetivamente e conforme se expressa em M), por força da reparação (parcial) do decidido, a questão da “automaticidade” do funcionamento do inciso constante do n.º 5 do art.º 47.º do C.P. mostra-se ultrapassada, tendo o Tribunal a quo considerado vencidas todas as prestações.
No entanto e se bem entendemos do despacho em referência (já que se referem os n.ºs 3 e 5 do art.º 49º, que não contém n.º 5 e se confere a este o mesmo conteúdo do n.º 5 do art.º 47.º, assumindo-se que a referência se faz a este artigo) e, considera o Tribunal a quo que é possível, no entanto, a repristinação do estatuído no n.º 3 do mesmo artigo por forma a evitar o cumprimento da prisão subsidiária, i.e., perante situação económica impeditiva da solvabilidade imediata da responsabilidade do condenado seria possível, numa “posição intermédia” acomodar a possibilidade de diferimento do pagamento ou a delineação de um plano prestacional, constituindo este segmento, no momento presente, a única questão prática que conferirá interesse à apreciação do decidido.
Ora, quanto a nós, sendo imaginável uma degradação, perene ou momentânea, da situação económica e financeira do obrigado (situação que nunca terá sido absolutamente favorável ou não teria motivado, a montante, a possibilidade de pagamento da multa em prestações), esse constrangimento, salvo o devido respeito, não implicará a reponderação do estatuído no n.º 3 do art.º 47.º do C.P. e a exclusão, na prática, dos efeitos decorrentes do n.º 5 do mesmo preceito mas, tão só, confere a possibilidade de o obrigado apelar ao disposto no n.º 4 do mesmo preceito ou demonstrar que a razão do pagamento, in totum, do remanescente da multa não lhe é censurável e evitar a execução da prisão subsidiária correspondente nas circunstâncias previstas no n.º 3 do art.º 49.º do C.P..
Quanto à situação prevista no n.º 4 do art.º 47º do C.P. a mesma é, no caso em apreço, embora não equacionada, inexequível, porquanto o Tribunal autorizou o pagamento prestacional em 24 prestações (dois anos) inexistindo, por isso, margem para “alargamento” do plano já que, conforme resulta expressamente do preceito em análise, a flexibilidade concedida está limitada pelos limites temporais contidos no n.º 3 do mesmo artigo.
Assim, perante o vencimento imediato de todas as prestações, ou o condenado procede ao pagamento integral do remanescente em dívida, após contabilização, pela Secção, de todos os montantes entretanto pagos ou, na falta de pagamento voluntário do total a liquidar, após averiguação da situação patrimonial do condenado (já promovida), o Ministério Público instaurará a competente execução. Na eventual falta de património ou rendimentos que o permitam, então o Ministério Público tomará posição para efeitos do art.º 49.º, n.º 1 do C.P. podendo o condenado, sendo esse o caso, lançar mão do prevenido nos n.ºs 2 e 3 deste mesmo artigo.
*
IV.
Decisão
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso do Ministério Público, na parte útil e, em consequência, ante a revogação do decidido e perante o vencimento imediato de todas as prestações, determinar que se proceda à liquidação da responsabilidade do condenado, correspondente ao remanescente não pago da multa criminal, para pagamento imediato, seguindo-se, caso o pagamento não ocorra, os ulteriores termos previstos nos art.ºs 49.º do C.P. e 491.º do C.P.P.
*
Sem custas.
*
Porto, 11 de setembro de 2024
José Quaresma
Castela Rio
Maria Luísa Arantes